Dias de Simcom e Sibita

Com Yara Medeiros, Alexandre Maciel e Helena Dias
Com Yara Medeiros, Alexandre Maciel e Helena Dias
Durante a roda de conversa
Durante a roda de conversa
Com Inácio França, na mesa de abertura
Com Inácio França, na mesa de abertura
Trocando ideias com Seu Francisco e Radassa
Trocando ideias com Seu Francisco e Radassa

TEXTO: ZEMA RIBEIRO
FOTOS: ROSANA BARROS

A não ser diante de uma impossibilidade real e incontornável, nunca me nego a conversar com estudantes de jornalismo. Por isso disse sim ao convite recebido do Simpósio de Comunicação da Região Tocantina, que este ano chegou à maioridade.

Com as credenciais da Rádio Timbira FM e Farofafá, dividi a mesa de abertura do evento, “Desafios da produção de conteúdo no jornalismo cultural e independente”, na noite do último dia 11 de dezembro, com os colegas Inácio França (Marco Zero Conteúdo) e Helena Dias (Brasil de Fato Pernambuco).

Falamos para um auditório com bom público, formado por estudantes, professores, profissionais e curiosos em geral. O clima era o melhor possível. Todos saímos impressionados com o evento: grande, organizado, simpático e acolhedor. E se atribuo tais adjetivos ao Simcom, este os deve a todas as pessoas envolvidas com sua produção e organização, a quem saúdo através do casal Alexandre Maciel e Yara Medeiros, professores do curso, sul-mato-grossenses que adotaram o Maranhão como casa e logo se tornaram amigos de infância (não foram os únicos).

Marcus Túlio, Duda, Gustavo, cada professor/a ou aluno/a que travou contato comigo desde o convite, foi sempre super gentil, educado/a, atencioso/a, simpático/a, o que não deve ser tarefa fácil, dada a magnitude do evento. Senti-me em casa, o tempo inteiro, da efígie grafitada (não consegui identificar a autoria, mas terei o maior prazer em editar este texto dando o devido crédito) do professor Sérgio Ferretti (1937-2018), logo na entrada do campus às indicações e companhias para almoços e jantares.

Foram dois dias de muitas trocas e aprendizados. De gaiato, assisti à oficina ministrada por Inácio França, sobre produção de conteúdo para a internet, em que ele trouxe sua experiência de fundador da Marco Zero, reforçando a importância de um jornalismo independente, que pode ser feito em qualquer lugar, com o barateamento dos custos proporcionado pelas novas tecnologias – não há mais as despesas com distribuição, por exemplo, como à época dos jornais impressos, quando começamos.

Na turma, num exercício prático de troca de histórias, que seriam ouvidas e contadas por seu interlocutor, conheci a surpreendente e bonita história de seu Francisco, vítima de paralisia infantil que hoje cursa o quarto período de Jornalismo, e Radassa, que se divide entre a família e os cuidados com o amigo que conheceu no ensino médio – enquanto ela, mais jovem, não se decide pelo curso que irá fazer, já assiste algumas disciplinas de Comunicação como ouvinte, acompanhando o amigo.

A mesa de abertura, mediada por Alexandre, foi bastante participativa. O bloco final de perguntas juntou não sei quantas delas e havia disposição dos que ali estavam para mais, o que demonstra a relevância dos temas propostos. Um desafio comum apontado por nós três é a questão do dinheiro: fontes de financiamento, o custo de se fazer um jornalismo sério, responsável, comprometido com a informação de qualidade e correta. Outros foram servidos pela plateia, entre o desafio e a oportunidade: inteligência artificial, redes sociais, a pauta cultural e sua relação com outras editorias, entre outros.

Otimista incorrigível, banquei o pessimista, ainda que este não supere àquele, em mim. Além da grana, ou melhor, da falta dela, a algoritmização da vida é um desafio, porque sabemos que os algoritmos servem a uma monocultura e o papel do jornalismo como um todo, e particularmente o cultural, é justamente promover a diversidade. Nesse sentido, o jornalismo cultural tem, hoje, um papel curatorial.

Além de fazer amigos, foi também a oportunidade de conhecer pessoalmente gente que eu só conhecia das redes sociais (Dhara Inácio e Rosiane Stefane) e de revê-los: casos dos fotógrafos Daniel Sena e Rosana Barros, dos professores Letícia Cardoso (com quem me encontrei já no aeroporto, para pegar o voo de ida), Ricardo Alvarenga e Marcos Fábio (que ministrou disciplinas de redação em minha graduação), da poeta Lília Diniz, que aqueceu o público com sua apresentação de poesia e coco antecedendo a mesa, e do cantor e compositor Erasmo Dibell, que se apresentou (com o também talentoso Washington Brasil) na tarde do Publisimcom, o evento (dentro do evento) de publicações de livros. Trouxe na bagagem o “Curacanga”, de João Marcos – na graduação, ele me entrevistou para um trabalho acadêmico; hoje aluno do Mestrado, ele pesquisa livros-reportagens, com foco nos trabalhos da jornalista Andréa Oliveira sobre João do Vale (1934-1996) e o bumba meu boi. Instiguei-o a lançar o novo livro em São Luís, ano que vem.

E mesmo as amigas que não revi, era possível sentir sua presença. De certo modo e à distância, acompanhei as graduações de Mariana Castro e Lanna Luiza. Da primeira, ao mencionar seu nome, ouvi um elogioso “ela é babado!” de uma estudante; da segunda, a quem devo o contato e o convite recebido, lembrei-me imediatamente de suas aventuras com o Zine Sibita, que, sagitariano como eu (se não fosse, tornou-se), neste dezembro completou 10 anos, com direito a uma sala, bolo e parabéns, e, ao mesmo tempo que voltava a ser editado em corte-e-cola, já era também site e tv no youtube (para onde cheguei a ser entrevistado por ocasião desta passagem que aqui relato brevemente). Na bagagem trouxe uma ecobag (e ganhei o avatar da Idayane Ferreira, quem me segue nas redes sociais verá) desta importante iniciativa que este ano ganhou o prêmio de melhor Design de Imprensa na Expocom Nordeste, em Natal/RN.

Uma das perguntas desta entrevista eram as três principais razões pelas quais fazer ou continuar fazendo jornalismo: paixão/tesão (gostar do e viver o que se faz é importante), compromisso (com a informação de qualidade e com quem lê/ou/vê) e teimosia (fazer jornalismo apesar de tudo).

Foi animador ver o envolvimento de professores/as e alunos/as, empenhados para que tudo desse certo. Mesmo não ficando o evento inteiro, por força de compromissos outros, foi gratificante constatar que tal grau de engajamento atingiu seus objetivos: deu tudo certo. Fiquei feliz de vi/ver tudo o que vi/vi e espero voltar em breve. Vida longa ao Simcom!

Coreiras dançando tango

Hamilton de Holanda e Mestrinho no palco do Festival Ilha Sinfônica, ontem (29) - foto: divulgação
Hamilton de Holanda e Mestrinho no palco do Festival Ilha Sinfônica, ontem (29) – foto: divulgação

Os telões que ladeavam o palco do Ilha Sinfônica mostraram: coreiras do Tambor de Crioula de Mestre Felipe dançando tango, enquanto Hamilton de Holanda (bandolim) e Mestrinho (sanfona) tocavam “Libertango” (Astor Piazzolla). A imagem sintetiza a proposta do festival, que juntou música clássica e música popular, com um elenco que uniu a Orquestra Ilha Sinfônica (formada por músicos ludovicenses para o evento) aos dois citados, expoentes em seus instrumentos, além de nomes já bastante conhecidos da cena local, incluindo o homenageado da noite, o cantor e compositor César Nascimento.

