Chorografia do Maranhão: Paulo Trabulsi

[O Imparcial, 22 de dezembro de 2013]

Titular do cavaquinho solo do Regional Tira-Teima, mais antigo grupamento de choro em atividade no Maranhão, Paulo Trabulsi é o 22º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Um cortejo natalino interrompeu a entrevista que Paulo Trabulsi concedeu à Chorografia do Maranhão, no ECI Museu, na Praia Grande. Titular do cavaquinho do Regional Tira-Teima, o músico atendeu a mãe ao telefone: “estou em uma entrevista. A Bia [filha do músico] está comigo”, a avó queria saber da neta, que atendeu outras ligações enquanto ele conversava com os chororrepórteres.

A conversa aconteceu à boca da noite de 17 de dezembro passado, ocasião em que esperávamos, todos, o recital de lançamento de João Pedro Borges – violonista por excelência, perfil de Sinhô [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] escrito pelo jornalista Wilson Marques. Depois da conversa, Paulo Trabulsi, entre outros amigos, subiu ao palco em que o ex-integrante da Camerata Carioca desfilou um repertório que lhe marcou a trajetória, com participações especiais, além do entrevistado, de Serra de Almeida [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013], Zezé Alves [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013], Francisco Solano [violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 26 de maio de 2013], Juca do Cavaco, Ubiratan Sousa [multi-instrumentista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013], Chico Saldanha [compositor] e Simão Pedro Amaral [professor de canto da EMEM].

Filho do farmacêutido Sadi Ari Ericeira e da contadora Mary Trabulsi Ericeira, Paulo César Trabulsi Ericeira nasceu em São Luís em 28 de novembro de 1957. Funcionário da Caixa Econômica Federal desde 1979 sempre conciliou o ofício de bancário com o de músico – com a segunda profissão gasta parte do dinheiro que ganha na primeira.

Paulo Trabulsi cursou até o nono período de engenharia mecânica e, por força do trabalho no banco, estudou processamento de dados.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

Como era o ambiente musical na casa, na família? Se praticava música, se ouvia, ou ambas as coisas? Era um ambiente em que se ouvia muita música. Meu pai tinha um gosto musical extremamente apurado. Eu nesta época, muito jovem, cinco, seis anos de idade, nessa época o que papai ouvia era jazz americano e muito choro. Música instrumental de modo geral. Papai tinha a coleção completa de Jacob do Bandolim. Então, eu ouço Jacob, tá impregnado na minha cabeça…

Mais do que Waldir Azevedo? Mais do que Waldir Azevedo. Desde muito jovem. Então eu cresci escutando isso.

Jacob, para você, acaba sendo uma referência, mesmo você sendo cavaquinhista e ele bandolinista. Tenho muito mais referência no som de Jacob, que eu ouvi muito mais. Embora papai também tivesse discos de Waldir Azevedo.

E sua mãe? Mamãe só apreciava, mas não tinha esse gosto musical apurado. Ela era muito orgulhosa de nós filhos, eu e Sadi, meu irmão, dos cinco filhos nós ficamos com essa veia musical. Mamãe tinha prazer de nos ver aprender a tocar alguma coisa.

A partir de quando você se interessou por aprender música? Desde muito jovem, seis, sete anos de idade, mamãe comprou um violão e eu comecei a aprender sozinho, observando. Era uma musicalidade muito grande. Eu me recordo que papai levava a gente para aqueles bailes de carnaval no Lítero, e eu ficava o baile inteirinho olhando pra banda tocar. E na época, depois eu vim descobrir, o guitarrista da banda era o Agnaldo Sete Cordas [violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 17 de março de 2013]. Eu ficava hipnotizado por aquele senhor tocando aquela guitarra, tão melodiosa, tão harmônica. Tempos depois, a gente se identificou: “eu me lembro de ti, tu não era aquele gordinho que ficava ali na frente?”

Você teve algum estudo formal de música ou sempre foi autodidata? Tive depois. Depois eu fiz violão clássico aqui na Escola de Música [do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo].

Hoje você é reconhecido como um de nossos principais cavaquinhistas. Como se deu a passagem do violão para o cavaquinho? O cavaquinho apareceu depois, eu vendo alguém tocar, eu acho que foi o Carvalhinho [Trabulsi atende a mãe ao celular]. Nessa época eu conheci Juca, Vadeco [cavaquinhista do grupo Espinha de Bacalhau] e nós praticamente começamos juntos. Vadeco já tocava e era o cara, já solava coisas de Waldir Azevedo e nós não sabíamos nada. Ele foi aquela fonte de inspiração pra gente.

Isso era que ano? Isso foi 1974, 73. Eu já me dou com Juca e com o irmão dele há muitos anos.

Quem você considera seu grande mestre do cavaquinho, quem mais te ensinou? Eu aprendi a tocar cavaquinho escutando Waldir Azevedo. Botava o vinil de Waldir Azevedo, nessa época não tinha cd, não tinha nada. Agora tu imagina aprender a tocar Brasileirinho, naquela velocidade que ele tocava, num disco de vinil. Ia voltar um pedacinho era um sofrimento, tira o braço, “perdi”, volta de novo, foi desse jeito. Eu aprendi a tocar dessa forma. Nessa época a gente fazia umas rodas de choro aqui na [rua de] São Pantaleão, tinha Magno Frias, com Ricardo Frias, o próprio Juca do Cavaco, Vadeco, Cotia. Foi dessa forma que eu comecei minha carreira de chorão. Um belo dia o professor Ubiratan, maestro Ubiratan, me encontrou tocando numa dessas rodas. Tinha aberto uma vaga no Regional Tira-Teima, que já existia e eu nem sabia. Era justamente a vaga que o [jornalista e compositor] Cesar Teixeira ocupava como cavaquinhista e saiu, por um motivo que eu não sei qual foi. Eu estava bem no começo e fui chamado para fazer uma espécie de experiência. Esse ensaio foi marcado para a casa de Ubiratan, na São Pantaleão. Outra figura importante, eu não posso deixar de falar, foi Joacilo [Frota], me deu muita noção harmônica de samba e choro.

Você conviveu com Juca na Rua do Norte e foi chamado para um ensaio na casa de Ubiratan na São Pantaleão. Você morava onde, nessa época? Aqui pelo Centro, também? Não. Até hoje mamãe mora no mesmo local, na Rua Silvio Romero, no Retiro Natal. O ponto de referência era a estação do bonde, onde ficou a Cobal, o Horto. Juca eu conheci no [Colégio] Marista.

Ali por perto da casa de seu Vieira [o falecido compositor Antonio Vieira, percussionista da primeira formação do Tira-Teima]. Exatamente, na mesma rua de Vieira. Eu cresci com Antonio Vieira por ali, influência musical. Pois bem, primeiro ensaio. Eu chego lá já encontro as feras formadas: Adelino Valente no bandolim, Ubiratan no violão de seis cordas, Fernando Cafeteira no outro violão, Chico Saldanha no outro violão, Antonio Vieira, percussão, Arlindo Carvalho [percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 18 de agosto de 2013] numa outra percussão e Hamilton Rayol, cantor. Se não me falha a memória eles tocaram Noites cariocas [de Jacob do Bandolim]. E eu todo atrapalhado, só via as cabeças balançando assim negativamente. “Me lasquei, não vão me querer aqui” [risos]. Por que realmente eu não sabia nada. Mas ali naquele momento eu vi que minha identidade com a música era aquela coisa ali. Era aquela coisa: daqui eu não saio.

Quer dizer: mesmo errando você se sentiu em casa. Quer dizer: uma chance para aprender. A minha vertente musical é essa. Eles estavam muito na frente, eu estava começando. Mas rapidamente eu me dediquei, estudei. Passado algum tempo eu já estava no nível deles. Quer dizer, não no nível deles, Ubiratan é um cara… mas a minha evolução foi muito rápido.

Teus pais sempre apoiaram? Nunca teve uma reprimenda, “meu filho, vai procurar outra coisa pra fazer”? Sempre apoiaram. Nunca! Ainda falando sobre o Tira-Teima, por que a minha história se confunde com a do Tira-Teima. Daí pra frente, tudo foi Tira-Teima. Então, até 79 este grupo existiu com essa formação, depois entrou [o percussionista] Carbrasa, se não me engano, Jorge Cotia, eles botaram como uma forma de me tirar [risos], mas não me tiraram, Jorge Cotia tocava cavaquinho. Em 79 eu entrei na Caixa e logo em seguida me jogaram pro interior, pra Bacabal. Ubiratan foi embora pra São Paulo junto com Chico Saldanha. Quando eu voltei em 82 o Tira-Teima já não existia nessa época, estava esfacelado. Aí eu fiz parte do Regional Alma Brasileira, que era [o bandolinista] César Jansen, [o violonista] Natan, o próprio Fernando Cafeteira e Carbrasa. Esse grupo durou mais ou menos um ano. Logo em seguida eu conheci Serra de Almeida, em 84, e nós fundamos essa nova versão do Tira-Teima. Aí foi Serra de Almeida, Gordo Elinaldo [violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 27 de outubro de 2013], Zeca do Cavaco [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 21 de julho de 2013], Carbrasa, que depois saiu e entrou Zé Carlos [percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 10 de novembro de 2013]. Anos depois saiu Gordo pra entrada do Solano, que é a formação que se mantém até hoje. Mas a gente tem contato com todo mundo, Adelino Valente é nosso amigo, Arlindo Carvalho está sempre com a gente. Inclusive a gente está gravando, finalmente, nosso primeiro disco e a ideia é tê-los como convidados.

O que significou para você ter participado do antológico Lances de Agora [disco gravado em 1978 na sacristia da Igreja do Desterro, em São Luís], de Chico Maranhão? Lances de Agora foi um divisor de águas muito importante. Eu ter participado deste disco foi uma coisa extremamente importante na minha carreira musical. Foi o Regional Tira-Teima com a participação de Sérgio Habibe [o compositor tocou flauta em Lances de Agora], [o compositor] Ronald Pinheiro, bandolim, e mais uns dois percussionistas, cujo nome não lembro agora. Pitoco, no clarinete. Foi extremamente importante pra mim. Foi o primeiro disco de que eu participei. Depois eu participei de outros.

Lances de Agora, pelo fato de ter sido gravado em uma igreja, é ainda um disco mais comentado que ouvido. Este ano ele e Bandeira de Aço [disco lançado por Papete em 1978] completaram 35 anos e nós vimos festividades aqui e acolá para celebrar Bandeira de Aço, que é muito importante e merece, mas nem se ouviu falar em Lances de Agora. É um disco também do catálogo da [gravadora Discos] Marcus Pereira, mas que ao contrário de Bandeira de Aço, sequer chegou ao formato digital, não teve reedição em cd. A que você acha que se credita o desinteresse, o quase completo esquecimento e o que poderia ser feito para mudar este quadro? Do ponto de vista musical não existe razão de Lances de Agora ser preterido junto a Bandeira de Aço. A qualidade musical, o disco é bom de A a Z, composições belíssimas de Chico Maranhão. Velho amigo poeta, Meu samba choro, Ponto de fuga, Cirano [faixas de Lances de Agora]. Realmente eu não sei te responder. Musicalmente este disco tem uma qualidade muito grande. Tem uma importância muito grande para o cancioneiro popular do Maranhão.

Você podia lembrar um pouco o clima das gravações? Era um aparelho pequeno, tipo rolo de fita daqueles carretéis. Todo mundo gravando simultaneamente, não tinha aquela história de cada um gravar a sua. Errou, todo mundo começava de novo.

Essa pergunta pode soar óbvia, boba até. Mas tem que ser feita: o que significa o Tira-Teima para você? O Tira-Teima é minha vida musical toda. A minha vida musical está mesclada e fundida com o Tira-Teima. É a minha referência musical, foi o que eu fiz a vida inteira.

Se o grupo deixasse de existir você certamente sentiria muito. Iria sentir muita falta. Eu passei uma época da minha vida sendo violonista, acompanhando cantores e compositores. Mas a minha vida musical, a minha identidade musical é o Regional Tira-Teima, regional de choro. É um amor à primeira vista, um encantamento mesmo.

A que você credita tanta demora para definir a feitura do primeiro disco? Já são 40 anos do Regional. Foi problema interno do grupo, de como seria feito, se as músicas teriam arranjos próprios, se a gente ia delegar. Por falta de consenso, as coisas foram atrasando, atrasando. Ainda um dia desses falávamos sobre isso: uma vertente do grupo defendia que os arranjos deveriam ser arranjos próprios, e a outra que contratássemos arranjadores para fazer. Isso tudo atrasou o projeto, mas agora já está em andamento.

E o que ficou definido, no final das contas? [Risos] Ficou definido o meio termo: a metade o arranjador, que Ubiratan já fez, e a outra metade arranjos do grupo.

Mas o disco está andando. Já está tudo fechado: repertório, participações especiais? O disco está andando. Já estamos em estúdio, Gordo Elinaldo é nosso guru.

O que significa para vocês a participação do Ubiratan neste disco, já que ele foi um dos fundadores do grupo? Eu acho extremamente pertinente justamente por este motivo: pelo fato de ele ter sido fundador do grupo. Ele participar dessa forma é fundamental.

Uma volta às origens, já que o convite é também uma forma de homenageá-lo, mas com o pé no futuro, na medida em que vocês devem trazer um repertório, ao menos parte dele, inédito e autoral. Exatamente. E quase todo formado por músicas de autores maranhenses.

O que vai ter? Podes adiantar? Tem três choros de Serra de Almeida, Dom Chiquinho, Imbolada e Choro Nobre. Tem dois choros meus, Gente do Choro e Meiguice, um choro que eu fiz para minha filha. Gente do Choro vai ser cantada por Zé Carlos. Tem Companheiro, que é um choro meu e de Solano. Tem uma valsa que João Pedro fez pra Serra, chamada Simples como Serra. Tem duas músicas de Léo Capiba. Tem uma música chamada Apelo, que a gente descobriu que é de Nhozinho Santos. Até então a gente dava como autor desconhecido, Ubiratan foi quem descobriu que é dele. E tem dois choros na forma, que a gente está terminando de fazer para entrar no disco.

