A saga de Graciliano

Vencedor de um grande prêmio literário, de repente Graciliano se vê entre os dilemas de quem passa a ter todo o tempo do mundo para gastar com apenas uma preocupação: escrever. O problema é uma espécie de bloqueio, criado também, talvez, justamente pelo excesso de tempo livre – e a consequente dificuldade para administrá-lo. A escrita, que deveria garantir a entrega de um próximo livro a um editor em determinado prazo, é dividida entre festas, álcool e sexo, tudo em doses exageradas.

O ano em que vivi de literatura. Capa. Reprodução
O ano em que vivi de literatura. Capa. Reprodução

Graciliano é o protagonista de O ano em que vivi de literatura [Foz, 2015, 251 p.], de Paulo Scott, criador, como sua criatura, premiado: a Bolsa Petrobrás de Criação Literária garantiu-lhe a escrita de Habitante irreal [Alfaguara, 2011, 264 p.], com que venceu o prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional em 2012, e o volume de poemas Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo [Companhia das Letras, 2014, 80 p.] venceu em 2014 o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

O ano em que vivi de literatura poderia ser facilmente etiquetado como “autoficcção” – discussão e rótulo pelos quais Scott não nutre interesse. No volume não é possível distinguir que fatos foram realmente vividos pelo autor dos inventados por ele para sua personagem, que vive em geral rodeado de gente, mas constantemente sente-se solitário.

Parece contraditório, mas o que Graciliano busca é aplacar o vazio dessa solidão através de relacionamentos fugazes – alguns encontros são marcados pelas redes sociais. Os momentos de convívio com os pais não são bons e a aventura dele é também a busca de uma irmã que sumiu no mundo. Em alguma medida, o livro expõe ainda as entranhas do mercado editorial brasileiro.

O título brinca com outra contradição: justo no ano em que vive de literatura, Graciliano perde prazos e gasta o tempo com outras questões e simplesmente não escreve – embora a quem lhe fizesse a infalível pergunta sobre livro novo, sempre tinha uma desculpa, um enredo na ponta da língua, no que diferem criador e criatura.

Paulo Scott conversou com o Homem de vícios antigos. A entrevista foi além de O ano em que vivi de literatura. Ao anunciar, no chat de uma rede social, a intenção de realizá-la, antes de enviar-lhe o bloco de perguntas por e-mail, ele comentou: “o livro ficou pronto em 2014 e revisitá-lo em face de novos questionamentos é instigante”.

“Estou muito envolvido com o Marrom e amarelo, que é sobre racismo no Brasil”, antecipou. Seu próximo livro sai em 2017 pela Alfaguara.

Paulo Scott: "Um escritor precisa teimar, manter-se naquilo que acredita e continuar". Foto: Foz Editora/ Divulgação
Paulo Scott: “Um escritor precisa teimar, manter-se naquilo que acredita e continuar”. Foto: Foz Editora/ Divulgação

 

Em uma reportagem para a Revista da Cultura [Eu, eu mesmo e eu também, #100, novembro de 2015], que conta com depoimento seu, o jornalista Ronaldo Bressane aborda a questão da autoficção, no que você declara não acreditar. Talvez o charme seja a dúvida, a não distinção, mas o quanto há de autobiográfico e de invenção em O ano em que vivi de literatura?
O que posso dizer a você, meu caro, é que não busquei com esse livro – que para mim é sátira (talvez intrincada demais, admito) – concretizar teoria, leitura acadêmica ou experiência estética sobre a confusão entre vida do autor e possíveis desdobramentos contidos na trama para induzir semelhança (e disso curiosidade) em relação à sua biografia, sua realidade. Suponho que leitores que acompanham minha trajetória – e tenham informação sobre o que significou eu ter colocado a produção literária e a leitura de obras literárias como prioridade durante um pouco mais do que sete anos – possam, em algum momento, antes da leitura do O ano em que vivi de literatura, imaginar (e esperar) a existência de revelação relacionada ao que foram esses dias, esses anos para mim. Contudo, não se trata disso. Não é também minha intenção – sobretudo em um projeto de romance executado em primeira pessoa – glamorizar aposta pessoal (que, no fundo, não passa de aposta pequeno-burguesa, mesmo se tratando, ou especialmente em razão disto, de escritor brasileiro, escrevendo em português em um país como o Brasil, onde as pessoas, no cômputo geral, nem sequer leem os seus escritores contemporâneos) que é escolha só minha e interessa só a mim.

Aliás, cabe o elogio: baita título! O livro narra o período em que o protagonista pode literalmente viver a partir de um prêmio recebido. Infelizmente, mesmo num universo literário mais profissionalizado, ainda é preciso esperar um prêmio para poder “viver de literatura”, já que a venda de livros ainda não o permite?
Antes quero dizer que é uma grande alegria receber esse retorno positivo da sua leitura do livro. Pois é. Não temos um mercado literário forte no Brasil, um mercado que, em decorrência de quantidade expressiva de leitores, sustente um projeto de longo prazo de um escritor bancado exclusivamente pela venda de seus livros. Estou longe de conseguir me sustentar unicamente com os royalties obtidos pelas vendas dos livros que escrevi. Consegui me manter, de maneira simples, comedida mesmo, sem ter de recorrer a atividades fora do meio literário, por quase seis anos – nesses quase oito anos de exílio carioca. Isso aconteceu graças a um contexto (de sorte) de bolsas, prêmio, adiantamentos, de pagamentos advindos da venda dos direitos de adaptação de livros meus para o cinema, de convites para festas, feiras, festivais, viagens, programas literários que remuneram os autores, de convites para oficinas de criação literária, para palestras em universidades – isso tudo em um panorama econômico bastante favorável, ao menos aqui no Brasil. Não é algo com que se possa contar para sempre. Um prêmio literário que pague um valor importante, esteja-se falando ou não de autor profissionalizado, pode garantir alguns meses de vida integralmente voltada à produção literária, talvez um ano e alguns meses, se houver uma boa programação, dificilmente assegurará mais do que isso; e isso, entretanto, é muito melhor do que nada. Gosto de pensar que o livro trata do fim de um ciclo e do início de outro, de uma realidade no relacionamento entre leitores e autores que se transformou radicalmente com o avento da internet e das redes sociais (e, a partir disso, de uma época de decadência, mediata e imediata). Quando o programei e quando o escrevi, para tratar apenas de um dos aspectos possíveis dessa realização, ainda estávamos vivendo a onda de muitos eventos literários, eventos em grande quantidade e podendo bancar boa remuneração aos autores convidados, recebendo-os e paparicando-os, muitas vezes, de maneira como não se vê nos melhores eventos literários da Europa e da América do Norte, que são realidades que conheço um pouco.

É possível dizer que atualmente você vive de literatura? – não necessariamente de apenas escrever, mas de participar de eventos literários, ministrar oficinas, palestras etc.
Não tenho mais como bancar esse meu “vivendo na corda bamba do mundo literário” sem comprometer a tranquilidade mínima que preciso para produzir, para ler tudo que preciso ler e para existir (especialmente em um país em crise). Ano passado peguei um trabalho fora do mundo literário para poder equilibrar as contas – penso que não é inoportuno o registro: moro no Rio de Janeiro, uma cidade que está se tornando cara demais e violenta demais. Neste ano que está iniciando, priorizarei uma vida com melhor qualidade, com doses menores de ansiedade no gerenciamento das incertezas financeiras, assumirei compromissos fora do universo literário anunciado na sua pergunta. No fundo, parece, será uma guinada drástica, embora não tão drástica como a cometida em 2008, quando deixei Porto Alegre e me transferi para o Rio de Janeiro. A ver.

Você tem formação em Direito. Atua ou atuou na área? O quanto ter que buscar a sobrevivência noutro campo atrapalha a produção literária e vice-versa?
Só quem passou, de fato, pelo planejamento de buscar uma rotina de tempo integral para conseguir ler e escrever poesia e prosa ficcional na hora do dia que lhe parecer mais conveniente sabe o que significa uma ruptura dessa natureza, o que é ter de negociar com todo o tempo livre que você um dia idealizou. Nessa perspectiva, quase tudo que rompe esse estado ideal acaba atrapalhando sim, mas não é o fim do mundo. Ter um emprego paralelo, uma profissão paralela, não é necessariamente ruim – não acredito em regras absolutas, resisto sempre a fórmulas e receitas fechadas –, há muitos autores que para produzir com qualidade precisam ter tranquilidade, estabilidade profissional, mesmo que isso lhes custe uma redução grande do tempo disponível para ler e escrever textos literários. A produção literária poderá ser boa e relevante esteja o autor submetido, ou não, à rotina de um trabalho diverso da literatura. A vida, no grande arco da existência, e esta realidade não pode ser negligenciada, precisa ser viabilizada da maneira mais inteligente possível. Fora do meio literário, respondendo à primeira parte da pergunta, atuei profissionalmente na área do Direito, como advogado, consultor e professor.