A apresentação de Hamilton de Holanda e Mestrinho, que pela primeira vez tocaram juntos em São Luís, começou com “Canto de Xangô” (Baden Powell e Vinícius de Moraes) e baseou-se no repertório de Canto da Praya (Deck, 2020), álbum que lançaram juntos. Em aproximadamente uma hora de apresentação, desfilaram temas como “Escadaria” (Pedro Raimundo), “Te Devoro” (Djavan) – juntos cantaram o refrão, para delírio da plateia –, “Drão” (Gilberto Gil) – cantada por Mestrinho –, “Afrochoro” (Hamilton de Holanda), “Evidências” (José Augusto e Paulo Sérgio Valle), que o público cantou a plenos pulmões, “Isn’t She Lovely” (Stevie Wonder) e “Palco” (Gilberto Gil). No bis, “Te Faço Um Cafuné” (José Abdon).

Antes da dupla, o Quarteto de Cordas da Orquestra Ouro Preto preparou o terreno. Hamilton de Holanda e Mestrinho ainda voltariam ao palco com a Orquestra Ilha Sinfônica, regida por Jairo Moraes e pelo regente convidado Rodrigo Toffolo (maestro da Orquestra Ouro Preto); o primeiro solou “Bela Mocidade” (Donato Alves) e o segundo, “Engenho de Flores” (Josias Sobrinho). A apresentação da orquestra marcou também o lançamento de “Valsa Ludovicense” (César Nascimento), disponível nas plataformas digitais desde 8 de setembro, aniversário de São Luís.

A Orquestra Ilha Sinfônica acompanhou artistas como Nosly (que cantou e tocou violão em “June”, parceria sua com Celso Borges), o idealizador e produtor do evento Emanuel Jesus (“Filhos da Precisão”, de Erasmo Dibell), Adriana Bosaipo (cantora (e compositora) talentosa que errou a letra de “Eulália”, de Sérgio Habibe) e César Nascimento, que se emocionou ao relembrar “Ilha Magnética”, já um clássico de sua autoria, e “Corêro” (Josias Sobrinho), que encerrou a noite da orquestra com todos os participantes cantando junto, no palco. O Bumba Meu Boi Unidos de Santa Fé, sob o comando de Zé Olhinho ainda se apresentaria.

O cerimonial anunciou que ano que vem tem mais, encerrando o mês de aniversário da capital brasileira do reggae, do bumba meu boi e do tambor de crioula. Tenho certeza que todos os presentes à praça lotada ontem (29) já aguardam ansiosos.

Festival Gestores em Movimento une música popular e de concerto neste fim de semana em São Luís

Apresentação do violonista Augusto Nassa no programa Pátio Aberto, do Centro Cultural Vale Maranhão, em 2020

Todo mundo já ouviu falar ou já pode testemunhar a riqueza, a força e a diversidade da cultura popular do Maranhão. Estamos em junho, mês em que isto pode ser demonstrado ainda mais intensamente na prática: grupos de bumba meu boi, tambor de crioula e cacuriá, entre muitas outras manifestações, ocupam os arraiais da capital e interior.

O diálogo entre estes e outros ritmos e a música de concerto é a matéria-prima do Festival Gestores em Movimento, marcando o encerramento do programa homônimo, que capacitou 35 gestores e produtores culturais ao longo de seis dias de imersão ao longo da etapa ludovicense do citado programa.

Os cursistas aprofundaram temas como a visão geral do funcionamento de orquestras e salas de concerto, a formatação de projetos para leis de incentivo, elaboração de orçamentos públicos e privados, contratos e legislações sobre estes, além de planejamento e execução das etapas de produção, noções básicas de economia da cultura e rotinas de palco, como iluminação e sonorização, entre outros.

Simbolicamente chamado de Sala Guarnicê, o evento acontece de hoje (7) a domingo (9), no Teatro da Cidade de São Luís (antigo Cine Roxy, Rua do Egito, Centro), com entrada franca, sempre às 19h, com patrocínio do Instituto Cultural Vale através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.

“Clássicos do Maranhão” é o título do concerto de abertura do evento, hoje (7), apresentado pelo violonista Augusto Nassa. Amanhã (8) é a vez do Instrumental Pixinguinha, o primeiro grupo de choro do Maranhão a registrar seu trabalho autoral em disco – o cd Choros Maranhenses, estreia do grupo, foi lançado em 2005. O choro foi recentemente declarado patrimônio cultural imaterial brasileiro. Domingo (9), no encerramento da programação, se apresentam a soprano Rose Nogueira e a pianista Ângela Marques.

Fransoufer inaugura exposição “Maranhão Meu Maranhão” em duas etapas

[release]

60 telas inéditas poderão ser visitadas pelo público, na Procuradoria-Geral de Justiça, em São Luís, e no Centro Cultural Casa Gamela, em São José de Ribamar

O artista Fransoufer em ação. Divulgação
O artista Fransoufer em ação. Divulgação

Em 8 de junho de 1958, na Suécia, o Brasil estreou na Copa do Mundo de futebol com um sonoro 3×0 sobre a seleção austríaca, começando a pavimentar o caminho até o primeiro título mundial. No dia seguinte, no povoado Mojó, em Bequimão/MA, nascia o menino Francisco de Souza Ferreira, em meio aos batuques de um grupo de bumba meu boi de zabumba que brincava em um terreiro da vizinhança – seu pai integrava o cordão.

Como se vê, o menino parecia predestinado. Ainda criança, perambulando por olarias de sua cidade natal, começou a brincar de esculpir usando o barro. Levava jeito para a coisa e isso não passou desapercebido por uma tia, que o levou para estudar na capital; com o tempo o Brasil e o mundo ouviriam falar e reconheceriam o talento de Fransoufer, o nome artístico de sotaque francês que adotou, inventado por amigos, que uniram as sílabas iniciais de seu nome de pia.

Fransoufer foi discípulo do húngaro radicado em São Luís Nagy Lajos (1925-1989), influência definitiva em sua carreira, que não tardaria a ganhar reconhecimento: em 48 anos de trajetória, entre coletivas e individuais, o artista já expôs em vários estados brasileiros e participou do V Salão Internacional de Artes Plásticas, na Bélgica, com a obra “Bumba Meu Boi”, exposta permanentemente no Museu de Arte Moderna de Bruxelas. A sede do Instituto Fransoufer, instalada na Fazenda Canaã, em seu município natal, é um verdadeiro museu a céu aberto e abriga uma série composta por mais de 200 esculturas em tamanho natural.

O ambiente da infância e as origens ajudam a entender os rumos tomados por Fransoufer em seu fazer artístico. O menino que inventava os próprios brinquedos acabou transformando isso em profissão. Devoto de São Francisco de Assis, sua obra é marcada por traços geométricos bastante característicos e pelo uso de cores vibrantes para retratar temas da religiosidade e da cultura popular, além do povo simples do Maranhão, equilibrando-se entre o sagrado e o profano, inspirações e temáticas que predominam em suas telas. Os maranhenses têm nova oportunidade de apreciar a beleza de sua arte.

No próximo dia 13 de setembro, às 10h, Fransoufer inaugura a exposição “Maranhão Meu Maranhão”, com 30 telas inéditas, pintadas especialmente para a ocasião. O vernissage acontece no Espaço de Artes Márcia Sandes, na sede da Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Maranhão (Av. Carlos Cunha, 3261). Dia 16, às 16h, a exposição vai até o Centro Cultural Casa Gamela (Rua Maj. Pirola, Praça da Matriz, 131, Centro, São José de Ribamar) – cada endereço abrigará 30 telas diferentes.

“Maranhão Meu Maranhão”, a exposição, tem curadoria de Silvânia Tamer, produção e coordenação geral de Lena Santos, assessoria de comunicação de Paula Brito e Zema Ribeiro, projeto gráfico e identidade visual de Carlos Costa, monitoria de Gina Tavares, fotografias de Carlos Foicinha, e tradução e revisão textual de Rodrigo Oliveira. O patrocínio é do Governo do Estado do Maranhão, Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão e Grupo Mateus, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão, com apoio cultural do Ministério Público do Estado do Maranhão, Centro Cultural Casa Gamela e AD Fontes Advocacia. A realização é do Instituto Fransoufer.

