Com gingado, Lira Neto conta histórias do samba

[O Imparcial, ontem]

Inaugurando nova trilogia, Uma história do samba: volume I (As origens), novo livro do autor das biografias de Padre Cícero e Getúlio Vargas, conta as histórias do início do samba e sua consolidação como gênero musical brasileiro por excelência

Uma história do samba: volume I (As origens). Capa. Reprodução
Uma história do samba: volume I (As origens). Capa. Reprodução

 

Autor das bem sucedidas biografias de Padre Cícero [Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão; Companhia das Letras, 2009] e Getúlio Vargas [Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930); Companhia das Letras, 2012; Getúlio: do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945); Companhia das Letras, 2013; e Getúlio: da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954); Companhia das Letras, 2014] – trilogia que vendeu 250 mil exemplares – o escritor Lira Neto se põe agora a contar as histórias do samba em Uma história do samba: volume I (As origens) [Companhia das Letras, 2017, 342 p.; R$ 64,90], primeiro volume de uma nova trilogia.

Lira Neto acerta ao usar o artigo e o plural no título de seu novo livro: trata-se de uma história, sua versão, digamos, das origens do brasileiríssimo gênero musical, do qual até hoje é impossível falar no singular.

De quando o samba ainda era uma denominação comum para festas, em vez de designar um gênero musical, até o início do primeiro governo de Getúlio, o autor passeia por diversos momentos e nomes fundamentais para a consolidação do samba como essa espécie de atestado de brasilidade em que se configurou.

Sem se pretender dono da verdade, o autor tem a ginga e a malemolência para entrecruzar diversos episódios e contar várias histórias deliciosas. Não é, no entanto, um livro menos sério, fruto de árdua pesquisa – notas e fontes somam quase 40 páginas.

O livro começa com o convite de Heitor Villa-Lobos, então diretor do Departamento de Música da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal – à época ainda o Rio de Janeiro – a Zé Espinguela para o resgate de um cordão carnavalesco.

Passa pelas parcerias inaugurais do maranhense Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, pela fundação das primeiras escolas de samba, como a Deixa Falar – que viria a dar na Estácio de Sá – e a Estação Primeira de Mangueira, por Cartola, Carlos Cachaça e companhia, pela gravação de diversos músicos e músicas populares brasileiros a bordo de um navio, numa jogada de marketing e política de boa vizinhança americana, entre os quais estavam Cartola e a santíssima trindade da música brasileira: Pixinguinha, Donga e João da Baiana.

Uma história do samba: volume I (As origens) visita também a polêmica em torno de ter sido (ou não) o maxixe Pelo telefone [1916], de Donga, o primeiro samba – a música é considerada marco inaugural do gênero e em torno de sua data de gravação celebrou-se, ao longo de 2016, prolongando-se por este ano, o centenário do samba.

Conta deliciosas histórias sobre Noel Rosa – que trocou a medicina pelo samba, até morrer tuberculoso aos 26 anos –, outro nome fundamental para a popularização e “urbanização” do samba, Ismael Silva, Francisco Alves e Mário Reis – estes, dois dos maiores cantores de sua época, ganharam fama também como “comprositores”, isto é, pagavam para ter seu nome em parcerias em que não puseram nada além da voz, uma espécie de pedágio ou jabá, antes de esta acepção ter sido inventada.

Lira Neto foge da enfadonha linearidade, escreve como se sambasse, e, qual um passista na avenida, leva o leitor a Paris com Os Oito Batutas, naturalmente liderados por Pixinguinha, passeando depois pelas agruras que o grupo enfrentou em turnê pela vizinha argentina. Lembra ainda Sinhô, autor de Jura, tido como o Rei do Samba, que faleceu na miséria, vítima da tuberculose que venceu tantos artistas, além das primeiras competições entre as escolas de samba cariocas, organizadas pelo efêmero Mundo Sportivo, jornal comandado por Mário Filho – que viria a batizar o estádio do Maracanã.

Com pitadas de indispensável bom humor, Lira Neto acompanha as evoluções do samba neste curto período inaugural. Merecem atenção do leitor também o destacado papel da crítica e o racismo vigente à época. Ao fim da leitura, impossível não ansiar pelo/s próximo/s volume/s da trilogia Uma história do samba. Este primeiro já se configura obra imprescindível, não só sobre a história do samba, mas sobre a história da música (popular) brasileira.

Best of

Para Belchior com amor. Capa. Reprodução
Para Belchior com amor. Capa. Reprodução

 

O desaparecimento do compositor cearense Belchior tem causado verdadeira comoção aos brasileiros, de maneira geral. Sobram especulações sobre seus motivos, apesar de anunciados ao longo de sua obra, e homenagens. Discos como Belchior Blues [2012], que destaca a porção blueseira de quem disse que “um tango argentino me vai bem melhor que um blue” [em A palo seco, de 1973], e Ainda somos os mesmos [2014], organizado pelo site Scream & Yell, além de shows – o Encontrando Belchior, de Tássia Campos, e a releitura do disco Alucinação [1976] por Gero Camilo –, e até mesmo bloco de carnaval: o Volta Belchior, de Belo Horizonte/MG. Sem contar os gritos e a hashtag #voltabelchior, que se irmanam aos gritos e hashtag #foratemer, para protestar contra o atual estado de coisas no Brasil.

Lançado na altura do aniversário de 70 anos do compositor, completados em 26 de outubro de 2016, soma-se a este lote de homenagens Para Belchior com amor [Miragem Editorial, 2016, 96 p.], livro organizado pelo cearense Ricardo Kelmer reunindo 14 escritores conterrâneos – inclusive ele próprio – em textos para 14 clássicos do bigodudo mais querido do Brasil. Há contos, cartas, ensaios, memórias.

O conto de Claudene Aragão para Coração selvagem [1977] imagina um encontro seu com Belchior. Escondido num lugar óbvio, o compositor acede vê-la e falar-lhe, ocasião em que revela ter mais de 300 músicas inéditas. Em determinada passagem, o personagem Belchior afirma, sobre seu desaparecimento: “Todas as respostas sempre estiveram nas minhas canções. Fui preparando isso por muito tempo, e nas minhas composições fui deixando pistas sutis do meu plano […]. Não me perdi. Não fugi. Não me escondi. Me permiti viver como eu queria. Afinal de contas, não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja”, citando trecho da composição revivida.

Também merece destaque o conto de Raymundo Netto, que recria, de forma bem humorada, o encontro de Belchior com policiais, como cantado em Fotografia 3×4 [1976]. Cai na brincadeira do nome inventado pelo compositor em entrevista aO Pasquim, quando entre várias lorotas, disse chamar-se Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenele Fernandes – esparrela em que cai também o organizador, ao citar o falso nome de batismo na orelha e numa pequena biografia do homenageado ao final do livro. O verdadeiro nome de Belchior é apenas Antonio Carlos Belchior, como afirma o jornalista Jotabê Medeiros, que lança este ano Pequeno perfil de um cidadão comum, biografia de Belchior em que trabalha já há alguns anos.

A jornalista Ana Karla Dubiela parte das lembranças de um show de Belchior no campus da UFSC em 1984, quando ela estava em lua de mel em Florianópolis, para recontar A palo seco. “Quando fomos testemunhas do desespero que virou moda em 76, éramos adolescentes – e, com algumas exceções, os nossos desesperos eram outros. Pouco mais tarde, universitários, andávamos meio descontentes, é verdade, sem entender muito bem por que o ar era mais denso, os silêncios mais gritantes, as conversas cifradas”, lembra ela, que foi para o show, que “durou bem mais que as duas horas previstas”, “com os LPs debaixo do braço para pedir autógrafo”.

Alucinação [1976], por Thiago Arrais, e Apenas um rapaz latino-americano [1976], por José Américo Bezerra Saraiva, extrapolam o universo das canções escolhidas e do próprio compositor, espraiando-se por outras obras suas, de conterrâneos que buscavam o sucesso no mesmo período, e de artistas (da música ou não) com quem a obra de Belchior sempre dialogou. Com seu estilo peculiar Xico Sá recria Todo sujo de batom [1974] e Gero Camilo amplifica o drama familiar de Na hora do almoço [1971], enquanto Ethel de Paula, em Conheço meu lugar [1979], atesta: “eis que o nome Belchior, segundo o dicionário, significa exatamente isso: “Rei da luz. Rei luminoso”. Ou ainda o seu correspondente terreno, plebeu: “mercador de objetos usados; alfarrabista”. Um simples cantador das coisas do porão. Uma pessoa. E a palavra pessoa, nele, ainda soa bem”.

Ouça Alucinação, eleito por internautas e críticos do jornal O Povo, “o melhor disco cearense de todos os tempos”:

As várias facetas do movimento mangueBit

A grande serpente. Capa. Reprodução
A grande serpente. Capa. Reprodução

Em A grande serpente – poéticas da criação no mangueBit [mantenho na resenha a grafia da autora; Fundarpe, 2014, 224 p.], Paula Lira faz um profundo mergulho na história do surgimento do mais recente movimento organizado da música brasileira, cujo boom se deu no início dos anos 1990, no Recife.

De múltiplas formações, a autora baseia-se em dois trípticos: a poética, a ciência (desde o nome artístico de seu principal artífice) e a mitologia do mangue, que ajudaram a fecundar e eclodir o movimento, além da diversão, diversidade e brodagem, elementos também fundamentais para o despertar da grande serpente.

Para um ludovicense que acompanhou com algum atraso a r/evolução do movimento – a partir de fins da década de 1990 –, é impossível não ler o livro sem fazer dois exercícios: o de lembrar as descobertas, à época; e indagar-se o porquê de, apesar de condições parecidas, do ponto de vista musical e da biodiversidade, algo parecido não ter acontecido em São Luís – a riqueza da cultura popular e as grandes áreas de manguezal, além do imaginário ao redor de lendas, incluindo também uma serpente adormecida nos subterrâneos da ilha.

O livro de Paula Lira é fruto de uma pesquisa de mestrado mas consegue tornar-se acessível ao leitor comum, de fora dos muros da universidade. Sem abrir mão dos rigores da ciência, o resultado é poético, como afirma o subtítulo, dando conta da complexidade e variedade do que foi/é o movimento mangueBit, para além da música e dos símbolos por que ficou mais conhecido, os caranguejos com cérebro e a antena parabólica enfiada na lama.