Como tem sido, ao longo de todos estes anos, conciliar a atividade musical com o ofício de bancário? Não foi tão complicado, por que o expediente no banco é de segunda a sexta, em horário bancário, das 10 às 16 [horas]. As atividades musicais geralmente são à noite ou em fins de semana. E os ensaios também à noite. Eu não tive grandes problemas em conciliar as duas atividades. Salvo quando pintava uma viagem para fazer show, aí ou eu conseguia uma folgazinha ou não ia.

Além de Lances de Agora, de que outros discos você participou? Fiz um grupo chamado Canto de Rua, uns rapazes que tocam samba, fiz Joãozinho Ribeiro [o inédito Milhões de Uns, gravado ao vivo no Teatro Arthur Azevedo], fiz Cabeh [Esquina da Solidão, lançado postumamente], produzi e gravei o disco de Anna Cláudia [cantora paraense radicada em São Luís, com quem Paulo Trabulsi foi casado], fiz Cesar Teixeira [Shopping Brazil, 2004], Serrinha [e Companhia, grupo de samba e pagode] com Tributo a Zé Hemetério e Das cinzas à paixão [faixas de Na palma da mão, de autoria, respectivamente de Gordo Elinaldo e Cesar Teixeira]. Memória [da Música do Maranhão, disco coletivo que registrou a obra de vários compositores da velha guarda], Antonio Vieira [O samba é bom, 2001]. Estou participando agora do disco de Gordo Elinaldo, já gravamos.

E shows? O de Carlinhos Veloz [Sobre Cordas, apresentado no Teatro Arthur Azevedo] foi muito importante, eu tenho a filmagem lá em casa. Foi um negócio emocionante, o regional tocou, foi super aplaudido. O de Turíbio Santos, João Pedro Borges. Nós participamos com duas atrações internacionais, Jerzy Milewski, um violinista polonês, que tocou com a esposa dele, Marcelo Bratke, um pianista, o Tira-Teima tocou com ele. E shows com vários artistas maranhenses, Fátima Passarinho, Lena Machado, Alberto Trabulsi, Anna Cláudia, Zeca Baleiro, foi realmente muita gente. Com Antonio Vieira nós fomos a São Paulo, fizemos Sesc. Participei de quatro festivais da Fenai, a Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa. Inclusive Gente do Choro foi de um festival em João Pessoa, na Paraíba.

Entre estes shows de destaque você incluiria o Recital de Música Brasileira, com João Pedro Borges e Célia Maria? Sim. Foi um show importantíssimo, em que participamos eu, Celson [Mendes, violonista], o pandeirista Lazico. Foi sucesso, um trabalho para mim extremamente importante. Teve uma coisa interessante [risos], eu participando de um dos encontros da Escola Portátil de Choro, eu fui lá como aluno de Luciana Rabello e tava lá no aulão dela. E um dos alunos, um rapaz bem jovem, me viu e me reconheceu: “o senhor não estava naquele show da TV Senado, acompanhando João Pedro Borges?” “Sou eu”. “E o quê que o senhor está fazendo aqui?” [risos]. Eu achei graça, “rapaz, eu tou aprendendo junto com vocês”.

O que é o choro? Qual a importância dessa música? O choro tem aquelas explicações históricas do choro, que derivou das polcas, mazurcas, schottisches europeias e se fundiu com os ritmos africano, os lundus da vida, e a coisa, o choro é um produto que vem evoluindo, vem em transformação. No início da história do choro, Chiquinha Gonzaga, Antonio Calado, todo choro era maxixe. De Pixinguinha pra cá a coisa tomou outra forma, aí que colocaram pandeiro no choro e virou o que é, como é tocado hoje. Mas se você notar, está o tempo todo em transformação. Essa nova geração de chorões já está dando outro tratamento, a música vem evoluindo, vem se transformando ao longo dos anos. É um organismo vivo.

Você se considera um chorão? [Rápido e enfático:] Eu sou um chorão!

Chorografia do Maranhão: Joaquim Santos

[O Imparcial, 8 de dezembro de 2013]

Violonista, ex-integrante da Camerata Carioca, autor das trilhas sonoras de mais de 20 filmes e professor da Escola de Música, Joaquim Santos é o 21º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Filho do comerciante português Camilo Gomes dos Santos e da dona de casa Raimunda Moraes dos Santos, nascida em Bequimão, Joaquim Antonio dos Santos Neto nasceu em São Luís em 20 de dezembro de 1951. Além dele e seus pais, a casa da infância que lhe habita a memória era dividida com quatro irmãos – entre os quais o cineasta Murilo Santos –, a avó portuguesa, primos e tias.

Desde criança Joaquim Santos demonstrou talento e vocação para as artes. Aos sete anos já se dedicava às artes plásticas – desenho, pintura e escultura –, tendo vencido alguns concursos. Com o dinheiro destes, aos 14 anos, comprou o primeiro violão, que escondia no guarda-roupa, por puro receio da opinião do pai, bastante rígido. O músico, no entanto, reconhece o apoio da família na continuidade dos estudos da música e posterior carreira que seguiu. De seus três filhos, Juliano Santos reside no Rio de Janeiro e também se dedica ao violão.

Professor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo, em cuja sala Santinha Vasconcelos recebeu a chororreportagem, Joaquim Santos é um dos nomes mais importantes do violão brasileiro. Integrou a Camerata Carioca, grupo fundamental para a revalorização e revitalização do choro no Brasil, entre o fim da década de 1970 e início da de 80. Com o grupo gravou o disco Tocar, além de ter acompanhado nomes como Elizeth Cardoso e Nara Leão.

Outra área em que se destaca é a composição de trilhas para cinema: já assinou mais de 20, tendo recebido diversos prêmios Brasil afora. São dele, entre outras, as trilhas sonoras de O testamento, de Euclides Moreira Neto, O incompreendido, de Francisco Colombo, Ódio, de Breno Ferreira, Infernos e O exercício do caos, de Frederico Machado, Bandeiras verdes, O crime da Ullen, O massacre de Alto Alegre e Quem matou Elias Zi?, do irmão Murilo Santos. No último citado, também assina os desenhos [nota do blogue: recentemente assinou a trilha de O camelo, o leão e a criança, de Paulo Blitos].

Misto de trabalho e diversão é a pesquisa que desenvolve sobre a música produzida no Maranhão no século XIX. Joaquim Santos tem editado partituras do período, às vezes baseando-se em manuscritos. Em seu vasto acervo há verdadeiras joias de nomes como Pedro Gromwell, Antonio Rayol [nota do blogue: no vídeo acima, Retoques, última faixa de Shopping Brazil, de Cesar Teixeira, uma das músicas cantadas por Dona Teté é a Ladainha de Nossa Senhora, de Antonio Rayol] e Inácio Cunha. “Há muito choro, muito schottisch, valsas, mazurcas, que ninguém conhece. Os músicos precisam ir aos arquivos, tem muita coisa bonita”, afirma. Privilegiados, os chororrepórteres encerraram a entrevista ouvindo alguns temas em seu laptop.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

Dá pra dizer que a música trouxe teu avô ao Brasil? Eu não sei o que motivou essa viagem dele. Ele, chegando aqui, trabalhava como violinista e carpinteiro. Ele tocava violino no cinema mudo. Na Faculdade de Farmácia, eu vim descobrir depois, por documentos, ele foi o chefe da carpintaria.

Como era o ambiente musical em tua casa, na infância? Muito bom. Meu pai ouvia muito música clássica, música popular. Tinha disco de choro, disco de Pixinguinha, aqueles cantores e cantoras da época, todos, a chamada era do rádio. Tinha esse lado da música popular, meu pai curtia muito, mas predominantemente música clássica. Discos de fado, violino, e discos norte americanos, orquestra. Sábado, todo domingo, era música o dia inteiro. A questão da música na minha vida surgiu mais ou menos quando eu tinha uns 14 anos. Eu, desde criança, aos sete anos, desenhava muito, com o incentivo de minha avó portuguesa, que morava com a gente. Com sete anos eu ganhei um concurso de desenho do Sesi. Minha primeira exposição de pinturas e de escultura, eu tinha 10 anos. Eu fiz uma coletiva nessa época, o governador Newton Belo ofereceu um jantar, medalha, eu tenho até hoje. Nesse período todo até uns 14 anos, minha dedicação exclusive era com as artes plásticas, pintura, escultura, eu fazia muita exposição. Eu estudei com Telésforo Moraes Rego, com Nilton Pavão. Depois eu retomei quando fui morar em Minas, trabalhei na Casa de Gravura, trabalhei para [Carlos] Scliar, pra [José Alberto] Nemer, [Carlos] Bracher, eram artistas [plásticos]. Quando eu comecei minha experiência com violão, eu comprei um violão com o dinheiro dos quadros, ficava tentando tocar, e naquela época eu conheci Ubiratan [Sousa, músico, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013], não pessoalmente, ele tocava o Prelúdio de Bach, e eu ficava louco pra tocar daquele jeito, fiquei muito encantado. E também uma coisa que me influenciou bastante era um programa, logo que inaugurou a televisão, a Difusora, um programa, acho que era Panorama Panamericano, um filme em preto e branco, tinha a cena, uma das reportagens, [o violonista espanhol Andrés] Segovia tocando, e aí eu fiquei apaixonado pelo violão. Eu comecei a estudar escondido de meu pai, comprei o violão com meu dinheiro, mas escondia no guarda-roupa. No dia em que meu pai soube, eu já tocava alguns clássicos. Mas eu não tinha técnica. Eu aprendi a ler música sozinho. Quando eu cheguei para Lourdinha Lauande [a historiadora Maria de Lourdes Lauande Lacroix] eu já estava tocando violão. Ela era uma excelente pianista, eu morava do lado. Tinha um padre que tocava violino que almoçava lá, cônego Osmar Palhano de Jesus. Ele era pintor, foi meu professor de pintura também. Então eu comecei a tocar mesmo sozinho. Quando eu soube que João Pedro [Borges, violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] estava na cidade, que tocava muito bem, aí eu fui estudar com ele. Quando eu fui estudar com ele, eu já estava tocando, mas sem técnica.

A tua primeira influência, vendo alguém tocar, foi Ubiratan? Foi. Eu vi Ubiratan, Segovia na televisão.

Ubiratan chegou a te dar aula? Nesse período, não. Depois eu tive acho que duas aulas com ele.

E Lourdinha Lacroix, chegou a te dar aulas? Exatamente. Eu chegava pra ela “e essa música aqui”, mostrava a música e ela dizia “isso aqui toca assim”. Ela dava umas orientações. Eu comecei a estudar bastante violão. E fiquei estudando com João Pedro no período de férias e fui avançando. Quando inaugurou a Escola de Música, em 1974, depois de um semestre, João Pedro sugeriu que eu ficasse não só como aluno dele, mas também como professor assistente, por que tinha uma procura muito grande de violão. Eu fiquei como assistente, depois ele foi embora e eu fiquei como titular. Em 1980, mais ou menos, 79, eu ganhei meu primeiro prêmio de trilha sonora, que foi do filme do Euclides [Moreira Neto, cineasta, ex-Diretor do Departamento de Assuntos Culturais da UFMA e ex-presidente da Fundação Municipal de Cultura de São Luís], O testamento. Depois desse evento eu fui para o Rio estudar com o Ian [Guest, músico, professor de violão].

Teus pais sempre te apoiaram? Sempre! Inclusive, antes de ir pra Escola de Música, eu trabalhava como desenhista no Cema, a Fundação Maranhense da TV Educativa. Foi aí que o João Pedro sugeriu que eu largasse lá o emprego para ficar na Escola de Música.

Mas no começo você escondia o violão de teu pai. Era só um receio de ele não receber bem? Exatamente. Nós éramos cinco [irmãos], tinha muita gente na casa, ele era muito rígido, por que tinha os primos, as tias, enfim. Eu fiquei com medo de ele implicar com o violão, embora eu tivesse comprado com meu dinheiro.

Fora as formações em artes plásticas e música, você teve outra formação? Eu me empreguei como desenhista, depois como professor de música. Depois eu comecei a fazer luthieria. Eu faço muito restauro. Meu sonho era fabricar, mas é tanto instrumento para consertar, os alunos pedem para regular, violino, violão, o que eu tenho para terminar…

Quem foi teu mestre de luthieria? Eu considero dois grandes mestres: um foi o [luthier japonês Shigemitsu] Suguiyama, que foi o primeiro, e o outro foi Mário Jorge. Daí você vai pegando informação com várias pessoas. Eu frequentava muito a oficina do Mário Jorge, inclusive meu primeiro violão, que eu fiz, foi [o luthier] Sérgio Abreu quem me vendeu a madeira pra fazer.