O protagonista de O ano em que vivi de literatura chama-se Graciliano, nome de seu autor predileto. Fora o fato de serem gaúchos vivendo no Rio de Janeiro, quanto há de Paulo Scott na personagem Graciliano e o que mais te chama a atenção e/ou você admira e/ou persegue no alagoano Graciliano Ramos?
Levei bom tempo para encontrar a personagem Graciliano. Era importante não concebê-lo como um modo de retransmitir (um truque para retransmitir) minha voz, minhas ideias, meu itinerário. Não me vejo nele, não me vejo no olhar de historiador dele, na solidão dele, nos excessos e idealizações dele, na impassibilidade dele quando retorna ao passado, quando refaz (relata) um ano específico da sua vida sem o temor de encarar o que fez de bom e o que fez de ruim (para si e para outros). Não costumo criar altares, tento não me fazer refém das cristalizações, dos espelhos, das certezas; mesmo que inicialmente isto pareça algo descabido, procuro dispensar o mesmo cuidado a texto de um escritor novato e desconhecido que dispenso a texto escrito por um Graciliano Ramos, por um Machado de Assis, por um Érico Veríssimo, por um Guimarães Rosa (que são figuras que admiro demais). Há, porém, nessa lógica de não canonizar, as afeições inexplicáveis, incontornáveis, os diálogos mentais, que desenvolvemos em relação a certas figuras; isso é forte quando penso em Graciliano Ramos – tem aquele modo de escrever e tem aquela impetuosidade complexa. Penso que, na linha da pergunta (possivelmente escapando da pergunta), a grande personagem, o grande centro da narrativa deste romance, seja a área imensa, purgatório da beleza e do caos (parafraseando Fausto Fawcett), chamada Rio de Janeiro conflitando com o rumo, não exatamente localizado, do protagonista, a mosca que caiu na armadilha da planta.

O livro aborda também a questão das redes sociais como palco do escritor, como forma de manter contato mais direto com leitores, editores, parentes e paixões. Como você observa a autopromoção se valendo destes canais?
Disse em entrevista que foi publicada em novembro do ano passado em jornal brasileiro que as redes sociais aprisionaram a alma – o lado indômito da alma – dos poetas, porque acabamos, poetas e prosadores, cedendo à lógica da quantidade de likes; as editoras, a mídia e todos acabam cedendo a essa contabilidade. Se temos um estádio Maracanã de likes nas telas dos nossos computadores, nos visores dos nossos celulares, estamos bem, não importa a ousadia, a originalidade, a qualidade do que se produziu. Isso é bem fraco. Não há santos nas redes sociais; se você está nas redes sociais, você está sim se autopromovendo. Se você está nas redes sociais, você tem noção de que as “informações dos fatos” precisam ser aquecidas/reaquecidas a todo o momento para não serem esquecidas, para não perderem o peso, nesta avalanche diária de “informações dos fatos”. Não é de graça que as editoras no mundo todo estão induzindo (para não dizer obrigando) seus autores a terem contas no Twitter, no Facebook, no Tumblr, no sei lá onde, porque sabem que a constância, a presença constante na web, está se tornando a grande exigência para que algo se afirme, não desapareça na grande, e ininterrupta, corrida de cavalos na qual se transformou o contemporâneo. Tive, até agora, um número importante de retornos, por mensagens eletrônicas, destacando o decorrer da narrativa a partir do fenômeno das redes sociais – o editor da caixa de comentário do Facebook se tornou mais importante do que o editor Word –; penso que os leitores entenderam o que não está explicitado no livro (já que é um livro de lacunas). Estamos todos mais caretas e desfocados por conta disso, dos editores de texto das redes sociais serem mais importantes do que os editores de textos tradicionais; é um sonho de liberdade, porque, na realidade, estamos embarcados em um elevador que está nos levando cada vez mais para o fundo de uma prisão. Claro, não há dúvida de que estamos vivendo os primórdios de uma situação que mais para frente, mais para o futuro, deverá ser mais bem vivenciada, deverá ser assumida de forma mais madura.

Seu livro narra a vida desregrada de um autor com um fabuloso prêmio literário na conta bancária, em uma aventura regada a doses cavalares de sexo, álcool e festas, revelando também as entranhas do círculo literário/editorial brasileiro. Pode ser lido como sua contribuição para desglamorizar a “vida de escritor” como imaginada por leitores “reles mortais”?
Penso que o livro narra o cotidiano de quem passa a ter todo o tempo livre para escrever – não é fácil negociar com esse espaço tão amplo. Ele está perdido e leva um tempo para perceber que está perdido, porque tem o deslumbre e tem a incapacidade de lidar com a nova situação, com a escolha, com os olhares e expectativas dos outros. É certo que a personagem Lenara, a jurada do concurso que colocou no bolso de Graciliano os 300 mil reais que mudariam sua vida, é a presença desencadeadora de certos questionamentos cruciais à trama do livro, mas a verdade é que todos os questionamentos, todas as buscas já estavam na cabeça de Graciliano, muito por conta da sua falta de resignação diante da sua rotina de professor de História, do seu relativo sucesso como escritor gaúcho, do seu relacionamento com o pai, com a ausência da irmã mais velha que, atrás de mais liberdade, desapareceu na vida. Escuto muito sobre os excessos do livro. Bem eles estão lá para acentuar algo, estados emocionais, pequenas tragédias – talvez a mais evidente seja a solidão. Não é gratuito isso dele fazer sexo demais, de se entregar a toda possibilidade que as redes sociais entregam de bandeja no seu colo; como já disse, ele está perdido. O próprio fato dele – um homem de 40 anos, portanto no auge da sua virilidade física e no auge da sua agressividade “bestial” adulta – estar sempre “pronto”, sempre tão facilmente excitado, faz parte dessa composição narrativa, dessa ênfase, dessa solução. Ele – homem, branco, hétero, com ótima educação, inteligente e sortudo – está eufórico, permanentemente excitado, isso é evidente, porque, sem desconsiderar o quanto está perdido, tem nas mãos o passe vip e está, por conta disso, solto feito um cachorrinho recém-nascido que ainda não compreendeu que não passa de um cachorrinho, na Disneylândia dos escritores brasileiros. Evidente que por ser tratar de uma sátira, de uma ficção, há ênfases que estão longe de certas realidades, da minha realidade e da realidade de tantos outros escritores e escritoras; prefiro pensar que essa realidade do livro, essa realidade constituída, é um dos seus méritos, haja, ou não, críticas agudas por trás de tudo que se apresentou. Quanto à desglamorização, o que posso dizer é: nunca acreditei nela, nunca me portei como alguém que aposta nela. No entanto, não pretendi (e não pretendo) fazer dessa minha postura uma cruzada – tenho receio enorme dos paladinos. Sei que todo escritor se deixa levar pelo canto da sereia – em altura ou outra, inebria-se com o próprio trabalho, com o próprio sucesso, com o próprio discurso, com a própria ambição –, e sei que depois a tendência é a de que ele consiga se recompor (alguns, raros, não conseguem abandonar a igreja da vaidade, mas eles e os seus egos, por si só, não são importantes). Nesses 15 anos que se passaram desde a publicação do meu primeiro livro, o História curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros [Sulina, 2001, assinado sob o pseudônimo Elrodris], vi muita gente boa surgir, brilhar e desparecer, gente que desapareceu porque não tinha a determinação necessária. Não quero realizar diagnóstico, juízo, quero, talvez, é “transfigurar” um tantinho para mostrar como, às vezes, tudo que nos cerca é tão patético, e nós somos patéticos também. Para mim, em resumo, é uma questão de teimosia, um escritor precisa teimar, manter-se naquilo que acredita e continuar, tendo que negociar o tempo inteiro com a solidão. Certa vez conversando com jovem jornalista, pessoa tomada pelo deslumbramento de estar em um grande veículo da imprensa brasileira, pelo falso poder que a posição projeta, justo por estar naquele autoencantamento, falei algo como: cuidado que o teu super hype de jornalista especialista em literatura vai passar (a imprensa brasileira sempre demite) e os escritores que não vieram a passeio, independente de aplauso, continuarão carregando suas pedrinhas, continuarão escrevendo seus livrinhos.