Por vezes como elemento partícipe, a autora acompanha festas, discos, moda – a partir dos primeiros shows de Chico Science, garotos adotam o chapéu de palha, apontando para a criação de uma estética mangue –, e entrevista nomes fundamentais do movimento, entre músicos – sobretudo integrantes da Nação Zumbi e mundo livre s/a, DJ Dolores – e gente de outras áreas –, o jornalista Renato L, ministro da informação do movimento mangue, e h. d. mabuse, ministro da tecnologia, sem nunca perder de vista o elemento diversão, a “greia”.

A pesquisa de mestrado ganhou adendos para tornar-se livro e é possível perceber uma r/evolução (das periferias) recifense/s a partir do movimento mangue: de quarta pior cidade do mundo para se viver, como apontava o noticiário da época, a uma cidade onde as coisas acontecem, apontando o desejo de uma inversão no fluxo migratório: em vez de jovens recifenses quererem sair para Rio de Janeiro e São Paulo, passa a acontecer o contrário. De música para se divertir – fazer o que se quer ouvir, mesclado ao do it yourself do movimento punk, também fonte de inspiração – a questionamentos sobre a realidade social, sem perder o ritmo, o elemento dançante, mas com diversidade, ao contrário do axé baiano. Nação Zumbi não é mundo livre s/a, que não é Eddie, que não é Mestre Ambrósio e versa-vice.

Aos mais de 20 anos de movimento, que deu à música brasileira discos hoje antológicos como Da lama ao caos [1994] e Afrociberdelia [1996], os dois primeiros da Nação Zumbi, ainda sob o comando do inovador Chico Science, morto precocemente em um acidente automobilístico no carnaval de 1997, passando pela estreia da mundo livre s/a Samba esquema noise [1994] – título fortemente influenciado pelo Samba esquema novo [1963] de Jorge Ben (depois Jor), cujo A tábua de esmeraldas [1974] é uma espécie de horizonte estético do movimento –, e Samba pra burro [1998], de Otto (não à toa ex-percussionista de ambas), seguiu-se a consolidação do Recife como metrópole não apenas musical brasileira, com resultados positivos em áreas diversas como cultura, turismo e patrimônio. “Um passo à frente” em relação à mpb de Geraldo Azevedo, Alceu Valença e cia. que antecedeu os mangueboys.

Não se pode desprezar também o fato de que Pernambuco é, hoje, o maior polo cinematográfico brasileiro, para o que já apontava também o início do movimento mangue, com cineastas como Paulo Caldas e Lírio Ferreira – diretores de Baile perfumado [1996], que conta a história de Benjamim Abraão, o homem que fotografou Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. À trilha sonora comparecem expoentes do movimento, como Chico Science, Fred 04, Stela Campos e Mestre Ambrósio, entre outros.

Talvez seja impossível falar em mangue no singular, tamanha é a fertilidade do ecossistema e a contribuição à cultura brasileira dada pela turma de Chico Science e Fred 04 – talvez ainda não reconhecida como deveria. A edição de A grande serpente é importante pontapé inicial neste sentido, não à toa reconhecido como “o primeiro livro mangue” por Fred 04 ou “um livro para se ouvir” por Renato L: é caprichada, sem descuidar de qualquer aspecto: em um livro muito bem realizado do ponto de vista gráfico (a serpente perpassando as páginas), conteúdo fundamental para interessados na cena do Recife ou em música brasileira em geral.

Professor de sentimentos

Paulinho da Viola e o Elogio do Amor. Capa. Reprodução
Paulinho da Viola e o Elogio do Amor. Capa. Reprodução

 

Intérprete de Paulinho da Viola – de quem gravou Para ver as meninas em Canção brasileira – A nossa bela alma [1992] – Eliete (Eça) Negreiros propõe outra interpretação para a obra do príncipe do samba em Paulinho da Viola e o Elogio do Amor [Ateliê Editorial, 2016, 146 p., R$ 41,00], obra não à toa dedicada a, entre outros, Arrigo Barnabé – cujo antológico Clara Crocodilo [1980] tem incidental de Paulinho da Viola –, ícone do movimento a que se filia, a Vanguarda Paulista.

No livro, a cantora e filósofa se propõe a analisar a representação do amor na obra do compositor, quase nunca incluído em galerias de gigantes da música popular brasileira por apequenarem-lhe no rótulo de sambista. Divide o estudo em três partes, “o amor breve”, “o amor e a melancolia” e “o amor feliz”, para arrematar com “educação sentimental”, afinal de que trata o repertório do compositor, provocando a aproximação entre a obra do portelense e as ideias de pensadores como Montaigne, Walter Benjamin, Platão, Aristóteles, Roland Barthes e Sêneca, entre outros, recorrendo também a pensadores nacionais tão fundamentais quanto Marilena Chauí, Nuno Ramos, José Miguel Wisnik e Luiz Tatit.

“Mas longe de mim querer traçar uma ainda que breve história da felicidade, no pensamento, na literatura ou na canção. O que irei fazer é ver como a questão da felicidade aparece nas canções de Paulinho da Viola, como ela foi colocada por alguns poetas e filósofos e buscar as afinidades entre as suas canções e a nossa tradição ocidental amorosa”, afirma.

Eliete Negreiros faz um profundo mergulho em músicas mais ou menos conhecidas, como Coisas do mundo, minha nega, Foi um rio que passou em minha vida, Num samba curto, Onde a dor não tem razão, No velório do Heitor, Bebadachama, Eu canto samba, entre muitas outras, sem esquecer que “outro aspecto importante em sua obra é a presença do choro, não só em composições instrumentais, como Choro negro, Abraçando Chico Soares e Sarau para Radamés, mas também na composição de canções. Os sambas de Paulinho da Viola têm uma melodia muito elaborada, herdeira da tradição do choro. Sua iniciação musical se deu pela escuta dos maiores tocadores de choro brasileiro, Pixinguinha e Jacob do Bandolim, em saraus que aconteciam em sua casa”, afirma a autora sobre o filho do saudoso violonista César Faria, integrante da formação original do mítico Conjunto Época de Ouro.

A obra de Paulinho da Viola aproxima-se também – num paralelo dos tipos de amor que contém – das de Cartola, Nelson Cavaquinho e Lupicínio Rodrigues, de quem é intérprete, entre outros.

“O sambista só sabe que nada sabe, mas que deseja saber, que ama o saber. Nesta medida, nesta canção, o poeta é filósofo, é alguém que ama a sabedoria, que a deseja e que se dedica a isso através da canção. Cantar aqui se apresenta, pois, como um modo de refletir sobre si mesmo e sobre o mundo, um modo de buscar o conhecimento. Cantar, neste sentido, é filosofar”, anota sobre Coisas do mundo, minha nega, reflexão que de resto cabe perfeitamente na elegância que permeia o conjunto da obra de Paulinho da Viola.

“A canção popular brasileira se insere aqui como grande instrumento de autoconhecimento, de conhecimento, de dilatação e de intensificação da vida, quero dizer, como grande veículo de educação sentimental e estética da maioria dos brasileiros”, ao menos aqueles que já ouviram Paulinho da Viola – que nunca mais será simplesmente ouvido, isto é, ouvido do mesmo jeito, após a leitura de Paulinho da Viola e o Elogio do Amor.

*

Ouça Coisas do mundo, minha nega (Paulinho da Viola):

Biografia de Zózimo Barrozo do Amaral está à altura de sua elegância, importância e bom humor

[O Imparcial, hoje]

Em mais de 600 páginas, Joaquim Ferreira dos Santos faz profundo e bem-humorado mergulho na vida do colega com quem trabalhou

 

O jornalista Zózimo Barrozo do Amaral em foto de Joëlle Rouchou
O jornalista Zózimo Barrozo do Amaral em foto de Joëlle Rouchou

Joaquim Ferreira dos Santos já contava quase década e meia de profissão quando foi contratado para ser repórter da coluna de Zózimo Barrozo do Amaral, quando este editou o mítico Caderno B do Jornal do Brasil, em 1983.

Enquanto houver champanhe, há esperança. Capa. Reprodução
Enquanto houver champanhe, há esperança. Capa. Reprodução

É minucioso e superengraçado o volume que dedica a retratar a vida do colega: Enquanto houver champanhe, há esperança: uma biografia de Zózimo Barrozo do Amaral [Intrínseca, 2016, 637 p.; R$ 69,90]. A frase-título encimava o “painel do ego”, diante do qual trabalhava o personagem, com fotos de celebridades colunáveis, às vezes com o colunista ao lado, os inseparáveis cigarro e copo de bebida nas mãos.

O livro começa pelo episódio em que o bem-nascido Zózimo esbanja grã-finagem e bom humor ao ser preso pelo regime militar e seguir por uma bem-sucedida sequência de episódios quase sempre hilariantes, a mais perfeita tradução do “ganha-se pouco mas é divertido”, embora este não fosse bem o caso do colunista social – como os leitores perceberão quando converterem, para valores atuais, seu salário quando da transferência para O Globo, já na década de 1990.

Aliás, chamá-lo simplesmente de colunista social talvez o diminua. O episódio da prisão, que abre o livro, demonstra inequivocamente, que Zózimo não se ocupava apenas de jantares elegantes da sociedade, regras de etiquetas e o ti-ti-ti do “quem come quem” (para usar uma expressão do autor) típico desta função supostamente mais fácil e glamourosa do jornalismo.

Jornalismo, com J maiúsculo, era o que praticava Zózimo Barrozo do Amaral, às vezes com pitadas de literatura – não raro só os implicados em suas notas cifradas entendiam d/o que ele estava falando. E nisso residia a graça: o leitor comum, o jornal ao lado de seu café com leite, pão e manteiga, adorava imaginar-se íntimo daqueles ambientes que por vezes sequer frequentava. Tudo temperado a muito bom humor.

O personagem de Joaquim Ferreira dos Santos frequentou as páginas do noticiário, sendo um dos jornalistas mais influentes do país, por mais de três décadas, até a morte, em 1997 – este talvez o único episódio triste de toda a narrativa, ainda assim contado de forma bem-humorada. Zózimo tinha consciência da importância de seu ofício e ia pessoalmente à cata de notícias, isto é, o expediente esticava diariamente por jantares, boates e restaurantes. De algum modo, morreu em consequência de seu ofício, e isto também o torna grande.

O que faz o autor, valendo-se de seu talento e da elegância de seu próprio texto, um dos melhores do jornalismo brasileiro, hoje, e servindo Zózimo como exemplo, é dar verdadeiras lições de jornalismo, história, cultura, política e sociedade brasileiros, passando por todos estes cenários, ao longo do período.