Fala um pouco de tua ida pro Rio de Janeiro, como é que se deu? Eu fui para o Rio com uma bolsa, que era meu salário, aqui da Escola, em 1980. Depois, a Olga [Mohana, ex-diretora da EMEM], que era diretora, não queria que eu ficasse no Rio, queria que eu voltasse, e eu queria estudar mais um pouco. Acabou que eu perdi meu emprego. Chegando lá no Rio, eu continuei tendo aula com João Pedro e naquela época a Camerata Carioca ensaiava também na casa de João Pedro e eu ficava ouvindo ali. Coincidiu que o João Pedro se desligou da Camerata, queria investir na carreira solo, e me indicou. Tinha duas pessoas indicadas. Eu não sou chorão. Minha ligação com o violão sempre foi com a música clássica, sempre tive simpatia, mas eu aprendi muito sobre o choro quando entrei na Camerata. Pintou um concerto de última hora e eu tive umas duas semanas pra estudar, arranjos de Radamés [Gnattali, pianista e mastro gaúcho, fundador da Camerata Carioca]. Foi um concerto na Sala Cecília Meireles, com Joel Nascimento no bandolim, Henrique Cazes no cavaquinho, eu fiquei no primeiro violão, substituindo João Pedro, Maurício Carrilho no segundo, Luiz Otávio [Braga] no [violão] sete cordas e Beto Cazes no pandeiro. Nesse programa a gente tocou a Suíte Retratos [nota do blogue: no vídeo acima, a formação que executa a Suíte Retratos ainda tem João Pedro Borges ao violão], tocamos o Concerto de Vivaldi, com Radamés tocando, e tocamos também… tinha um repertório, eu não lembro, tinha Jacob do Bandolim e uns dois choros livres no final do concerto. Eu estava bastante tenso, era minha estreia, fiz o melhor possível, eu estava doente, um problema no dente que se agravou. Quando a gente estava no camarim, Henrique Cazes chegou todo contente: “sabem quem está aí? [Os violonistas] Sérgio e Odair Assad”. Aí foi que meu coração gelou, tocar pra esses caras! Mas foi legal, o concerto foi bom. Foi muito boa essa experiência. Daí a gente seguiu, foram várias apresentações. Gravamos o disco Tocar [1983] e outros discos também, com a Nara [Leão, cantora], a volta da Nara aos palcos foi com a gente, Teatro da Lagoa. Nós participamos de uma faixa do disco Nasci pra bailar [1982] e depois outro disco, Meu samba encabulado [1984].

Tocar foi o único disco que você gravou com a Camerata? Como grupo, sim. Esse disco foi muito bom, nós ganhamos o prêmio [da revista] Playboy de melhor disco.

Eu me lembro de um em que vocês acompanhavam Elizeth Cardoso, Uma rosa para Pixinguinha [1983]. Uma Rosa para Pixinguinha. A gente gravou o disco com a Nara, Meu samba encabulado.

Esse, vocês fizeram todo o disco com a Nara? A Camerata e a turma do Fundo de Quintal [grupo de samba e pagode]. Inclusive a gente fez o [a turnê do projeto] Pixinguinha com esse disco. Sem eles, a gente fez o Japão, com a Nara. Chegamos lá foi uma maravilha. Fizemos vários shows com a Nara, shows também com [o músico Roberto] Menescal. Fizemos um concerto só para jornalistas e críticos de música em Tóquio, alguém postou uma música no youtube, Jacaré de saiote, um frevo [de autoria de Antonio da Silva Torres, o Jacaré]. Depois eu produzi um disco, com a participação de Tom Jobim, chama-se Radamés [Gnattali, 1985], músicas que Radamés fez para alguns compositores e que alguns compositores fizeram para ele [o lado a tem seis faixas em que Radamés homenageia e é homenageado por Tom Jobim, Paulinho da Viola e Capiba; no lado b, três movimentos do Quarteto popular, de autoria do gaúcho].

E a convivência com Radamés, qual a importância, o que significou para você? Pra mim, aliás, pra todos nós que convivemos com Radamés, tivemos essa oportunidade, por várias maneiras: só como pessoa, você estar ao lado de um grande artista como Radamés, isso já é uma grande honra. Posso dizer que sou um cara de sorte e fico muito feliz com isso. Eu vi a Nara Leão na televisão aqui em São Luís, nunca imaginei que pudesse trabalhar com ela e fui até seu professor de violão. A mesma coisa com Paulinho da Viola, todos esses artistas. Radamés eu lembro de vê-lo tocando piano na televisão e, poxa, chegar, estar aqui do lado, na sala dele, tocando com ele, aprendi muito. Era super rígido, mas tinha um lado muito à vontade. Ele não gostava de ensaiar, fazia as coisas muito rápido. Não era o tipo de músico preocupado com detalhes, preciosista. Mas se aprendia muita coisa, de vida mesmo, de músico.

Qual a estatura de Radamés dentro da música brasileira? É pouco conhecido, não tem o reconhecimento merecido. A gente ouve mais as pessoas ligadas à música popular, principalmente ao choro, que conhecem, têm uma aproximação, mais que os compositores eruditos. Os compositores que colocam Radamés no programa geralmente são violonistas, que conhecem esse lado, que inclusive tocam o lado da música popular.

Os papeis que Pixinguinha exerceu durante quase cinco décadas, depois dele, quem assumiu essa tarefa no rádio, na televisão, nas gravadoras, foi Radamés, como arranjador, como um cara que deu rumo para a música brasileira durante tempo significativo. Exatamente. Foi um grande compositor. Foi editado há uns dois anos, um professor da UFMA, Ricieri [Carlini Zorzal, Dez estudos para violão de Radamés Gnattali: estilos musicais e propostas técnico-interpretativas; a dissertação foi defendida na UFBA, em 2005, e posteriormente publicada em livro], ele escreveu, foi a dissertação dele de mestrado, sobre os dez estudos de Radamés, eu até fiz o prefácio do livro, tem o pdf, está disponibilizado [para download]. É bem interessante, ele faz uma análise, embora o Radamés não aceitava essa questão do jazz, mas é interessante, por que ele começa a ver essa mistura da brasilidade, da música, com essa questão do jazz, que é presente na música do Radamés.

Na sua opinião, que papel exerceu a Camerata na trajetória do choro? Essa é uma boa pergunta. O choro surge exatamente dessa mistura dos ritmos brasileiros com a música da Europa, da África, toda aquela história que todo mundo conhece, vai pras ruas e pros salões. O choro é uma música erudita. Vamos dizer na linguagem de hoje, é uma música de concerto. A Camerata surgiu num período, ainda mais no formato em que ela veio, colocando e ressaltando esse lado refinado da música, camerístico. Foi muito importante e foi determinante, influenciou vários grupos. A gente pega vários grupos, como o Água de Moringa. Tem um muito interessante, que com certeza teve algum contato com a Camerata, chama Papo de Vento, é um conjunto de sopro. É muito bom. Eu acho que a Camerata teve esse papel importantíssimo. Dessa escola da Camerata, eu chamo até de escola, surgiram várias coisas. Depois que a Camerata acabou, infelizmente acabou no Japão, justamente no momento em que a gente recebeu todos os reconhecimentos e convites para tocar. Tinha o trabalho com a Nara, mas a gente foi convidado, só o conjunto, para fazer vários concertos, gravamos até com uma cantora pop japonesa, ela cantou Tom Jobim. Eu não queria que terminasse, mas foi uma decisão da maioria.

O fim da Camerata foi cercado de brigas? Como foi? Eu não vou dizer brigas, mas insatisfações. Já vinham se acumulando há um tempo.

Como é tua relação hoje com os remanescentes da Camerata? Excelente. O Henrique uma vez veio aqui, foi muito bom, Luiz Otávio, todos eles, Maurício. Eu gosto muito deles. Eu acho que na Camerata eu até consegui muitas vezes equilibrar essa balança das insatisfações e divergências, eu sempre conciliava. Acho que é o melhor caminho que tem. Depois acabou, Radamés morreu, nos reunimos, fizemos um concerto. Depois houve um segundo momento de reunião, não para continuar. Nessa ocasião, já o Maurício não quis ir. No lugar dele foi o [violonista] João Lyra e no lugar do Dazinho, que morreu, foi o [clarinetista] Paulo Sérgio Santos. A Camerata teve um papel muito importante, naquele momento, de abrir os caminhos. Eu aprendi muita coisa nessa vivência, de gravações.

Fora Tocar e os discos com Nara e Elizeth Cardoso, de que outros discos você participou? Teve um disco do Zé Tobias, Camerata, Radamés e Zé Tobias [José Tobias, Rapsódia Brasileira, 1984]. Gravei com Benito di Paula, com a Camerata, ele gravou umas músicas antigas, mas não sei se chegou a virar disco. Teve Taiguara [Canções de amor e liberdade, 1985]. Outros discos, tem um da Teca Calazans [Mário, 300, 350, 1983], várias pessoas da Camerata participaram, mas não com o nome da Camerata [ele não cita o disco Caymmi, de Dorival Caymmi, 1985].

Aqui no Maranhão você não chegou a gravar discos? Não.

Além da Camerata você participou de outros grupos? Lá em Minas, sim. Eu tinha um duo, flauta e violão, com Salomé Viegas, fizemos concertos em vários lugares, era legal, a gente tinha um repertório que incluía choro, Egberto Gismonti, Bach, Villa-Lobos. Depois a gente formou um trio, com um violoncelista. Eu tenho um vídeo que eu gravei, saiu na TV Cultura.

De uns tempos pra cá me parece que você anda meio afastado de palcos e estúdios, fora o lance de fazer trilhas sonoras. Você não tem vontade de voltar, não sente falta? Até foi legal falar nisso. Quando eu vim pra cá, eu vi que a realidade era outra. Tem gente que sobrevive de música e eu tiro o chapéu, é uma coisa bem difícil. Toca aqui, acolá, ganha um dinheirinho aqui, acolá, eu não sei se eu teria pique. Eu senti um choque muito grande, eu estava muito envolvido com a música de concerto, e pensei, “poxa, aqui não é minha praia”. Isso foi me afastando do palco até por uma questão, quando você deixa de tocar no palco, você vai criando medo de palco, e foi o que aconteceu comigo, de certa maneira, associado a uns problemas nas minhas unhas. Eu deixei, toquei pouco, fiz poucos recitais. Eu lembro de um na época do festival da prefeitura [o Festival Internacional de Música de São Luís, em 2002]. Eu toco assim, acompanhando aluno, e eu estudo todo dia. Todo dia! Tocar, eu toco aqui na Escola de Música. Agora eu descobri uma coisa que Yamandu [Costa, violonista sete cordas gaúcho] já usa e eu resolvi experimentar: unha artificial. Agora estou me preparando para tocar.

As trilhas para cinema são muitas. Não tem uma preocupação de tua parte de registrar esse material? Lançar isso em disco, no sentido, inclusive, de que muitos desses filmes, ninguém sabe onde está, como faz para assistir. Eu sempre pensei. Eu tenho vontade de fazer um cd. Seria um projeto bem caro, muita coisa eu teria que regravar, por conta da qualidade, da época. Muitas dessas músicas que eu faço para filmes, a maioria curtas, a maioria é para orquestra.

Você faz reparo, conserta instrumentos. Você toca outros instrumentos? Não. Só violão. Piano é uma coisa assim, não é nada. Eu estudo as cordas por que eu estou na direção da Orquestra de Cordas daqui [da EMEM], já faz bastante tempo, desde que eu cheguei aqui, em 1999. Eu aprendi muito aqui na Escola, na própria orquestra. Eu tenho alguns arranjos e orquestrações que acho que foram bem sucedidos, o pessoal gosta, muita gente me elogiou. Eu fiz arranjos para cordas para Água e vinho e Loro, de Egberto Gismonti, fiz orquestrações para umas mazurcas de [o violonista espanhol Francisco] Tárrega que acho que ficou legal. E fora isso tenho meu trabalho de pesquisador da música do século XIX, que a gente sempre toca. Não é arranjo, são edições.

Como é teu método na hora de compor uma trilha? É preciso ver as cenas antes? Eu já experimentei de todo jeito. Eu gosto muito da trilha de Infernos [de Frederico Machado]. Ele me encomendou a trilha e disse que queria inferno e céu, “tudo é baseado na poesia de meu pai”. Eu conheço a poesia de Nauro [Machado, poeta, pai do cineasta Frederico Machado] e sei que o inferno não é tão inferno, pela beleza poética com que ele descreve, e o céu não é tão céu, essa coisa densa que é Nauro. E ele disse: “agora eu vou só combinar uma coisa contigo que é fundamental: eu penso numa coisa de voz, [o compositor minimalista norte-americano] Phillip Glass, mas não vou te mostrar o filme”. Eu acho que foi uma das trilhas mais bem sucedidas, uma das. Por outro lado, já o inverso, eu assisto a cena, participo do filme, vejo as filmagens, converso com o diretor, aí é outro tipo de envolvimento, que funciona. Essa coisa diversificada é legal, são sempre desafios. Tudo é possível. De modo geral, a conversa do diretor com o compositor é fundamental. Quando eu vejo a cena eu sei exatamente onde eu posso colocar o silêncio e onde eu posso colocar a música.

Para você, como educador, o que significa o fato de São Luís ter, hoje, além da Escola, duas faculdades de música? Isso mudou bastante. A primeira coisa que a gente pode pensar é que existia um mito muito forte aqui em São Luís, que as pessoas que leem música não tocam de ouvido. Há essa tendência, lógico. É muito fácil você pegar, ler a partitura e não precisa tirar de ouvido, não treina. Tinha muita gente aqui que toca muito bem, que não sabe ler nem escrever [partitura]. Aqui mesmo na Escola, havia gente que não tinha habilidade com a leitura, mas são excelentes músicos. Hoje estão na universidade, já leem. É um caminho mais aberto, uma possibilidade. Eu volto à história do choro: o músico de choro gosta tanto de choro, que se interessa, vai atrás, acaba lendo [partitura]. Mas eu não resumo o curso de música só à leitura. Esses dois cursos formam professores, para ensinar música. Agora, lá, não é um curso de instrumento. Continua a Escola de Música sendo o grande centro de formação instrumental. Fora disso, um excelente espaço para o aprendizado de música são as igrejas. Acontece hoje uma coisa que acontecia no século XVIII: o centro de formação do músico era nas igrejas. Os compositores que nós temos do século XVIII, Manuel Antonio de Oliveira, Ermelindo Lobo de Mesquita, o próprio Antonio Rayol era regente, Leocádio Rayol. Isso está acontecendo hoje, de maneira informal, mas você vê grandes músicos em igrejas. Agora vai ter teste para o curso técnico. Se se fizer uma enquete, a maioria dos músicos que vêm fazer o teste, o propósito é melhorar a performance nas igrejas.