Galeria de desgraçados

Amar é crime. Capa. Reprodução
Amar é crime. Capa. Reprodução

Em boa hora ganha reedição o volume de contos Amar é crime [Record, 2015, 160 p.], de Marcelino Freire.

Dono de voz e ritmo particulares, a prosa do pernambucano radicado em São Paulo não poupa os personagens nesta galeria de desgraçados.

As narrativas são brutais, cruas, secas – o conto Ricas secas, por exemplo, é “livremente inspirado” no romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, de que se vale de um trecho.

A “nova edição ampliada”, como nos alerta a contracapa, traz novas histórias em relação ao volume publicado em 2011 pela Edith Editorial. Ricas secas, por exemplo, aborda a crise hídrica paulista.

Em Amor e sangue, o prefácio assinado por Ivan Marques, é o próprio Marcelino Freire, de Rasif [Record, 2008], quem serve de epígrafe: “Cristo mesmo quem nos ensinou./ Se não houver sangue, meu filho,/ não é amor”.

“Oralidade: eis a palavra-chave. A literatura de Marcelino Freire é erguida sobre falas, frases roubadas, pedaços vivos do cotidiano e da miséria social brasileira, que ele recolhe com inteligência crítica, a exemplo do que ocorre em autores como João Antonio e Francisco Alvim”, atesta o prefaciador.

“Contos de amor e morte ou pequenos romances”, é o próprio autor quem define, num subtítulo informal, que não comparece à capa nem à ficha catalográfica.

Impossível não ser tocado pela tragédia da protagonista de Vestido longo, conto que abre Amar é crime: uma garota que, abusada sexualmente na infância, torna-se prostituta e sonha com a roupa que intitula a narrativa.

Em meio a essa prosa de agruras, violenta como os cotidianos que relata, há espaço para a poesia. Como no onírico Liquidação, em que dois carroceiros brigam por um sofá velho: de quem é? Quem viu primeiro? “Ele primeiro viu, repetiu. Ajeitou na noite anterior. Descansou o troço ali. Hoje, recolheria. Nem precisaria abrir crediário das Casas Bahia. De que maneira pagaria?”, rima a tragédia.

Em Irmãos e A última sessão, as igrejas evangélicas que tomaram o lugar de cinemas são panos de fundo para a crítica de Marcelino à fé enquanto engodo do povo. Num o protagonista, abandonado pela mulher, é confundido com um pastor; noutro, um velho, sem família, após sair do hospital, consegue achar o caminho até um cinema pornô que costumava frequentar e encontrar consolo em uma travesti. Mas o cinema já não mais existe.

Em União civil a homossexualidade é pautada. O conto é narrado como se o autor estivesse em uma mesa num evento literário ou ministrando uma oficina – universos do autor.

Seu companheiro de projetos, Jorge Ialanji Filholini – ambos estiveram na Feira do Livro de São Luís em 2014, ocasião em que ministraram oficinas pelo Quebras, patrocinado pelo Itaú Cultural –, assina as orelhas e atesta: foi aquele conto uma espécie de laboratório, “inspirador para o que viria: a “prosa-longa” do solitário e solidário primeiro romance, Nossos ossos [Record, 2013]”.

Amar é crime e a única pena possível para os que se apaixonarem pela prosa de Marcelino Freire é sair imediatamente à procura de outros livros do autor, “fundamental para a nossa literatura contemporânea”, como afirma Filholini na orelha.

Personagem de si mesmo, Mutarelli volta aos quadrinhos em novo romance

Quadrinista tornado escritor, Lourenço Mutarelli entrou para a história: foi o primeiro escritor brasileiro a protagonizar a adaptação de um livro seu para o cinema, O natimorto [DBA, 2004; Companhia das Letras, 2009], após uma ponta em O cheiro do ralo, também adaptação de um sucesso literário seu.

O Grifo de Abdera. Capa. Reprodução
O Grifo de Abdera. Capa. Reprodução

Em O Grifo de Abdera [Companhia das Letras, 2015, 264 p.; leia um trecho], Mutarelli realiza um interessante exercício literário ao brincar com várias faces de si mesmo. É um jogo de trocadilhos, desde a composição dos nomes dos personagens, anagramas que ganham vidas e histórias, de dar à vida aspectos de ficção, e de revelar segredos por trás dos bastidores do ofício de escritor – ou do quadrinista, muito mais trabalhoso e menos reconhecido, embora ambos, de algum modo, glamurizados.

Mutarelli tira onda até mesmo com sua fórmula de escrever romances: os protagonistas são sempre homens mais ou menos em sua faixa etária, levando vidas mais ou menos comuns, até um acontecimento surpreendente e uma guinada, confessa.

Suas obras, entre as realmente lançadas e fictícias, estão lá citadas. Amigos escritores, de verdade e inventados, tornam-se personagens: Paulo Lins, Marcelino Freire, Marçal Aquino, Ferréz, além de Raimundo Maria Silva, Oliver Mulato e Mauro Tule Cornelli, que “assinam” O Grifo de Abdera com Mutarelli, este último seu anagrama. Um deles é quem figura nas fotos de orelha e viagens do autor a eventos literários, dentro e fora do Brasil.

O livro é a história de um duplo, fabricado a partir da chegada, às mãos de um dos protagonistas, da moeda que dá título à obra. As obsessões continuam perseguindo o autor, entre citações – entre outros, William S. Burroughs e Kurt Vonnegut, que já tiveram os nomes inscritos noutras obras de Mutarelli –, diálogos ligeiros e certeiros, exigindo e prendendo a atenção do leitor, a vasta pesquisa – um personagem acometido de síndrome de Tourette repete frases grosseiras e, portanto, inoportunas em espanhol digitadas pelo duplo no tradutor do Google – e o entrecruzar de diversos enredos paralelos, a vidinha nada besta de professores, escritores e biscateiros.

É recorrente também a ideia de Mutarelli, personagem, retomar os quadrinhos. Dividido em três partes – O livro do fantasma, O livro do duplo e O livro do livroO Grifo de Abdera é um presente aos fãs que o acompanham desde Transubstanciação [1991] e/ou aos recém-chegados. Após cinco anos do último romance – Nada me faltará [2010] – quatro do último álbum – Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente [2011] – e três do volume único que reuniu a trilogia do detetive Diomedes [2012], o múltiplo Mutarelli mescla romance e quadrinhos (as 80 páginas centrais do livro) em uma obra que, além de agradar a leitores antigos e mais novos, certamente aumentará seu fã-clube. A pergunta, talvez óbvia, que não lhes calará é: quando O Grifo de Abdera será adaptado ao cinema?

Pra despertar roqueirinhos

Rock para pequenos, v. 3. Capa. Reprodução
Rock para pequenos, v. 3. Capa. Reprodução

Laura D. Macoriello é assessora de imprensa da Edições Ideal, por onde publicou os três volumes de Rock para pequenos – Um livro ilustrado para futuros roqueiros, além de Cinema para pequenos – Um livro ilustrado para futuros cinéfilos [Edições Ideal, 2013, 52 p.]. Os dois primeiros volumes de Rock para pequenos, dedicados aos gringos, microperfilou Angus Young, B-52, Beatles, Chuck Berry, David Bowie, Elvis Presley, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Kiss, Ozzy Osbourne, Ramones, Rolling Stones e Steve Harris (no primeiro volume) e Axl Rose, Bjork, Bono Vox, Bruce Dickinson, Chrissie Hynde, Dave Grohl, Dick Dale, Freddie Mercury, Green Day, Jeff Hanneman, Jerry Lee Lewis, Jim Morrison, John Lennon, Lemmy Kilmister, Metallica, Morrissey, Nina Hagen, Robert Smith, Sex Pistols e Van Halen (no segundo).

