Coreiras dançando tango

Hamilton de Holanda e Mestrinho no palco do Festival Ilha Sinfônica, ontem (29) - foto: divulgação
Hamilton de Holanda e Mestrinho no palco do Festival Ilha Sinfônica, ontem (29) – foto: divulgação

Os telões que ladeavam o palco do Ilha Sinfônica mostraram: coreiras do Tambor de Crioula de Mestre Felipe dançando tango, enquanto Hamilton de Holanda (bandolim) e Mestrinho (sanfona) tocavam “Libertango” (Astor Piazzolla). A imagem sintetiza a proposta do festival, que juntou música clássica e música popular, com um elenco que uniu a Orquestra Ilha Sinfônica (formada por músicos ludovicenses para o evento) aos dois citados, expoentes em seus instrumentos, além de nomes já bastante conhecidos da cena local, incluindo o homenageado da noite, o cantor e compositor César Nascimento.

A apresentação de Hamilton de Holanda e Mestrinho, que pela primeira vez tocaram juntos em São Luís, começou com “Canto de Xangô” (Baden Powell e Vinícius de Moraes) e baseou-se no repertório de Canto da Praya (Deck, 2020), álbum que lançaram juntos. Em aproximadamente uma hora de apresentação, desfilaram temas como “Escadaria” (Pedro Raimundo), “Te Devoro” (Djavan) – juntos cantaram o refrão, para delírio da plateia –, “Drão” (Gilberto Gil) – cantada por Mestrinho –, “Afrochoro” (Hamilton de Holanda), “Evidências” (José Augusto e Paulo Sérgio Valle), que o público cantou a plenos pulmões, “Isn’t She Lovely” (Stevie Wonder) e “Palco” (Gilberto Gil). No bis, “Te Faço Um Cafuné” (José Abdon).

Antes da dupla, o Quarteto de Cordas da Orquestra Ouro Preto preparou o terreno. Hamilton de Holanda e Mestrinho ainda voltariam ao palco com a Orquestra Ilha Sinfônica, regida por Jairo Moraes e pelo regente convidado Rodrigo Toffolo (maestro da Orquestra Ouro Preto); o primeiro solou “Bela Mocidade” (Donato Alves) e o segundo, “Engenho de Flores” (Josias Sobrinho). A apresentação da orquestra marcou também o lançamento de “Valsa Ludovicense” (César Nascimento), disponível nas plataformas digitais desde 8 de setembro, aniversário de São Luís.

A Orquestra Ilha Sinfônica acompanhou artistas como Nosly (que cantou e tocou violão em “June”, parceria sua com Celso Borges), o idealizador e produtor do evento Emanuel Jesus (“Filhos da Precisão”, de Erasmo Dibell), Adriana Bosaipo (cantora (e compositora) talentosa que errou a letra de “Eulália”, de Sérgio Habibe) e César Nascimento, que se emocionou ao relembrar “Ilha Magnética”, já um clássico de sua autoria, e “Corêro” (Josias Sobrinho), que encerrou a noite da orquestra com todos os participantes cantando junto, no palco. O Bumba Meu Boi Unidos de Santa Fé, sob o comando de Zé Olhinho ainda se apresentaria.

O cerimonial anunciou que ano que vem tem mais, encerrando o mês de aniversário da capital brasileira do reggae, do bumba meu boi e do tambor de crioula. Tenho certeza que todos os presentes à praça lotada ontem (29) já aguardam ansiosos.

“O comentário é quase geral”

O compositor Chico Saldanha - foto: Ribamar Nascimento/ divulgação
O compositor Chico Saldanha – foto: Ribamar Nascimento/ divulgação

O compositor Chico Saldanha (acompanhado por Marcão ao violão) é o convidado desta quarta-feira (25) no projeto Quarta no Solar. Capitaneado por Aziz Jr. e Chico Nô e aberto pela discotecagem de Pedro Dreadlock, o evento semanal, em pouco tempo, consolidou-se no calendário cultural da capital maranhense, sendo realizado sempre a partir das 19h no Solar Cultural da Terra Maria Firmina dos Reis (Rua Rio Branco, 420, Centro). O couvert artístico individual custa apenas R$ 15,00.

Chico Saldanha é um dos mais versáteis compositores maranhenses, passeando com igual desenvoltura pelos ritmos da cultura popular de seu estado natal e gêneros como o blues, o choro e o brega, num caldeirão sonoro de referências as mais variadas, entre a música, a literatura e o cinema, além, é claro, de sua própria memória prodigiosa, ao evocar e trazer para suas criações personagens como Babalu (na canção homônima), famoso dublador dos primórdios da TV Difusora, e Mário Mentira (em “É Tudo Verdade”), um vizinho seu na São Pantaleão que fez jus ao apelido que lhe deu sobrenome, entre outros.