Qual a importância do choro para a música brasileira? Choro é aquilo que há de mais fundamental que a gente possa pensar. É fundamental. A música brasileira, a raiz da música brasileira, qualquer gênero que surja depois, o movimento da bossa nova, tudo isso a gente pode ver que tem um pé no choro, e que é um gênero, uma questão de identidade, uma estrutura não só formal, mas também melódica, harmônica, ela tem toda essa abertura, não só pela questão do tradicional, ela se abre. Uma das coisas mais inovadoras que eu conheço de choro são as obras do Maurício [Carrilho] com o Choro Ímpar.

Chorografia do Maranhão: Wendell Cosme

[O Imparcial, 24 de novembro de 2013]

O cavaquinhista e bandolinista Wendell Cosme é o 20º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

São Cosme e São Damião têm duas datas no calendário religioso. Uma para a Igreja Católica, outra para a gurizada, que faz as festas pelas ruas, à cata dos bombons de promessa. Nascido em 27 de setembro de 1988, Wendell Cosme Vieira Pires levou o nome do primeiro no batismo. Evangélico, enverga no braço direito uma enorme tatuagem onde se lê “Jesus Cristo”.

Filho de Sonia Regina Correia Vieira e Everaldo da Paixão Pires Filho, mecânico falecido, o cavaquinhista e bandolinista ingressou recentemente no curso de Música da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Iniciou os estudos musicais aos 14 anos, quando aprendeu a tocar cavaquinho, após descobrir sua paixão por blocos tradicionais e a cultura popular do Maranhão, época em que ingressou na Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo (EMEM).

Casado e esperando o primeiro filho, o músico integra os grupos Argumento e Quarteto Cazumbá e já passou por vários outros, incluindo o Chorando Callado, que o revelou nas noites do saudoso Clube do Choro Recebe, no Bar e Restaurante Chico Canhoto.

Wendell Cosme recebeu a chororreportagem no estúdio de Júlio, no segundo piso de uma residência na Camboa. Na ocasião, tirou uma foto e postou no Instagram, relatando a felicidade em ser um dos entrevistados da série Chorografia do Maranhão. Também no celular mostrou em primeira mão a gravação do Argumento para Flanelinha de Avião, de Cesar Teixeira, com participação do sambista carioca Moyséis Marques. O entrevistado de hoje assina o arranjo.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

Com que idade você começou a tocar? Acho que com 14 anos.

Isso fora já? Não. Eu comecei tarde mesmo. Poderia ter começado mais cedo.

O ambiente na tua casa favorecia o aprendizado da música? O que te estimulou? Todo domingo na casa da minha vó tinha confraternização, aquelas coisas de família e de vez em quando tinha um samba. Eu olhava, mas ainda não tinha muito interesse. Mais na frente teve um bloco, chamado Pierrô, lá no Cohatrac, quando eu estava morando já no Cohatrac Araçagy, por ali, mas também ainda não tocava, acompanhei. Já vim começar a tocar, eu comecei tocando retinta. Foi de onde eu comecei.

Nesse samba do quintal de tua vó tinha algum parente que tocava? Meu tio. Tio Erinaldo. Ele é irmão de meu pai. Ali eu já acompanhava, ele já saia pra tocar. Mas eu ainda era muito criança.

Como é que você foi parar na Escola de Música? Começou tocando antes de ir para a Escola, como é que foi? Nesse tempo eu fui morar na Cohab, já depois de ter conhecido o bloco tradicional, já tinha me chamado a atenção. O bloco Os Vampiros ensaiava na frente da minha casa. Eu comecei a gostar, todo mundo já participava, eu pedi pra meu pai uma retinta. Ele mandou fazer uma pra mim e eu comecei a tocar. Lá n’Os Vampiros tinha Chico Newman, um cavaquinhista que virava bicho tocando ali, tocava muito, muito mesmo. Eu ficava olhando e aquilo me chamou muito a atenção, “rapaz, esse cara toca muito, isso é bonito”. Aí um amigo meu, Eduardo, eu falei pra ele, “rapaz, eu quero começar a tocar cavaquinho, eu quero aprender”. Ele sempre ia lá, não tocava, ia levar o cavaquinho pra Chico Newman. Ele tinha um cavaquinho, me emprestou. Uma situação engraçada. Eu peguei o cavaquinho, fiquei fazendo zoada, mas não tocava. A primeira vez em que eu fui pegar aula de cavaquinho, o dono do cavaquinho apareceu, eu fiquei sem cavaquinho. Aí deu aquela travada. Fiquei sem instrumento, não tinha como continuar. Pouca grana, praticamente zero, minha mãe não trabalhava, meu pai era mecânico, aquela renda era mais pra ajudar em casa mesmo. Aí eu dei um tempo e tinha ganhado um celular de minha tia, comprou na loja, eu, “celular pra quê?”, naquela época ainda estava começando, eu vendi pra meu pai. Aí eu fui ao Centro com uma prima minha, que andava sempre comigo, a Natália, aí eu digo, “rapaz, eu vou comprar um som pra mim” – gostávamos muito de música, ficar escutando em casa –, “ou um cavaquinho?”. Comprei o cavaquinho e foi o início de tudo.

Você lembra que ano era isso? 2001, por aí. 2000.

O lance de cavaquinho veio do bloco. Podemos dizer que tua entrada na música tem um pé na cultura popular? Isso se mantém hoje? Isso. Se mantém! Eu sou louco por bloco tradicional.

Você já tocou em diversas outras manifestações. Toquei muito tempo no Boi Pirilampo, viajei muito com o Pirilampo, até pra fora do Brasil. Toquei essa temporada com o Nina [o Bumba Meu Boi de Nina Rodrigues]. Toquei com o [bumba meu boi] Brilho da Terra, um boi da Madre Deus que agora eu não lembro o nome. Já estava começando a gravar algumas coisas de bumba boi.

Qual a importância da ponte entre a cultura popular do Maranhão e a música instrumental que se produz aqui? Pra mim é superimportante. A cultura popular, a gente tem o bumba boi, o bloco tradicional, principalmente, que eu gosto demais, a tribo de índio, o divino [espírito santo]. Falando sobre isso eu já digo que fomos participar de um festival em Recife, Tremplin Recife Jazz, a gente chegou lá pra tocar, eu vou te falar a importância. A gente sempre achou superimportante montar um trabalho com os ritmos do Maranhão, é o sotaque daqui, uma coisa diferente, ninguém faz, chegamos para tocar lá, tinha um pessoal da França, uma orquestra de jazz da França, começamos a tocar tribo de índio, tam tam tam tam [imita com a boca o andamento percussivo], uns temas meus, rapaz, esses caras ficaram “o quê que é isso?”. Antes teve um grupo de choro da Paraíba, que tocava choro puxando pro forró, já é normal, o cara já está acostumado a ouvir choro com andamento de baião. Quando a gente tocou a tribo de índio, um jurado se levantou da banca e foi lá pra frente do palco para ver o que estava acontecendo, “que ritmo é esse?”. A gente tem que valorizar, tentar encaixar o máximo na música instrumental, no choro principalmente, a gente tem que explorar um pouco mais, acho que tem sido pouco explorado esse lado.

Nesse festival, no Recife, quando você fala a gente, era o Quarteto Cazumbá? Como é que está o quarteto hoje? Era o quarteto. Deu uma parada, todo mundo correndo pra um lado e pra outro. Mas temos uns convites, de Recife mesmo, do grupo Saracotia, um projeto de rodar o Nordeste, e a gente vai abrir pra eles, quando eles passarem por aqui, já no começo do ano que vem. Eles fazem muita coisa lá.

Quem foram teus mestres no cavaco? É importante eu falar do Eduardo, o Dudu. Foi ele quem me emprestou o cavaco, que nem era dele, na hora o dono apareceu. Ele foi um cara que me ajudou muito no início. Eu não digo que ele foi meu professor, ele falava “o dó é assim, o mi é assim”. O Chico Newman foi uma grande inspiração pra mim, não chegou a ser meu professor, não me deu aulas, mas me inspirava vê-lo tocar. Quando eu estava começando a engatinhar no choro, eu vi Juca [do Cavaco, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 13 de abril de 2014] tocando na televisão, no Canal 20, no programa de César Roberto [radialista]. Tanto é que quando eu fui fazer a prova [de seleção] da Escola de Música, eu falei, parecia o ídolo mesmo, assim na frente, “rapaz, eu te vi tocando”.

Você foi aluno dele na Escola? Fui aluno do Juca. Ele foi meu principal professor na Escola de Música. É uma pessoa que eu sempre tirava dúvida de choro com ele, e fui correndo atrás.

Você falou que considera ter entrado um pouco tarde no ramo. Mas em compensação, parece que você pegou tudo muito rápido, se lembrarmos dos tempos do início, do Chorando Callado no Clube do Choro Recebe, pra hoje… Eu agradeço, claro que a Deus em primeiro lugar, 80% ao choro. Foi o que me fez dar esse salto, em relação até a outros músicos. Quando eu comecei a tocar choro, eu lembro que a gente ia ensaiar, com João [Eudes, violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 16 de fevereiro de 2014], Tiago [Souza, clarinetista], o início do Chorando Callado, eu tocava uns três, quatro choros, aí Wanderson [percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 13 de outubro de 2013] chegou logo dando pressão: “não, tem que pegar choro”, e isso foi uma coisa que empurrou. Não tinha negócio de partitura, eu ainda não sabia ler. Eu tava engatinhando nisso, botava o cd em casa, ficava escutando, e começava a tirar as coisas.

Quando a gente se conheceu no Clube do Choro Recebe você tocava um cavaquinho cheio de fitinhas coloridas. Você se lembra das primeiras vezes em que tocou lá, com os nossos grandes mestres? Lembro sim. Aquilo foi um grande incentivo.

Depois do cavaquinho você se tornou também um grande bandolinista. Como é que o bandolim surge, em que momento passa a fazer parte dessa história? O bandolim surgiu depois de eu ter conhecido o Hamilton de Holanda, olhando ele tocando algumas coisas na televisão veio essa vontade de aprender. E pelo fato de não ter bandolinistas aqui. Tem o Raimundo Luiz [bandolinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 15 de setembro de 2013], poucos, poucos. Aí aparece um amigo meu, Dinho, querendo vender um bandolim velho e eu comprei da mão dele. Comprei e fui aprendendo só. Já sabia afinação, com a teoria musical que eu já tinha, eu peguei afinação e comecei a pegar os choros, a tirar alguma coisa de ouvido. De bandolim eu nunca tive aula com ninguém. Olhava algumas coisas na internet, olhava os grandes, Hamilton de Holanda, Jacob [do Bandolim].

Pra você, quem é a maior referência? Hamilton. Pra mim é o maior bandolinista de todos os tempos e não vai surgir um igual a ele tão cedo.

Maior do que Jacob? Eu sei que é uma pergunta escrota. É [risos], é escrota mesmo. Mas o Hamilton ele vê a música de outra forma, ele sabia que podia explorar muito mais o bandolim, abriu um leque.

Vocês já estiveram juntos? Eu assisti um workshop dele em Teresina, fui ao Rio assistir um show dele, fui ao camarim, conversei com ele, tenho um dvd autografado, “manda ver no 10 cordas aí”.

Você falou há pouco de pouca grana no começo e hoje é um cara que vive de música. Hoje eu posso dizer que vivo de música, tenho orgulho de dizer isso. No início foi barra, ia tocar pra ganhar cinco reais, pagava a passagem de ônibus, ficava com R$ 2,50, era o lanche ou pra jogar videogame. Vinha andando da rodoviária pra Cohab, ia tocar numa festa que não dava ninguém, a gente ia andando. Ralei, ralei, ralei mesmo.

Como era a reação dos familiares? No sentido de te mandar procurar fazer outra coisa. Minha mãe sempre me apoiou, meu pai também. Às vezes tinha uma tia que falava “mas não é melhor tu estudar?”. Aí eu botei uma coisa na cabeça, quando começou a dar certo, quando começou a caminhar, “rapaz, é isso que eu quero”. Aí eu comecei a focar, a correr atrás.

Mas você não chegou a ter outra formação. Não.

Você está na faculdade? Estou na UFMA. Faço música agora, graças a Deus! No início foi assim, mas graças a Deus eu tive o apoio da família.

É possível viver com dignidade, viver bem, com conforto, de música? Aqui em São Luís é difícil. Eu posso dizer que o grupo em que eu toco, o Argumento, me dá uma estrutura muito boa. É o maior grupo de samba daqui, uma referência. Todo mundo do grupo está vivendo dignamente.

Vocês só tocam no Maranhão? A gente vai muito em Teresina. A gente é muito tranquilo com relação a sair daqui, a gente vive o momento.

Como é a receptividade do público em Teresina? É legal. No início a gente foi várias vezes, a gente fez muitos shows legais lá.

Na tua cabeça tem algum conflito entre choro, samba e pagode? Ou você toca tudo com o mesmo gosto? Como é que você lida com isso? O choro a gente tem que estar sempre tocando, é muita nota, principalmente pra quem é solista. O samba, como eu faço só base, sou centrista, raramente faço solo. Se desse para conciliar os dois… Quando a gente vai tocar em festas, aniversários, a gente bota o choro, o pessoal é muito cabeça aberta. Esse lance de tocar em bloco, em boi, a gente se acostuma com várias vertentes.

Além do Argumento e do Chorando Callado, quais os outros grupos de que você já participou? Toquei muito tempo no Sob Medida, um grupo de samba, antes do Argumento. Antes do Sob Medida toquei no Palmares, grupo lá de Seu Riba, do Fundo de Quintal, já toquei com o Amigos do Samba, de Zé Costa, toquei no Fascinação, meu primeiro grupo de samba e pagode. Eu toquei com muita gente, fixo são esses, mas toquei com a Turma do Boneco, Samba Show.