O recém-lançado terceiro volume [Edições Ideal, 2015, 44 p.; leia um trecho] é dedicado a nomes do rock nacional: Capital Inicial, Cazuza, Erasmo Carlos, Inocentes, Ira!, Kid Vinil, Legião Urbana, Mamonas Assassinas, Os Paralamas do Sucesso, Pitty, Raul Seixas, Rita Lee, Ronnie Von, Secos & Molhados, Supla, Titãs e Ultraje a Rigor.

Os livros são ilustrados por Lucas Dutra e trazem microperfis dos artistas e, espécie de narrativa fabular, algo como uma moral da história, linkando as vidas e obras a valores cotidianos que devem ser ensinados aos “futuros roqueiros”, como indica o subtítulo da trilogia – até aqui; indagada sobre um possível quarto volume, a autora disse não saber responder ainda.

A assessora/escritora conta que “a ideia surgiu do meu cotidiano com minha filha Olívia, 5, que na época do primeiro livro estava com três anos. Peguei situações que eu vivia com ela para dar as “lições” e achei legal dar uma breve explicação sobre os astros”.

A “lição de moral” do microperfil que abre o terceiro volume, dedicado a Cazuza, é “ser filho único é muito legal, podemos escolher nossos irmãos-amigos”. Encaro o livro como uma boa porta de entrada para as crianças ao universo do rock, especificamente o brasileiro, no caso deste terceiro volume. Pergunto-lhe se este papel deveria, em alguma medida, ser também das rádios e tevês. “Talvez. Acho que de alguma forma os próprios pais que gostam do estilo podem tentar introduzir isso desde cedo nos pequenos”, aponta. “Acho que a opção deve ser dada. Não teremos controle sobre eles [os filhos] para sempre, caso eles gostem de outra coisa mesmo conhecendo o rock, acho que o certo é respeitar”, continua.

Laura D. Macoriello se define como alguém que “gosta mais de Smiths do que de lasanha”. Indagada sobre a maior loucura que já cometeu por um ídolo, responde sorrindo: “Nossa! Nenhuma! Até porque acho que em se tratando de um ídolo, nada é considerado loucura, concorda? [risos]”.

Ao fim do volume, uma discografia básica aponta os principais discos dos artistas, para pais e filhos ouvirem juntos. A autora poupa a petizada de eventuais detalhes trágicos da vida e carreira dos microbiografados. É um livro sobre rock, mas sem sexo, drogas e mortes trágicas.

Hoje

Divulgação
Divulgação

 

A partir das 19h. Recital com os poetas Celso Borges e Moisés Nobre (e outros que certamente chegarão sem ser anunciados).

Jornalismo, música e quadrinhos

Malcolm. Capa. Reprodução
Malcolm. Capa. Reprodução

Em 1995 Malcolm McLaren (1946-2010) visitou os estúdios da MTV Brasil. Pego de surpresa, o escalado para entrevistá-lo foi Fábio Massari, o Reverendo, profundo conhecedor de cultura pop. Apenas cerca de 15 minutos da entrevista de quase uma hora foi ao ar e o material bruto (em VHS) continuava apenas no acervo pessoal do radialista – e no da emissora, ele descobriria depois, contrariando a expectativa de destruição na qual ele próprio acreditava.

Mesmo no susto, Massari cumpriu bem seu papel e certamente seria um dos poucos brasileiros a fazê-lo, como atesta André Barcinski no posfácio. Por anos, guardou também uma cópia da transcrição da conversa, recheada, e não poderia ser diferente, de citações – sobretudo de música, moda e política – do universo ao redor dos Sex Pistols, a maior invenção do entrevistado.

Quase duas décadas depois, após um desejo acalentado por anos, Massari e o quadrinista Luciano Thomé, cujo traço encarna a alma punk do protagonista, transpõem a entrevista televisiva – na íntegra – à HQ Malcolm [Edições Ideal, Coleção Mondo Massari, 2014, 64 p.; leia um trecho]. O resultado é tão bom que parece que a conversa foi originalmente pensada para o formato.

O papo orbita em grande parte em torno do grupo de John Lydon e companhia, mas é um passeio pela indústria cultural, em companhia de quem sempre tirou um sarro por dentro. McLaren afirma, por exemplo, que os Sex Pistols nasceram como manequins: mais importava vestirem o que era conveniente ao empresário que que soubessem tocar (bem) algum instrumento. “Em 1977 criamos um movimento em que tudo era possível e não era necessário saber tocar guitarra”, diz. Quer atitude mais punk que isso?

A intimidade de Massari com o universo também aponta para as influências de MC5, Iggy & The Stooges e New York Dolls, e o legado deixado pelo grupo, que influenciou grupos como The Damned, Buzzcocks “e muitas outras bandas”. Sobram críticas à cultura americana – minimizada a “rock’n’roll, Levi’s, Coca-Cola e Marylin Monroe” –, à própria MTV – “se você ouve música, você é menos controlado por ela. Se você assiste na TV, você está mais propenso a ser controlado por ela e ela se torna uma… uma droga que o transforma num zumbi” – e a artistas que McLaren não aprecia – “o importante é ter algo a dizer em vez de botar todo mundo para dormir com música insossa, do tipo Mariah Carey”.

Para o inglês Malcolm McLaren não havia lugar para gênios nos Estados Unidos: “os gênios transformam a vida e os EUA não querem mudanças. Vivem um momento conservador”.

Malcolm, a HQ, é um belo tributo ao legado de seu protagonista, em geral amado e odiado ao mesmo tempo e na mesma intensidade, um dos personagens mais interessantes e controversos da música em todos os tempos.

Uma grande farsa

Quando a máscara cai. Capa. Reprodução
Quando a máscara cai. Capa. Reprodução

Desde Caim o planeta azul sempre foi povoado por variada gama de mentes doentias e criminosas. Quando a máscara cai – A verdadeira história do homem que fingiu ser um Rockefeller [Companhia das Letras, 2015, 247 p., tradução de Sérgio Tellaroli; leia um trecho], de Walter Kirn, é a biografia de uma dessas mentes, um assassino que se passou por integrante de uma das mais famosas e ricas famílias americanas. Um mergulho atormentado/r na mente de um manipulador profissional e a tentativa de autoconhecimento, o porquê de se deixar enredar na teia farsesca.

Um ser humano fascinante, é como o autor o classifica, a maldita mania de quem, jornalista e/ou escritor por paixão e/ou vício, acredita que tudo e todos podem render grande reportagem e/ou romance. É aí que começa a via crucis de Kirn, que atravessa boa parte dos Estados Unidos dirigindo uma caminhonete – e depois pegando um avião – para entregar ao suposto Rockefeller uma cadela presa a uma cadeira de rodas.

O episódio é relatado minuciosamente: fazer um favor de tal monta a um Rockefeller, era mais que estar próximo de um, e o autor de Amor sem escalas embarcou literalmente na aventura a fim de ter um personagem para um próximo romance. O desembarque e seu encontro com aquela personalidade desencadeia uma série de mentiras: da coleção de obras de arte falsificadas a empresas, bancos, propriedades, veículos e vizinhos famosos (Tony Bennett e J. D. Salinger, por exemplo), tudo é teatro nas mãos – e imaginação – hábeis do manipulador, que chegou a usar nove nomes falsos – ou além: a encarnar nove personalidades diferentes – ao longo de sua jornada criminosa.

O que ninguém sabia – e o autor sequer imaginava quando começou a pensar em tomá-lo como personagem – é que o falso Rockefeller era um assassino frio, que armazenou pedaços do corpo esquartejado de sua vítima em sacolas de livraria. Ao longo dos capítulos dedicados a seu julgamento e condenação – e após, quando o personagem insiste em seu teatro doentio – há diversas citações (Jornada nas estrelas, Alfred Hitchcock e Patricia Highsmith incluídos) de filmes, livros e séries de tevê, usadas para compreender o impostor, suas motivações e até mesmo o comportamento do júri durante o julgamento. Era de onde ele retirava ideias, citações e trejeitos: era um mero plagiador, sem ideias próprias, inclusive para seus livros e roteiros para cinema – outras frustrações em seu currículo.