Num tempo em que se apregoa a morte – ou no mínimo um respirar por aparelhos – do jornalismo e as colunas sociais contentam-se com o copiar e colar de releases enviados por assessorias, Enquanto houver champanhe, há esperança é um livro necessário, não apenas para quem é do ramo.

Aqueles meninos somos nós

Os meninos da Rua Paulo. Capa. Reprodução
Os meninos da Rua Paulo. Capa. Reprodução

 

É bastante oportuna a presente reedição de Os meninos da Rua Paulo [Companhia das Letras, 2017, 271 p.], numa época em que valores como união, companheirismo, fidelidade, dignidade, honra, lealdade e humildade, entre outros – de que, afinal, trata o livro –, andam tão “fora de moda”.

Desde que foi lançado, há 110 anos, o clássico juvenil de Ferenc Molnár vem esgotando edições e conquistando, mais que leitores, gente que devota a ele algum pedaço importante de sua formação, como atesta o apêndice emocional do volume, com belos textos de Nelson Ascher e Michel Laub.

Para crianças de todas as idades, poderia recomendar o clichê publicitário, a aventura é por demais conhecida e emocionará leitores de primeira viagem e os que a ela retornam. Conta a história de adolescentes que brigam pelo direito de ocupar um terreno baldio, o grund, numa área de Budapeste. São dois exércitos organizados, com suas hierarquias, táticas, estratégias e muita disposição.

A tradução e as notas caprichadas de Paulo Ronái, ele mesmo nascido húngaro e tornado brasileiro, são um luxo, apontando detalhes que poderiam nos passar desapercebidos, da pronúncia dos nomes dos personagens a pequeníssimos escorregões do autor (por exemplo a confusão em torno da bandeira de um dos exércitos juvenis que protagonizam a aventura).

Até hoje não se sabe ao certo se Molnár foi integrante da Sociedade do Betume, embora duas passagens no texto indiquem que sim. O título do livro já nos instiga a simpatizar com ela, mas independentemente de para que lado se torça e dos vencedores, é um livro paradoxalmente triste, apesar de todas as lições que dele podemos tirar.

Um bom exemplo destas lições é a fala de Nemecsek, quando apanhado em território inimigo: “Preferi tomar um banho a ficar à beira do lago rindo de um camarada. Prefiro ficar na água até o Ano-Bom a conspirar com os inimigos dos meus amigos. Pouco me importa que vocês me tenham dado um banho. Outro dia caí na água sozinho: foi quando o vi aqui pela primeira vez, entre estranhos. Podem convidar-me a ficar com vocês, adular-me, cumular-me de presentes: nada tenho que ver com vocês. Se me botarem na água mais uma vez, ou cem vezes, ou mil vezes, voltarei sempre: amanhã, depois de amanhã, e me esconderei em algum lugar onde vocês não me verão. Não tenho medo de nenhum de vocês. E, se vierem à rua Paulo tomar-nos o nosso terreno, lá estaremos. Lá, verão que, quando nós também somos dez, sabemos falar em outro tom. Comigo a briga não foi difícil! Vence quem é mais forte. Os Pásztor roubaram as minhas bolas de gude no parque do Museu, porque eram os mais fortes! Dez contra um, é fácil! Mas a mim pouco importa. Podem-me dar uma surra, se quiserem. Bastava eu não querer para não entrar na água, mas recusei o seu convite. Podem afogar-me ou matar-me a pauladas: eu nunca serei traidor como certos indivíduos… como este…” (p. 125-6), uma verdadeira aula de dignidade em tempos golpistas.

Ou ainda: “Esta é a sorte do traidor: desconfiam dele mesmo quando fala a verdade” (p. 186). “Ao ler, este ou qualquer outro livro, queremos fantasiar – pleiteamos, mesmo que já adultos, um espaço livre para a imaginação, reivindicamos a infância de volta, o nosso terreno baldio”, afirma o editor Luiz Schwarcz na orelha-exceção, mesmo quando perdemos este terreno baldio para a especulação imobiliária, por exemplo.

Pode parecer apenas uma fábula juvenil, mas no fundo, Os meninos da Rua Paulo é um livro sobre cada um de nós, atualíssimo, mesmo após 110 anos de publicado.

Música para ler

Unknown pleasures. Capa. Reprodução
Unknown pleasures. Capa. Reprodução

Em Unknown pleasures [Cobogó, 2014, 112 p.; tradução: Gabriela Fróes], o jornalista Chris Ott, crítico de música com textos publicados em veículos como The Village Voice, pretende e consegue ir além da aura mítica construída ao redor da vida breve do genial Ian Curtis (1956-1980), que se suicidou aos 23 anos em maio de 1980.

No livro que leva o título e comenta o processo de realização do disco Unknown pleasures, do Joy Division, destaca, por exemplo, a importância do produtor Martinn Hannett para a moldura da sonoridade da banda, destacando e localizando a importância do grupo – que viria a desaguar no New Order com o suicídio de seu líder – tanto àquela época quanto visto em perspectiva, quase 36 anos depois do fim – o livro foi escrito em 2003, quando Curtis já contava mais de 20 anos de morto.

“Algo que sempre falta nas discussões sobre o trabalho do Joy Division é perspectiva. E só o tempo pode nos dar perspectiva. Por mais objetivo que alguém possa ser, e por mais distante que esteja da história, a música do Joy Division tem a mesma potência que qualquer droga: é esmagadora, entorpecente e certamente viciante”, anota Ott nos Agradecimentos, em que revela ainda que o “livro começou como um breve artigo chamado “An Ideal for Listening” [O melhor para se escutar], publicado originalmente no site Pitchfork”, do qual foi colaborador.

Na tentativa de ajudar a compreender a alma, mente e coração inquietos, intensos e criadores de Ian Curtis, o livro de Chris Ott se soma a Joy Division: Unknown pleasures [Unknown pleasures, tradução de Martha Argel e Humberto Moura Neto, prefácio de Edgard Scandurra, Seoman, 2015, 374 p.], do contrabaixista Peter Hook, e a Tocando a distância: Ian Curtis & Joy Division [Touching from a distance – Ian Curtis and Joy Division, tradução de José Júlio do Espírito Santo, prefácios de Kid Vinil e Jon Savage, Edições Ideal, 2014, 317 p.], de Deborah Curtis, viúva de Ian.

Unknown pleasures integra a charmosa coleção O livro do disco, que “traz para o público brasileiro textos sobre álbuns que causaram impacto e que de alguma maneira foram cruciais na vida de muita gente”, conforme texto de abertura do livro. Há, na coleção, volumes dedicados a The Velvet Underground and Nico (por Joe Harvard), A tábua de esmeralda, de Jorge Ben (por Paulo da Costa e Silva), Estudando o samba, de Tom Zé (por Bernardo Oliveira), As quatro estações, da Legião Urbana (por Mariano Marovatto), Electric Ladyland, de Jimi Hendrix (por John Perry) e Led Zeppelin IV (por Erik Davis), entre outros.

Ouça Unknown pleasures:

Reinventando Machado

O filho de Machado de Assis. Capa. Reprodução
O filho de Machado de Assis. Capa. Reprodução

O mineiro Luiz Vilela é “um dos maiores” frasistas da literatura brasileira. Mais uma prova disso são os diálogos de O filho de Machado de Assis [Record, 2016, 127 p.; leia um trecho], novela inteiramente construída a partir de uma conversa entre um professor – Simão, não por acaso nome do protagonista de O alienista (1882) – e um aluno, Telêmaco – na mitologia grega, filho de Ulisses, que cresce na ausência da figura paterna –, apelidado Mac.

A conversa gira em torno da descoberta do professor em uma pesquisa na Biblioteca Nacional: um filho de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), um dos mais geniais escritores brasileiros – o professor refuta o “troféu” de “o maior”, indagando ao aluno se este tem “régua de medir escritor”, vide as aspas do primeiro parágrafo desta resenha. A desconstrução de mitos e unanimidades é uma constante ao longo da novela.

A descoberta contraria o “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, uma das não poucas passagens memoráveis de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), um dos clássicos do bruxo do Cosme Velho.

Com 50 anos de carreira literária, iniciada em 1967 com o volume de contos Tremor de terra, Vilela tem domínio absoluto do ofício. O ritmo da narrativa de O filho de Machado de Assis – o próprio diálogo entre seus protagonistas – é muito bem construído e bem humorado.

Se do autor já se disse que escreve aquilo que gostaríamos de escrever, é impossível ao leitor – mesmo que conheça nada de Machado de Assis – não se identificar com a conversa de professor e aluno, sobretudo pelas piadas infames que a permeiam.

Além do sarro com o politicamente correto – sem soar politicamente incorreto – há passagens em que nos pegamos rindo e pensando: como é que um respeitável professor aposentado confia em aluno aparentemente tão comum? – para não dizer tolo. Ou, antes: como é que um escritor transforma uma besteira dessas em literatura? Quase como alçar ao status de obra prima a piada do pavê.

Não pense o leitor, no entanto, estar diante de algo muito fácil. O filho de Machado de Assis é permeada de referências sutis à obra do fundador da Academia Brasileira de Letras – ao academicismo de qualquer ordem também sobram críticas.

Vilela é um iconoclasta, como seus personagens – o professor duvida até mesmo do enforcamento de Tiradentes. Ao evocar, desde o título, uma personalidade falecida há mais de 100 anos, demonstra, numa época de falência das instituições nacionais, a atualidade e o vigor de sua prosa.

Os tribunais nossos de todos os dias

O tribunal da quinta-feira. Capa. Reprodução
O tribunal da quinta-feira. Capa. Reprodução

 

Com Diário da queda [2011] e A maçã envenenada [2013], Michel Laub já havia inscrito definitivamente seu nome entre os grandes escritores contemporâneos no Brasil. O tribunal da quinta-feira [Companhia das Letras, 2016, 183 p.; leia um trecho], seu novo romance, é uma alegoria destes tempos em que não apenas as celebridades são passíveis de terem sua vida privada exposta em redes sociais.

Michel Laub tem pleno domínio da linguagem e da narrativa, no caso deste livro construída a partir de recortes: e-mails que dois amigos publicitários que se conhecem desde a faculdade trocam sobre assuntos os mais variados, vazados por sede de vingança da ex-esposa do protagonista.