Natural de Rosário, Saldanha mudou-se cedo para São Luís, vindo morar numa São Pantaleão habitada por gênios da estirpe de Cesar Teixeira (que chegou a ver engatinhando), João Pedro Borges e Ubiratan Sousa – no encarte de Emaranhado (2007), estes três nomes comparecem aos agradecimentos àqueles que os levaram ao caminho da música.

Entre os covers de Beatles da juventude aos grandes festivais – sua “Absolutamente” venceu a etapa maranhense do Canta Nordeste, festival outrora promovido pela Rede Globo de Televisão –, Chico Saldanha é um nome consolidado na história da música popular brasileira produzida no Maranhão, como compositor, autor de quatro álbuns até aqui – além do citado, Chico Saldanha (1988), Celebração (1998) e Plano B (2017) –, incluindo pérolas como “Itamirim”, “Linha Puída” e “Choro de Memórias”, e como memória viva, enciclopédia deste fazer musical.

Arrisco-me a soar imodesto, mas entre os poucos mas fiéis leitores não preciso esconder o orgulho em ser seu parceiro em “Dolores”, letra que escrevi em homenagem a Dolores O’Riordan (1971-2018), vocalista de The Cranberries, que ele musicou e gravou com a participação especial de Regiane Araújo.

Não preciso lembrar também que foi através de Chico Saldanha que as músicas hoje tão de conhecidas do repertório do elepê Bandeira de Aço (1978) chegaram a Marcus Pereira (1930-1981) e a Papete (1947-2016) – seu parceiro em “Pindaré”, para citar mais um clássico. O resto é história e é sempre um enorme prazer ouvi-lo contar. E cantar.

Chico Saldanha completou 79 anos em junho passado e segue ativo e criativo. Uma de suas mais recentes criações já têm duas gravações: além do próprio autor, antes Elizeu Cardoso gravou o presente que ganhou e fez de “Arco-íris” clássico instantâneo, do verso que intitula este texto, que eu não canso de pedir em rodas de violão ou qualquer outra oportunidade que me surja diante dos olhos, ouvidos e coração.

Cátia de França apresentou seu novo álbum em show no Festival BR-135

Cátia de França e banda no palco do Festival BR-135 - foto: Zema Ribeiro
Cátia de França e banda no palco do Festival BR-135 – foto: Zema Ribeiro

Ontem (15), na segunda e última noite do Festival BR-135 Cátia de França reencontrou o público ludovicense – era apenas a segunda vez que a paraibana se apresentava como cantora no Maranhão; a primeira, na Casa d’Arte (Raposa), há pouco mais de dois anos, no formato voz e violão. Antes, já tinha passado por aqui na década de 1970 integrando trupes teatrais.

Graças à redescoberta, pelas gerações mais novas, de seu álbum solo de estreia, 20 Palavras Ao Redor do Sol (1979), no youtube ou em plataformas digitais, ao ver uma juventude conhecendo seu repertório e cantando parte dele junto, não apenas seus maiores êxitos, mas coisas já do último álbum, No Rastro de Catarina (2024), não pude deixar de pensar em meus primeiros contatos com sua obra: entre o fim da infância e início da adolescência ouvindo sua “Kukukaya (Jogo da Asa da Bruxa)” na voz de Xangai no antológico Cantoria 1 (1984).

Ela abriu o show com uma música do novo álbum, “Fênix”, que evoca sua própria trajetória: antes de ser merecidamente reconhecida, sobretudo a partir de Hóspede da Natureza (2016), Cátia de França não era nome comum entre curadorias de festivais – ainda bem que isso mudou, nunca é tarde.

No Rastro de Catarina, o álbum que forneceu a base do repertório de sua apresentação, costura composições novas e resgate de criações que datam ainda da década de 1970. Cátia de França tem a veia e a alma nordestina sem tirar um pé do rock, que o diga a formação da banda que a acompanhou: Cristiano Oliveira (viola), “melhor amigo do mundo”, Marcelo Macêdo (guitarra), Elma Virgínia (baixo) e Beto Preah (bateria) – a mesma formação com que gravou o álbum, faltando apenas Chico Corrêa, que esteve no palco no dia anterior, com Seu Pereira e Coletivo 401.