E discos de que você participou? Muita coisa também. Deixa eu tentar lembrar algumas coisas importantes [pensativo]. Já gravei com Isaac Barros, Lena Machado, Madrilenus, estou produzindo o disco deles, Argumento, fiz arranjos, gravei o disco do Betto Pereira, com Camilo Mariano de batera, o Bóris fazendo arranjo, ele é uma grande referência no Rio, de samba e pagode, o Israel Dantas de violão. Participei de um projeto, acho que era do Sesc, também com Israel.

O que significou o Chorando Callado para você? Foi um divisor de águas. Foi onde tudo começou mesmo. Eu posso até arriscar a dizer, por todo mundo do grupo, a gente foi um grupo importante para a volta do choro aqui em São Luís. A gente começou a tocar e começou a surgir. Já tinha Pixinguinha e Tira-Teima, depois surgiram Um a Zero e outros, tocávamos direto. Foi na época em que o choro aqui deu uma levantada, tocávamos em aniversário, em bares.

Você considera que o grupo acabou? Eu acho que não, por que nós somos irmãos. João é padrinho de meu filho. Wanderson a gente está sempre se falando, é meu amigão. Tiago, a gente se fala pela internet, quando ele vem aqui a gente sai junto. Eu acho que o Chorando Callado não acabou.

Rola algum conflito entre a coisa religiosa e a música popular, ambiente de festas, bebida? Rola um pouco. Como eu nunca bebi, nunca fumei, isso foi uma coisa que sempre foi tranquilo, minha família, na igreja as pessoas respeitam minha profissão, sabem que eu vivo de música, ainda é meio complicado viver de música na igreja.

Você toca na igreja também? Ainda não. É um projeto. Eu acho muito sério. Eu não acho legal estar tocando na noite e estar tocando na igreja. Eu vejo dessa forma. Não tenho nada contra quem faz isso, mas acho meio complicado.

Cavaquinho e bandolim, os dois têm a mesma importância no teu fazer musical? Você tem preferência por algum? Não, não tenho preferência. Cavaquinho me acompanha mais, pelo fato de estar tocando samba todo o tempo, mas o bandolim também é importante, me abriu muitas portas.

Dessa geração mais nova, você e Robertinho [Chinês, bandolinista e cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013] são destaques, tanto no bandolim, quanto no cavaquinho. Vocês, com a pouca idade que têm, não deixam a dever aos grandes mestres, Raimundo Luiz, Juca, Paulo Trabulsi [cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 22 de dezembro de 2013] e companhia. Como é tua relação com Robertinho? Eu e Robertinho somos grandes amigos, estamos o tempo todo nos falamos. Ele tem uma grande admiração por mim e eu por ele. A gente se dá super bem, estamos sempre conversando, trocando material, a gente sempre se ajuda. Hoje ele está com meu cavaquinho, mandou fazer outro, pegou o meu emprestado. Ele me empresta coisas.

Você gosta de produzir? Gosto. Arranjar e produzir eu gosto, eu me sinto bem. Quando eu faço um arranjo, que tu pega e vai escutar, eu acho legal. Quero me qualificar para fazer mais isso.

Pra você o que é o choro? Qual a importância dessa música para a música brasileira? É superimportante. É o carro chefe da música brasileira, até por ter vindo antes do samba. O choro ajuda os músicos a pensarem um pouco mais, a querer fazer coisas mais difíceis, elaborar mais. O choro é um dos grandes gêneros da música brasileira.

Você tem acompanhado o desenvolvimento do choro no Brasil hoje, os novos nomes? Tem muita gente fazendo coisas. Tem o Messias Brito, da Bahia, grande cavaquinhista, tem o Márcio Marinho em Brasília. Tem muita gente fazendo som, os meninos do Saracotia em Recife fazendo um som bem legal. Tem muita gente se movimentando. Eu acho que aqui é que a gente está mais parado, mas acho que a música tem acontecido. O Hamilton de Holanda disse outro dia numa entrevista, que achava que o instrumental no Brasil está super bem.

Você se considera um chorão? Eu gosto de valorizar a essência do choro. Eu acho que não me considero um chorão por que eu não sou super tradicional, eu gosto do moderno. Se eu fosse falar que me considero um chorão… eu acho que não. Eu me considero um músico que toca choro.

Quais os grandes nomes do choro na tua opinião? O que tu ouve e te chama a atenção? Eu gosto muito de Hamilton de Holanda, como eu já falei, pra mim é um gênio. Gosto muito do Danilo Brito [bandolinista], Luiz Barcelos [cavaquinhista], lá do Rio de Janeiro. Gosto muito de [os cavaquinhistas] Messias Britto, Márcio Marinho.

E o choro no Maranhão, como você tem observado desde quando começou a participar das rodas até hoje? O choro aqui, naquela época em que a gente começou, estava bem forte, a gente empurrou, empurrou e começou a acontecer. Com grandes músicos, que a gente tem aqui em São Luís. Hoje em dia eu não sei o que aconteceu que o choro aqui caiu, em termos de visibilidade. Eu sempre gostei, acho superimportante acontecer mais, acho que incentivou muitos músicos como eu, Tiago, João, a crescer e a se tornar referência, não só no choro.

Não sei se você concorda, mas hoje parece haver mais gente tocando choro, mas o choro tem menor visibilidade. Como você acha que podemos resolver a equação, no sentido de uma retomada do movimento choro no Maranhão de uma forma mais organizada? Tem muita gente tocando choro, na UFMA. É isso mesmo. A gente não tem onde assistir. Eu acho que isso depende muito da gente mesmo. Hoje em dia os bares querem cada vez mais essa música que está acontecendo na noite aí. Mas se a gente, nós, chorões, nos organizássemos, ver um local para começar a se encontrar de novo, acho que a gente conseguiria fazer voltar a acontecer isso. Depende muito da organização dos próprios músicos. Eu lembro que a gente tocava na Cohab, em um bar, eu nem sabia que saía isso em jornal. A gente parou de tocar lá e o anúncio continuou no jornal com meu telefone e de vez em quando me ligavam: “onde é que vai ter chorinho?”

Chorografia do Maranhão: Zé Carlos

[O Imparcial, 10 de novembro de 2013]

Percussionista do Regional Tira-Teima, Zé Carlos, 19º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão, recebeu a chororreportagem no Bar do Léo

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Era uma tarde de sábado, véspera de uma data histórica para o choro no Maranhão. A chororreportagem encontrou Zé Carlos, percussionista do Regional Tira-Teima, no Bar do Léo, que diminuiu o volume do som do ambiente, seu museu particular, encravado no Hortomercado do Vinhais, garantindo a tranquilidade necessária para o papo e o posterior trabalho do responsável pela transcrição da entrevista – em alguns momentos de silêncio, entre perguntas e respostas, é possível ouvir as vozes de Cartola e Paulinho da Viola, que enfeitaram a conversa.

No dia seguinte (27/11), Zé Carlos, com seu grupo, subiria ao palco da Praça Nauro Machado, na Praia Grande, para a Noite do Choro, programação da 8ª. Aldeia Sesc Guajajara de Artes que reuniu, pela primeira vez, no mesmo palco, tocando simultaneamente, o Regional Tira-Teima e o Instrumental Pixinguinha, mais antigos e tradicionais grupamentos de choro em atividade no Maranhão. A noite teve ainda uma quase reedição do Recital de Música Brasileira, espetáculo em que desfilaram os talentos do violão de João Pedro Borges [violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013], o Sinhô, uma lenda viva do instrumento, e da voz de ouro de Célia Maria, diva ainda menos conhecida do que deveria, rima involuntária.

José Carlos Silva estava tranquilo e sereno e a grande responsabilidade parecia não o abalar. Nascido no Centro de São Luís – “numa maternidade que tinha ali na Rua Rio Branco” – em 5 de outubro de 1945, o percussionista é modesto, a ponto de não se considerar um percussionista. Filho de Rufina Silva, “a mãe verdadeira”, criado por Filomena Silva Freitas, “a mãe que criou”, irmã da primeira, e Raimundo Freitas, o Tibinga, comerciante de quem herdou o apelido. “Até hoje, no Monte Castelo, em alguns lugares, sou conhecido assim”, revela, ele que não se zanga com a alcunha.

Zé Carlos não bebeu durante a entrevista. Mas, elegante, dispôs-se a pagar a despesa dos chororrepórteres.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

Você morava no Centro? No Centro, se você considerar a Vila Passos. Morei em três bairros basicamente: Vila Passos, depois Monte Castelo e estou na Cohama há mais ou menos 20 anos.

Além de músico, você tem outra profissão? Sou funcionário público estadual aposentado. Trabalhei no Departamento de Estradas de Rodagem por muito tempo, mas fui me aposentar na Secretaria de Educação. Lá me aposentei em 1998.

Então hoje você se dedica integralmente à música? Eu me considero um cara que compreendo a música. Eu não sou um músico didático, um músico acadêmico. Sou um músico prático, por que eu sou curioso. Eu com 10 anos de idade, lá na Vila Passos, começava a pegar coisas, fazer minha bateria, lata velha, panela velha, caixa, e ali eu fazia minha festa.

Por falar na tua infância: como era o ambiente musical em tua família? Tinha alguém que gostava de música? Isso aí eu não sei de onde veio, essa veia, por que eu tenho uma veia musical. Eu tenho facilidade pra compreender a música, é um privilégio que eu tenho, não sei de onde veio. Eu sei onde tá a complexidade da música, a coisa bonita. Eu não misturo a beleza com a complexidade da música. Muita gente, principalmente instrumentistas, só gosta daquilo que é complexo. A música que eu gosto é aquela que me toca, não importa quem seja o autor. Eu sou um cara que gosta de Kenny G, o pessoal detesta. Eu gosto, eu choro, a música é bonita.

Você fala que começou a, com 10 anos, fazer uma bateria, uma coisa meio instintiva. Teve algum professor? Tem umas histórias depois disso. Inclusive eu toquei clarinete por algum tempo. Eu quando servi o Exército, eu lá naquele negócio, me mandaram fazer opção entre um curso e frequentar a banda de música. O coração falou mais alto, eu não pretendia fazer carreira, escolhi a banda de música. Inclusive na formatura do ano, desfilei na banda tocando clarinete. Estudei com o pai da [cantora] Alcione, o João Carlos [Nazaré, maestro]. Assim que perceberam a minha vocação pela música, contrataram um professor, me deram um clarinete e eu comecei a estudar. Depois, meu próprio ouvido me traiu. Eu como tenho essa facilidade de ouvir, de interpretar a música logo pela audição, eu abandonei logo a partitura e comecei a tocar tudo de ouvido. Quando chegou aqui o primeiro disco de [o saxofonista soprano] Saraiva, foi uma febre, tocava em todos os lugares. Eu consegui tocar todas aquelas músicas que tinha naquele disco, tudo aquilo eu tocava. Fazendo minhas serenatas por aí, arranjei um amigo que tocava sanfona de oito baixos, outro tocava violão, eu pegava minha clarineta e saíamos por aí por essas ruas da cidade. Nessa época, São Luís era um pouquinho mais atrasada do que hoje, ela não avançou muito, mas havia a possibilidade de você sair por toda a cidade, andava, sem o perigo. A gente pegava a estrada de ferro, do Monte Castelo pro João Paulo, Floresta, Madre Deus, Coroadinho, Fé em Deus, não tinha isso [violência].

Tua família incentivou, na medida em que te deu presentes. Havia alguma restrição? Não tinha restrição, tanto é que facilitaram a minha entrada nesse mundo. Pagando professor, um sargento reformado da polícia. Depois teve um outro professor, Pedro Grombell. Depois cheguei a tocar, eles organizavam ladainhas. Ele foi meu mestre, tocava violino e eu tocava clarinete com ele. Ele é pai de um grande músico, Osmaro, tocava contrabaixo.

Desse grupo que você falou, havia um nome? Não, isso tudo era farra, era festa. Saíamos sexta-feira. Éramos perdidos. Hoje eu sou um cara direito [risos].

Você falou dos brinquedos de bateria, depois do clarinete. Quando é que se dá a volta à percussão? No meio desse caminho começou a minha paixão, eu descobri que gostava de harmonia vocal e comecei a trabalhar isso ainda nessa época em que eu tocava clarinete. Eu cantava com o acordeonista, o violão, o repertório de Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano. A música era Uirapuru: “Uirapuru, ô, Uirapuru” [cantarola]. Essa música era vocalizada…

Na linha do Tonga Trio? O Tonga Trio começou a partir daí, mas antes de chegar no Tonga Trio, quando eu saí desse grupo, alguma coisa não deu certo, se dispersou. Aí eu conheci algumas pessoas, trabalhavam no departamento [o Departamento de Estradas de Rodagem, de que era funcionário], [o cantor José Leonardo Gonçalves, o Léo] Spirro e Jorge Barros, que vocês não conheceram. Eles fizeram a dupla Ponto e Vírgula, que era Jorge Barros e Othon Santos, e nesse grupo eu entrei, no JB Trio, eu, Othon Santos e Jorge Barros. Nessa época, a gente em época de eleição, a gente ficava no estúdio. Outro dia alguém falando sobre o Sampaio Correia, a gente que gravou o Hino do Sampaio Correia. Eu, Mascote, os filhos de Mascote.

Mascote é muito falado por todo mundo. Através dele, inclusive, é que conheci outros vocalistas aqui. Nós fizemos o Samba Cinco, um grupo vocal instrumental. Os componentes eram os seguintes: eu, Spirro, Mascote [o violonista e percussionista Antonio Sales Sodré], Luiz Sampaio e Marcelo Carvalho, que tocava uma pianola, era bem novo, mas já tocava bem. Luiz Sampaio tocava aquele contrabaixo guarda roupa, Mascote tocava violão, Spirro tocava tarol e timbau, ficava bonito. Fazíamos vocal com quatro vozes.