O autor já provou não estar preso a uma fórmula em outros romances – Música anterior [2001], Longe da água [2004], O segundo tempo [2006] e O gato diz adeus [2009]. O tribunal da quinta-feira integra uma trilogia, junto a seus dois romances anteriores. Os três têm capítulos curtos, partem de um grande acontecimento – a segunda guerra mundial em O diário da queda, um genocídio étnico em Ruanda e o suicídio de Kurt Cobain em A maçã envenenada, e a epidemia de Aids no Brasil nos anos 1980, no livro recém-lançado.

Outra semelhança que guardam entre si os livros da trilogia são a mistura entre realidade e ficção. “Posso até falar de outros gostos dele, do prato que ele pedia nesses almoços, de como ele se posiciona sobre a situação política, econômica e moral do Brasil em 2016 se isso tiver alguma importância, mas no fundo o assunto não terá mudado”, anota, trazendo a triste realidade brasileira em tempos de golpe para dentro de sua ficção, ao apresentar Walter, personagem homossexual e soropositivo com quem José Victor, o protagonista, troca as mensagens de e-mails que serão vazadas ao longo da trama.

O autor aborda a crise de meia idade de um publicitário aos 43 anos, o mundo da publicidade – tira onda de slogans –, o ódio constante e comum de comentaristas de internet, a evolução na convivência com o vírus HIV ao longo dos anos – aqui volta a citar personagens reais como Cazuza, Lauro Corona, Sandra Bréa e Cláudia Magno, num jogo em que demonstra tanta habilidade quanto com as palavras: Laub não soa menor ou menos importante ao levar para seu texto – cheio de ironia – o “miguxês” de e-mails e redes sociais ou ao transcrever um áudio de whatsapp.

O enredo se passa em cinco dias, entre o domingo em que a ex-esposa distribui trechos de e-mails a amigas (e esposas de colegas de trabalho de José Victor) e estes viralizam internet (e consequentemente redes sociais) afora, até a quinta-feira do título: as redes sociais em que somos todos réus, promotores e juízes. As vidas dos envolvidos sofrem uma reviravolta até o fecho hitchcockiano de um romance sobre linchamento virtual e social, a ficção ajudando a entender a dura, cruel e nem sempre bem humorada realidade.

Melhores de 2016

Quase nunca me arrisco em listas de melhores do ano. Apesar dos olhos e ouvidos atentos ao que rola no mundo da arte/cultura/entretenimento, sei que ando longe de ter lido/ouvido/assistido a tudo, ou ao menos a maior parte, além do fato de o Maranhão ser um tanto fora de rota (apesar de louváveis esforços mais ou menos recentes) e as coisas (livros, discos, shows, filmes, peças etc.) demorarem (ou nem) a chegar(em) até aqui. O fato é que sempre acho que minhas listas estão aquém do que poderiam/deveriam ser. E nisto, certamente os poucos mas fiéis leitores concordarão comigo. E concordarão mais ainda os que discordarem da lista, vocês entendem.

O fato é que Marcelo Costa, um dos pioneiros do jornalismo cultural na internet brasileira, editor do Scream & Yell, convidou-me (baita honra!) para votar nos Melhores de 2016 de seu site. Ele esteve em São Luís em novembro passado, participando do Festival BR 135/ Conecta Música, ocasião em que mediei uma mesa com ele, Alexandre Matias (Trabalho Sujo) e Roberta Martinelli (Cultura Livre, Som a Pino).

Até o final de janeiro Scream & Yell publica seu resultado final, compilando os votos de cerca de 100 formadores de opinião de todo o Brasil – esta sim, a lista que vale a pena. Torno públicos, a seguir, meus votos, tendo deixado algumas categorias incompletas e outras sem preencher – ambos os casos frutos do exposto no parágrafo inicial.

MELHOR DISCO NACIONAL

Só vou chegar mais tarde. Capa. Reprodução

1. Só vou chegar mais tarde, Edvaldo Santana – O cantor e compositor de São Miguel Paulista já citava São Luís e o tambor de crioula na letra de Jataí, faixa-título de seu álbum anterior, com cujo show (no formato voz e violão) passou pelo Cine Teatro da Cidade de São Luís em novembro daquele ano. Neste novo disco volta a surpreender: o bolero Ando livre cita o Bar do Léo, que ele conheceu naquela viagem, e conta com a participação especial de Rita Benneditto. Mas ele não encabeça essa lista por puro bairrismo. Ouçam e entendam!

Tropix. Capa. Reprodução
Tropix. Capa. Reprodução

2. Tropix, Céu – Perfume do invisível estava na trilha de Velho Chico, o melhor acontecimento da teledramaturgia brasileira em 2016. Orgânico e eletrônico, o disco tem produção do francês Hervé Salters (General Elektriks) e Pupilo (Nação Zumbi). Merece destaque a regravação de Chico Buarque song, da mítica Fellini.

Fábrica de animais. Capa. Reprodução
Fábrica de animais. Capa. Reprodução

3. Fábrica de Animais, Fábrica de Animais – Não foi à toa “Fazendo do mundo um lugar mais legal pra viver” ter dado título à minha resenha do segundo disco da banda liderada por Fernanda D’Umbra, batizada por romance de Edward Bunker. Rock’n roll de alta voltagem poética.

Hóspede da natureza. Capa. Reprodução
Hóspede da natureza. Capa. Reprodução

4. Hóspede da natureza, Cátia de França – Disponível para download gratuito e legal na web, o disco novo de Cátia de França levou 10 anos maturando. Gravado em 2005, com músicos que tocaram com Cássia Eller, só foi lançado ano passado, revelando a força da autora de Kukukaya, gravada por Xangai e Elba Ramalho.

Bagaça. Capa. Reprodução
Bagaça. Capa. Reprodução

5. Bagaça, Bruno Batista – O quarto disco de Bruno Batista é o primeiro em que ele grava parcerias. Sempre que ouço o artista, em discos ou shows, me pergunto: quando é que Maria Bethânia e/ou Ney Matogrosso irão gravar suas canções?

MELHOR DISCO INTERNACIONAL

Day breaks. Capa. Reprodução
Day breaks. Capa. Reprodução

1. Day breaks, Norah Jones – O retorno da artista ao jazz.

You want it darker. Capa. Reprodução
You want it darker. Capa. Reprodução

2. You want it darker, Leonard Cohen – 2016 foi um ano de grandes baixas. A exemplo de Bowie, Cohen deixou um belo disco antes de partir.

Blue & Lonesome. Capa. Reprodução
Blue & Lonesome. Capa. Reprodução

3. Blue & Lonesome, Rolling Stones – Se o blues é o pai do rock, os vovôs Stones seguem na ativa com um belo disco na volta às origens.

Blackstar. Capa. Reprodução
Blackstar. Capa. Reprodução

4. Blackstar, David Bowie – A “necrofilia da arte” (como cantou o Pato Fu) em torno do camaleão ter previsto a própria morte não ofuscou (ainda bem!) a beleza e a importância de seu derradeiro registro.

I still do. Capa. Reprodução
I still do. Capa. Reprodução

5. I still do, Eric Clapton – Título autoexplicativo.

MELHOR SHOW NACIONAL

Foto: divulgação/ BR 135
Foto: divulgação/ BR 135

1. Nação Zumbi, Afrociberdelia – 20 anos, Festival BR 135, Praça Nauro Machado, São Luís – Uma noite mágica!

 

Foto: Marco Aurélio/ BR 135
Foto: Marco Aurélio/ BR 135

2. Di Melo, O Imorrível, Festival BR 135, Praça da Criança, São Luís – Outra noite mágica! O lendário Di Melo, pela primeira vez na ilha, acompanhado por instrumentistas locais. Show ao vivo não deixou nada a dever ao groove do disco inaugural de Di Melo, de 1975, um dos grandes álbuns do soul/funk brazuca. Apresentação misturou músicas daquele com faixas de O imorrível [2016], segundo álbum oficial de Di Melo.

Foto: Jotabê Medeiros
Foto: Jotabê Medeiros

3. Tássia Campos, Encontrando Belchior, Odeon Sabor e Arte, São Luís – 2016 foi o ano do #foratemer e do #voltabelchior. O show que a cantora dedica ao repertório do cearense teve algumas edições. Esta, particularmente, contou com a participação especial de Jotabê Medeiros, que contou uma história, uma das muitas que conta/rá em Pequeno perfil de um cidadão comum, belchiorgrafia que publica este semestre. O jornalista esteve em São Luís participando da Feira do Livro, ocasião em que leu um trecho inédito do livro que está escrevendo.

Foto: Márcio Vasconcelos
Foto: Márcio Vasconcelos

4. Bruno Batista, Bagaça, Mandamentos Hall – “O melhor show de Bruno Batista (até aqui)”, anotei em texto sobre o show.

Fotosca: ZR
Fotosca: ZR

5. Alexandra Nicolas, Eu vou bulir com tu, Espigão Costeiro da Ponta d’Areia, São Luís – A cantora realizou sete apresentações em praças públicas de São Luís, com repertório baseado em ritmos consagrados no Nordeste, pitadas de duplo sentido e um pé também no carimbó paraense. Os shows serviram também de teste de repertório para seu segundo disco, provisoriamente intitulado Bulir com tu, que ela começa a gravar neste primeiro semestre, a ser lançado ainda em 2017.

MELHOR FILME NACIONAL

Aquarius. Cartaz. Reprodução
Aquarius. Cartaz. Reprodução

1. Aquarius, de Kléber Mendonça Filho – Por tudo.

Matheus Nachtergaele e Rafael Nicácio em cena de Big jato. Frame. Reprodução
Matheus Nachtergaele e Rafael Nicácio em cena de Big jato. Frame. Reprodução

2. Big Jato, de Claudio Assis – Baseado na autoficção homônima de Xico Sá, o filme tem Mateus Nachtergaele em dois papéis e a participação especial de Jards Macalé interpretando o príncipe Ribamar da Beira Fresca, espécie de louco da aldeia.

Lua em sagitário. Cartaz. Reprodução
Lua em sagitário. Cartaz. Reprodução

3. Lua em sagitário, de Márcia Paraíso – Belo romance juvenil merece destaque por abordagem diferenciada em relação ao (quase) sempre criminalizado MST.