Em “Espelho de Oloxá” dá o recado: “cada mulher que se impõe nos liberta”, no que fala também de si mesma, jogando luzes sobre o empoderamento feminino, preocupação da curadoria do festival, que montou um line up completamente nordestino e valorizando grandemente a presença feminina em seus dois palcos.

Se o captador do violão quis lhe atrapalhar, ela levou na esportiva. A princípio brincou com sua própria timidez, dizendo ao roadie (e ao público presente): “eu já venho nervosa para cá, ainda acontece um negócio desses”. Mas depois tirou de letra, alternando-se entre os caxixis e o triângulo – nada que espante quem já conhecia a sanfoneira do primeiro disco de Zé Ramalho (1978).

“Negritude” é das músicas da nova safra que mais empolgam o público, que foi ao delírio com a levada reggae com que trajou “Academias e Lanchonetes”. “É a terra do reggae”, saudou a ilha, antes de “Bósnia”, do recado “toda guerra é feia”. Ao ouvir um grito de “gostosa!” vindo da plateia, rebateu, bem-humorada: “mentiroso!”. Respondeu com um “é lá no fim” ao pedido de “Kukukaya” e com um “não sei, não” ao de “Estilhaços”.

Não era um show para a galera do “oba, oba”: Cátia de França apresentou, em um festival gratuito e a céu aberto, o repertório de seu novo álbum, embora não tenham faltado clássicos como “Ensacado”, “Kukukaya”, “Vinte Palavras Girando ao Redor do Sol” e “Quem Vai Quem Vem”, demonstrando ser merecedora da atenção, carinho e reconhecimento com que vem sendo tratada Brasil afora, mais recentemente. Antes tarde do que mais tarde.

*

Ouça No Rastro de Catarina:

A potência de Juliana Linhares

Juliana Linhares e trio no palco do Festival BR-135 - foto: Zema Ribeiro
Juliana Linhares e trio no palco do Festival BR-135 – foto: Zema Ribeiro

Quem já ou/viu sabe que Juliana Linhares é uma das mais potentes artistas da música brasileira surgidas neste primeiro quarto de século e sua apresentação, ontem (14), no Festival BR-135, reafirmou isso.

A potiguar se agiganta no palco, dona da situação, canta com o corpo, com os olhos, ao mesmo tempo cantora e também atriz que canta, nordestina nutrida por seu chão, que também ajuda a nutrir com seu canto, mais que agridoce, agreste-doce.

Quando esteve na bancada do Sem Censura, com Cissa Guimarães, na TV Brasil, por ocasião da entrevista de Chico César e Zeca Baleiro, ela revelou que ouvia seus discos na solidão de seu quarto e cantava acompanhando. Hoje é parceira de ambos.

Acompanhada por Elísio Freitas (guitarra e direção musical), Renata Neves (violino) e Estevan Cípri (bateria), Juliana Linhares apresentou um vigoroso show de uma hora – aliás, de parabéns o BR-135: todas as apresentações começaram pontualmente.

O repertório passeou por seu merecidamente aclamado álbum Nordeste Ficção (2021), desde a faixa-título, e covers de Belchior (“Comentário a Respeito de John”, parceria com José Luís Penna, num original arranjo forró), Zé Ramalho (“Galope Rasante”) e Elino Julião (“O Rabo do Jumento”, no bis), “um conterrâneo”, como fez questão de frisar, cantada à capela, como na véspera, quando Juliana deu uma palinha no Festival Por Terra, Arte e Pão, que celebrava os 40 anos do MST.

Ao longo da apresentação, como o álbum, aberta por “Bombinha” (Carlos Posada), Juliana Linhares ainda havia de dar recados políticos, postura que ela nunca escondeu: em “Balanceiro” (Juliana Linhares/ Khrystal Saraiva/ Moyseis Marques/ Sami Tarik), por exemplo, que frequentou a trilha sonora da novela Renascer, já está embutida no refrão: “eu não posso mudar o mundo, mas eu balanço”. Outro recado direto, carregado de fina ironia, é “Aburguesar” (Tom Zé).

“Vamos rir da cara desse povo que está destruindo o nosso país e fazer rápido alguma coisa para mudar”, disse antes de emendar gargalhadas em meio a “Tareco e Mariola” (Petrúcio Amorim). Chamou o intérprete de libras para cantar com ela “Embrulho” (Juliana Linhares/ Chico César). Gestualmente celebrou a liberdade sexual da mulher ao cantar “É Mais Embaixo”, sucesso da alagoana Clemilda (1936-2014), a rainha do duplo sentido, emendada com a “Lambada da Lambida”, outra parceria com Chico César. E agradeceu a oportunidade de estar em São Luís pela primeira vez, a convite do Festival BR-135, celebrando a iniciativa de um line up completamente formado por artistas nordestinos e com forte presença feminina.