Essa história do vocal, que vocês fizeram aqui e fizeram sucesso, pelo que nos disseram. Quais eram os grupos referência para vocês no cenário nacional? Eram Os Cariocas, o MPB-4 já existia, era referência também.

Isso era em que ano? Anos 1970, começo de 70. Interessante é que na nossa época, a gente não tinha nada. Hoje em dia eu vejo a preocupação de guardar fotografia, se perdeu, ninguém ligava pra isso. Tinha [o colunista social] Evaldo Melo, onde a gente tocava ele estava fotografando. Hoje não tem nada, se perdeu tudo. Nós éramos um trio que tocava em festas, eu me lembro duma etapa do [concurso] Miss Brasil, a escolha da representante do Maranhão no Lítero [o Grêmio Lítero Recreativo Português], não lembro se essa festa era feita aqui por [as colunistas sociais] Maria Inês Saboia ou se era Flor de Lis. O Tonga Trio entrava lá e era atração daquela festa, eu, [o violonista] Hilton Assunção e Spirro.

Além de Tonga Trio, JB, Tira-Teima, teve algum outro grupo? Sim, eu te falei do Samba Cinco, que era um grupo vocal com quatro vozes, difícil. Com três é fácil, com quatro você já tem que usar dissonâncias. Depois disso, que o grupo acabou, já muitos anos depois… [interrompe-se, exclamando:] Ah, rapaz, eu trabalhei também no [hotel] Quatro Rodas, passei uns quatro anos, depois Hotel São Francisco, eu trabalhei em todos os hotéis de São Luís, até com [o multi-instrumentista] Zé Hemetério.

Teve alguma fase em que você viveu de música? A música é pano de fundo da minha vida, em toda a minha trajetória de vida a música sempre esteve presente. Eu tentei tocar cavaquinho, isso eu não aprendi, antes de Zeca Buiú [Zeca do Cavaco, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 21 de julho de 2013] – ó, Zeca, tu é Buiú mesmo! [ri, mandando um recado ao colega de grupo] –, mas ele levou a sério a coisa. Tentei tocar contrabaixo, não consegui, também não levei a sério. Depois eu digo que o mais fácil mesmo, tocar tambor. Foi aí que eu comecei a tocar timba. No início do Regional Tira-Teima, na segunda formação, que a primeira formação é a de Ubiratan [Sousa, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013] e companhia.

Você chegou a tocar na primeira formação? Não, que eu sou muito novo [gargalhadas]. Só Paulo [Trabulsi, cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 22 de dezembro de 2013], que fez uma viagem interplantetária, todo mundo envelheceu e ele continua novo [risos]. No Tira-Teima, eu tocava timba. Essa timba, tinha uma resistência. O cara que adotava, gostava da minha timba, era Gordo Elinaldo [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 27 de outubro de 2013]. Ele achava que a timba era uma marca da gente. Mas havia uma resistência: “não, rapaz, tu tens que tocar pandeiro”. Eu pra não sair do grupo, pra não ser dispensado, aí eu peguei pandeiro. Nem sabia pra que lado era, mas eu tenho facilidade pra percussão. Não sou percussionista por que não tive oportunidade. Percussionista é um negócio terrível, bateria, é aquela porção de coisa. Se eu fosse músico, levando a sério mesmo, eu tinha que tocar gaita: terminou ali, botou no bolso [risos]. Essa minha percussãozinha já dá um trabalho.

Quem te ensinou a tocar pandeiro? Aprendi sozinho. A princípio pegava um livro, comecei a fazer os movimentos. Eu queria aprender pandeiro, mas aprender corretamente. Depois internet. Hoje eu toco pandeiro por que fui assistindo vídeos, procurando vídeos, grandes pandeiristas, Jorginho do Pandeiro, mas eu tenho outras referências.

Quem são tuas referências? Tem um cara que eu admiro demais, o Léo Ribeiro. São dois Léos, um toca clarinete, o pandeirista é Léo Ribeiro. Marcos Suzano também é muito bom, mas o cara que eu procuro copiar não é ele. Léo Ribeiro é um cara novo ainda.

Você lembra em que ano entrou no Tira-Teima? Como pintou o convite? Não lembro. Eu já tocava, eu conheci o Paulo, músicos se conhecem, tocam num lugar, aquele entrosamento, as pessoas vão se conhecendo. E Paulo me convidou pra tocar com Anna Cláudia [cantora paraense radicada no Maranhão, ex-esposa de Paulo Trabulsi]. Nós tocamos por muitos anos, fazendo principalmente restaurantes. E a partir daí, criamos amizade e resolveram reestruturar o Tira-Teima e eu estava lá.

Eu já te vi tocando algumas vezes com a turma da nova geração. Como é essa relação? É boa. Essa turma está escrevendo [partitura] inclusive. Eu acho o seguinte: eu te falei ainda agora que eu sou um músico prático. É besteira você pensar que só aquele músico que lê partitura ele é capaz, ele é o tal. Às vezes é preciso, facilita. Uma hora seu ouvido manda fazer uma coisa, seu coração manda fazer outra, e como é que fica isso? Eles estão escrevendo com facilidade. Você vê Wendell [Cosme, cavaquinhista e bandolinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 24 de novembro de 2013], o próprio Robertinho [Chinês, cavaquinhista e bandolinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013], João Eudes [violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 16 de fevereiro de 2014]. Esse pessoal está aí, está estudando.

Além de instrumentista, você desenvolve alguma outra habilidade na música? Não. Eu me atrevo a fazer arranjo. Outro dia estávamos tentando organizar um grupo, eu, [o multi-instrumentista Arlindo] Pipiu, Spirro, eu me atrevi a fazer um arranjo para quatro vozes. Eu sou perseverante, quando eu quero fazer uma coisa, eu luto, luto, e consegui.

E o canto? É outra coisa. Antes eu quero dizer o seguinte: atualmente, todo mundo que tem algum sentimento musical pode cantar. Não adianta você dizer “não, eu não consigo cantar”. Atualmente você tem ferramentas que dão condições, a chamada técnica vocal. Qualquer pessoa. Vocês já cantaram alguma vez? Não? Fala a verdade!

Em casa, no banheiro, em farras. Melhora muito, muito, a partir de começar a fazer os exercícios, vocalização. Cantar hoje você aprende. Eu tou vendo esses atores e atrizes globais, de vez em quando partindo pra cantar e cantando bem. “Ah, fulano canta? Canta!”. Eu, pelo fato de ter trabalhado muito, forçando, fazendo vocal sem nenhuma técnica, fumando, bebendo, eu perdi.

Das vezes em que te vi cantando no Clube do Choro [Recebe] gostei do resultado. É algo que você faz pouco. Por que você não canta mais? Por que eu não confio. Olha, eu tenho uma autocrítica. Eu critico a mim mesmo, por que eu não posso falar do meu amigo? Embora algumas pessoas digam “Zé Carlos, tu tem condição de cantar”, eu sei que eu não tenho. Além disso, ainda tem o negócio de decorar letra, como é que eu vou cantar todo tempo com uma coisa na minha frente? Se um vento der, eu perco? Tem isso, e minha voz… agora eu tou fazendo uns exercícios vocais, eu acho que já dá pra sair alguma coisa.

De quantas gravações de discos você já participou? Memórias [Memória – Música no Maranhão, antologia com vários intérpretes registrando a obra de compositores do Maranhão, em que Zé Carlos canta Zuza, de João de Deus, faixa que abre o disco], uma faixa, e o disco de seu Antonio Vieira [compositor]. Acho que não tem outro. No Antoniologia [disco produzido por Adelino Valente, seleção de composições de Antonio Vieira nas vozes de vários intérpretes] eu canto a música Ê saudade.

Você acha que o choro é uma música meramente instrumental ou ela pode ser também cantada? Há uma polêmica sobre isso. Tem o compositor de um tipo de música e tem o compositor de choro. O compositor de um tipo de música, boa música, ele faz a música, ele compõe, pensando em como vai ser o resultado daquele disco, como vai vender, pensa no lado comercial da coisa, pensa em agradar uma camada, pensa em vender milhões. Ele é diferente do compositor do choro: ele não compõe para o público, se você pensar, ele compõe para o outro músico. Quando faz o trabalho dele, seguramente, ele está pensando em levar o trabalho dele para o colega dele. Ele não pensa em vender esse disco. É a minha maneira de ver, o compositor do choro é diferente, ele faz o choro pensando no outro músico. Se outro músico diz, “poxa, tá legal”, ele tá realizado.

Você gosta de choro cantado? Tanto faz. Tem choro cantado bonito.

Quais são as tuas principais referências no campo do choro? Você falou há pouco no campo da percussão. Eu gosto de tudo o que é bom. Gosto de tudo o que me agrada. Encontro coisas que me agradam em todos os segmentos.

Mas quem são os compositores e instrumentistas de choro que te chamam mais a atenção? Quem lida com choro, o primeiro nome que vem à cabeça é o de Pixinguinha. Jacob do Bandolim. Eu não penso diferente, as minhas referências são essas.

Você tem acompanhado essa nova geração do choro no Brasil? Quem são os nomes dessa nova geração que têm te chamado a atenção? O que eu acho é o seguinte: Brasília tem um movimento muito forte nesse mundo do choro. Eles estão lançando muita gente. Você vê um Hamilton de Holanda [bandolinista], um cara desses. E não é só ele, muita gente igual a ele, Danilo Brito [bandolinista], rapaz, tem uma gente por aí, que tá tocando principalmente bandolim, Pedro Vasconcelos, no cavaco. Estão estudando, levando a sério.

Quais são os meios que você usa para acompanhar essa cena? Internet? Compra de discos? Internet. Não, eu não compro discos. Chorinhos e Chorões [programa dominical dedicado ao choro apresentado por Ricarte Almeida Santos há mais de 20 anos, sempre às 9h, na Rádio Universidade FM] eu ouço toda vez, vocês é que não sabem [risos]. Música é o meu gosto.

Como você está vendo o choro no Maranhão? Essa gurizada que está surgindo. Eu gosto, mas parece que parou. Eu não estou vendo articulação nenhuma. Há um desestímulo, você olha pra um lado, olha pra outro, se sente só, parece que está fazendo as coisas sozinho.

Em que pé está o disco do Tira-Teima? Os arranjos estão prontos, os arranjos encomendados para Ubiratan [Sousa] já foram entregues. Por enquanto quem está entrando em estúdio é Zeca [do Cavaco], pra fazer as bases.

Isso quer dizer que o repertório está definido, obviamente. É todo autoral? Tem três músicas nossas, mas são músicas daqui da região, de compositores daqui.

Entre instrumentais e cantadas? Sim. Está sendo gravado no estúdio de Gordo [Elinaldo].

Você se considera um chorão? A música que eu escuto hoje é só choro. Sim, eu sou um chorão.

Que recado você deixaria para os chorões, os mais novos e os mais velhos? O preço da perfeição é a repetição, o cansaço, você repetir exaustivamente. Se você repetir, você aprende.

Chorografia do Maranhão: Gordo Elinaldo

[O Imparcial, 27 de outubro de 2013]

Nascido, criado e formado no choro entre os bairros da Madre Deus e Monte Castelo, Gordo Elinaldo é o 18º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

A entrevista com Gordo Elinaldo já havia sido marcada ao menos duas vezes. Em uma foi reagendada por incompatibilidade entre as agendas do músico e dos chororrepórteres; na segunda, teve que ser suspensa por conta do clima de pânico instaurado na cidade – o que incluiu uma “greve” relâmpago do sistema de transporte público, após uma sangrenta rebelião na Penitenciária de Pedrinhas.

Trabalhador da música, Elinaldo de Oliveira Silva mora na rua 1º. de Maio, no Monte Castelo, subindo a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, mesmo endereço em que mantém seu estúdio, onde recebeu a chororreportagem. “Isto aqui não vai tomar muito tempo”, advertiu o músico a um técnico que chegou por lá durante a conversa. Longe de traduzir qualquer desdém, a fala do músico dá ideia de sua imersão workaholic quando o assunto é música.

Nascido em 28 de agosto de 1966 em São José de Ribamar, Gordo Elinaldo é multi-instrumentista – além do violão sete cordas pelo qual é mais conhecido, toca violão, cavaquinho, banjo e percussão, entre outros –, arranjador, compositor, diretor e produtor.

Filho de Eliezer Adauto Costa Pereira da Silva, ex-vereador de São Luís por várias legislaturas, e de Maria das Dores de Oliveira Silva, Gordo Elinaldo presenteou os chororrepórteres com uma audição em primeira mão de seu disco de estreia, que pretende lançar ainda em 2013, com a ideia de levá-lo a escolas públicas, difundindo a música instrumental produzida no Maranhão. Ele assina as 10 faixas, incluindo Tributo a Zé Hemetério, faixa já gravada em Na palma da mão, disco do grupo Serrinha & Cia, com a participação especial do Regional Tira-Teima. O homenageado foi seu primeiro professor e é um dos nomes lembrados na entrevista que ele concedeu à Chorografia do Maranhão.

Foto: Rivanio Almeida Santos

Você tem essas lembranças de mais ou menos com que idade [referindo-se ao avô, Joaquim Pessoa de Oliveira, músico de quem Gordo Elinaldo começou a falar antes do início da entrevista e a quem dedica Doce lembrança, valsa gravada em seu disco de estreia, a ser lançado ainda em 2013 Update exclusivo do blogue: o disco não saiu]? Coisa de sete, oito anos de idade. 10 anos. Era o único músico que eu via pegar em instrumento ainda criança. Eu sabia que ali tinha uma alma, uma vida, um sentimento, ele já velhinho, quase sem forças. Eu compreendi o que ele queria fazer com aquele violão, aquela rabeca.