Uma das telas da exposição "Maranhão Meu Maranhão", de Fransoufer. Reprodução
Uma das telas da exposição “Maranhão Meu Maranhão”, de Fransoufer. Reprodução

Serviço

O quê: exposição “Maranhão Meu Maranhão”
Quem: o artista plástico Fransoufer
Onde/quando: Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Maranhão (Av. Carlos Cunha, 3261), dia 13 (quarta-feira), às 10h; e Centro Cultural Casa Gamela (Rua Maj. Pirola, Praça da Matriz, 131, Centro, São José de Ribamar), dia 16 (sábado), às 16h
Quanto: a visitação é gratuita
Patrocínio: Governo do Estado do Maranhão, Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão e Grupo Mateus, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão
Apoio cultural: Ministério Público do Estado do Maranhão, do Centro Cultural Casa Gamela e da AD Fontes Advocacia
Realização: Instituto Fransoufer

O poder da música

O grupo SaGrama se apresentou sábado (27) em São Luís. Foto: Zema Ribeiro

Originalmente formado para um trabalho de uma disciplina no Conservatório de Música de Pernambuco, o SaGrama está há 28 anos em atividade e passou pela primeira vez por São Luís do Maranhão no último fim de semana.

Sérgio Campelo (flautas, arranjos e direção artística), Ingrid Guerra (flautas), Crisóstomo Santos (clarinete e clarone), Cláudio Moura (viola nordestina, violão, arranjos e codireção), Aristide Rosa (violão), João Pimenta (contrabaixo acústico), Antônio Barreto (marimba, vibrafone e percussão), Tarcísio Resende (percussão), Dannielly Yohanna (percussão) e Isaac Souza (percussão) fizeram duas apresentações impecáveis sábado passado (27) no Teatro Sesc Napoleão Ewerton.

A circulação que trouxe o SaGrama até a ilha, patrocinada pelo Instituto Cultural Vale, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, estava programada para 2020, mas foi adiada pela pandemia de covid-19. O grupo tornou-se nacionalmente conhecido ao assinar a trilha sonora de “O Auto da Compadecida”, filme/série de Guel Arraes baseado na obra de Ariano Suassuna (1927-2014).

Equilibrando-se na linha tênue entre música clássica e música popular, o grupo passeou por diversas fases de sua trajetória – sua discografia já inclui 10 álbuns, em apresentações marcadas pelo passeio por sua obra autoral, em que destacam-se as criações de Sérgio Campelo e Cláudio Moura, e de nomes como Dimas Sedícias (1930-2001) e Luiz Gonzaga (1912-1989).

A música do SaGrama tem uma carga dramatúrgica, com as notas musicais (que explicam a origem do nome do grupo) desenhando paisagens e evocando imagens e memórias. Quem ou/viu ao vivo a execução das peças da trilha sonora de “O Auto da Compadecida”, por exemplo, lembrou de cenas e personagens deste clássico do cinema nacional.

Mas a capacidade que o grupo tem de despertar a imaginação de seu público tem um quê de magia. Dois momentos da apresentação são ótimos exemplos disso. A suíte “Aspectos de Uma Feira” (Dimas Sedícias), que em três movimentos (“Alba”, “Ceguinha Jesuína” e “Maria, Maria, Mariá”) evoca o amanhecer em que uma feira vai se configurando no interior nordestino, com o barulho típico dos vendedores chamando a atenção para seus produtos (momento em que todos os integrantes do SaGrama cantam seus pregões), uma cega que canta pedindo esmolas (brilhantemente interpretada pela flautista Ingrid Guerra, com Cláudio Moura e Dannielly Yohanna depositando-lhe a caridade em sua cuia) e o ambiente dos repentistas e artistas de rua. E o “Boi Babá” (Dimas Sedícias), que além de demonstrar que o bumba meu boi está presente em outros lugares além do Maranhão, acompanha seu ciclo de nascimento, morte e ressurreição, no canto/aboio do percussionista Tarcísio Resende.

Antes da execução de “Boi Babá”, Campelo elogiou a beleza do bumba meu boi maranhense, falou da alegria de ter assistido à manifestação durante a passagem pela cidade e anunciou que o grupo cometeria a ousadia de tocar um boi em pleno Maranhão – o repertório do grupo passeou por cirandas, guerreiros, cocos, maracatus, baiões e frevos. Ao final da música, perguntou, modesto, para gargalhadas e aplausos da plateia: “presta?”.

Do repertório, é possível destacar ainda temas como “Eh! Luanda” (Capiba [1904-1997]) – um raro maracatu, de 1952, do compositor, mais conhecido por seus frevos – e “Palhaço Embriagado” (Sérgio Campelo), ambas do primeiro disco do grupo, lançado em 1998, além de “Mundo do Lua”, um pot-pourri que costura sucessos de Luiz Gonzaga, e “Vassourinhas” (Matias da Rocha/ Joana Batista Ramos), já no bis, encerrando a apresentação em alto astral, clima de carnaval e deixando um gosto de quero mais no público presente.

Na maior parte do espetáculo, manter-se sentado era um exercício difícil: aqui e acolá o espectador era transportado aos ciclos carnavalesco e junino pernambucanos, numa demonstração inequívoca do poder da música do SaGrama. Em setembro a circulação chega a Belém do Pará.

Afetos e canções: Joãozinho Ribeiro reúne amigos em show plural

[release]

Apresentação acontece sexta-feira (16) no Convento das Mercês, com entrada franca – com sugestão de doação de um quilo de alimento não-perecível para as comunidades carentes do entorno

O compositor Joãozinho Ribeiro. Foto: Murilo Santos. Divulgação

O compositor Joãozinho Ribeiro volta a reunir os amigos no show “Com o afeto das canções II”. Beneficente, o evento – cuja primeira edição aconteceu ano passado – ocupa o pátio do Convento das Mercês (Rua da Palma, Desterro), na próxima sexta-feira, 16, às 20h. A entrada é gratuita, com a sugestão da doação de um quilo de alimento não-perecível; a arrecadação será destinada a comunidades carentes do entorno da Fundação da Memória Republicana Brasileira (FMRB), instituição sediada no prédio secular do Centro Histórico da capital maranhense, que completou recentemente 25 anos de inclusão na lista de cidades patrimônio mundial da Unesco.

Joãozinho Ribeiro terá como convidados especiais o Bloco Afro Akomabu, George Gomes, Rosa Reis, Célia Maria, Josias Sobrinho, Rita Benneditto – que gravou em dueto com Zeca Baleiro (que participa virtualmente do show, através de uma mensagem em vídeo), a música que dá título ao espetáculo, cuja produção é assinada por Lena Santos. O espetáculo é uma realização da Dupla Criação e Fundação da Memória Republicana, com patrocínio da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma) e Potiguar, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão.

Rui Mário (sanfona, piano e direção musical), Marquinhos Carcará (percussão), Danilo Santos (saxofone e flauta), Hugo Carafunim (trompete), Robertinho Chinês (cavaquinho e bandolim), Arlindo Pipiu (contrabaixo), Tiago Fernandes (violão sete cordas), Ronald Nascimento (bateria), Katia Espíndola (vocal) e Mariana Rosa (vocal) formam a superbanda que acompanhará Joãozinho Ribeiro e convidados em “Com o afeto das canções II”.

O repertório do show alinhava clássicos da lavra de Joãozinho Ribeiro a músicas inéditas. A pandemia de covid-19 e o isolamento social por ela imposto renderam ao artista dezenas de novas composições, sozinho ou em parceria. Entre os gêneros abordados no roteiro figuram baião, balada, bolero, bumba meu boi, carimbó, divino, ijexá, maxixe, merengue, reggae, salsa, samba e tambor de crioula.

“Esse show é uma espécie de exorcismo. Após quatro anos de massacres diariamente desferidos contra a cultura brasileira, para citar apenas uma área, voltamos a respirar ares democráticos e plurais, voltamos a ser um país, feito de nossa diversidade e riqueza culturais, é o que nos propomos a celebrar, com todo afeto das canções”, anuncia o compositor anfitrião.

Serviço

O quê: show “Com o afeto das canções II”
Quem: o compositor Joãozinho Ribeiro e convidados
Quando: dia 16 de dezembro (sexta-feira), às 20h
Onde: Convento das Mercês (Rua da Palma, Desterro, Centro Histórico)
Quanto: grátis. Sugere-se a doação de um quilo de alimento não-perecível, destinada às comunidades carentes do Centro Histórico
Realização: Dupla Criação e Fundação da Memória Republicana
Patrocínio: Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma) e Potiguar, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão.