Quando a máscara cai é ainda uma espécie de assunção pública de fraqueza e vergonha de alguém que caiu feito um pato no enredo de mentiras de um terceiro – e ali se manteve durante 15 anos de “amizade”. O autor lança-se ao personagem pensando no romance e consegue um livro interessante e bem escrito, de alguma forma comparado, guardadas as devidas proporções, a A sangue frio, de Truman Capote, e O talentoso Ripley, de Patricia Highsmith, de onde vem uma das epígrafes do livro. No fim das contas, do começo da amizade com o protagonista à sua condenação por sequestro e assassinato, a aventura de Walter Kirn é sobre a escrita do livro em si, não ficção em que sobressai o talento jornalístico do romancista.

A ditadura militar brasileira em original abordagem ficcional

K. Capa. Reprodução
K. Capa. Reprodução

Graduado em Física pela Universidade de São Paulo (USP), Bernardo Kucisnki é cientista político e jornalista, e neste último campo, autor de ao menos uma obra fundamental: Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa [Página Aberta, 1991].

Assinando simplesmente B. Kucinski, bastou um livro para que ele passasse a ser também reconhecido como “escritor” ou “autor de ficção” – o que no fundo deve servir apenas a quem organiza as obras nas estantes, em livrarias, bibliotecas ou coleções particulares.

K. – Relato de uma busca [Expressão Popular, 2011; Cosac Naify, 2014, 190 p.], primeiro romance do autor, foi finalista dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura em 2012.

Você vai voltar pra mim. Capa. Reprodução
Você vai voltar pra mim. Capa. Reprodução

O tema era urgente, embora o autor o tenha maturado por quase 40 anos: K. é o relato autobiográfico, embora o livro seja classificado como ficção, sobre o desaparecimento, em 1974, 10 anos após o início da ditadura militar brasileira, da irmã e do cunhado de Kucinski – Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva –, ela química, professora da USP; ele físico, funcionário de uma empresa.

Como o assunto exigia mais, o autor não se contentou e, na sequência, lançou o volume de contos Você vai voltar pra mim [Cosac Naify, 2014, 188 p.] e o romance policial Alice: não mais que de repente [Rocco, 2014, 191 p.], o único que não se passa durante a ditadura, totalmente ficcional, sobre o assassinato de uma professora da USP.

Alice. Capa. Reprodução
Alice. Capa. Reprodução

Kucinski revela que os 28 contos de Você vai voltar pra mim foram selecionados de um universo de 150 – os que tinham a ditadura militar como tema/ambiente –, escritos entre 2010 e 2013. “Embora o autor não nos explique nada a respeito da veracidade, ou não, dos episódios, alguns deles são muito conhecidos das vítimas e dos estudiosos do período. Minha memória sugere que todos eles sejam, como se afirma nas legendas finais de alguns filmes, inspirados em fatos reais”, a psicanalista Maria Rita Kehl nos coloca a boa e quase óbvia pulga atrás da orelha no prefácio. O conto-título, aliás, é frase dita por um torturador a uma vítima.

Os muitos anos de jornalismo e magistério certamente ajudaram Kucinski com a forma: narrativas bem estruturadas, doses de ironia, a cumplicidade do leitor com a urgência dos personagens – o que lhes/nos espera nas linhas seguintes? – e a dúvida não incômoda: autobiografia? Invenção? Ou um mix? O conteúdo, mesmo que com pitadas de ficção, é, por vezes, fruto de seu próprio sofrimento, transformado em literatura da melhor qualidade. De um modo ou outro, ele dá uma bela contribuição à discussão sobre o direito à memória e à verdade no Brasil, um debate infelizmente tardio e por vezes enviesado e sem a profundidade necessária.

Muito além da fundação

FLÁVIO REIS*

Foto: Edgar Rocha
Retrato: Edgar Rocha

 

A professora Maria de Lourdes Lauande Lacroix é a patrona e grande homenageada do ano na Feira do Livro de São Luís. Geralmente o lugar tem sido ocupado por nomes conhecidos da literatura e, por este lado, não deixa de ser surpreendente a escolha. Mas, por outro, trata-se de uma historiadora cujos trabalhos possuem forte identificação com a cidade, sua história e seus costumes.

Graduada em Direito e História, Lourdinha aliou durante mais de 20 anos as atividades de funcionária da Previdência Social e professora da UFMA em regime parcial, onde se destacou principalmente no ensino de História Contemporânea, com grande ênfase na revolução industrial e na revolução francesa, durante muito tempo seu maior interesse de estudo. No início da década passada, já aposentada, integrou o quadro de docentes da UEMA, encarando um concurso para as áreas de História Antiga e Medieval, num momento em que o curso de história ainda lutava com grandes dificuldades para se fixar. Lá ficou quase por dez anos, só saindo na compulsória.

A sala de aula foi seu espaço preferido, compromisso preparado com zelosa antecedência, onde consolidou o perfil de uma professora exigente, dinâmica e alegre, às vezes mesmo empolgante, sem nunca ter sido considerada propriamente intelectual brilhante. Com uma personalidade forte e muito prática, a consciência disto não lhe causou nenhum problema e ainda lhe seria de grande valia, quando resolveu escrever sem muitas preocupações acadêmicas.

A fundação francesa de São Luís e seus mitos. Capa. Reprodução
A fundação francesa de São Luís e seus mitos. Capa. Reprodução

Apesar da publicação da dissertação de mestrado no início dos anos 1980, um estudo sobre a educação na baixada maranhense no período imperial, seu trabalho significativo de escrita é recente, com cinco livros publicados nos últimos 15 anos, um deles com três edições bem diferentes, que funcionou na verdade como detonador dessas possibilidades, o conhecido e polêmico A Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos.

Impresso no final de 2000, mas lançado apenas em julho de 2001, a primeira edição deste estudo era um livrinho quase inacreditável, com menos de 80 páginas, uma escrita leve e, em certas passagens, até ligeira, mas estruturado em três passos fundamentais que vale frisar.

Primeiro, uma observação arguta: a fundação francesa de São Luís não consta nos relatos dos cronistas portugueses e historiadores regionais até o final do século XIX, mantendo-se uma distinção entre o forte e a cidade, acentuando a ascendência portuguesa. Segundo, uma pergunta incômoda: o que teria acontecido, então, com a memória histórica da cidade, com os franceses passando de “invasores” a inquestionáveis “fundadores”? Terceiro, uma hipótese provocativa: a entronização da fundação francesa seria fruto da ação de intelectuais a partir do final do século XIX e passou a constituir, junto com a imagem da Atenas Brasileira, a identidade da cidade no século XX.

O livro foi recebido com certa estupefação e até incredulidade, sendo tratado por quase todo mundo como um mero engano entre fundação e urbanização ou entre fundação e colonização ou, até mesmo, desconhecimento de evidências históricas óbvias. A reação foi principalmente do que poderíamos chamar de establishment cultural, no arco que vai das academias e institutos tradicionais, passando pela mídia impressa, com intervenção de figuras diversas, conhecidas e desconhecidas, desaguando na aparente indiferença com que foi recebido em círculos universitários.

Em contrapartida, trazia um prefácio ousado, escrito por Flávio Soares, um de seus melhores ex-alunos. A indagação dirigida à historiografia colocava as relações entre as nossas elites e o legado português no processo de constituição de sua identidade. Em uma palavra, a identificação buscada no final do período colonial e em parte do Império, transforma-se em um sentimento ativo de rejeição e, através de uma operação de sublimação já verificada na exaltação da Atenas Brasileira, volta-se para a idealização de suas origens, constituindo o mito fundador.

Ele se permitiu ainda raciocinar para além do que sugeria o texto, mostrando como aquele ângulo propiciava toda uma gama de observações sobre algumas características nucleares não apenas da nossa historiografia, como, principalmente, de “camadas nervosas, aparentemente invisíveis da memória e, mais que isto, talvez da psiché da cidade”.

A polêmica estava relançada e exigiria da professora atenção crescente durante quase toda a década. Logo em 2002, lançou a segunda edição, ampliada com outro ensaio, “A Criação do Mito”, trazendo um levantamento mais circunstanciado do problema, sobretudo com a localização de Ribeiro do Amaral e seu livro A Fundação do Maranhão, lançado no rol das comemorações de 1912. Ele seria o primeiro autor a entronizar o 8 de setembro como data da fundação da cidade, remetendo à missa de tomada de posse da região descrita no livro do capuchinho Claude d’Abbeville. Um enfoque que ficaria cristalizado no livro de Mário Meireles, A França Equinocial, de 1962.

