Punk is not dead

Feliz ano velho [Brasiliense, 1982; Alfaguara, 2015], de Marcelo Rubens Paiva, que li no início da adolescência, foi um livro fundamental para meu interesse por literatura. Era um relato autobiográfico tendo por mote o incidente que o colocaria para sempre numa cadeira de rodas, mas sem perder o bom humor e dialogando com outras artes, sobretudo a música. Finalmente um livro não era chato como em geral eram os que líamos na escola por obrigação. Merecidamente virou um best seller, com sucessivas reedições.

Meninos em fúria. Capa. Reprodução
Meninos em fúria. Capa. Reprodução

Com vários títulos na bagagem o escritor, dramaturgo e jornalista, colunista de O Estado de S. Paulo, acaba de lançar, a quatro mãos, com Clemente Tadeu Nascimento Meninos em fúria: e o som que mudou a música para sempre [Alfaguara, 2016, 220 p.], livro que remonta à gênese da banda Inocentes – fundada e liderada por Clemente, hoje também vocalista e guitarrista da Plebe Rude, em paralelo –, pioneira do movimento punk no Brasil.

Não se trata de uma biografia, é mais um livro de memórias, contada por testemunhas privilegiadas da história. Clemente, ex-bancário e ex-vendedor de guarda-chuvas, era o frontman da banda que acabou por influenciar nomes como Gilberto Gil, que em 1983 lançou Punk da periferia, obviamente detestada pelos punks de então.

A prosa de Marcelo Rubens Paiva tem uma leveza que a distancia da objetividade e “imparcialidade” jornalísticas. Ele dá voz a familiares, parceiros, produtores e todos que rodeavam Clemente e os Inocentes, além do próprio – as falas de cada autor estão bem delimitadas em Meninos em fúria.

De quando o punk era assunto das páginas policiais dos jornais, época em que o movimento não tinha consciência de e era sempre associado à depredação e violência entre seus próprios integrantes, gangues de bairros diferentes, à assinatura de contrato com uma grande gravadora, colado ao boom do brock, quando enfim ganham as páginas de cultura, a participação dos Inocentes em shows e festivais ao lado de ídolos como Sex Pistols e Ramones, a falta de tato para lidar com o star system, além de toda a conjuntura da época – abertura, fim da ditadura, manutenção da censura, governos Sarney e Collor etc. –, nada escapa ao olhar e memória atentos da dupla.

Não é um livro saudoso. O punk continua vivo e seu espírito libertário e anarquista é hoje necessário. “E tudo parecia calmo e andando em direção a um final feliz quando, em 2016, fomos novamente atropelados pela história. O país entra em convulsão, a luta pelo poder trouxe fatos bizarros de volta, a manipulação de massa, uma perigosa e volátil arma política, está sendo usada sem escrúpulo nenhum, a Justiça se transformou em instrumento de vingança, totalmente parcial e claramente partidária”, anota Clemente, atestando a plena saúde do punk.

Metaliteratura

O céu de Lima. Capa. Reprodução
O céu de Lima. Capa. Reprodução

 

O céu de Lima [Alfaguara, 2016, 245 p., tradução de Paulina Wacht e Ari Roitiman], romance de estreia do jovem espanhol Juan Gómez Bárcena, é um exercício de metaliteratura, um metarromance. O texto é construído à medida que se constrói a história que conta, embora a mesma se passe no início do século XX.

O romance parte da história real de José Gálvez e Carlos Rodríguez, dois jovens limenhos metidos a poetas que, para conseguir um exemplar de Árias tristes [1903], novo livro do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (Nobel de Literatura em 1956), inventam uma personagem: a senhorita Georgina Hübner, fantasma pelo qual o poeta acaba se apaixonando.

Gálvez e Rodríguez, que tratam Jiménez por mestre, querendo sê-lo e escrever a poesia que escreve, fundem-se na personagem feminina, protagonista de um romance epistolar que durará meses – um mês é o tempo médio que os navios demoravam para levar e trazer as missivas entre Lima (onde mora a dupla de simpáticos e inofensivos embusteiros) e Madri (onde mora o poeta admirado) ou Moguer (sua terra natal).

A aventura passa por comédia, história de amor, tragédia e um poema – para citar as partes em que o autor divide o romance; mas esta última, a poesia, permeia completamente o livro, com todos os clichês que acometem jovens metidos a poetas, seja em Lima, no Peru, em 1904, seja em São Luís do Maranhão, no Brasil, em 2016. Ao contrário de suas personagens, no entanto, Bárcena demonstra maturidade, habilidade e domínio para preencher com ficção trechos da história real sui generis que deliciosamente conta.

O título do romance de estreia de Bárcena – que lançou Los que duermen [contos, 2012] e editou a coletânea Bajo treinta [2013], com jovens autores espanhóis – é, afinal, tirado do poema resultante da correspondência entre o poeta (real) e a musa (imaginária): Carta a Georgina Hübner no céu de Lima, publicado em Labirinto [1913].