Bumba meu boi: memória, ciência e tradição

A mestra de cultura popular Bel Carvalho lança “Do auto do nosso boi” sábado (3). Foto: Aline Fernandes. Divulgação

A começar pelo título, ao mesmo tempo direto e singelo, “Do auto do nosso boi” (Trança Edições, 2022, 56 p.) soma-se a farta bibliografia (afetiva) existente sobre o bumba meu boi, de longe a mais popular manifestação cultural do Maranhão, patrimônio cultural imaterial da humanidade reconhecido pela Unesco.

No pequeno livro, um mergulho no boi, a partir de sua ciência em meio a memórias afetivas muito particulares. Bel Carvalho, a autora, é a irmã mais nova de Tião e Ana Maria Carvalho. Também mestra de cultura popular, a cururupuense radicada em São Paulo parte das lembranças do boi na infância para ensinar a tradição para quem quiser aprender.

Com ilustrações de Carolina Itzá e projeto gráfico de Andrea Pedro (cujo talento acostumamo-nos a ver em discos de Zeca Baleiro), Bel traz para as páginas do livro o que ajudou a fazer com o Grupo Cupuaçu, fundado por seus citados irmãos, que chegaram antes dela ao Morro do Querosene, no Butantã, em São Paulo: colabora para manter viva a tradição e, consequentemente, levá-la adiante.

Não à toa ela dedica o livro aos pais, Florzinha e Pepê Carvalho, “os esteios da minha caminhada”, como anota na dedicatória, caminhada essa que começa numa época em que às mulheres eram reservados apenas papeis de bastidores na construção de um grupo de bumba meu boi, como cozinhar e costurar – nas origens da manifestação, a cantoria e o cordão (o palco só aparece bem depois) eram permitidos apenas para os homens.

Bel e outras mulheres têm papel fundamental na mudança de concepção que permitiu a elas a ocupação de espaços antes exclusivamente masculinos. Propositalmente, para tornar o livro possível, a autora cercou-se de um time formado apenas por mulheres: além das já citadas Andrea Pedro e Carolina Itzá, Carolina Von Zuben (coordenação editorial e edição), Nathalia Meyer (edição, pesquisa e colaboração), Aline Fernandes (produção executiva, pesquisa e colaboração) e Renata Santos Rente (revisão).

O texto é leve e entre suas classificações estão o teatro (do auto do bumba meu boi, com um texto que propõe uma encenação na última parte do livro) e a literatura infantojuvenil (“faça com um adulto” é recomendação que lemos quando, ao longo das páginas, ela ensina a confeccionar o maracá de lata e o chapéu de vaqueiro, instrumento e indumentária usados pelos brincantes nos grupos de bumba meu boi). Convém lembrar que o auto do bumba meu boi, em tempos mais recentes, tem sido sacrificado em detrimento das apresentações para turistas e a população local em arraiais oficiais e outros eventos, cujo formato e duração comportam apenas a apresentação musical, deixando de lado o teatro popular, de rua, característico da manifestação.

O livro de Bel é um registro do que em geral é transmitido pela oralidade, meio pelo qual a tradição é passada através das gerações. Muito embora grande parte dos grupos de bumba meu boi hoje atue numa lógica de mercado, sua origem é religiosa, com bois dançando geralmente como pagamentos de promessa.

Entre a própria memória e a ciência aprendida e ensinada ao longo de uma vida inteira dedicada à cultura popular, “O auto do nosso boi” coleciona ainda verbetes informando os leitores sobre personagens, instrumentos musicais e sotaques (as variações que os diversos grupos têm de uma região para outra no Maranhão), ilustrando todo o conhecimento que compartilha com toadas, entre gravadas pelo Grupo Cupuaçu e seus irmãos em suas carreiras solo, além de inéditas, incluindo mesmo uma de seu pai.

Neste último quesito, os sotaques, a autora alerta: sua classificação “foi feita com base em alguns estudos sobre o bumba meu boi e no que dizem os próprios fazedores dessa tradição cultural. É importante lembrar que essa classificação não é estática, nem uma verdade absoluta. Assim como tudo na cultura, ela varia com o tempo e de acordo com a visão de quem está pensando sobre isso”, o que é mais um atestado de sua grandeza e conhecimento do assunto.

Bel Carvalho tem consciência de que seu livro não esgota a temática e, portanto, não tem a pretensão de se colocar como dona da verdade, o que é mais um acerto, entre tantos outros, deste seu belo, didático e necessário livro de estreia.

Do auto do nosso boi. Capa. Reprodução
Do auto do nosso boi. Capa. Reprodução

Serviço: lançamento de “Do auto do nosso boi”, de Bel Carvalho. Dia 3 de dezembro (sábado), às 19h30, na Biblioteca do Centro Cultural São Paulo – CCSP, Rua Vergueiro, 1000, Paraíso (ao lado da estação Vergueiro do metrô). Entrada gratuita. Classificação livre.

Os presentes da noite

TEXTO: ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

A dj Josy Dominici
Apresentação da campanha “Pacto pelos 15% com fome”, da Ação da Cidadania
O Regional Caçoeira
O cantor e compositor Vinaa
Os cantores e compositores Paulinho Pedra Azul e Djalma Chaves

Não é apenas o encontro de artistas cantando e tocando e a plateia batendo palmas. Camadas se desdobram e palavras como encanto e magia bem servem para tentar traduzir o que aconteceu na noite de sábado (6), na Praça do Letrado, no Vinhais. Servem, embora eu não saiba se são suficientes. Creio que não, afinal de contas, tudo ali transbordava, seja a qualidade das apresentações, o ambiente aconchegante e afetuoso, o clima de feira com as barracas do entorno, a alegria de encontros e reencontros.

Era do que se tratava: após dois anos suspensas em razão do isolamento social imposto pela pandemia de covid-19 (breve exceção se abriu ano passado quando os saraus foram realizados nos jardins do Museu Histórico, com controle de acesso), os chorões e choronas da ilha estavam ávidos por uma roda de choro nos moldes a que estavam acostumados. Mas a de sábado foi além.

O evento abriu espaço para a coordenação estadual da campanha “Pacto pelos 15%”, da Ação da Cidadania, que busca doações e voluntários para amenizar o flagelo da fome, que atormenta mais de 30 milhões de brasileiros, além dos que vivem em situação de insegurança alimentar. Além de falas de representantes da ONG, vídeos da campanha foram exibidos ao longo da programação.

A dj Josy Dominici voltou a se apresentar após cerca de 10 anos dedicando-se a outras frentes. Sua sequência aqueceu o ótimo público presente, com um repertório de muito bom gosto, entre clássicos do samba e choro, música popular brasileira e reggae, além de elementos da cultura popular do Maranhão.

O caminho foi seguido pelo Regional Caçoeira: choro, baião, bumba meu boi e samba, com pitadas jazzy, integraram o cardápio de Ricardo Mendes (clarinete, flauta e saxofones), Wanderson Silva (pandeiro), Wendell Cosme (cavaquinho de seis cordas e bandolim de 10 cordas) e Thiago Fernandes (violão de sete cordas). O virtuosismo e versatilidade do quarteto levaram o público a um passeio por clássicos de Pixinguinha, Severino Araújo, Donato Alves, Raimundo Makarra e Coxinho, entre outros, além de temas autorais de Wendell, como o “Baião das três”, composta por ele especialmente para o sarau.

Vinaa revelou que ansiava estar no palco de RicoChoro ComVida na praça já há algum tempo. Lembrou-se das origens, do acolhimento por nomes como Cury – autor de “O que me importa”, sucesso de Tim Maia que figurou em seu repertório àquela noite – e Zeca Baleiro – com quem gravou “Cicatriz (No regresa)” em “Elementos e hortelãs na terra dos eucaliptos” (2019), seu segundo disco, também presente ao setlist.