Foi a partir de ver teu avô que você sentiu vontade de se dedicar à música? Foi. Eu tenho um irmão que aprendeu primeiro do que eu, César, e ele é solista. Ele ouvia o disco, tirava, mas não tinha quem ensinasse. Até que uma vez passou o mestre Zé Hemetério aqui na porta. Aí eu disse: “César, esse é o Zé Hemetério, fala com ele, vê se ele ensina a gente alguma coisa”. E ele: “Zé Hemetério toca violino, será que ele conhece esse negócio de chorinho?”. E ele já vinha festejando, era final de semana, já vinha tomando umas brahmas [risos]. Chegamos lá, Zé Hemetério conhecia tudo, sabia tudo, e começou a passar os choros de Waldir Azevedo, de Jacob [do Bandolim], os choros que ele tocava pra César, quando ele disse: “e tu, meu filho? Vai ficar só olhando teu irmão aprender?” Eu disse: “não, minha parte eu já sei, é só a dele que tá faltando”, eu metido [risos]. Conversa fiada! Faltava coisa pra danar. E ele disse: “então me mostra aí”. César tocava, aprendendo, eu ia atrás do jeito que eu tinha ouvido no disco, do meu jeito, e ele disse: “olha, tá quase bom. Não tá bom, mas vai ficar”. Aí a gente começou a frequentar as aulas de Zé Hemetério, às tardes, quando ele podia. Ele botava discos, a gente sentava ali na sala. Depois eu passei a levar a sério o estudo, passei por métodos de música, segui em frente estudando música, sete cordas. Logo depois eu passei a ir pra festas com ele, aniversários, casamentos, ele era muito solicitado na época, as famílias, no Calhau, o grande bairro da época.

Foi teu primeiro professor? Foi o primeiro. Depois eu saí, pra fazer conservatório em Brasília, Recife, andei estudando muito ainda, mas o começo foi lá com ele, toda a base, a história do choro. Depois eu tive que seguir outros caminhos, a gente faz da música nosso meio de sobrevivência.

Além de teu avô e teu irmão, quem mais na tua família… Não, não tinha mais ninguém. Eu tinha um pai que cantava muito bem. Não deixa de ser música. Era um seresteiro, gostava daquelas histórias ao luar.

Então se ouvia muita música na tua casa. Muita. Eu acordava ouvindo música. Eu achava o maior barato. Aquelas músicas bonitas, Nelson Gonçalves. Hoje eu fico puto quando acordo com forró, fico indignado.

A tua moradia era aqui? Era. Depois, primeiro casamento mais em frente, na mesma rua, segundo casamento Madre Deus, terceiro de volta ao quadrado [Gordo Elinaldo mora na mesma casa que pertenceu a seu pai].

Teve incentivo da família para seguir esse caminho musical? Muito pouco. Eu tinha que fazer uma faculdade de artes, por que eu gostava de desenhar, tinha muito talento. Aquele quadro não fui eu quem pintou, foi meu irmão César, mas a gente era bem parecido na arte [levanta e vai buscar um quadro com temas musicais em cores vibrantes, lembrando um pouco o estilo de Romero Brito]. Esse aqui foi um dos quadros que ele pintou, me deu de presente. Não deu para seguir. Aí foi quando abri o olho, a música entrou muito forte, foi derrubando tudo. E a música requer muito estudo, um tempo exclusivo para você aprender, saber o que é.

Como você se definiu pelo [violão] sete cordas? Foi rápido. Assim que eu comecei a estudar com [] Hemetério, quando eu pegava o violão [de seis cordas] eu já sentia falta de alguma coisa. O cara fazia no disco, eu tentava e não conseguia, “ah, não, tá faltando alguma coisa”. Aí pintou o primeiro sete cordas na Mesbla [extinta loja de departamentos], um Di Giorgio, ô, maravilha! Quando eu peguei aquele violão, que o disco fazia, eu fazia, ô, satisfação! Aí o cara que acompanhava Waldir Azevedo, bêi, ele caía na sétima, eu junto com ele, bêi [imita o som da bordoada com a boca], de ouvido. A gente passou a se reunir, tinha uma reunião muito boa de músicos ali na Raimundo Correia [rua no Monte Castelo], 30 músicos, 40 músicos, todos os domingos, só chorões.

Ainda há pouco você falou em uma faculdade de artes. É, eu ia. Mas não deu. A música veio muito forte, era quase uma cegueira.

Você sempre viveu de música? Nunca teve outra profissão? Não. Olha, meu pai era vereador, eu passei muito tempo, vereador tinha 10 assessorias, eu tinha uma dessas. Vivia também de música, gostava da música, depois ela virou profissão. Eu levei a sério, papai, mamãe começaram a esculhambar, meu irmão, sério, engenheiro, “não tem futuro, vai largar teus estudos”, e eu “quem não tem futuro é tu como engenheiro” [risos]. “Rapaz, será? Pensa bem”.

Hoje você vive de música? Hoje eu vivo de música, não tem dúvida. Vivo muito bem, satisfeito. Hoje eu sou um profissional realizado. Talvez não financeiramente, mas profissionalmente. Já rodei o mundo todo com minha música, já rodei os quatro cantos do mundo, tocando banjo, cavaquinho, violão. Só com o Barrica eu já fiz 18 viagens internacionais, China, Japão, Coreia, a Europa inteira. O que me dá prazer é isso aqui, isso aqui é meu orgasmo [bota novamente faixas de seu disco para tocar]. A minha obra tocada do jeito que eu quero. Arranjos que eu faço pra gravar, pra Barrica, pra Bicho Terra, eu faço pro gosto deles. Aqui não, eu faço pra mim. Como eu pensei, como eu gostaria de ouvir.

Esse é teu primeiro disco solo? Autoral, é. Acho inclusive que é o primeiro do Maranhão. Autoral de um só compositor, né?

Como ele vai se chamar? A princípio, o projeto era chamar A arte de Gordo Elinaldo. Pela diversidade dos instrumentos que eu domino, principalmente do choro. Se eu me colocar pra tocar um pandeiro de choro, eu toco, surdo eu toco, cavaquinho, sete cordas, violão seis cordas. No começo, a primeira ideia, era eu fazer um disco sozinho, eu tocando tudo, Gordo e Gordo. Mas depois eu consegui um apoio da lei de incentivo [Lei Estadual de Incentivo à Cultura], que o disco pegou uma dimensão, cresceu, vieram novas ideias. Digo, pô, por que eu não boto a nata do choro pra tocar comigo, minhas músicas?

Quem está contigo nele? Quem vai estar, por que ainda falta muita gente pra gravar. Quatro cavaquinhos: Paulo Trabulsi [cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 22 de dezembro de 2013], Juca [do Cavaco, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 13 de abril de 2014], Robertinho [Chinês, bandolinista e cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013] e Biné [Gomes, vulgo do Cavaco]. Aí vem, de sopro, de palheta, o sax, Zequinha [Gomes, vulgo Zequinha do Sax, irmão de Biné], os flautistas, vem Serra [de Almeida, flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013] e o Zezé [Alves, flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013]. Bandolim: Adelino [Valente], Wendell [Cosme, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 24 de novembro de 2013] e o outro, César Jansen. É um time pesado, um time bom.

Uma grande representatividade. Antes do Tira-Teima você integrou algum outro grupo? Eu tinha um grupo com meu irmão, mas não era um grupo de choro. Era um grupo de forró, foi quando eu conheci Paulo Trabulsi em Nina Rodrigues. Nós tocávamos forró. Forrozinho, baiãozinho, pé de serra. Era um violão, um cavaquinho e um pandeiro. Antes de começar a festa, pro pessoal dançar, a gente fazia o chorinho.

Como chamava esse grupo? GMax. A gente tocava aqui e viajava muito, Itapecuru, Nina Rodrigues, Vargem Grande. Era um regional, não era uma banda. Éramos eu, meu irmão, César, outro irmão no atabaque, Belmonte, Marciano da Madre Deus, que tocava bongô e pandeiro, e Renê, que fazia um ganzazinho.

Isso era que ano? Coisa de 1982, 81.

E o Tira-Teima, quando aparece? O Tira-Teima, na primeira versão, de Ubiratan [Sousa, violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013], eu já ouvia falar. Depois, o Tira-Teima me aparece pela primeira vez depois daquelas rodas na Raimundo Correia. Quando eu cheguei lá, tanto Paulo, como Juca, como Biné, os três tinham seu repertório de choro. O repertório de Hemetério era tão grande, que com ele eu acabei me preparando para os três simultaneamente. O repertório dos três estava debaixo de meus dedos. Não demorou muito eu recebi um convite. Serra tocava no Quatro Rodas [extinto hotel], com [o violonista] Luiz Sampaio e Juca. Paulo me parece que não tocava profissionalmente na noite. Zeca [do Cavaco, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 21 de julho de 2013] já veio de outra turma, da Vila Passos, mais do samba, Solano [Francisco Solano, violão sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 26 de maio de 2013], já é do Mascote [o violonista e pandeirista Antonio Sales Sodré], é outra linha. Foi legal. Paulo é o nome que ainda resta daquele time fantástico, [o compositor] Antonio Vieira, Ubiratan Sousa, [o compositor] Cesar Teixeira, Adelino Valente, uma turma pesada.

Fora Tira-Teima, Barrica, Bicho Terra e GMax, algum outro grupo de que você fez parte? Eu fiz, eu fiz um grupo de samba aqui, chamado Zeca Diabo e seus Diabinhos. Era eu, Zeca do Cavaco. Era pagode pra todo lado, mas a gente não queria tocar pagode, a gente queria tocar samba, embora eu ache que samba é pagode e pagode é samba, tudo é dois por quatro. Mas tem gente que “não, isso é samba de raiz”. Nós fizemos um grupo pra tocar esse tipo de samba, que chamavam samba de raiz. Aí não sei quem deu a ideia, “bota Zeca Diabo e seus Diabinhos”, olha os diabinhos: [os percussionistas] Josemar, Caju, Sabujá, só fera. Não deu certo. Como não deu certo, eu fiquei com a banda. Tava no auge o negócio do pagode aqui, [o cantor] Serrinha saiu do [grupo] Magia, e eu não queria ficar com aquele projeto parado. Aí eu chamei Serrinha pra compor comigo o [grupo] Serrinha & Cia.

Qual era a formação do Serrinha & Cia.? Era eu, Serrinha, Josemar, Caju e Sabujá. Quando nós gravamos aquele disco [Na palma da mão], que [o cantor] Jorge Aragão veio participar, ele vinha muito no Maranhão, ele levou a gente pro hotel, eu dei uma força, de carro, leva Jorge aqui, leva acolá, eu era cunhado de [o produtor cultural Antonio Carlos] Tote, foi através dele que chegamos a Jorge Aragão. Ele não tinha essa fama toda, veio a ideia de pedir uma música pra ele, estávamos fazendo o primeiro disco. Ele disse: “rapaz, eu tenho uma, eu fiz pra Beth Carvalho” [cantarola trechos de Uns e Alguns, faixa cujo refrão “na palma da mão” dá nome ao disco]. O movimento do samba em São Luís, eu lembro, A Máquina de Descascar’Alho eram cinco mil pessoas, todo mundo na palma da mão, a música é essa. Ele gravou, Serrinha gravou depois, montamos, fizemos um grande disco, vendeu demais, mas aí a gente não teve cabeça. Nós não tivemos cabeça, capacidade, estrutura, pra lidar com aquele sucesso imediato. Não levamos pra frente. E nem eu conseguia conciliar o Barrica, eu já tinha um sentimento muito forte pelo grupo, com o pagode. O que me fascinava era que era um trabalho autoral. A gente cantava na praia, os pagodes dos outros, depois chegava no Ceprama pra fazer o show com o Bicho Terra, fazendo sua própria música, a multidão delirando com a gente. Éramos os reis, mas descia do palco, ninguém nem te conhecia. Não conseguíamos apoio pra disco, pra nada.

Você tem catalogadas todas as suas músicas? Sabe quantas músicas você já compôs? 40. 41. Gravadas tem umas 15. 10 nesse disco. A maioria choros. Arranjos eu tenho espalhado por aí um monte: Bicho Terra, Barrica, Turma do Quinto, Isaac [Barros], Serrinha & Cia. Feras, bloco tradicional, Vagabundos do Jegue eu fiz todos os discos, praticamente todos os arranjos.

Você pretende com este disco que ele tenha uma vida, no sentido de show de lançamento, temporada, ou é só um registro? Não, é só um registro, inclusive nem tem caráter comercial. O disco vai ser distribuído em escolas, vamos falar sobre o disco em escolas públicas. Vamos ver o que a gente pode fazer para melhorar a vida social desse povo sofrido, que a gente tá vendo o resultado aí na criminalidade.

Ainda faltam coisas pra gravar e a ideia é lançá-lo ainda em 2013, ou seja, ainda está em processo. Mas dado o fato de ter mais de 40 músicas, você já consegue pensar num segundo volume? A ideia é lançar no final de outubro. Com certeza! Isso aí é o que eu mais gosto, é dessas 10. São o xodó. Mas com certeza virão outras, vou fazer outro disco. O próximo eu vou fazer só, o que era o projeto original, eu tocando tudo, do pandeiro ao cavaquinho centro. Isso vai ser muito bom pra cidade, vai estimular os chorões, Serra, por exemplo, vai voltar a tocar. E saber que é um trabalho autoral, e é nosso! Passamos a vida inteira tocando Jacob, não que a gente queira se comparar, mas nós temos uma identidade própria superimportante.