MELHOR LIVRO

O conto zero e outras histórias. Capa. Reprodução
O conto zero e outras histórias. Capa. Reprodução

1. O conto zero e outras histórias, Sérgio Sant’Anna – Melhor contista brasileiro em atividade.

Visões de um Poema Sujo. Capa. Reprodução
Visões de um Poema Sujo. Capa. Reprodução

2. Visões de um Poema Sujo, Márcio Vasconcelos – O fotógrafo faz sua releitura particular da obra prima de Ferreira Gullar. Este mês ele inaugura exposição em São Paulo.

Ostreiros. Capa. Reprodução
Ostreiros. Capa. Reprodução

3. Ostreiros, Bruno Azevêdo e Ana Mendes – Fotos e perfis de ambulantes da orla de São Luís. Um livro necessário e divertidíssimo.

Trinta e poucos. Capa. Reprodução
Trinta e poucos. Capa. Reprodução

4. Trinta e poucos, Antonio Prata – Coletânea de crônicas publicadas na Folha de S. Paulo do melhor cronista em atividade no Brasil (sorry, Luis Fernando Veríssimo).

Os visitantes. Capa. Reprodução
Os visitantes. Capa. Reprodução

5. Os visitantes, B. Kucinski – O autor confirmou seu nome entre os grandes da literatura brasileira já em seu livro de estreia (na ficção), K, de 2011. Os visitantes é uma espécie de errata literária: Kucinski faz um novo livro a partir de incorreções de obra anterior, com a ditadura militar brasileira como tenebroso cenário.

O MELHOR DA TV

Reprodução
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1. Cultura Livre, TV Cultura – Roberta Martinelli conviveu alguns anos com Fernando Faro, o nome mais importante para a música na televisão brasileira. Após sete temporadas de resistência com o Cultura Livre, ela estreou o diário Som a Pino, na Rádio Eldorado e assina uma coluna com o mesmo nome nO Estado de S. Paulo. Martinelli é uma das mais atentas observadoras da cena musical contemporânea no Brasil. Fernando Faro não deixa lacuna e certamente se orgulha dos esforços e resultados da discípula.

2. Baile do Baleiro, Canal Brasil – O maranhense Zeca Baleiro transformou em programa de tevê a ideia simples e eficiente de um show/festa em que se une a nomes das mais variadas gerações e estilos musicais para cantar suas memórias afetivas. Primeira temporada teve seis episódios e em seu palco nomes como Blubell, Wado, Odair José, Maria Alcina e Luiz Ayrão, entre outros, entre música e conversa. Que 2017 traga outra temporada, tão inspirada quanto.

Foto: divulgação/ Canal Brasil
Foto: divulgação/ Canal Brasil

3. Transando com Laerte, Canal Brasil – Nos últimos anos, Laerte deu algumas guinadas em sua vida/carreira, mostrando-se bastante competente em todas. No programa, explora sua veia de entrevistador e segue como a cartunista que melhor traduz a tragédia brasileira em tempos de golpe.

4. Velho Chico, Globo – A novela merece destaques pelo elenco, fotografia, locação e trilha sonora. Quase naufraga com a tragédia que levou Domingos Montagner, o Santo dos Anjos, um de seus protagonistas, que morreu afogado nas águas do Rio São Francisco, cujo apelido batizou a trama.

MELHOR VIDEOCLIPE

1. Perfume do invisível, Céu

2. Cuida com cuidado, Palavra Cantada

3. Bulir com tu, Alexandra Nicolas

4. Vida em vermelho, Blubell

Do Maranhão ao Arizona

Sobrenatural. Capa. Reprodução
Sobrenatural. Capa. Reprodução

Em Sobrenatural: Impressões sobre os Lençóis Maranhenses e o Grand Canyon [2016], o fotógrafo Meireles Jr. volta às paisagens dos Lençóis Maranhenses, já abordado por suas lentes em Descobrindo os Lençóis Maranhenses [2003]. Desta vez, o maranhense viajou também até o Grand Canyon americano e os dois parques, dois dos cenários naturais mais impressionantes do mundo, são o objeto deste seu novo livro.

Conhecemos causos (verídicos) em que o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, foi parar nas estantes de botânica, ou que os poemas do Manual de pintura rupestre, de Fernando Abreu, foram parar em artes plásticas. Convém, portanto, alertar o leitor: Sobrenatural é basicamente um livro de fotografias de paisagens. Obviamente, em se tratando do Grand Canyon americano e dos Lençóis Maranhenses, estamos diante de algo sobrenatural, isto é, “superior à natureza”, em uma das acepções do termo. Mas isto não explica tudo.

“No Canyon, ora perdido, uma índia nativa sugeriu que nós […] a seguíssemos até o lugar de meu destino naquela noite fria no estado do Arizona. Não hesitei. Pareceu-me um gesto seguro e generoso. Seguimos seu carro sem perdê-lo de vista um só instante até pararmos, mas, para o nosso espanto, quando fomos lhe agradecer, inacreditavelmente não era mais a índia que nos oferecera ajuda, mas sim um senhor velho e soturno que saíra do carro. Arrepiamo-nos todos, pensativos e silenciosos. Senti, a partir desse evento inusitado e até agora inexplicável, que o livro só poderia se chamar Sobrenatural”, explica o autor, em texto no livro.

Realizado com patrocínio da Fribal através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão, Sobrenatural começou a ser produzido em 2013, quando o autor participou da Wedding and Portrait Photography Conference & Expo, a WPPI, na sigla em inglês, Conferência e Exposição de Fotografia de Casamento e Retrato, em tradução livre – entre um livro e outro, Meireles Jr. é um dos fotógrafos maranhenses mais requisitados para casamentos, batizados e eventos similares.

Sobrenatural traz encartado um dvd, documentário/making of, dando ideia da dimensão do trabalho. Para chegar ao resultado final, Meireles Jr. fez mais de 54 mil imagens entre o Maranhão e o Arizona.

Veja o documentário:

Punk is not dead

Feliz ano velho [Brasiliense, 1982; Alfaguara, 2015], de Marcelo Rubens Paiva, que li no início da adolescência, foi um livro fundamental para meu interesse por literatura. Era um relato autobiográfico tendo por mote o incidente que o colocaria para sempre numa cadeira de rodas, mas sem perder o bom humor e dialogando com outras artes, sobretudo a música. Finalmente um livro não era chato como em geral eram os que líamos na escola por obrigação. Merecidamente virou um best seller, com sucessivas reedições.

Meninos em fúria. Capa. Reprodução
Meninos em fúria. Capa. Reprodução

Com vários títulos na bagagem o escritor, dramaturgo e jornalista, colunista de O Estado de S. Paulo, acaba de lançar, a quatro mãos, com Clemente Tadeu Nascimento Meninos em fúria: e o som que mudou a música para sempre [Alfaguara, 2016, 220 p.], livro que remonta à gênese da banda Inocentes – fundada e liderada por Clemente, hoje também vocalista e guitarrista da Plebe Rude, em paralelo –, pioneira do movimento punk no Brasil.

Não se trata de uma biografia, é mais um livro de memórias, contada por testemunhas privilegiadas da história. Clemente, ex-bancário e ex-vendedor de guarda-chuvas, era o frontman da banda que acabou por influenciar nomes como Gilberto Gil, que em 1983 lançou Punk da periferia, obviamente detestada pelos punks de então.

A prosa de Marcelo Rubens Paiva tem uma leveza que a distancia da objetividade e “imparcialidade” jornalísticas. Ele dá voz a familiares, parceiros, produtores e todos que rodeavam Clemente e os Inocentes, além do próprio – as falas de cada autor estão bem delimitadas em Meninos em fúria.

De quando o punk era assunto das páginas policiais dos jornais, época em que o movimento não tinha consciência de e era sempre associado à depredação e violência entre seus próprios integrantes, gangues de bairros diferentes, à assinatura de contrato com uma grande gravadora, colado ao boom do brock, quando enfim ganham as páginas de cultura, a participação dos Inocentes em shows e festivais ao lado de ídolos como Sex Pistols e Ramones, a falta de tato para lidar com o star system, além de toda a conjuntura da época – abertura, fim da ditadura, manutenção da censura, governos Sarney e Collor etc. –, nada escapa ao olhar e memória atentos da dupla.

Não é um livro saudoso. O punk continua vivo e seu espírito libertário e anarquista é hoje necessário. “E tudo parecia calmo e andando em direção a um final feliz quando, em 2016, fomos novamente atropelados pela história. O país entra em convulsão, a luta pelo poder trouxe fatos bizarros de volta, a manipulação de massa, uma perigosa e volátil arma política, está sendo usada sem escrúpulo nenhum, a Justiça se transformou em instrumento de vingança, totalmente parcial e claramente partidária”, anota Clemente, atestando a plena saúde do punk.

Banda imaginária ajuda a entender melhor artista de real grandeza

 

The 42nd St. Band - Romance de uma banda imaginária. Capa. Reprodução
The 42nd St. Band – Romance de uma banda imaginária. Capa. Reprodução

Renato Russo ainda era apenas Renato Manfredini Jr. quando, entre 1975 e 76, com de 15 para 16 anos de idade, recluso em seu quarto por conta de uma epifisiólise, rara doença óssea, escreveu The 42nd St. Band – Romance de uma banda imaginária [Companhia das Letras, 2016, 221 p.; org.: Tarso de Melo; tradução: Guilherme Gontijo Flores; leia um trecho]. O nome da banda tem origem no endereço do bar Stonewall, palco de um massacre a LGBTs, que o cantor já havia homenageado em seu primeiro disco solo, The Stonewall Celebration Concert [1994].

O livro é uma espécie de diário da banda, como se um fã recortasse revistas e jornais sobre os ídolos e guardasse os recortes em uma pasta. Há entrevistas, formações, discografia, cronologia. O futuro líder da Legião Urbana constrói seus personagens inclusive do ponto de vista psicológico, uma prova disso é o comportamento dos integrantes da banda que dá título ao livro durante as entrevistas.

Renato Russo demonstra profundo conhecimento sobre a música pop mundial. Sua banda – Eric Russell, protagonista de The 42nd St. Band, é seu alter ego – tinha Jeff Beck (ex-Yardbirds) e Mick Taylor (ex-Rolling Stones), misturando personagens reais a personagens imaginários.

O mesmo acontece com faixas gravadas pela banda. No livro, Let me die in your footsteps é de Russell (e não de Bob Dylan) e Close the door lightly (when you go) é de Dylan (e não dos Smiths). Há vários outros exemplos e fica explícito a adoração da banda imaginária – e do autor – por Beach Boys, Stones, Beatles, Dylan.