“Agora vocês me dão licença para eu botar os óculos de Cartola”, pediu, antes de cantar “O mundo é um moinho”, clássico do repertório do mangueirense, um dos grandes momentos de uma noite para lá de especial.

Também acompanhado pelo Regional Caçoeira, Djalma Chaves, ao violão, iniciou sua apresentação com o clássico absoluto “Aquarela brasileira” (Silas de Oliveira), apresentando um repertório de clássicos que incluiu também, entre outras, “Tristeza” (Niltinho Tristeza). E foi ele o responsável pela grande surpresa da noite, ao chamar ao palco o parceiro mineiro Paulinho Pedra Azul, que de passagem pela ilha, deu uma canja inspirada, elogiando o grupo anfitrião.

“Você já é ludovicense, é o mineiro mais maranhense que eu conheço”, afirmou Djalma Chaves, ao que Pedra Azul retrucou: “só falta oficializar”. Antes da participação musical, leu um poema que havia escrito na manhã de sábado, exaltando as belezas de São Luís, cidade com que mantém estreita e longeva relação – ganhará melodia?

Começou por “Carinhoso” (Pixinguinha), cantada em dueto com Djalma Chaves. Em seguida, provocado pelo grupo, atacou de “Cantar” (Godofredo Guedes) e aos pedidos de mais um e com a capacidade de improviso do Caçoeira (que não havia ensaiado com o convidado surpresa), atendeu com “Jardim da fantasia” (Paulinho Pedra Azul), certamente um de seus maiores clássicos.

Presente à Praça do Letrado, o jornalista e historiador Marcus Saldanha, em uma rede social, sintetizou a noite: “uma noite de presentes para os presentes”.

O próximo sarau RicoChoro ComVida na Praça acontece dia 20 de agosto (sábado), às 19h, na Praça Nossa Senhora de Nazaré (Cohatrac). As atrações são o dj Marcos Vinícius, o Instrumental Tangará, a cantora Bia Mar e o cantor Carlinhos da Cuíca. O evento é uma realização da Sociedade Artística e Cultural Beto Bittencourt, com produção de RicoChoro Produções Culturais e Girassol Produções.

O silêncio do boi e a voz do poeta

Boi. Capa. Reprodução
Boi. Capa. Reprodução

O jornalista e poeta Celso Borges é autor de pelo menos um clássico da música popular produzida no Maranhão, sobretudo no período junino. Muitos cantam e assobiam, mas poucos se ligam que ele é parceiro de Zeca Baleiro e do saudoso percussionista argentino Ramiro Musotto em A serpente (Outra lenda), de versos como “eu quero ver/ quero ver a serpente acordar/ pra nunca mais a cidade dormir”, gravada por Baleiro em seu álbum Pet shop mundo cão (2002).

Seus poemas-toadas, registrados nas páginas de seus livros, ou gravados por vozes como a de Cláudio Lima (Boi tarja preta, parceria com Alê Muniz, gravada em Rosa dos ventos, de 2017), vez por outra trazem ácidas críticas ao sistema político ou mesmo à degeneração de grupos de bumba meu boi, que veem a originalidade diluída, transformando-se em “boizinhos de butique” para “turistas de pacote”, conversa pra boi dormir pra inglês ver.

Se A serpente (Outra lenda) não figura na coletânea Boi (Editora Passagens, 2020, 56 p.; disponível para download gratuito no site da editora, bem como todos os títulos por ela editados) não faltam bons motivos para baixar o volume e lê-lo. A obra integra a coleção “Livrinho também é livro”, coordenada por ele e a editora Isis Rost, que já publicou os títulos Rua morta, de Luís Inácio Oliveira, e O declínio da narrativa, dela, todos em 2020, todos durante o período de isolamento social imposto pela pandemia de covid-19.

Em Boi, Celso Borges revê poemas e letras de música que têm o bumba meu boi como mote, escritos por ele ao longo dos últimos 25 anos, “tempos depois do compositor Giordano Mochel me dizer que o nosso coração pulsava no ritmo do boi. Eu já sentia isso naquela época, mas a certeza dessa verdade cresceu mais e mais nos anos seguintes”, anota o autor em “O silêncio do boi não é do boi”, à guisa de prefácio. Ele abre o texto: “Não ouvimos as toadas, matracas e zabumbas dos bois do Maranhão em 2020. Esta é a primeira vez na história, desde quando o boi se apresenta em quintais, terreiros, largos ou arraiais da cidade, que ouvimos apenas o silêncio ensurdecedor de nossa representação mítica mais potente. Este livrinho nasce dessa não voz, ou da poesia dessa voz na memória, ou do afeto que vislumbro a partir da falta do boi e suas zoadas essenciais”.

Com projeto gráfico e diagramação de Isis Rost, Boi é também uma coleção de representações do bumba meu boi, entre pinturas e fotografias, de nomes que vão de Pablo Picasso a Cícero Dias e Ribamar Rocha, passando pela xilogravura de J. Borges, entre outros. A capa apresenta o detalhe de uma pintura de Ciro Falcão sobre o São João do Maranhão.

[texto originalmente publicado no JP Turismo, Jornal Pequeno, de hoje (19)]

A Jamaica brasileira invade a Pauliceia

Cultura da radiola terá destaque na Virada Cultural, em São Paulo. Duo Criolina e convidados farão 12 horas celebrando ritmos jamaicanos e maranhenses.

Pouco tempo depois de inventado na Jamaica o reggae se consolidou como preferência popular no Maranhão. Não à toa a capital São Luís recebeu a alcunha de Jamaica brasileira. O gênero musical e seu principal porto brasileiro serão lembrados durante a programação da Virada Cultural, em São Paulo, entre os dias 18 e 19 de maio. Num palco comandado pelo duo Criolina, formado por Alê Muniz e Luciana Simões, o reggae à maranhense comparecerá, com as presenças do poeta Celso Borges, dos djs Otávio Rodrigues, Joaquim Zion e Vanessa Serra e da atriz Áurea Maranhão.

Ano passado a Semana Internacional da Música (SIM-São Paulo) levou representantes maranhenses para uma noite, também numa parceria com o Festival BR-135, organizado pelo duo Criolina. Desta vez serão 12 horas de reggae, entre às 18h de sábado até às 6h de domingo, celebrando a cultura da radiola – lá fora conhecida como sound system –, muito difundida no Maranhão.

O duo Criolina. Foto: Layla Razzo

Representando o Maranhão, “Criolina, Radiola e convidados” será uma das festas de rua que acontecerão durante a Virada Cultural. As demais irão representar algum aspecto cultural dos estados da Bahia, Pará e Rio de Janeiro. “A Virada é o maior evento cultural do planeta, um festival com 24h de programação, gratuito e além de ocupar as ruas, conta com programação em centros culturais das periferias, as unidades do Sesc, teatros da cidade e vários equipamentos culturais. É ótima e uma boa desculpa para ocupar as ruas com arte, sair de casa e afirmar a nossa cultura como expressão popular e cidadã”, advoga a cantora Luciana Simões.

“Diminuíram consideravelmente os recursos nacionais para a cultura e justamente por ser um espaço de fomento devemos estar presentes e resistentes. A proposta de colocar o Maranhão no mapa também segue como uma grande bandeira pra nós. Eu acho que o espaço oferecido ao Criolina é um reconhecimento ao Maranhão, e uma ótima oportunidade para se mostrar a cena reggae, que é uma forte cena de rua, representativa e que causa bastante curiosidade”, pondera Alê Muniz, seu companheiro de Criolina.

Joaquim Zion também comenta o interesse dos paulistanos pela cultura reggae, mas aponta algumas diferenças entre as cenas. “A cultura reggae é bem forte em  São Paulo. Já há alguns anos vem crescendo a cultura sound system, que é um pouco diferente do estilo Inna Maranhão das radiolas daqui, porque lá eles tocam com radiolas, DJs e MCs rimando nas bases e o estilo basicamente é ragga, enquanto aqui o nosso lance é one drop, lovers rock, essa batida que chamamos para dançar agarrado a dois. Mas a mensagem é a mesma”, pontua. Ele comenta também sua expectativa: “é máxima pra gente, e o público pode esperar um grande set de hits, clássicos e raridades que fazem parte do imaginário do regueiro do Maranhão. São Paulo tem muitos maranhenses e tenho certeza que será uma grande festa”, promete.

