
Não é possível chamar de outra coisa diferente de testemunhas privilegiadas a plateia do show “Bolero de Célia”, apresentado ontem (29), no Miolo Bar e Café (Av. Litorânea, 100, Calhau). A cantora Célia Maria e o Regional Seis Por Meia Dúzia (que toma o nome emprestado de um choro de Luís Barcelos) proporcionaram ao ótimo público presente – todos os ingressos foram vendidos antecipadamente – uma noite de êxtase.
Tudo estava em seu devido lugar: Célia Maria em plena forma vocal, com seu bom humor característico, o grupo que a acompanhou, formado especialmente para a ocasião – Rui Mário (sanfona, arranjos e direção musical), Mano Lopes (violão sete cordas), Wendell de La Salles (bandolim), Gustavo Belan (cavaquinho), Gabriela Flor (percussão) e Chico Neis (violão sete cordas) –, a serviço do canto da estrela da noite, os convidados especiais Claudio Lima e Dicy, a escolha do repertório, o cenário (de Rivânio Almeida Santos), a impecável produção da RicoChoro Produções (leia-se os incansáveis Ricarte Almeida Santos e Danielle Assunção). Como disse e ouvi de alguns, ao fim da apresentação: nem uma microfoniazinha de nada para a gente ter alguma coisa do que reclamar.
“Sete ladrões que a polícia não prende”, me sopraram os amigos Targino e Neto – a eles e Maysa Pestana ofereço este texto –, ambos se valendo do jargão muito usado no meio musical: ladrão aqui é elogio, aquele que é muito bom, aquele que sabe tudo.
Célia Maria desfilou um repertório de sua intimidade – começou por “Ciúme”, de Antonio Vieira (1920-2009) –, passeando por seu álbum (o homônimo Célia Maria, de 2001) e seu EP (Canções e Paixões, de 2022), até aqui seus únicos registros fonográficos – pouco, para uma cantora de sua envergadura –, e clássicos da música brasileira, mas fez bonito também ao aventurar-se por novidades, como para ela era o caso de “Chorinho de Herança”, parceria de Chico Nô e Ricarte Almeida Santos que ela cantava pela primeira vez – a letra estava à sua frente, na estante, mas ela só consultou-a aqui e acolá, não cantou lendo.
O sexteto formado para acompanhá-la mescla maranhenses e adotados – Chico e Gabi são catarinenses, Belan é mineiro, Wendell potiguar – e friso suas origens tão somente para dizer do afeto recíproco deles pela terra que escolheram para viver e fazer música e esta não se aprende apenas no colégio, como já ensinava Noel Rosa (1910-1937): não é raro vê-los bebendo na fonte, em noites de São João ou qualquer experiência que vá tornar-lhes íntimos das polirritmias do bumba meu boi ou do tambor de crioula e da obra de Cesar Teixeira (para citar outro maranhense presente ao repertório de ontem) e outros mestres da música popular brasileira produzida aqui.
Ainda sobre o grupo, todos músicos extraordinários e referências em seus respectivos instrumentos, tocando sem exageros ou firulas, a serviço de emoldurar o canto de Célia Maria, não à toa alcunhada a voz de ouro do Maranhão – no que torna a martelar o juízo a pergunta retórica sobre o porquê de, a despeito de tanto talento, ser ainda menos conhecida e reconhecida do que merece e, apesar de ter circulado pelo eixo Rio-São Paulo em início de carreira e convivido com grandes nomes, nunca ter sido alçada ao sucesso nacional.
Mas a noite não era de lamentos e logo no começo do show ela contou orgulhosa que tinha ganhado de presente de Zeca Baleiro a música que dá nome ao show. Após o clássico “Manhã de Carnaval” (Luiz Bonfá e Antonio Maria), chamou Claudio Lima, primeiro convidado, ao palco. Juntos, cantaram “Lápis de Cor” (Cesar Teixeira); depois, ela perguntou se ele não gostaria de sentar-se para fazer “Loucura”, referindo-se ao clássico de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), que ele cantaria sozinho na sequência. “Não, obrigado, eu gosto de fazer “Loucura” em pé”, respondeu, num alívio cômico que fez toda a plateia gargalhar.
Com minha esposa Guta Amabile, sentado à mesa do amigo Paulo Gilmar, também acompanhado de sua Marta, troquei com ele várias das impressões que trago para o presente texto. A meu lado, em outra mesa, um turista, deduzo, filmava, aplaudia, perguntava o título ou a autoria de determinada música, o que ia respondendo dentro das possibilidades de minha memória.
Em plena forma vocal, Célia Maria precisava de ajuda para levantar-se, mas ainda arriscou-se a uns passos de dança, já uma marca de suas apresentações, por exemplo em “A Pedra Rolou” (Antonio Vieira). “Eu estou com um problema no joelho”, desculpou-se com a plateia – mas dançou e inspirou alguns a também se jogar na pista.
Quando chegou a vez de Dicy também não faltou bom humor. Juntas cantaram – e botaram a plateia para cantar junto, pelo menos o refrão, “Só Pra Chatear” (Príncipe Pretinho), sucesso de Roberto Ribeiro (1940-1996). Quando Dicy foi defender sozinha “Obrigado” (Eduardo Gudin), pediu uma cadeira, no que Célia mandou: “tu também tá com problema no joelho, minha filha?”, para gargalhada geral do público. “Não, é só para eu cantar mais perto dessa diva”. A admiração era mútua e Célia Maria agradeceu a oportunidade de conhecer Dicy.
Após clássicos como “Modinha” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), “Azulão” (Jayme Ovalle e Manuel Bandeira), “O Morro Não Tem Vez” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes) e “Chuvas de Verão” (Fernando Lobo), entre outras, Célia Maria ainda voltou a dançar em “Balança Pema” (Jorge Benjor), outra marca de suas apresentações.
Anunciado o fim do show, aos gritos de “mais um” da plateia, ela mandou ver “O Samba é Bom” (Antonio Vieira) e talvez aí finalmente a gente tenha achado algo para criticar no show. Mas no fundo sabemos que não seria justo reclamar de sua duração, também na medida. Então iniciamos ali mesmo o coro por um bis de “Bolero de Célia”, o show. Ou que a produção, nos moldes do saudoso Clube do Choro Recebe, com outros artistas e grupos, inscreva o acontecimento como um evento regular no calendário cultural da capital maranhense. A conferir. Expectativas foram criadas.