A terceira edição, que ela considera a definitiva, sairia apenas em 2008. Além de novas revisões e ajustes, traz quatro artigos selecionados entre cerca de 10 saídos na imprensa durante o período e um tratamento do belo painel tríptico A Fundação de São Luís, obra de Floriano Teixeira, encomendada pelo governo do estado e entregue em 1972, reproduzida no livro integralmente e em detalhes. Antes, porém, publicou dois outros trabalhos.

Em 2004, o livro sobre a Campanha da Produção, iniciativa dos grandes comerciantes integrantes da Associação Comercial na década de 1950, com vistas aos gargalos que emperravam a produção agrícola e seu escoamento para a capital. Um capítulo final do predomínio do complexo da Praia Grande na economia regional, visto através da análise dos relatórios da diretoria.

Em 2006, lançou outro trabalho enfocando a questão da fundação, um ensaio sobre a figura de Jerônimo de Albuquerque, tornado Maranhão após a vitória de Guaxenduba. Novamente vemos a combinação entre um veio forte de concepção da história como encadeamento de fatos em relação causal, herança da influência de Mário Meireles em sua formação, e outro, da história como determinada forma de construção coletiva da memória e, portanto, em transformação vinculada a determinantes de época.

Assim, depois de demarcar as especificidades da guerra colonial, híbrido de técnicas de guerra europeia e guerra indígena, terreno onde o mestiço Albuquerque estava à vontade, e acompanhar os fatos narrados por Diogo de Campos Moreno, traz novas observações interessantes de teor mais nitidamente historiográfico.

São as considerações dos três últimos capítulos, versando sobre: os condicionantes do próprio relato do militar português; a forma como a batalha de Guaxenduba foi enfocada no decorrer dos séculos; por fim, a vinculação entre Jerônimo de Albuquerque e a fundação da cidade de São Luís na historiografia regional, reafirmando a existência de um arco que vai dos cronistas portugueses a historiadores maranhenses do século XIX e mesmo do início do século XX.

Durante todos esses anos não descuidou do debate, sempre se ocupando nos artigos de responder com novos estudos às críticas que lhe dirigiam. Aos poucos, uma agressividade fora do tom, somada à incompreensão e à repetição dos argumentos, foi determinando seu afastamento da polêmica, que, no entanto, continuaria viva.

Um exemplo recente e bem eloquente dos equívocos que sempre acompanharam este debate pode ser visto no livro de Ana Luiza Almeida Ferro, intitulado 1612: Os Papagaios Amarelos na Ilha do Maranhão e a Fundação de São Luís, publicado no final do ano passado, mais de 600 páginas, anunciado com estardalhaço e repleto de autoglorificações, ao estilo da Atenas Brasileira. Estamos exatamente diante de um resgate do tipo de história feito por Mário Meireles e outros próceres da AML.

Após uma longa revisão das disputas entre as coroas em torno das terras do Novo Mundo e das primeiras tentativas de colonização do território, chegamos ao capítulo 7, intitulado emblematicamente “A Fundação da França Equinocial e da Cidade de São Luís”. Utilizando as descrições conhecidas do padre capuchinho, vai configurando a tentativa de implantação da França Equinocial, apoiada também no importante livro de Patrícia Seed sobre as cerimônias de posse levadas a efeito pelos europeus no continente americano.

A autora segue as descrições e análises de seus significados, mas, a certa altura, entra o que não estava lá: “O dia 8 de setembro de 1612 marca a condução de uma cerimônia gaulesa de tomada de posse da Ilha do Maranhão, contudo serve igualmente de marco de fundação da cidade de São Luís” (p.380). Ora, serve para quem e por quê? Este passo de identificação foi dado por Ribeiro do Amaral e o grupo de intelectuais oriundo dos Novos Atenienses. Não é outra coisa o que a autora vai encontrar no levantamento a que procede. Vejamos.

Se excluirmos a utilização equivocada do Pe. José de Moraes, que descreve a cidadela do forte como “cidade pequena”, observação já feita por Rafael Moreira, maranhense radicado há anos em Portugal e especialista reconhecido no estudo de fortes, o que a autora lista de novo são historiadores franceses do século XIX e do início do século XX, posteriores a Ferdinand Denis, nome principal e localizado nos trabalhos de Lourdinha, que, inclusive, frisou suas afirmações contraditórias sobre o tema, aqui silenciadas.

São os historiadores Léon Guérin, para quem “a França lançou os fundamentos de dois dos mais importantes estabelecimentos dos europeus no Brasil… aquele de Saint-Louis de Maranhão e aquele da baía do Rio de Janeiro” e Charles de La Ronciére, que se referiu a “uma cidade toda de madeira, tal foi Saint-Louis, a capital da França Equinocial” (p.273). Entre os autores regionais, o primeiro a aparecer é justamente Ribeiro do Amaral, ao qual se segue uma lista que no decorrer do século XX, como é sabido, se tornou amplamente majoritária.

Do outro lado, ela tem os autores que falam da fundação portuguesa da cidade, um arco que começa em Berredo (não lista Bettendorff), passa por Gaioso (não lista Prazeres e sua Poranduba Maranhense), João Lisboa, Cesar Marques, Barbosa de Godois, estes dois últimos em obras de referência geral, o famoso Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão e um compêndio para alunos secundaristas, a História do Maranhão. Inclui ainda outros autores mais recentes indicados por Lourdinha, José Moreira e Correia Lima, que foram membros do IHGM.

O que temos claramente, portanto, são duas linhagens interpretativas, uma que remonta aos cronistas coloniais, sendo predominante até o final do século XIX, e outra que surge aí, na esteira da revalorização da presença francesa na colonização das Américas, e se formaliza em 1912. Mesmo incluindo equivocadamente o Pe. José de Moraes, no séc. XVIII, ainda assim é visível que a associação entre os dois tópicos do seu capítulo só ocorre depois, quando a cerimônia de 8 de setembro é incorporada à narrativa como marco de fundação da cidade, tornando-se fato naturalizado, a forma como é, de resto, tratado em sua análise.

Por que a autora não se apercebe do que está indicado nos próprios dados recolhidos?  A resposta pode estar no tipo de concepção, de fundo verdadeiramente mítico, que determina desde o início a forma da investigação e pode ser observado num trecho como este: “Mesmo que admitamos a inexistência de qualquer menção literal de Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux à ideia de fundação de uma cidade, tal não significa que eles não tenham descrito, e com detalhes preciosos, a fundação de uma, no caso São Luís” (p. 602). Sim, aos olhos de quem lê e determina que a partir dali a cidade já estava fundada…

É o que leva igualmente um conhecedor dos livros de história do Maranhão e intelectual importante da AML, Jomar Moraes, a escrever sobre a fundação francesa de São Luís utilizando recorrentemente citações de Berredo, quando este afirma justo o contrário. Isto porque ele costuma citar trechos do capítulo ou livro II, quando o autor trata da tentativa de implantação da França Equinocial, seguindo o relato de Claude d’Abbeville sobre as cerimônias e as providências tomadas, e não do capítulo seguinte, justamente quando se reporta à fundação da cidade como fruto de uma decisão da corte em Madri. Em suma, a introjeção da identificação entre a missa de tomada de posse das terras e a fundação da cidade já está fixada e bloqueia qualquer indagação como absurda.

É por isto que a designação de mito, utilizada por Lourdinha de maneira puramente intuitiva, me pareceu sempre tão feliz. Segundo Roland Barthes, no Mitologias, os mitos modernos, como são estes criados na virada do século, constituem uma fala roubada e restituída, mas, “simplesmente, a fala que se restitui não é certamente a mesma que foi roubada. É esse breve roubo, esse momento fortuito de falsificação, que constitui o aspecto transido da fala mítica”. E mais: “O mito é simultaneamente imperfectível e indiscutível, o tempo e o saber nada lhe podem acrescentar ou subtrair”.

No caso, a fala relida e mitificada é a narrativa de Claude d’Abbeville, utilizada para constatar o que ela efetivamente não afirma. Nem verdade, nem mentira, o mito opera nas brumas, mas precisa fixar a cena. Ainda segundo Barthes, “é uma fala definida pela sua intenção muito mais do que pela sua literalidade; e que, no entanto, a intenção está de algum modo petrificada, purificada, eternizada”.