O jornalista e dj Otávio Rodrigues diante de uma radiola. Foto: divulgação

Alcunhado Doctor Reggae, o jornalista e dj paulista Otávio Rodrigues ajudou a difundir o reggae no Brasil e consolidar São Luís como uma de suas principais praças, quando morou na cidade, na década de 1990. “Minha relação com o Maranhão é orgânica, me sinto como se tivesse nascido aí também. Morei na Ilha, viajei bastante pelo interior, fosse em busca de manifestações folclóricas, paisagens ou reggae – ou as três coisas juntas”, lembra.

Ele discotecará e dividirá o palco com o poeta Celso Borges; juntos, apresentam o espetáculo Poesia Dub, em que misturam poesia, com elementos de música jamaicana e da cultura popular do Maranhão. “No Poesia Dub, eu e Celso resgataremos algumas gemas do nosso repertório, como Morto vivo, Matadouro, Bumba meu dub e Linguagem [lista títulos de poemas apresentados no formato], e também mostraremos coisas novas, algumas com participação de Gerson da Conceição, gravadas pouco antes de sua súbita partida”, anuncia, lembrando o amigo baixista que se somava à trupe, recém-falecido.

O poeta Celso Borges. Foto: Layla Razzo

O poeta Celso Borges relembra as origens do espetáculo: “Eu costumo dizer que eu tenho dois santos em minha vida: São Luís e São Paulo. Cidades que estão entranhadas na minha alma, no meu coração. Morei 20 anos na Pauliceia. Aquela cidade, o tempo que eu morei lá, foi um tempo de muita alegria, de muita celebração, encontros com muitas pessoas, muitos artistas, fiz muitas amizades, tive diálogos maravilhosos com poetas, compositores, letristas. E foi ali também que eu, junto com Otávio, desenvolvi o Poesia Dub, a partir de 2004, 2005. É uma alegria enorme poder voltar a São Paulo e voltar fazendo uma nova apresentação do Poesia Dub. Vai ser uma grande celebração, estou muito animado”. O espetáculo é composto por poemas de Celso Borges, com citações de obras de Torquato Neto, Allen Ginsberg, um poema de Bandeira Tribuzi, e trilhas de Otávio Rodrigues.

“Na marcação de baixo poderosa que ele fazia, ele fazia também os vocais, a gente vai usar bases gravadas dele, e vou ler uma parceria nossa”, antecipa a homenagem a Gerson da Conceição, que estaria no palco com eles.

A estrutura do palco maranhense incluirá uma radiola de sete metros de largura, que tocará reggae, ritmos caribenhos e os gêneros musicais que permeiam a cultura popular do Maranhão, com destaque para o bumba meu boi e o tambor de crioula. A dj Vanessa Serra, que também esteve na Sim-SP, anuncia seu set list, reverenciando grandes nomes: “Vou levar um set com hits da música jamaicana e maranhense, que ouvíamos nas festas, nas rodas de violão e nas rádios de São Luís. Expoentes como o som de Nonato e Seu Conjunto, Humberto de Maracanã, Nicéas Drumont, Betto Pereira, Papete, João do Vale, Jacob Miller, Eric Donaldson e Beto Douglas não vão faltar”.

“Radiola e tambor de crioula são duas coisas que não podem faltar numa autêntica festa maranhense. Muito mais do que minha opinião, esse é o testemunho de alguém que já viu festejos no Maranhão de ponta a ponta: onde quer que se vá, na hora de celebrar tem de ter radiola e tambor”, finaliza Otávio Rodrigues.

Serviço

O palco maranhense fica na Rua Cásper Líbero (ao lado da Igreja de Santa Efigênia). Os shows são gratuitos. Conheça os horários das apresentações:

18h – Criolina + Luh Del Fuego
19h – Vanessa Serra
20h – Poesia Dub
21h – Joaquim Zion
22h – Otávio Rodrigues
23h – Criolina + Luh Del Fuego
0h – Vanessa Serra
1h – Poesia Dub
2h – Joaquim Zion
3h – Otávio Rodrigues
4h – Criolina + Luh Del Fuego
5h – Vanessa Serra.

Antes das apresentações do Poesia Dub e Criolina haverá performances da atriz Áurea Maranhão.

Resistência e/m Liberdade

Resistência. Capa. Reprodução

Resistência é um título impactante: assim se chama o novo disco do Bumba Meu Boi de Leonardo, sotaque de zabumba, do bairro da Liberdade, como também é conhecido o grupo, um dos mais representativos e longevos – foi fundado em 1956 – da cultura popular do Maranhão.

O título pode ter várias leituras. A primeira é a própria manutenção do grupo do sotaque que tem origens no município de Guimarães – como também é conhecido o sotaque de zabumba –, após o falecimento de seu fundador, Leonardo Martins Santos, em 2004, aos 82 anos.

Mestre Leonardo. Foto: Márcio Vasconcelos

A segunda, a persistência em atravessar o atual momento político por que passa o país, em que o governo militar/izado elegeu artistas e produtores culturais como inimigos, com a extinção do Ministério da Cultura e a consequente diminuição dos recursos investidos na área – o Bumba Meu Boi de Leonardo é Ponto de Cultura desde 2010.

A terceira, o registro em si (após 12 anos sem um lançamento em disco): num tempo em que se alardeia a morte do cd físico, o grupo bota na rua seu quinto disco, produzido pelo percussionista paraense Luiz Cláudio, radicado no Maranhão desde o fim da década de 1970 – uma das razões de sua permanência foi a paixão despertada nele pelo grupo de Leonardo (que mantinha também um tambor de crioula), quando de sua chegada. O álbum físico vem embalado em belas fotografias de Márcio Vasconcelos, craque no registro de manifestações da cultura popular, Raileen Martins e João Maria Bezerra, e projeto gráfico de Ná Figueiredo. Cabe ressaltar que Resistência está disponível também em todas as plataformas digitais.

O Boi de Leonardo, pela qualidade, sempre despertou paixões, o que contribuiu para o engrandecimento do grupo, com raízes fincadas no bairro da Liberdade, muitas vezes estigmatizado como um bairro violento, mas um dos mais ricos e diversos culturalmente da ilha capital. O primeiro disco do grupo foi lançado em 1988, produzido pelo compositor Chico Maranhão.

Regina de Leonardo. Foto: divulgação

Ano passado a pesquisadora Marla Silveira, produtora executiva de Resistência, lançou Nas entranhas do bumba meu boi [Edufma, 2018], resultado de sua dissertação no mestrado em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão. A obra aborda as estratégias para botar o boi na rua e o protagonismo feminino na manifestação: Regina de Leonardo, filha do mestre fundador, assumiu o comando do grupo após o falecimento do pai.

“O Boi de Leonardo tem uma tradição representada simbolicamente, pelo nome de um importante mestre da cultura popular brasileira, Leonardo, e, ritualisticamente, assegurada por todos os seus integrantes, que por meio dos rituais e dos movimentos, fazem deste Boi uma manifestação cultural de resistência e fé”, aponta Marla em texto no encarte do disco.

A gravação captou uma apresentação ao vivo na sede do grupo. A parceria entre o estúdio Deu na Telha Audio Lab (do guitarrista João Simas e do baterista Thierry Castelo Branco), com a gravadora paraense Ná Music (onde o disco foi masterizado) e o selo Zabumba Records, inventado por Luiz Cláudio (que assina produção e direção artística de Resistência) para resgatar e registrar manifestações da cultura popular, garante aos ouvintes uma experiência próxima de estar em uma apresentação ao vivo do bumba meu boi.