Há algo de premonitório na obra. Renato Russo acabaria sendo um dos maiores nomes do pop rock brasileiro em todos os tempos e o livro relata (ab)uso de drogas, shows lotados, turnês bem sucedidas, amor e ódio da crítica especializada e mortes trágicas – entre os membros das várias formações da The 42nd St. Band, John Robbins morre de overdose aos 45, John Buck em um acidente de avião aos 62, e Eric Russell de câncer de pulmão aos 67 (Renato Russo morreu há 20, aos 36, de complicações decorrentes do vírus da aids). Aloha, título de uma música de A tempestade [1996], último disco lançado pela Legião Urbana com Renato Russo ainda vivo, já aparece no romance, como uma das faixas gravadas pela The 42nd St. Band.

É um romance fragmentário, montado a partir de anotações (em inglês) deixadas por Renato Russo em diversos cadernos, que muito provavelmente não seria publicado se ele ainda estivesse vivo. Como os diários de sua passagem por um rehab – Só por hoje e para sempre – Diário do recomeço [Companhia das Letras, 2015, 168 p.; org.: Leonardo Lichote] –, The 42nd St. Band – Romance de uma banda imaginária ajuda a compreender a mente inquieta e o espírito criativo de um dos maiores artistas surgidos no Brasil na segunda metade do século passado.

Maria Aragão em tempos de golpe: atual e necessária

Uma subversiva no fio da história. Capa. Reprodução

 

O jornalista Emilio Azevedo lança na próxima quarta-feira (14), às 19h, o livro Uma subversiva no fio da história [2016, Ed. do autor; revisado por este blogueiro], um conjunto de nove reportagens sobre a vida e o legado de Maria Aragão, uma das mais importantes personagens da política no Maranhão no século XX.

Embora tenha elementos, o livro não se configura uma biografia. Foi escrito entre 2007 e 2009 e repousou numa gaveta até ser retomado pelo autor, este ano. Ele confessa: tinha críticas quanto à obra, para o qual os nove textos foram escritos. Depois de mais cinco meses de trabalho, uma espécie de reconciliação entre criador e criatura permite que a segunda chegue ao público agora.

A noite de autógrafos será movimentada: o Teatro João do Vale (Rua da Estrela, Praia Grande) receberá show da cantora Tássia Campos – com o mesmo título do livro –, além de esquetes do Gamar – grupo de teatro amador formado nas dependências de uma escola que leva o nome da médica comunista – e de Maria Ethel, cuja “encarnação” de Maria Aragão em A besta-fera é um hit do teatro local.

Emilio Azevedo parte de um exercício difícil: humanizar Maria Aragão, relendo-a e recontando-a para além da execração – os que a detestavam e tratavam-na por puta, besta-fera e que tais – ou da beatificação – os que a adoravam e consideravam-na uma espécie de santa. É a essência humana que move o jornalista através de suas nove reportagens, embora ele mesmo confesse tratar-se de um livro de fã.

Tendo Maria Aragão como personagem central e fio condutor, Emilio refaz um pequeno pedaço da história do Brasil e do Maranhão, ao abordar a época e a conjuntura em que a “médica comunista” – longe do clichê – realizou sua militância, sua ação subversiva. Estão lá Luiz Carlos Prestes, o PCB, a ditadura militar, a Igreja Católica, as oligarquias. É um livro ousado de um autor que não teme assumir-se de esquerda, num tempo em que há quem ouse dizer não existir mais esquerda ou direita – estes, sabemos de que lado estão.

A antropóloga Maristela de Paula Andrade, no prefácio de Uma subversiva no fio da história, defende a adoção do livro por escolas. “Esses heróis fabricados, artefatos políticos, ganharam bustos em praça pública e lugar certo, inquestionável, na formação escolar das crianças e da juventude. Foram heróis da classe dominante, dos que detiveram o poder em cada conjuntura histórica, mas inventados e cultuados como defensores de todos. Por que não contar aos jovens brasileiros a história de pessoas como Maria Aragão, que lutaram por igualdade, justiça, liberdade, por um mundo melhor para os explorados e oprimidos?”, indaga a professora da UFMA.

O questionamento é pertinente em tempos de golpe, quando tantos outros saem às ruas reivindicando uma intervenção militar. Emilio Azevedo mostra a atualidade do legado de Maria Aragão, mais que médica ou comunista, uma mulher que educava pelo exemplo. Sempre é tempo de aprender.

Emilio Azevedo conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.

O jornalista Emilio Azevedo conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos. Foto: Altemar Moraes/ Vias de Fato
O jornalista Emilio Azevedo conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos. Foto: Altemar Moraes/ Vias de Fato

Uma subversiva no fio da história é seu terceiro livro, todos com uma posição à esquerda, o que é uma dificuldade do jornalismo, hoje. Qual a importância do jornalista assumir que tem lado?
Tem toda importância. É uma questão de honestidade com o leitor. Recentemente vi uma palestra do Caco Barcellos [na 10ª. Feira do Livro de São Luís], onde ele falava do jornalismo declaratório e de um outro jornalismo que eu não lembro agora como ele definia, um jornalismo imparcial, neutro, um jornalismo essencialmente informativo. Não sei como ela define o jornalismo feito por William Bonner, Alexandre Garcia ou Arnaldo Jabor. A verdade é que acho impossível você trabalhar com jornalismo e dissociar de uma posição política. A pauta já é ideológica, o veículo em que você trabalha é ideológico. O aspecto ideológico de uma reportagem nasce a partir da pauta, do lugar onde ela é publicada, veiculada. Se você faz um bom jornalismo dentro da Rede Globo, no geral você está referenciando, legitimando o mau jornalismo que a Globo faz. As coisas estão associadas. Eu não acredito em imparcialidade, sempre disse isso, escrevendo ou em mesas de debate. O jornalismo pode ser honesto e desonesto, mas será sempre essencialmente ideológico, político. Você pode ser honesto no seu fazer jornalístico, deixando clara sua posição. O leitor não é idiota, ele sabe filtrar os excessos porventura cometidos.

Quando você diz que alguém como Caco Barcellos, dentro da Globo, em vez de ser uma exceção, referenda o mau jornalismo praticado pela emissora, você não acredita em reserva moral ou que outro nome se queira dar para isso? Uma exceção, o fato de ele estar lá significando poder fazer o jornalismo que ele pratica chegar a mais gente?
Eu não vou dizer que ele está certo ou errado em trabalhar na Globo. Todo profissional tem que trabalhar e pagar suas contas. Não entro nesse tipo de patrulhamento. O problema é vestir a camisa do patrão. É tirar onda de bom moço e sair em defesa dos interesses da família Marinho. A merda tá bem aí. Nessa palestra, especificamente, Caco Barcellos pisou na bola ao dizer o seguinte: “pra todo mundo que fala mal de mim ou do veículo em que eu trabalho”, no caso, a Globo, “eu digo: “faça melhor!””. Encaro esse papo como uma piada de mau gosto. É certo querer tirar da sociedade a possibilidade de criticar um veículo que é uma concessão pública? É um ponto de vista completamente equivocado. Tem que ter muita crítica a todos os veículos, aos que são concessão pública, no caso das emissoras de TV e rádio, e também aos que não são. Uma coisa é a crítica, outra coisa é a agressão, a violência, a estupidez. A crítica é saudável. No caso dessa palestra específica, ele pediu que não criticasse a Globo, que fizesse melhor. A Globo tem rios de dinheiro. E de onde vem esse dinheiro, quem patrocina? Se ele tem estrutura pra chegar às três da manhã, na frente de todo mundo, com 10 carros, alguém está pagando essa conta. Isso não sai do bolso do Caco Barcellos, isso sai do bolso da empresa que tem patrocinadores x, y e z. Tudo isso tem que ser levado em conta. Qual o interesse do patrocinador? É só de vender seu produto?

Às vezes não fazer melhor que a Globo não é falta de vontade, há muita gente aí disposta.
Essencialmente é: quem paga a conta? Quem financia a Globo? A Record? A Veja? Todas as empresas têm interesses políticos.

Este é um ponto essencial: se as pessoas assumissem os patrocinadores, às vezes seria mais rápido e fácil descobrir de que lado os veículos estão, ideologicamente.
Isso é pouco debatido. Pouco se interessa por quem paga a conta.

Você está à frente, há sete anos, do Vias de Fato, que tem uma postura de independência, com seus parcos financiamentos, mas com uma postura ideológica clara. De algum modo isso dialoga com a experiência de Maria Aragão na Tribuna do Povo. A Tribuna do Povo de Maria Aragão, de algum modo foi ou é inspiração para o Vias de Fato?
São momentos distintos, projetos distintos. E uma coisa, essencialmente, os distingue: o projeto da Maria era ligado a um partido. Com toda dificuldade financeira, com todo isolamento, um isolamento à esquerda, mas tinha uma relação com o comitê central do partido, tinha esse tutor, que ficava no Rio de Janeiro. No caso do Vias, ele não é ligado a nenhum partido, nem é centralizado por ninguém. Trata-se de outro momento histórico, completamente diferente no que se refere à organização do campo progressista. A utopia hoje parte de um desejo de pluralidade e horizontalidade, onde todo mundo é passível de crítica, inclusive a própria esquerda. Agora, em relação às dificuldades operacionais, os dois são parecidos.

A Tribuna do Povo era um jornal de uma mulher só.
O Vias de Fato tem mais mulheres, tem mais gente [risos].

O Vias de Fato talvez tenha mais gente, mas ainda é uma equipe pequena. Nesse sentido, que outras semelhanças e diferenças você apontaria?
Semelhança é essa coisa do gueto, eu digo isso no livro, que a Tribuna do Povo é um jornal de gueto. Algumas pessoas fazem questão de dizer que o jornal de Maria não tinha nenhuma influência, mas o antropólogo Alfredo Wagner [Berno de Almeida] coloca a importância dele como uma fonte única naquele tempo. Aí acho que existe uma semelhança. O Vias está no gueto, assumidamente no gueto, mas também é, às vezes, fonte única para determinados assuntos, o que ninguém vai dizer, você vai encontrar lá, no Vias de Fato, o “panfleto” de esquerda. Aí tem um compromisso com a história, compromisso com o processo histórico. Os comunistas têm essa noção do processo histórico. O Vias, apesar de não ser marxista, também tem essa noção.