Ao set list de Juliana Linhares compareceriam ainda “Meu Amor Afinal de Contas” (parceria dela com Zeca Baleiro), “Armadilha” (Caio Riscado/ Juliana Linhares), a singela “Bolero de Isabel” (Jessier Quirino) e “Frivião” (Juliana Linhares/ Rafael Barbosa de Araújo), a celebrar o dia do frevo, comemorado ontem. Mais uma vez parabenizando o festival e agradecendo toda sua equipe, revelou, sobre sua presença ali: “eu já estava há anos num namoro com Luciana Simões, finalmente deu certo”. E convidou a cantora, compositora e produtora para outro bis, num dueto em que repetiram “Bombinha”.

No segundo palco, na sequência, os piauienses da Boi de Piranha não deixaram ninguém parado, num bailão que foi de carimbó, lambada e calipso, com referência e reverência a Poly e Seu Conjunto no clássico “Moendo Café” (Bella Maria/ Manzo).

Na sequência – sempre pontualmente, frise-se novamente – a turma do Seu Pereira e Coletivo 401 era super aguardada e fez também um show entre o dançante e a sofrência, agradando enormemente o público presente.

Apoteótica e simbólica foi a volta de Juliana Linhares ao palco para dividir com a banda, após uma troca de gentilezas e admiração recíproca, um medley que foi um verdadeiro passeio pelo Nordeste, que começou com “Pedra de Responsa” (Chico César e Zeca Baleiro), continuou com “Sinhá Pureza” (Pinduca) e clássicos do forró, como “Forró Desarmado” (Cecéu/ Lindolfo Barbosa) e “É Proibido Cochilar” (Antonio Barros).

Serviço: O Festival BR-135 continua hoje (15), a partir das 15h, no Forte Santo Antonio (Ponta d’Areia). A programação (gratuita) de hoje tem DJ Jorge Choairy (15h, Palco 1), Instrumental Pixinguinha (16h, Palco 2), Baque Mulher São Luís (17h, 1), Athuy (18h, 2), Cátia de França (19h, 1), Femme Fusion (20h, 2) e Mombojó (21h, 1).

Titane e André Siqueira para êxtase do público

Titane e André Siqueira - foto: Zema Ribeiro
Titane e André Siqueira – foto: Zema Ribeiro

Já faz tempo que os caminhos de Titane e do Maranhão se cruzam, mesmo que a mineira só tenha vindo por aqui neste setembro em que o Festival Por Terra, Arte e Pão e a Feira da Reforma Agrária Manoel da Conceição celebram os 40 anos do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST).

Antes de Titane e André Siqueira subirem ao palco, após o show dos paraenses do grupo Baobá, a potiguar Juliana Linhares, também simpatizante do movimento, que visitava o festival, subiu ao palco para enaltecê-lo e receber uma homenagem. À capela cantou um trecho de “O Rabo do Jumento”, do conterrâneo Elino Julião (1936-2006), e não resistiu aos pedidos do público por “Balanceiro” (Juliana Linhares, Khrystal Glayde, Moyses Tiago e Sami Tarik), de que também cantou um trecho. Uma das atrações do Festival BR-135, ela se apresenta daqui a pouco, às 19h, no Forte Santo Antônio (Ponta d’Areia).

Titane lembrou, por exemplo, do intenso convívio com Papete (1947-2016), em São Paulo, e também o fato de os dois percussionistas de seu primeiro álbum, serem maranhenses: Manoel Pacífico, há décadas radicado em São Paulo, e Erivaldo Gomes (1959-2022).

Muito apropriado, aliás, o convite do movimento para que a artista se apresentasse nesta celebração – acompanhada pelo monumental André Siqueira ao violão, ele um dos músicos que comparecem a “Titane Canta Elomar – Na Estrada das Areias de Ouro” (2018) –, já que sua relação com o movimento também vem de longa data, tendo a artista colaborado com a criação das Escolas de Arte do MST em Minas Gerais. Ela se apresentou descalça, para sentir a energia do chão do lugar.