As 16 faixas registram, na ordem, as etapas da apresentação do boi: começa com as ladainhas rezadas pelo senhor Raimundo Monteiro, passando pela “reunida, quando os batuqueiros se reúnem na fogueira para afinar o couro dos tambores”; o “guarnicê, quando o grupo se prepara para iniciar a dança”; o “lá vai, aviso aos espectadores (assistência) que o Boi vai começar a dançar”; o “chegou, quando é anunciada a presença do boi no cordão (roda/terreiro); a partir daí são cantadas várias toadas livres; depois canta-se urrou, quando se festeja a ressurreição do boi; e a última toada é a despedida, quando o boi encerra a apresentação”, como ensina o texto de Marla no encarte.

Bumba meu boi raiz, o de Leonardo registrou o trabalho com músicos da comunidade, sem recorrer a contratação de músicos de estúdio, garantindo autenticidade ao material. As zabumbas são tocadas por Natan, Bruno, Nenem e Luiz Cláudio; pandeirinhos por Benilton, Zé, Paulinho, Joca, Manguera, Luiz Cláudio e Coelho; maracás por Luiz Cláudio e vocais de Regina de Leonardo, Ana de Burgé, Lilia e Wanderley (não é comum mulheres em vocais de grupos de bumba meu boi).

As toadas fazem um apanhado da trajetória do grupo, incluindo registros preciosos, resgatados de discos anteriores e remasterizados, das vozes do próprio Mestre Leonardo e Chico Coimbra, este na ufanista Terra de poetas, de sua autoria: “Por isso me sinto feliz/ vem gente de todo país/ pra olhar de perto/ o boi de São Luís/ olha, turista, o luxo desse guerreiro/ não paga nada pra ver/ nós temos o melhor folclore brasileiro”, diz a letra. Erros de concordância e prosódia entram na conta da licença poética e da autenticidade, tornando ainda mais verdadeiro o que ouvimos ali.

Regina de Leonardo faz um emocionante dueto com seu falecido pai em Chegou (Assistência que está na bancada): “o terreiro estava triste/ nesse momento se alegrou/ por que recebi uma mensagem/ lá de cima que Jesus mandou”, cantam.

Entre compositores e cantores também comparecem Zé Pretinho, autor de Chegou 2 (“São João já escreveu no livro/ que esse ano somos campeão”), e Carlinho Silva de Carutapera, autor de Mestre é mestre, comovente homenagem ao Boi de Leonardo, composta quando o batalhão completou 60 anos: “Mestre é mestre/ esse é o boi que Leonardo deixou/ infelizmente foi lá pro degrau de cima/ que Jesus Cristo levou”, diz a letra. E continua: “hoje ele brilha no bairro da Liberdade/ aonde é carinho e amor/ essa notícia se espalhou na ilha inteira/ dessa beleza que Regina cultivou”.

Mestre Zió. Foto: divulgação

Merece destaque ainda a presença, em composição e canto, de Mestre Zió (João Vieira), espécie de sucessor natural de Leonardo. Ele assina e canta em sete faixas do disco, incluindo a Despedida (Adeus), que se tornou hit por aqui quando Luiz Cláudio gravou-a em seu ep Encantarias [2017], com a participação especial de Zeca Baleiro. Ao final da faixa, um bônus instrumental demonstra a interessados a formação da polirritmia que marca o sotaque de zabumba.

Também é da lavra de Zió Batuque forte (Guarnecê), que bem traduzirá nos ouvintes a sensação de ter o Boi de Leonardo em casa, com o disco: “eu quero um batuque forte/ como o conjunto merece/ se é para ouvir de longe/ na hora que Liberdade guarnece”.

Serviço

O lançamento de Resistência acontece hoje, no primeiro ensaio aberto do grupo, na sede do Boi de Leonardo (Rua Alberto Oliveira, 150, Liberdade), com entrada franca, a partir das 22h.

*

Ouça Resistência:

O batalhão de um homem só

Foto: Marla Batalha

 

Já disse aqui e acolá, mas não custa repetir: certos artistas têm uma impressionante capacidade de premonição, o que os torna artistas maiores.

É o caso de Lauande Aires e particularmente de O miolo da estória, da Cia. de Artes Santa Ignorância, reapresentado ontem (10) no Teatro Arthur Azevedo (em cujo palco chegou pela primeira vez), dentro da programação do Gema – Grandes espetáculos do Maranhão, que promove o reencontro do público com destaques da produção teatral local recente. Aliás, estamos em ótima safra.

Sozinho em cena, Lauande encarna um batalhão. João Miolo, seu personagem, é um operário da construção civil, que sonha. Sonhar, aqui, verbo literalmente intransitivo. “Nunca deixe de sonhar” é o seu principal conselho. Os tempos são duros e ele se veste com a roupa da utopia.

João Miolo faz rir, não aquele riso fácil, mas um riso que leva à reflexão, ao criticar a mobilidade urbana enquanto pedala rumo ao serviço. No traçado da massa com a colher de pedreiro, percute, pá e enxada idem. O carro de mão vira carcaça. Tudo nele é bumba meu boi, embora não haja, a rigor, em cena, nada que lembre o folguedo.

João se machuca e faz promessa, como antigamente se originava a maioria dos grupos de bumba meu boi no Maranhão. Mas não soa saudosista. O monólogo critica as relações trabalhistas e mesmo não sendo encenado há cinco anos, soa atual e necessário. É um retrato do trabalhador que sua para pagar as contas e poder se divertir de vez em quando, a cada fim de semana ou temporada junina. É, pelo recorte de um brasileiro, um retrato fiel do Brasil.

Ao fim do espetáculo, Lauande cumprimentou, na plateia, Geovane (vulgo Bomba), miolo, hoje no Bumba meu boi da Madre Deus, que um dia viu subir de joelhos os 47 degraus da Capela de São Pedro, na tradicional homenagem ao santo, num 29 de junho. Tocado por sua devoção e sacrifício, acompanhou-o noutros eventos, colhendo elementos para a pesquisa que resultou nO miolo da estória.

Selecionada em edital da Ancine, a peça vai virar filme, dirigido por Lucian Rosa, com roteiro dele e Lauande Aires. As filmagens devem se iniciar em junho deste ano, em São Luís, conforme também anunciou ontem.

Documentário reverencia Humberto de Maracanã e contribui para a manutenção de seu legado

O mestre Humberto de Maracanã. Foto: Diana Gandra

O batalhão pesado de Maracanã. Foto: Diana Gandra

 

É necessário reconhecer a importância do trabalho empreendido pelo grupo A Barca, ao longo de 20 anos de existência – um novo disco celebrando a marca deve ser lançado até o fim do ano –, no registro de manifestações da cultura popular brasileira. Guardadas as devidas proporções, seu trabalho se irmana a mapeamentos fundamentais como as pioneiras Missões de Pesquisas Folclóricas empreendidas por Mário de Andrade ainda nos anos 1930 e todo o catálogo da gravadora Discos Marcus Pereira, do publicitário aficionado por música popular, realizado entre os anos 1960 e 70.

Dito isto, merece especial destaque a paixão da contrabaixista Renata Amaral pela cultura popular do Maranhão. Com o grupo, ela foi responsável pelo lançamento de discos como os do Baião de Princesas, Tambor de Crioula de Taboca, Tambor de Mina Raiz Nagô, Bumba Meu Boi de Encantado Garotos do Cruzeiro, manifestações da Casa Fanti Ashanti, do Bumba Meu Boi de Costa de Mão Brilho da Sociedade, Tenda São José e Estrela Brasileira, do Bumba Meu Boi de Maracanã.

Renata também assina direção e roteiro do documentário musical Pedra da Memória (2013), que acompanha uma viagem do babalorixá Euclides Talabyan ao Benin.

Guriatã. Capa. Reprodução

No último dia de São João (24 de junho), Renata Amaral lançou, durante a cerimônia do batizado do Bumba Meu Boi de Maracanã, na sede do grupo homônimo, na comunidade idem, no interior da Ilha de São Luís, o documentário Guriatã [Brasil, 2018, 90 min.], com direção e roteiro também assinados por ela – o projeto foi selecionado pelo edital Rumos Itaú Cultural.

A musicista e cineasta conviveu com Humberto por cerca de duas décadas, inclusive como integrantes do Ponto BR, coletivo que reúne mestres de cultura popular de várias regiões do Brasil. O que se percebe no filme é um misto de intimidade, comunhão e devoção.