Emilio, você tem uma formação comunista, inclusive tem a mesma filiação partidária de Maria Aragão.
Desde 2009 estou afastado do partido. Sobre o assunto, vejo muita gente que não é comunista, se dizendo comunista no Brasil. Eu sou o contrário: sou tachado de comunista, mas não me considero marxista-leninista. Acabei me filiando, há quase 15 anos, talvez um pouco menos, ao PCB, por uma questão tática. Diferente de hoje, na época eu tinha interesse em atuar em um partido e pelo fato de ser de esquerda, queria um partido à esquerda. A conjuntura me empurrou para o PCB. Me filiei circunstancialmente, fui ficando. Tenho muito respeito pelo partido, muitos amigos por lá, aprendi muitas coisas, mas essencialmente não sou marxista-leninista. Não gosto de me rotular. Tenho influências cristãs, de esquerda, marxistas, mais recentemente até anarquistas, mas isso não me rotula. Não estudei o suficiente para carregar rótulos. O mínimo que se espera de um marxista é que ele tenha lido toda a obra de Marx, mesmo que não tenha sido em alemão [risos]. Eu fui católico, hoje sou agnóstico. Quando deixei de ser católico, rompi com dogmas. Me parece que todos esses ismos têm dogmas. Então, você fica preso a um determinado dogma e a partir disso cria uma determinada camisa de força, acho ruim. É ruim mesmo entre os intelectuais, o que não é o meu caso. O sujeito passa a pensa a partir de ideias pré-estabelecidas. Acho melhor transitar, pegar uma coisa aqui, outra ali e raciocinar por contra própria. A generosidade não é exclusividade de um só filosofo ou profeta.

Por falar em comunista, acabamos de perder um ex-comunista, o Ferreira Gullar.
Acho que Ferreira Gullar é ótimo como poeta e péssimo como político. Como poeta foi genial, como político se comportou como um oportunista qualquer. Fico à vontade para falar por que em 2001 fiz um artigo chamado A política suja de Ferreira Gullar. Este texto foi panfletado dentro de uma exposição que ele fez aqui em São Luís. A iniciativa da panfletagem não foi minha e eu não participei dela. Ele, um sujeito inteligente, não passou recibo. Não era o caso.

E Maria Aragão como personagem? Você tem uma abordagem que foge das duas mais comuns: os que não gostam, para quem ela era a puta, a besta-fera, ou os que gostavam e a colocam num altar, Santa Maria Aragão. Você tira Maria Aragão destes dois lugares, digamos, mais fáceis, tratando-a como uma pessoa comum, que fez o que fez. Você acha que faltam Marias Aragões no mundo?
Não sei se consegui humanizar Maria Aragão. Tentei. Mas acho que, no fundo, o livro tem algo de exaltação. É um livro de fã. Tentei, já na última etapa do trabalho, retirar essa carga toda. Talvez o último capítulo, de alguma forma, critique o próprio livro. Meu amigo Wagner Cabral, que é historiador, não gosta de biografias. Meu livro não é uma biografia, são nove reportagens, mas sem dúvida é um recorte biográfico. Então, você acaba se apaixonando pela personagem, é uma coisa natural. Fiz um esforço de humanizar, não sei se consegui. Não digo isso no livro, mas acho que existem muitas anônimas iguais a Maria Aragão. Sem querer idealizar uma classe, te digo que nas camadas populares encontram-se muitas mulheres lutadoras, corajosas, generosas e solidárias. Na periferia de São Luís vi de perto o que exaltamos em Maria Aragão. Vi mulher apanhando e outra indo lá e se metendo no meio do casal, para defender a agredida. Vi isso mais de uma vez. Tem muita gente assim. E o grande desafio, no caso de Maria, é não beatificar, é não transformar em santa, é mostrar que é possível fazer como ela fez. Foi uma grande mulher, mas é possível ser como ela, fazer o justo, fazer o correto, cometer erros e acertar algumas vezes. Não aceitar injustiças. Saber escutar. Não desistir. Foi o que ela fez.

O nome que você pensou originalmente para este livro foi Maria Aragão no fio da história. Por que a troca para Uma subversiva no fio da história?
Ao tratar de “uma subversiva” estou falando da própria Maria Aragão – que foi subversiva –, da ação política dela e do processo em que ela estava inserida. É também uma forma de estimular o debate em torno da subversão. Estamos precisando disso. São pessoas e ações subversivas, transgressoras, que andam a margem ou na contramão, que têm o poder de mudar o curso da história e melhorar as coisas. Normalmente o desejo de liberdade e a subversão caminham juntos.

Se não de mais Marias Aragões, você acha que hoje o Brasil precisa de subversão?
Nos últimos anos, quando nosso país viveu sob o comando do PT e do lulismo, ficaram expostos conflitos que historicamente estiveram presentes na sociedade brasileira. Conflitos de valores, conflitos de origem política. Uns ligados às classes sociais e outros relacionado à moral e aos costumes. Neste contexto atuam setores elitistas e conservadores, acrescidos de fariseus e fascistas. Atuam também os que defendem direitos e/ou vivenciam discriminações seculares, neste caso os pobres, negros, mulheres, indígenas e homoafetivos. Isso vai além da disputa entre partidos ou desse maniqueísmo que reduz tudo a “coxinhas” e “petralhas”.

E o subversivo nesse contexto?
Está presente em várias situações. Veja a atual ocupação das escolas e das universidades. É desobediência civil. É algo que subverte a ordem estabelecida. É uma desobediência saudável e necessária, diante dos abusos e da violência cometida pelo atual governo federal e pela maioria do Congresso Nacional. E essas ocupações estão sendo protagonizadas por jovens que vivem esses problemas históricos. São exatamente pobres, negros, mulheres e homoafetivos. Até onde vi, são eles que compõem a maioria desse movimento.

Você poderia dar outro exemplo?
Hoje, no Maranhão, acho emblemática a ação dos indígenas da etnia Gamela, na região de Viana. Em meados do século XX eles foram considerados extintos. Agora, através de uma teia de povos e comunidades tradicionais, que reúne também quilombolas, eles se rearticularam e ocuparam três fazendas. Os Gamela entraram numa terra que é deles. E fizeram isso sem esperar pelo Estado, pela Justiça, por cartório, por burocratas ou pela Funai. Enfim, sem esperar por instituições que hoje, notoriamente, enfrentam sérios problemas de credibilidade. A questão envolvendo recentemente Renan Calheiros e o Supremo mostra bem isso.

Você falou também dos costumes…
Este ano, no Rio de Janeiro, um garoto foi barrado na escola por que estava vestindo saia. No outro dia, todos os meninos da turma dele foram de saia e a escola teve que ceder. O caso repercutiu no país. Ouvi conservadores dizendo que estamos no “final dos tempos”. É interessante perceber que entre essas pessoas, muitos não se preocupam com a devastação ambiental ou com a miséria absoluta de parte da humanidade. É o modo de vestir de alguns que, para eles, indica “o final dos tempos”. Bem, mas diante do mesmo caso, os mais arejados disseram que trata-se apenas de uma roupa, de uma questão de liberdade individual e que cada um deve ter a possibilidade de se vestir como quiser. Diante de um tema tão simples, isso gera conflito e acirrados debates. Em São Luís, numa escola particular do Renascença, soube que uma menina foi impedida de entrar porque estava com um turbante. Houve repercussão nas redes sociais. O racismo, a misoginia e homofobia estão aí, mas a reação a essas antigas formas de violência, de alguma forma, tem crescido.

Emilio, você fez esse livro mais ou menos na época em que Jackson Lago foi governador.
Foram dois períodos: 2007 a 2009 é o primeiro período. Em 2016 eu trabalhei ainda cinco meses nele.

Mas aí já foi uma fase mais de ajustes, revisão. A pesquisa em si foi lá atrás.
Sim, 90 e tantos por cento da pesquisa foi feita nesse período.

Por que demorar tanto a finalizar e publicar?
Em parte o projeto Vias de Fato me tomou muito tempo. Talvez este seja o motivo maior, mas eu também tinha algumas críticas ao livro e hoje eu tenho menos, graças ao trabalho que fiz este ano.

Todas aquelas reportagens são inéditas?
Todas são inéditas. No capítulo das oligarquias, deve ter 10 a 12 laudas o capítulo todo, eu aproveito umas quatro de um artigo que saiu no Jornal Pequeno, em 2006.

Então quando você escreveu essas reportagens já estava pensando em livro.
Sempre! Foram todas feitas para o livro. À exceção dessa introdução das oligarquias. Neste livro acabo juntando a fome com a vontade de comer. Ao mesmo tempo eu tenho admiração e respeito por Maria Aragão, mas é uma forma também de contar um pouco a história recente do Maranhão, a história recente do Brasil, falar de assuntos que eu adoro discutir e que eu acho que são importantes para essa geração saber, minimamente. Eu não sou historiador, sou jornalista, mas acho que um compromisso que o jornalista tem é de deixar registros para a história. Eu estou falando de uma história muito recente, uma coisa que não é história de historiador, é história de jornalista, que é de 40, 50 anos pra cá. As fontes estavam todas vivas ainda, são 51 entrevistas.

Mais que médica, mais que militante partidária, comunista, Maria Aragão foi uma educadora. Uma educadora que educava pelo exemplo.
Essa coisa da educadora eu peguei no processo do livro, eu construí o último capítulo pensando no legado. Essa reportagem não estava prevista, acabou servindo como uma conclusão, esse legado da educação popular, como a esquerda chama, de formação, de educar pelo exemplo. Na minha avaliação está tudo relacionado. Maria Aragão teve uma vida ligada aos pobres e miseráveis, as periferias urbanas e também aos camponeses. Quando foi dirigente da CUT, no Maranhão, a hegemonia era de trabalhadores rurais. Antes do golpe de 1964, principalmente na década de 1950, ela também atuou junto à organização de lavradores. No plano moral, Maria Aragão foi vítima da violência de farisaicos e fascistas, que lhe chamavam pejorativamente de puta, pelo fato dela ter tido uma filha sem estar casada e por ter vivido com um homem sem passar pela igreja. E Maria foi pra cima dos hipócritas. Enfrentou. Ela não abaixou a cabeça diante das violências que sofreu.

No entanto, como você afirma no livro, ela não era feminista.
Como me disse a professora Mary Ferreira, em entrevista para este livro, a vida de Maria Aragão representou, na prática, aquilo que as feministas defendem. E ela se aliou às feministas em várias ocasiões. Maria, a comunista, foi uma mulher livre, que não se submeteu a opressores. Agora em dezembro, num evento ocorrido em São Luís, promovido pelo Fórum Maranhense de Mulheres e que denunciou e debateu a violência contra a mulher, foi colocada uma polarização entre transgressoras e recatadas. Nesse debate, a vida de Maria Aragão, a subversiva maranhense, tem um grande valor pedagógico. Maria foi, de várias maneiras, transgressora. Subversão e transgressão normalmente caminham juntas.