O tipo de comportamento reativo quando o livro apareceu foi efetivamente como se defendessem um mito. No afã de tornar natural ou evidente a fundação francesa, sequer admitia-se que esta noção tivesse uma historicidade. Tornou-se um fato naturalizado através do significado correlato atribuído à cerimônia de 8 de setembro. Neste aspecto, o trabalho de Ana Luiza Ferro apenas segue a crença, frise-se o termo, tornada comum: “Pouco importa se os portugueses agiram em conformidade com uma determinação expressa da Corte no sentido da fundação de uma cidade; eles não podiam fundar o que já fora fundado” (p. 602).

A autora tenta ainda inverter os termos da equação proposta por Lourdinha e fala, no capítulo 14, em um “mito da fundação portuguesa”, ao qual se contrapôs a verdade histórica da fundação francesa, a partir da revalorização das influências gaulesas no litoral brasileiro no processo da colonização e o conhecimento de textos que foram interditados, como o livro do padre Yves d’Évreux. Em linhas gerais, são ideias já defendidas em artigos pelo jornalista Antonio Carlos Lima, além de buscar algumas observações de Andréa Daher sobre as tentativas do português vencedor de impor a memória e “ocultar marcas”.

A questão é que os documentos e textos revelados não alteraram a descrição básica já existente sobre o arraial dos franceses, o forte e adjacências, constante seja no relato de Claude d’Abbeville, seja na correspondência oficial enviada ao reino ou firmada entre os capitães. A nova interpretação se baseia na conhecida História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas e surge não como contestação crítica, e sim constatação de algo que já estava lá desde sempre. A noção da fundação francesa se incrustou na historiografia maranhense como um mito. Foi isto que efetivamente o trabalho de Lourdinha mostrou.

Por outro lado, as observações sobre o forte como origem da cidade, tópico recorrente, são absolutamente pueris: “Incontáveis cidades mundiais, em distintas épocas de conquistas de território e guerras entre nações, nasceram de fortificações, a exemplo dos castelos. São Luís não foge a este padrão tão comum ao longo da história” (Idem, p. 264). Por aí não se vai longe.

Novamente as indicações feitas por Lourdinha em artigo intitulado “As Cidades no Brasil Colonial” (Caderno Alternativo, 18.05.2008), parecem mais frutíferas, mostrando, com base em estudo do urbanista Paulo Santos, que longe de serem simplesmente “espontâneas”, existiram cidades coloniais com planta prévia, fundadas por determinação expressa do Reino, entre as quais destaca Salvador, o Rio de Janeiro e São Luís.

As diretrizes para a fundação da primeira constavam do Regimento de Tomé de Souza e o mesmo se deu em São Luís, conforme o Regimento deixado por Alexandre de Moura a Jerônimo de Albuquerque. O plano de autoria do Engenheiro-Mor Francisco Frias de Mesquita seria o exemplo mais expressivo da adoção de traços de regularidade, talvez o primeiro realizado no Brasil, “mas sem a monótona repetição de quadrículos que se vê nas cidades de colonização hispânica”. Em seu núcleo regular rigorosamente projetado e preservado está a singularidade da cidade, muito mais que em sua mítica fundação francesa.

Enquanto seus críticos continuaram relendo as descrições de Claude d’Abbeville e tecendo loas à França Equinocial, Lourdinha apareceu com outra grande surpresa em 2012, ano em que seriam comemorados os “400 anos” da fundação. Longe de continuar batendo na mesma tecla, publicou um alentado livro sobre a cidade, a expansão da sua malha urbana, a transformação dos costumes, enfocando traços do cotidiano, as festas religiosas e laicas, as manifestações artísticas.

Aqui se distanciou ainda mais da escrita com traços formais e, sem qualquer quadro teórico, nos termos acadêmicos comuns, costurou uma mistura de pesquisa e ensaio memorialístico livre, vivo, cheio de cores, sabores e odores. O título, São Luís do Maranhão, Corpo e Alma, aparentemente pretensioso, traduz o que efetivamente vamos encontrar, uma narrativa forte e descentrada, desenhando vasto painel histórico da cidade, com fundo sentimental e ligeiramente nostálgico, mas sem a costumeira exaltação afetada.

É um encontro quase literal com São Luís em suas ruas e becos, igrejas e praças, dividido em quatro partes, referentes aos quatro séculos: a cidade traçada; o início da expansão; a era do casario; crescimento e degradação. Não é uma história administrativa, tão ao gosto de Mário Meireles, por exemplo, nem um guia sentimental ou turístico, mas é um painel histórico que traz muito da sua longa vivência na cidade e do trânsito entre famílias antigas, expresso no conhecimento de episódios e figuras variadas da sociedade.

Com uma edição ricamente ilustrada, mesclando fotografias antigas com outras recentes, muitas da lavra do fotógrafo Edgar Rocha, associadas a registros de pinturas, dispostas numa dimensão não muito usual em obras de história, foi, ironicamente, talvez a melhor saudação que a cidade recebeu naquele ano de comemorações. É livro escrito com sofreguidão, salto sem rede de proteção, que se lê de um fôlego. Quanto mais as memórias, suas e de outros, se entrelaçam com a pesquisa e são atravessadas pelas imagens, mais o texto ganha em intensidade. Trabalho significativo de reunião de informações de campos variados, mas também fruto da arte de quem tem o dom de prender a atenção em meio à narrativa mais simples.

Se hoje, passados 15 anos, é possível dizer que o pequeno livro sobre a fundação vai tornando-se clássico, pois reviu os termos do debate, concorde-se ou não com suas posições, este volume sobre a cidade parece simplesmente ter nascido clássico, e da maneira mais silenciosa possível, já disputado e guardado com o zelo do livro raro, apesar de lançado há apenas três anos.

História da Medicina em São Luís. Médicos, enfermidades e instituições. Capa. Reprodução
História da Medicina em São Luís. Médicos, enfermidades e instituições. Capa. Reprodução

 

Sua mais nova realização veio à luz recentemente, o livro História da Medicina em São Luís: médicos, enfermidades e instituições, em outra edição caprichada, lançado no Conselho Regional de Medicina, com relançamento previsto para o dia de abertura da Feira (2 de outubro). Um tema árido e para ela até então desconhecido foi tratado com leveza e novamente as artes da sua narrativa prendem o leitor.

Desta vez, a cidade aparece nas malhas das nossas enfermidades, suas formas e locais de tratamento e, principalmente, na constituição da comunidade médica, em levantamento rico e humanizado, que traz imagens vívidas de figuras emblemáticas, num escopo que vai do tradicional médico de família, percorrendo residências, atendendo nos consultórios ou, mais comumente, nas farmácias, à formação das primeiras especialidades, desenvolvendo-se com o predomínio dos hospitais e clínicas.

Sem dúvida, estes trabalhos escritos em fase avançada da vida por uma professora aposentada que influenciou gerações através da sala de aula, devem ser o motivo da homenagem, mas para todos que a conhecem, seus numerosos amigos, ex-alunos, antigos colegas de trabalho e admiradores, trata-se de algo maior e mais importante, a saudação a uma figura humana rara e sua vinculação à cidade onde sempre viveu.

*Flávio Reis é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA. Publicou Cenas marginais (2005, ed. do autor), Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão (2007, ed. do autor) e Guerrilhas (2012, Pitomba/ Vias de Fato).

Agenda #9FeliS

Foto: Acervo Talita Guimarães
Foto: Acervo Talita Guimarães

 

Enquanto não sai oficialmente a programação completa da 9ª. Feira do Livro de São Luís, que volta à Praia Grande entre os próximos dias 2 a 11 de outubro, este blogue anuncia a participação de seu titular no evento. Medeio duas mesas:

5 (segunda), às 20h, “Uma historiadora ludovicense: a figura e a obra de Lourdinha Lacroix“, palestra do professoramigo Flávio Soares, no Auditório Lourdinha Lacroix (Casa do Maranhão) Mário Meirelles (Teatro João do Vale). Na #9FeliS, Maria de Lourdes Lauande Lacroix, professora, historiadora e patronesse desta edição da FeliS, lança História da Medicina em São Luís: Médicos, enfermidades e instituições, que tive o prazer e a honra de revisar; e

10 (sábado), às 17h, “Editoras alternativas: pedras no caminho do mercado“, debate-papo com Bruno Azevêdo (Pitomba!), Eduardo Lacerda (Patuá) e Bruno Brum, no Auditório Mário Meireles Espaço Café Literário Lourdinha Lacroix (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho).