Estrela de primeira grandeza, interpretado por vozes como Alcione e Maria Bethania, Humberto Barbosa Mendes (1939-2015) era um homem simples, do povo. Lavrador. Sobretudo de versos. Em 2008 foi o homenageado do Prêmio Culturas Populares do Ministério da Cultura.

O guriatã do título é uma alcunha adotada pelo próprio Humberto, assim reconhecido por pessoas próximas e pelos milhares de seguidores e seguidoras de seu batalhão pesado. Curioso é que o passarinho que lhe deu apelido é conhecido por imitar o canto de outros pássaros, embora Humberto de Maracanã fosse dono de um canto e uma poesia extremamente originais – não à toa vários depoimentos apontem-no como único, maior.

É impactante ver a emoção causada por seu canto e sua capacidade de liderança. É comovente o relato de Walter França – mestre de maracatu, também seu companheiro no coletivo Ponto BR – sobre a primeira vez que ouviu uma toada do maranhense e sua vontade imediata de conhecer o compositor. É curiosa a revelação da porção sambista do protagonista. É sublime o registro de Humberto junto a Pai Euclides e Mestre Apolônio, todos já falecidos. É engraçado compartilhar de momentos descontraídos, a diretora transformando qualquer espectador em íntimo do ídolo.

A lembrança de toadas de pique – equivalentes aos repentes de violeiros no universo do bumba meu boi – também garante boas risadas, com Humberto em geral vencendo os desafios. Mesmo quando se fala em seu falecimento, a reverência com que é tratado atenua a dor da perda e aponta para a perpetuação de seu legado – a grande família, consanguínea e comunitária, de Mestre Humberto tem mantido viva e acesa a tradição do Bumba Meu Boi de Maracanã, para o que também o documentário de Renata Amaral dá contribuição inestimável.

Por dentro do boi, para além do espetáculo

Nas entranhas do bumba meu boi. Capa. Reprodução

 

Nas entranhas do bumba meu boi [Edufma, 2018, 112 p.; R$ 25,00, à venda na Banca do Dácio (Estacionamento da Praia Grande) e na Feira da Tralha (Edifício Colonial, próximo ao Teatro Arthur Azevedo)] é justamente o que o título anuncia: um mergulho visceral nos bastidores de um dos mais tradicionais grupamentos da manifestação cultural: o Boi da Liberdade (ou de Leonardo).

Publicado com apoio da Fapema, o livro é a dissertação de mestrado da autora, Marla Silveira, em Cultura e Sociedade, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Um texto leve, agradável e em certas passagens bem humorado, para ser lido dentro e fora do ambiente acadêmico, por interessados, apaixonados e curiosos em geral.

Além do próprio convívio da pesquisadora com o grupo ao longo de vários anos, Marla se vale de teóricos da cultura popular – destaque para a saudosa Maria Michol Pinho de Carvalho – e da administração para compreender as dificuldades e estratégias para “botar o boi na rua”, suas relações com o sagrado e com instituições públicas e privadas, mantendo-se fiel às tradições, num tempo em que a “modernização”, para inglês ver, é quase uma exigência.

O Boi de Leonardo (ou da Liberdade) foi fundado em 1956, como pagamento de uma promessa de seu fundador a São João. É do sotaque de zabumba ou Guimarães, município litorâneo de origem do mais antigo dos sotaques de bumba meu boi.

A herdeira – e atual ama do boi – Cláudia Regina Avelar, quinta filha de Leonardo Martins dos Santos (1921-2004), acompanhou os passos da manifestação desde a infância, mas de longe. Nunca havia dançado no boi ou no Tambor de Crioula Poderoso Padroeiro (a outra manifestação que integra esta Sociedade Junina).

Com a morte de seu fundador, ela assumiu a direção, num processo cheio de percalços. Não faltou quem a acusasse de “salto alto”, de prever que ela acabaria com o que o pai construiu ou mesmo que estava ali apenas para ganhar dinheiro. Nas entranhas do bumba meu boi é também uma história de empoderamento feminino e superação de preconceitos.

O livro de Marla demonstra também que o Boi de Leonardo é um dos mais organizados do Maranhão, apto a receber e movimentar recursos públicos de qualquer esfera – é Ponto de Cultura, através de convênio firmado com o Ministério da Cultura (MinC) –, servindo de exemplo a outros grupos, sobretudo de um sotaque erroneamente tido como menos importante, já que supostamente menos atrativo a turistas.

Entre uma visão mais “conservadora”, “dos tempos de Leonardo”, quando o boi era mais fechado com base na opinião “dos antigos”, e a atual, que dialoga com ferramentas da modernidade e com a juventude, o reconhecimento do esforço de se manter viva uma tradição, da qual muitas vezes conhecemos apenas uma nesga que descortinamos por entre 40 minutos e uma hora – tempo médio de uma apresentação num arraial.

Serviço

O pré-lançamento de Nas entranhas do bumba meu boi acontece hoje (31, sábado de aleluia), às 22h, no Ponto de Cultura Boi de Leonardo (Rua Alberto de Oliveira, 150, Liberdade).

O lançamento acontece dia 4 de maio, às 19h, durante a reinauguração do Memorial Cristo Rei (Praça Gonçalves Dias, Centro).

Dos terreiros e arraiais aos salões de reggae

George Gomes apresenta Bumba Roots – Volume 01. Capa. Reprodução

 

Se “reggae e boi têm semelhantes passos”, como nos ensinou o mestre Inaldo Bartolomeu, na toada Luzes e estrelas (1997), do Bumba-meu-boi Mocidade de Rosário, George Gomes aprendeu bem a lição.

Ex-Legenda, banda que era considerada a “radiola viva” do Maranhão, o que estava para além de mero slogan, George Gomes integra um seleto time de músicos com rara desenvoltura: o dos bateristas que cantam, o que lhe faz par de astros como Ringo Starr (Beatles), Phil Collins (Genesis), Serginho Herval (Roupa Nova) e Don Henley (Eagles), para citar uns poucos.

Em George Gomes apresenta Bumba Roots – Volume 01, o artista torna reggae 10 toadas clássicas do período junino no Maranhão. As toadas deixam os terreiros e arraiais para frequentar os salões dos clubes de reggae. O resultado é curioso e agradável.

Boi de lágrimas (Raimundo Makarra), Boi da lua (Cesar Teixeira), Engenho de flores (Josias Sobrinho), Tempo de guarnicê (Gerude, Omar Cutrim e Ronald Pinheiro, no disco creditada apenas ao último), Urro do boi (Coxinho), Estrela do chão (Gerude e João Marcus), Lua cheia (Luís Bulcão e Zé Pereira Godão, no disco creditada apenas ao primeiro), Catirina (Josias Sobrinho), Mimoso (Ronald Pinheiro) e A natureza (Lobato), na ordem em que figuram no disco, pintam de verde, amarelo e vermelho o couro do boi.

George Gomes (produção, bateria, percussão e voz) acerca-se de um time que ele chama de Radiola Viva: Edinho Bastos (guitarra), Jayr Torres (guitarra), Davi Oliveira (contrabaixo), Jesiel Bives (teclados), Gabriel Fernandes (flauta) e Rui Mário (sanfona).

Hoje socialmente aceitos, tanto o bumba-meu-boi quando o reggae foram alvos de preconceitos em seus surgimentos por estas plagas: o primeiro era “coisa de negros”; o segundo também, e mais que isso, produto “importado”, portanto “ilegítimo”. Atualmente, são elementos da identidade do povo do Maranhão, com parcelas da população orgulhando-se de um e de outro.

O que George Gomes faz é fundi-los, talvez assim ampliando os horizontes de quem porventura ainda acredite que é preciso negar um para afirmar o outro. Se o nome disco termina em Volume 01, já há a ansiedade por um segundo volume, num futuro tomara que breve. Torno à lição de Inaldo Bartolomeu, que o artista aprendeu, mesmo sem gravá-lo de saída: “o orvalho da miscigenação/ madrugando costumes e compassos/ mestiçando Jamaica e Maranhão”.