Maristela no prefácio defende que teu livro seja adotado em escolas. Você tem essa pretensão, esse desejo?
Não tenho nem pretensão nem canais [risos]. Quem sabe depois de morto [risos]. Uma coisa que eu quero fazer é debater esse tema, esse tempo, a partir de uma ação subversiva. Discutir hoje o que é subversivo à luz de Maria.

Deixa eu tentar fazer um exercício de presentologia, já que, como Maria já faleceu, não dá para fazer de futurologia: pelo teu mergulho na vida e no legado de Maria Aragão para a feitura do livro, como você acha que seria seu comportamento em relação ao momento político que o Brasil atravessa?
É até um atrevimento. Certamente ela estaria contra o governo Temer, isto é uma obviedade. Seria contra os tucanos, isso é outra obviedade. Acho que ela teria críticas ao PT. Dizer mais do que isso eu não me atrevo. Não seria correto da minha parte.

Tua ideia de lançar o livro com o show de mesmo nome, Uma subversiva no fio da história, retoma uma tradição importante. Lembro O Pasquim, que era uma experiência de esquerda no jornalismo brasileiro e esta, com certeza, influencia o Vias de Fato, em uma determinada época encartava discos. O livro vai trazer encartado um show de Tássia Campos, cantando um repertório de revolucionários ou que Maria Aragão ouvia em casa. Tássia é uma das cantoras dessa “nova” geração da música do Maranhão muito competente, muito interessante, com uma postura ideológica alinhada a Maria Aragão. Como foi costurar essa noite de autógrafos?
A ideia do show começa com o trabalho da Carabina Filmes. Começa no vídeo que eles fizeram para anunciar o lançamento de Uma subversiva no fio da história, a partir da visita que Tássia fez ao memorial Maria Aragão. O trabalho de [os cineastas] Leide [Ana Caldas] e Inácio [Araújo], somado à interpretação da Tássia, foi o primeiro ato, antes mesmo de chegar ao palco do teatro. No Brasil, livro impresso é coisa de elite. É um objeto caro e consumido por poucos. Ao misturar o livro com diferentes linguagens artísticas temos a possibilidade de popularizar o trabalho, ampliando a mensagem e sua função social. E é uma relação de mão dupla, pois livro também pode provocar. Em 2006, quando lancei O caso do Convento das Mercês, esse livro inspirou o Vale Protestar, movimento que juntou teatro e música e que projetou a personagem “Rosengana”, a partir de uma reunião de vários artistas, entre eles Cesar Teixeira, Kátia Dias, Moizés Nobre, Rejane Galeno, Nadnamara Rocha, Valberlúcio Pereira, Claudia Santos e Raimunda Lopez. Hoje, com Uma subversiva no fio da história, espero, junto com os artistas, fazer algo diferente de uma tradicional noite de autógrafos. O protagonismo deles amplia a proposta do livro, aumenta a provocação, aumenta o diálogo com a sociedade. Repito: livro, no Brasil, é uma coisa pra elite, uma coisa cara, pra uma elite intelectual, econômica. Não fiz livro pra intelectual, apenas. Eu respeito os intelectuais, mas não quero meu livro limitado a eles. Quero um livro que possa, minimamente, interagir com a sociedade, provocar a sociedade de alguma forma, conseguir cumprir uma função social mais ampla. Aí eu acho que música, cinema, teatro, tudo isso facilita a possibilidade de ampliar a função social do livro.

O Vias de Fato já produziu outros shows, por exemplo, o Tarja Preta, ano passado.
Pois é, no ano passado, para comemorar os seis anos do Vias de Fato, o jornal organizou o Baile Tarja Preta, num processo que juntou pessoas da música, do teatro e do cinema. Naquele baile, por exemplo, o ator Lauande Aires fez uma leitura dramática junto com Rejane, tratando de temas comuns ao Vias. Hoje, o show inspirado no livro sobre Maria Aragão é consequência dessa mistura, que passa pelo Tarja Preta e já vem desde 2006. Agora, no dia do lançamento desse livro, teremos a apresentação de duas esquetes teatrais, antes da apresentação de Tássia. Uma com estudantes da Unidade Integrada Maria José Aragão, da Cidade Operária, e outra com a atriz Maria Ethel, com um trecho do espetáculo A besta-fera. E no show de Tássia haverá uma participação do cantor Claudio Lima, que vai interpretar composições de Marcos Magah.

Voltando um pouquinho, como Tássia entrou na história?
Por uma questão de identidade. Os shows que ela montou a partir de Nara Leão, Sergio Sampaio, Belchior, algumas músicas que ela canta no show que faz junto com Camila Boueri e Milla Camões expressam essa identidade. Além do talento evidente, Tássia me remete a sensibilidade, inquietação, insubordinação. Uma subversiva no fio da história tem relação com isso. Eu e ela também nos tornamos amigos, mas a escolha para este projeto vai além disso.

A partir dessa constatação, de que forma você pensa em tornar o livro mais acessível, do ponto de vista do preço, da distribuição.
Em termos de circulação a maioria dos livros hoje vai ter dificuldade. Principalmente em tempos de microcomputador travestido de celular.

Você pensa em disponibilizar o livro para download?
Num segundo momento, sim. Nesta primeira etapa, preciso pagar o projeto, então preciso circular com o livro em 2017, dentro e fora do Maranhão. Em São Luís vou botar em bancas, livrarias, em alguns pontos da cidade, e circular, debater a questão da ação subversiva nesse tempo de hoje. Acho que publicar um livro hoje já é, por si só, um ato subversivo.

Poema sujo: vivo, atual, visual

Uma das fotografias de Visões de um Poema sujo. Márcio Vasconcelos
Uma das fotografias de Visões de um Poema sujo. Márcio Vasconcelos

 

Quando Diógenes Moura desceu do táxi, na Praia Grande, de madrugada, deparou-se com o Poema sujo diante dos olhos, vivíssimo: “vi aquele homem agachado, despido, ali, sozinho, tornando públicas as suas entranhas antes de os dois bêbados me abordarem descendo ladeira abaixo e pedindo dinheiro porque precisavam de um pouco mais de loucura”, escreve em Carta número um para uma coisa de fato, seu texto em Visões de um Poema sujo [Vento Leste, 2016], uma carta a seu autor, Márcio Vasconcelos, no livro que ele lança hoje (30) – o terceiro em 2016 –, às 19h30, no Museu Histórico e Artístico do Maranhão (MHAM, Rua do Sol, Centro).

“O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade”, anota o então exilado Ferreira Gullar no Poema sujo, escrito entre maio e outubro de 1975 em Buenos Aires, Argentina.

Cada homem ou mulher lê e percebe a cidade de modo diferente. Diógenes Moura, que assina a curadoria e concepção editorial de Visões de um Poema sujo, percebeu, após Márcio Vasconcelos vencer o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia em 2014, que ele já fotografava o Poema sujo há pelo menos 10 anos, expondo, como Gullar fez em versos, com o mesmo talento e olhar sensível, a beleza e a podridão – e nesta, a beleza – da cidade, do itinerário percorrido pelo poeta naquela que é considerada por muitos sua obra-prima.

A perspectiva de Márcio Vasconcelos é interessante: a algumas fotos realizadas antes de vingar a ideia de uma releitura fotográfica do Poema sujo, ele passou a imaginar-se exilado em Buenos Aires para fotografar a obra de Gullar. Este resenhista confessa: quando ouviu falar em Visões de um Poema sujo, antes de o livro existir, pensou tratar-se de uma espécie de Poema sujo ilustrado. Ainda bem que estava errado.

Não espere o leitor, portanto, uma tradução imagética da obra em versos. Quem leu o Poema sujo ora verá fotografias que remetem a determinados trechos do poema, ora se perguntará, talvez, por que determinada fotografia foi incluída no livro. A única constante no livro de Márcio Vasconcelos é a beleza, das imagens, cada uma por si e, obviamente, do conjunto – como o livro de Gullar, que teve trechos musicados e tem uns mais lembrados que outros, mas que é bonito por inteiro, mesmo quando chafurda no horrendo.

O poeta maranhense radicado no Rio de Janeiro prossegue: “mas variados são os modos/ como uma coisa/ está em outra coisa:/ o homem, por exemplo, não está na cidade/ como uma árvore está/ em qualquer outra/ nem como uma árvore/ está em qualquer uma de suas folhas/ (mesmo rolando longe dela)/ O homem não está na cidade/ como uma árvore está num livro/ quando um vento ali a folheia”.

Márcio Vasconcelos fotografa o livro-poema de Ferreira Gullar, mas uma chave de leitura errada, ou melhor, uma chave de olhar errado, é imaginar algum tipo de fidelidade entre as imagens e o poema, como minha crença inicial.

Visões de um Poema sujo. Capa. Reprodução
Visões de um Poema sujo. Capa. Reprodução

Visões de um Poema sujo é uma contribuição importante e, por que não dizer, poética, ao reconhecimento da força e atualidade do Poema sujo, recém-relançado pela Companhia das Letras [2016, 112 p.], “livro que é um dos mais importantes da língua portuguesa da segunda metade do século XX”, conforme atesta o poeta e jornalista Celso Borges em Outra cidade e a mesma, o outro texto do livro de Márcio Vasconcelos.

“Há um relâmpago nos versos gullarianos, mesmo quando ele fala do lado obscuro da cidade, sua lama e podridão, seus cheiros e mangues. O fotógrafo procura e desnuda essa sujeira luminosa”, prossegue Celso Borges, para arrematar: “Algo permanece eterno, independentemente do tempo. Este o milagre: reencontrá-la e reinventá-la”.

Márcio Vasconcelos confessa uma de suas intenções ao realizar Visões de um Poema sujo – título também da exposição com que ganhou o Marc Ferrez: chamar novamente as atenções para o poema de Gullar, deixando livres os sentidos dos leitores para suas próprias interpretações.

É Gullar quem arremata: “cada coisa está em outra/ de sua própria maneira/ e de maneira distinta/ de como está em si mesma// a cidade não está no homem/ do mesmo modo que em suas/ quitandas praças e ruas”.