Ilustra este post foto roubada da Talita Guimarães (ao centro, não lembro quem fez), após a mesa que, baita honra, dividi com Jotabê Medeiros na FeliS passada.

*

Veja a programação completa da #9FeliS.

Do diário de um bebê

O homem ao zero. Capa. Reprodução
O homem ao zero. Capa. Reprodução

1º MÊS
– Completo hoje trinta dias e confesso que já estou farto de ouvir “bilu-bilu” o dia inteiro na minha cara. Por que os adultos não falam direito, fazem voz esquisita e fanhosa, se sabem que não entendo nada do que dizem e muito menos falando assim?

2º MÊS
– Percebo que estão todos apreensivos, suas caras mudam de expressão depois que abrem o jornal e comentam que o preço do leite vai subir, não sei por que essa preocupação se o leite que tomo é de graça e é a mamãe que fornece. Se o leite subir até que é bom, porque a mamãe pode ficar rica.

3º MÊS
– Quero esclarecer que quando molho a fralda choro muito, mas é por causa da despesa que estou dando, sei como está difícil arranjar empregada pra lavar todo dia. Outra coisa que me chateia e não posso reagir é quando as visitas dizem que sou a cara do pai, no princípio eu não ligava, mas agora que já vi a cara do papai não gosto muito.

4º MÊS
– A vovó tem mania de ficar me balançando no colo e pensa que durmo por causa disso, mas não é não, é que fico tontinho e desmaio. A mamãe passa o dia inteiro lendo livros pra saber como cuidar de mim, mas os livros são tão diferentes que quem sofre sou eu, pois ela fica sem saber o que fazer.

5º MÊS
– Não gosto quando a mamãe insiste em tirar a minha chupeta e o papai diz que é melhor do que botar o dedo na boca. O que me incomoda não é nem a falta de chupeta nem do dedo, é a discussão na minha cara.

6º MÊS
– Não gosto do meu pediatra porque todo mês receita um monte de sopas que eu detesto e um monte de remédios que quem detesta é a mamãe. Só gosto daqueles ferrinhos que ele traz na malinha, mas toda vez que seguro um pra brincar ele tira da minha mão e enfia na minha garganta.

7º MÊS
– Quanto às mamadeiras, acho bom entenderem de uma vez por todas que quando não quero tomar, não adianta ninguém insistir nem me passar de mão em mão pra cada um tentar uma vez. O problema não é trocarem as pessoas – é trocarem o leite, que eu conheço o gosto.

8º MÊS
– Aqui em casa todos acreditam nos livros que ensinam “como cuidar do bebê”, mas nenhum médico nunca me consultou do que gosto e do que não gosto, pois quando eles escreveram seus livros eu nem tinha nascido. Seguir estatística é nisso que dá: quem entra pelo cano sou eu.

9º MÊS
– Não adianta ficarem dizendo na minha cara “mamã” e “papá”, porque o certo é “mamãe” e “papai”. As pessoas grandes ensinam a gente a falar errado porque acham que é mais engraçadinho – depois eu sei o que acontece, de tanto a gente falar errado eles acabam mandando a gente pra escola pra aprender a falar direito.

10º MÊS
– Coisa que não gosto é quando chegam visitas, entram no meu quarto pra ver se estou dormindo e ficam falando baixinho que estou acordado, depois vem outro e diz que estou dormindo, depois vem outro e diz que acha que estou acordado – ninguém se manca, pois com todo mundo cochichando não consigo dormir.

11º MÊS
– Muito constrangedor é quando deixo a sopa no prato, só pela cara da mamãe já sei que o preço dos legumes subiu de novo. Coisa que não entendo é que todo mundo concorda que não se deve bater numa criança, mas bem que de vez em quando me dão umas palmadas. Não quero crescer nunca, acho gente grande muito nervosa.

12º MÊS
– A maior emoção da minha vida foi quando consegui ficar de bruços, porque esse negócio de ficar deitado de costas é muito bom mas é pro papai. Agora estou engatinhando e ouço dizer que muito breve começarei a andar. Eles não perdem por esperar: assim que eu começar a andar, saio de casa.

*

Leon Eliachar (1922-1987), in O homem ao zero [Editora Expressão e Cultura, 1967]

Para crianças de todas as idades

Divulgação
Divulgação

 

No ano em que celebra 30 anos, o grupo Teatrodança segue em turnê, com o lançamento de Vivendo Teatrodança – Investigações de uma artista maranhense para crianças de qualquer idade, de Júlia Emília, que o fundou em 1985 e o dirige desde então.

Nesta quarta (15), às 19h, é a vez de a Livraria Leitura (São Luís Shopping) recebê-la em noite de autógrafos. Na ocasião, será encenado o Mundo imaginário de Juju Carrapeta, personagem de O baile das lavandeiras.

A entrada é franca.

Maranhense lança livro sobre cinema(s) de Júlio Bressane

[release]

Fruto de sua tese de doutorado na PUC/SP, livro de Adriano Sousa será lançado em duas noites de autógrafos em São Luís

Poética de Júlio Bressane: Cinema(s) da Transcriação. Capa. Reprodução
Poética de Júlio Bressane: Cinema(s) da Transcriação. Capa. Reprodução

Em Poética de Júlio Bressane: Cinema(s) da Transcriação [Educ/Fapesp, 2015, 234 p.], sua tese de doutorado, Adriano Sousa aprofunda o mergulho na obra do cineasta, já abordada em sua dissertação de mestrado, Devir-deserto no São Jerônimo de Júlio Bressane: poética tradutória e cartografias da cultura (2005), ambos os trabalhos defendidos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

O autor perpassa a filmografia de Bressane observando-lhe aspectos sem isolá-los, fugindo do que tem sido mais óbvio à crítica e à própria academia, lançando novos olhares sobre o conjunto bressaniano. Observa, na obra do cineasta, o intercambiar incessante entre linguagens distintas, sobretudo a literatura a música e a pintura.

Não à toa sobressaem-se títulos como Brás Cubas (1985), O mandarim (1995), Miramar (1997), Dias de Nietzsche em Turim (2001) e Filme de amor (2003), entre outros.

Adriano Sousa está escoltado por nomes importantes da comunicação e semiótica no Brasil, como Jerusa Pires Ferreira, diretora do Centro de Estudos da Oralidade da PUC/SP, que avaliza na quarta capa: “Tendo em Haroldo de Campos um intercessor, penetrou no âmago de muitas questões”. E continua: “Cercado de competências, da presença tutelar e mágica do cineasta, do diálogo com seus pares, para quem a arte em si se impõe e confirma, Adriano Sousa conquista um lugar apropriado para falar de tudo isso. Tenho, portanto, muitas razões para celebrar a presença do livro […], mais do que uma tese de doutorado”.

“Vivenciamos os filmes de Bressane e a escrita de Adriano como um corte que irrompe no automatismo do cotidiano, provocando estranhamento em meio a encantos mil”, anota a documentarista e psicanalista Miriam Chnaiderman no texto que apresenta a obra. Antes ela indaga: “Como escrever sobre Júlio Bressane e ser fiel à ruptura que o cineasta propõe?”. “Propor um trabalho que seja a poética da poética bressaniana, mas que continue bressaniana. É o desafio que surge. Que a escrita seja também transcriação, como o cinema de Júlio Bressane”, continua.

Segundo Adriano, o próprio “termo transcriação no lugar de tradução intersemiótica […] remete diretamente à complexidade de “traduzir o intraduzível””. Respondendo à pergunta inaugural de Chnaiderman, o que o autor faz é justamente deslocar as rupturas cinematográficas de Bressane para a literatura – para além da academia.

Adriano Sousa lança Poética de Júlio Bressane: Cinema(s) da Transcriação em duas noites de autógrafos em São Luís. Hoje (19), às 19h, no Chico Discos (Rua Treze de Maio, 289-A, Altos, esquina com Afogados, Centro); e dia 22 (segunda-feira), às 17h, no Auditório A do Centro de Ciências Humanas (CCH) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Na ocasião haverá um bate-papo do autor com as presenças dos professores Luís Inácio (Filosofia), Junerlei Dias (Comunicação) e Flávio Reis (Sociologia e Antropologia). Ambos os eventos têm entrada gratuita.