Ela abriu o show com “Estrela Natal”, do conterrâneo Sérgio Pererê, ao lado do paraibano Chico César, os compositores que ela mais gravou, como ela mesmo revelou. Cantou acompanhando-se tocando caixa. “Cantar pra não morrer de dor”, como diz a letra, com Titane aproveitando para destacar a importância do MST no enfrentamento ao triste estado de coisas que termina com o país sufocado pela fumaça das queimadas espalhadas por toda sua geografia.

Titane passeou por vários ritmos e fases de sua carreira, num show curto, porém, na mesma medida, intenso e emocionante, que seguiu com “Folia de príncipe”, de Chico César.

Pereira da Viola pede “licença pra cantar neste salão” na letra de “Tá No Tombo”: a essa altura do show, Titane e André Siqueira já eram visitas recebidas com alegria e honras. Guardarei para sempre as palavras gentis com que, do palco, se referiu a este jornalista (que não reproduzo aqui para não soar vaidoso, quem estava lá é testemunha), antes de me oferecer “Clariô”, única de Elomar que compareceu ao repertório.

“Templo” (Chico César, Tata Fernandes e Milton de Biasi) antecedeu a inusitada “Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim”, (Herbert Vianna), hit de Ivete Sangalo. Pererê voltaria ao set list em “Na fé”, e “Aroeira”, com que o show foi encerrado.

Antes do fim, “Boi da Beira” (Mochel) traduziu ainda melhor a relação com o Maranhão de que falamos no início. Nem Titane, nem André Siqueira, nem o público presente à Praça Deodoro, em frente ao novo Armazém do Campo (Rua de Santaninha, Centro), onde aconteceu a programação querem que demore tanto uma próxima ponte Minas-Maranhão.

Cada presente, em êxtase, leva um pouquinho de Titane (e André Siqueira) consigo, após o show. Ela, já tão maranhense por afinidade, certamente leva mais um pouco de Maranhão na bagagem e no afeto. 

O baile de Chico César, em casa

TEXTO E FOTOS: ZEMA RIBEIRO

Chico César se apresentou ontem (2), na Praça das Mercês, no Desterro, no Centro Histórico da capital maranhense, na programação do aniversário de 412 anos de São Luís. Cantou por pouco mais de hora e meia, numa demonstração de sua relação atávica, umbilical e orgânica com a cidade. Muita gente, ainda hoje, acredita que o paraibano é maranhense.

Prestes a completar 30 anos de sua estreia fonográfica, com Aos Vivos (Velas, 1995), ele escolheu “Beradêro”, faixa que abre o citado trabalho, para inaugurar seu show, com a plateia cantando junto desde ali e direito a um “viva Paulo Freire (1921-1997)!” – o educador é citado na letra – respondido a plenos pulmões pelo público presente.

Artista experiente e experimentado, com pleno domínio de palco, Chico César soube fazer o público cantar junto, aplaudir, dançar e vibrar, em êxtase coletivo. Marcado para às 21h, o show só foi começar pouco depois de 23h30. O artista desculpou-se, mas disse que o atraso nada tinha a ver com ele e sua equipe, que esperaram pacientemente todas as apresentações que o antecediam. E revelou: “a gente preparou um show de duas horas, mas vai ter que diminuir um pouquinho. Minha equipe precisa estar no aeroporto às duas”. Após ouvir um “ah” de insatisfação do público, respondeu: “amanhã vocês trabalham”. E o público, para rir de si mesmo: “não!”.

Chico César conhece o chão que pisa, sabia que estava na ilha do reggae. Após “Beradêro” mandou “Árvore”, clássico do baiano Edson Gomes (que ele havia cantado em duo com Marcelo Jeneci em Night Club Forró Latino (volume I), álbum mais recente do sanfoneiro), seguida por “Mama África”, “Brilho de Beleza” (Nego Tenga) – trocando o nome de Bob Marley (1945-1981) da letra original pelo de Marielle Franco (1979-2018) – e finalizando o longo medley com “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores” (Geraldo Vandré), transformando a praça num salão de baile em que os presentes não têm intervalo para interromper a dança.

Dizer que o público foi à loucura pode ser redundante em se tratando deste show, de muitos pontos altos. Chico César cantou “Sereia Linda de Cumã” (Humberto de Maracanã/ Zé Maria), faixa de Aldeia Tupinambá (Ná Music/ Tratore, 2020), de que ele participa (quem esteve no Festival Zabumbada em 2022 não esquece o encontro do paraibano com o batalhão, na mesma Praça das Mercês). A esta seguiram-se “Vestido de Amor” e “À Primeira Vista”, com citação de “Samurai” (Djavan), numa apresentação recheada de intertextos, em que Chico César vai descortinando sua formação e sua relação com o lugar, sem nunca forçar a barra.

No palco ao lado do Monumento da Diáspora Africana, na Praça das Mercês, Chico César exaltou o papel dos negros e das mulheres, por vezes repetindo a frase “lugar de mulher é onde ela quiser” – metade do sexteto que o acompanha – a banda Machifeme, como ele apresentou – é feminino: Síntia Piccin (saxofone e flauta), Richard Fermino (trompete e flauta), Larissa Humaitá (percussão), Gledson Meira (bateria), Helinho Medeiros (teclado e sanfona) e Lana Ferreira (baixo).

“Pensar em Você” trouxe outras citações: “Nossa Canção” (Luiz Ayrão), além de um trechinho de “Dia Branco”, de Renato Rocha e Geraldo Azevedo – com quem Chico divide Violivoz (Ao Vivo) (Chita/ Geração/ LF + C, 2023). Quando cantou “Deus me Proteja” agradeceu a Dominguinhos (1941-2013) e Juliette, por colocarem sua composição no coração dos brasileiros. Presenteou os presentes com uma inédita, “composta ontem” – quando postou-a no instagram: “Namorar no Maranhão”, uma toada que primeiro cantou sozinho ao violão e depois acompanhado da banda. Dedicou-a a “Josias Sobrinho e Chico Saldanha, meus mestres”, que estavam presentes. Outra viria mais à frente, “composta durante a pandemia, mas também parece que foi ontem”, sobre os Lençóis Maranhenses – que ele revelou não conhecer, “ainda”, brincando com o fato de serem “muita areia para seu caminhãozinho”.

“Agalopado” (Alceu Valença), faixa que abre Espelho Cristalino (Som Livre, 1977), inaugurava um bloco de formadores de Chico César, como ele mesmo revelou. Seguiram-se “Sobradinho” (Sá e Guarabyra), cuja regravação pelo paraibano foi abertura de novela da Rede Globo, e “Admirável Gado Novo” (Zé Ramalho). O fio autoral foi retomado com “Palavra Mágica” e “Da Taça”, com incidental de “Lenha”, do parceiro maranhense Zeca Baleiro (com que Chico divide o álbum Ao Arrepio da Lei (Saravá/ Chita, 2024). O medley se completava com “Proibida Pra Mim” (Chorão/ Marcão/ Champignon/ Pelado), sucesso do grupo Charlie Brown Jr., também regravada por Baleiro, “Onde Estará o Meu Amor”, “Diana” (Paul Anka em versão de Fred Jorge [1928-1994]) e “Filme Triste” (John D. Loudermilk [1934-2016] em versão de Romeu Nunes), na porção jovem-guardista do espetáculo.

“Eu vou cantar uma música que eu lembro que a primeira vez que eu cantei em público foi aqui, num carnaval, em cima de um trio elétrico. Não é fácil a gente lançar uma música assim”, lembrou-se antes de cantar “Pedrada”. Como ontem, este repórter estava lá e lembra do impacto da mensagem, em pleno carnaval de 2019. Pelo meio da música mandou a palavra de ordem: “sem anistia!”.

Em meio a “Estado de Poesia” gritou “viva Celso Borges (1959-2023)!”, lembrando o parceiro que o apresentou a Zeca Baleiro. Quando cantou “Pedra de Responsa” (Chico César/ Zeca Baleiro) voltou a apresentar a banda, referindo-se a cada músico como uma pedra de responsa, a gíria maranhense que designa os reggaes muito bons, os prediletos. Era a noite do povo de axé, e Chico César terminou a apresentação cantando “Mamãe Oxum” à capela. O tema de domínio público, adaptado por Zeca Baleiro, foi cantado em dueto por ambos no álbum de estreia do maranhense, Por Onde Andará Stephen Fry? (MZA Music, 1997).

Chico César saudou São Luís pelos 412 anos que a cidade completará no próximo dia 8 de setembro e disse esperar estar de volta em 12 anos para esta festa. O gracejo de um artista que adora o lugar, por ele é adorado e tem vindo com frequência, para alegria de seu público fiel: de 2019 para cá, só não se apresentou em 2020 e 2021, os anos mais graves da pandemia de covid-19.

Passava um pouco de uma da manhã quando as luzes do palco se apagaram e os resistentes começaram a fazer o caminho de volta para casa, satisfeitos, mas com o gosto de quero mais por contradizer-lhes, certamente em estado de poesia.