Com essa sua agenda intensa de viagem, Barrica, arranjo, disco, estúdio, parece não estar sobrando tempo para uma vivência que você já teve no passado, das rodas. Dá saudade? Como você lida com isso? Faz falta. Mas eu voltei. Estou me encontrando com Paulo, Serra, Zeca, Solano, [o violonista sete cordas] João Eudes [violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 16 de fevereiro de 2014], todos os domingos. Inclusive a gente está se preparando para gravar o disco do Tira-Teima. Vai ser produzido e gravado aqui, sob minha direção, vai ser um disco fantástico, a hora é essa. Chega uma hora, o momento agora é “peraí, cara, agora eu também quero dar uma respirada”. Já corri muita praia, já lutei muito, se chega num ponto, daqui eu não vou passar. Não vou ganhar mais dinheiro do que isso, não vou ficar mais pobre do que isso. Agora eu vou curtir, vou parar, vou viver. Vou tocar aquilo que eu gosto, aquilo que eu quero. Lógico, a gente faz da música nosso meio de sobrevivência, mas eu também sinto prazer, não é pra me transformar num robô. É botar isso aqui [coloca novamente trechos do disco para tocar], vocês podem achar que o som está muito feio [os chororrepórteres discordam], mas pra mim isso aqui tá lindo, é minha alma que tá aí. Isso é que é importante.

Você tem noção de quantas participações você já fez em discos? Não tenho. São muitos. Assim como já acompanhei muita gente em shows. Eu lamento não poder contar nesse disco com um grande amigo que eu tive em Brasília: [o flautista] Carlos Poyares. Aquele homem quando soprava naquela flauta matava a raiva de qualquer um. Era uma coisa maravilhosa.

Pra você, o que é o choro? Qual a importância dessa música para o Brasil? Antigamente era assim, na minha ótica, na minha leitura, no meu pensamento: o que é o choro? É um instrumentista que domina certo instrumento, que ele transforma todo sentimento dele através daquelas notas dadas uma após a outra, o conceito técnico de melodia. Pra mim é isso, ele consegue passar aquela beleza. Nós temos isso, o Jacob, as músicas não têm uma letra, mas a gente consegue sentir o que está se passando na alma do cara, ler o coração, o pensamento, o que ele está sentindo, o que ele passa pra gente e o que a gente passa a sentir ao ouvi-lo. Não adianta ser um chorão, “ah, eu quero ser o Jacob”, tocar com uma velocidade, tem que ter o sentimento. Eu conheço gente que plim plim plim plim plim [imita um dedilhado veloz com a boca]: aquilo não se sente nada. Mas eu tenho que chegar e dizer “como tu é bom, estudou, evoluiu bastante, tá muito veloz”. Mas eu não tenho coragem de chegar e dizer: “mas eu não senti nada”.

Você se considera um chorão? Eu não. Eu me considero um clínico geral. Eu também sou um amante do bumba boi, do carnaval, eu adoro carnaval, nossos ritmos. E adoro choro. Choro é uma coisa que me arrepia todo.

Quem te chama a atenção na nova geração do choro no Brasil? Eu gosto muito do rapaz do bandolim, o Hamilton de Holanda. Ele tem a velocidade, tem a execução, tem a beleza e tem o sentimento. É impressionante! Fantástico, gosto demais dele. Tem um bandolinista em Brasília, presidente do Clube do Choro, o Reco [do Bandolim], também gosto, mas como Hamilton…

E do violão? Tem um violonista em São Paulo que eu gosto muito dele, na linha do choro, do samba, Edmilson Capelupi. Eu gosto demais, admiro muito.

Como você avalia o choro hoje no Maranhão? Acho que cresceu bastante, acho que o movimento está bem. A gente vai aos lugares, vê a turma tocando. Tem Wendell ali, Robertinho, Juca, Paulo, melhorou bastante. João Eudes, falando dos solistas. Maicko, meu sobrinho, sete cordas, está no samba, mas também curte o choro. Solano, o tempo todo estudando, se dedicando.

Você acha que o choro aqui deve ser tocado com a influência da cultura popular daqui, como o é em Pernambuco? Eu acho que pode. Por exemplo, eu tou botando aí uns agogôs com umas células de bloco tradicional. Eu acho legal. Deixa seguir. Tou botando uma cabaça [imita o som dos instrumentos percussivos com a boca]. Quanto mais maranhense, melhor pra gente.

Chorografia do Maranhão: Wanderson

[O Imparcial, 13 de outubro de 2013]

Dos ritmos da cultura popular do Maranhão ao choro, o passeio desenvolto do percussionista Wanderson, 17º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Wanderson dos Santos Silva iniciou sua trajetória artística no bumba meu boi mirim Capricho Sesiano, organizado por Dona Laura, professora de artes das unidades Lara Ribas e Ana Adelaide Belo do Serviço Social da Indústria, popularmente conhecidas como Sesi do Santa Cruz e Sesi da Alemanha.

Nascido em 11 de abril de 1980 na Maternidade Benedito Leite e criado por perto do primeiro, o percussionista até hoje mora no Conjunto Radional. Filho de Silvio Matos da Silva, farmacêutico falecido, e Maria Ribamar dos Santos da Silva, cabelereira, Wanderson seguiu as trilhas percussivas: do Capricho Sesiano passou ao Barrica, em paralelo aos estudos e ao esporte – chegou a disputar várias edições dos Jogos Escolares Maranhenses e formou-se em Administração.

Membro do Regional Chorando Calado, grupo que integrava o cardápio musical do Bar e Restaurante Chico Canhoto à época do Clube do Choro Recebe, o músico hoje se orgulha de já ter tocado com quase todos os chorões da cidade.

Professor da Banda do Bom Menino do Convento das Mercês, atualmente Wanderson está em estúdio, gravando um disco instrumental autoral, um passeio por toda sua formação musical, o que inclui bumba meu boi, tambor de crioula, tambor de mina e choro – um pé na modernidade sem tirar o outro da tradição. Ele conversou com a chororreportagem no Chico Discos, antes de seguir para o Teatro Arthur Azevedo, onde seu set percussivo já estava montado para mais um show de sua agenda.

Foto: Rivanio Almeida Santos

Como era a vivência musical na tua casa, na tua infância? Geralmente era aos fins de semana, meu pai só descansava aos domingos, então ele botava o som o dia todo para tocar. Eu escutava Altemar Dutra, essas músicas mais ou menos dessa época, Roberto Carlos.

Ele comprava discos? Comprava discos, cds, k7s. Até hoje eu guardo, tenho comigo.

Que outras vivências musicais você tinha? Em casa, praticamente foi assim, influências também de meus irmãos mais velhos, que eram quem botavam o som na época, tipo Titãs. Meu outro irmão que escutava bastante samba, por incrível que pareça, hoje é evangélico e não escuta mais nada. Eu via a turma de meus irmãos tocando. Lá onde eu moro a influência musical é praticamente zero.

Mas eles tocavam instrumentos? Brincavam de tocar percussão, atabaques, faziam aquela rodinha de samba.

Daí veio a tua vontade de aprender a tocar percussão? Também teve aquela influência da escola. Por volta da terceira série, por aí assim, eu cantei no Capricho Sesiano [grupo de bumba meu boi formado por alunos do Serviço Social da Indústria – Sesi]. Cantei lá, toquei durante uns três anos seguidos, Moça Laura [professora de artes], chegamos até a viajar para Belém.

Como você escolheu o estudo da percussão? Por volta de 14 anos de idade comecei a me interessar por tocar. Eu sempre escutei bastante música regional, bastante boi, sempre gostei de boi, das músicas daqui da região. Eu tinha uma irmã, Darlene, ela pegou e me levou pra Madre Deus. A gente foi, digamos assim, beber da fonte. Eu quero aprender, eu vou na Madre Deus, naquela época era assim, os melhores percussionistas tocavam na Madre Deus. Peguei minha mochila e fui com ela. Fui fazer o teste para o Bicho Terra, não era aquele alvoroço que é hoje, a gente ainda tocava como bloco tradicional, na rua. Fiz o teste e fiquei. De lá comecei a ter as influências de ritmo, comecei a pesquisar, ir pra Madre Deus, estudar percussão. Por volta de 1994, 95, por aí assim. Ainda não tinha nem projeto Viva [de revitalização e construção de praças em diversos bairros da capital] nem nada.

Você não chegou a buscar outra profissão? Na época eu fazia assim: eu tive influências também, depois, de canto coral. Eu cantei três anos no [Coral] Lilah Lisboa, de Chico Pinheiro [professor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo e membro das bandas da Companhia Barrica e Bicho Terra]. E paralelamente, na escola, eu fazia esportes. Normal, jogava basquete, JEMs [os Jogos Escolares Maranhenses], essas coisas tudinho. Mas sempre paralelo com o estudo da música. Em 2001, 2000 eu já fui trabalhar de auxiliar administrativo, no Laboratório Salomão Fiquene, aí eu saía de lá, quando era época de São João eu ia tocar, época de coral eu ia pro coral, era tudo ali perto, o coral era na São Pantaleão, o laboratório era no Apicum.

Você sempre recebeu apoio da família, da mãe, do pai, para trilhar o caminho da música? No começo foi difícil. Minha mãe ela queria que eu estudasse, como toda mãe, estudar, fazer vestibular. Meu grande passo para a música foi depois do falecimento de meu pai. Meus irmãos viram e disseram “vamos pra cá!”, por volta de 96, quando eu entrei na Escola de Música.

Quando você cita o falecimento de seu pai, ele era o mais radicalmente contra? Não. Ele era a favor de tudo. A mãe que geralmente era “não, é pra estudar”. Fazia parte de tudo, mas não podia largar o estudo. Por exemplo: se fosse pedir um livro de música, aí era difícil ela entender, hoje a gente já tem como garantir.

Antes da Escola de Música você já tocava profissionalmente? Eu tocava com o Barrica. Toquei com o Barrica 15 anos, cheguei novinho lá.

Que instrumentos você tocava lá? Todos os instrumentos de ritmo regional. Eu entrei pra tocar no Bicho Terra. De lá fiz um teste e passei pro Barrica. Eu fui o primeiro a ser de fora da Madre Deus a entrar pro grupo, de percussão. Era só gente do meio. Dessa forma foi que eu procurei a Escola de Música e outras fontes, por que por ser de fora tinha preconceito, botavam até o pé pra eu cair tocando.

Com quantos anos você entrou na Escola de Música? Eu entrei em 1996, com 15, 16 anos.

Pra estudar percussão mesmo? Pra estudar cavaquinho. Não tinha o curso de percussão.

E aí? Estudei, toquei cavaquinho durante uns quatro anos. Toquei nesses grupos de samba, tocava em rodas de samba, fui um dos primeiros cavaquinhos do Retoque, um grupo que tinha lá no Belira. E paralelamente tocava percussão no Barrica. Meu primeiro instrumento na Escola de Música foi violino. Só que quando eu peguei o violino eu não me adaptei e o instrumento era caro. Peguei uma poupança que eu mesmo fiz, naquela época mamãe não apoiava, a poupança eu fiz com um bolão da Copa [do Mundo] de 1994, ninguém acreditou que o Brasil ia pros pênaltis, eu ganhei o dinheiro todinho. Saquei o dinheiro e comprei meu primeiro cavaquinho, meu primeiro instrumento. Aí mudei de curso. Meu primeiro professor, na época, foi até Raimundo Luiz [bandolinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 15 de setembro de 2013]. Depois de Raimundo que eu fui ter aula com Juca [do Cavaco, professor de cavaquinho da EMEM]. Depois é que entrou o curso de percussão na Escola de Música. Mas paralelamente eu já tocava percussão no Barrica e estudava cavaquinho na Escola. Tinha essa coisa dessas influências do samba, e eu misturava essa coisa do samba com os ritmos regionais. Até no Barrica.

Quando você mudou para percussão na Escola? Eu fui da primeira turma. Acho que 1997, 98.

Nem terminou o curso de cavaquinho? Não, eu tranquei. Paralelamente eu fazia os dois. Depois me decidi pela percussão.

Quem são teus principais mestres da percussão? Na Escola era Jeca, meu professor. Dei uma parada durante uns dois anos, fiquei só no Coral, parei por conta de problemas familiares, tava jogando JEMs, quando eu retornei, já era Nonatinho [percussionista do Instrumental Pixinguinha] o professor.

Você disse que passou uns 15 anos no Barrica. Sua saída de lá é mais ou menos recente. A que se deveu? A eu me profissionalizar mesmo. A eu correr atrás do meu trabalho.

No sentido de que o Barrica é um espaço amador? Não, no sentido de que o Barrica tem um dono e eu resolvi ser meu próprio dono. Decidi virar um profissional da música. Lá são pequenos cachês, é de grupo. Lá você não é visto, é visto o grupo: a Companhia Barrica.

Hoje você consegue viver de música? Consigo. Hoje eu tenho outros trabalhos paralelos, mas eu consigo.

Quais são esses trabalhos paralelos? Eu tenho minha carreira acadêmica. Sou graduado e pós-graduado em administração. Estou pensando em dar aulas em faculdade. Justamente visando um futuro, por que a carreira musical tem certos limites, na minha opinião. Na Europa o cara é dentista e toca na orquestra, não tem essa história de ser músico e ser só músico, tu tem outra alternativa, tu pode fazer as duas coisas paralelamente. Eu bati muito de frente aqui, o cara é só músico, quer ser só músico. Infelizmente o nosso mercado não dá pra isso. Eu tenho amigos que moram fora, vivem de música e vivem bem. É o que eu sempre digo: tu quer viver bem ou tu quer sobreviver? São coisas bem diferentes.

Antes de formado, você conseguiu viver bem de música? Com música você sobrevive. Viver bem, bem, é difícil. São poucos os que conseguem.

Você não acha que no teu caso essa condição decorre de ser um cara novo? Tipo, daqui a 10 anos você poderia estar vivendo bem de música? Eu acho que o mercado, aqui em São Luís, é um pouco complicado. Talvez se eu fosse pra fora.

Quem são os percussionistas que você mais admira aqui em São Luís? [Carlos] Pial, meu amigo, me ajudou bastante quando comecei a tocar. O próprio Jeca, aquela história, a gente não descarta da onde a gente veio. Zé Pretinho, um cara bom pra poxa. E outros, os grandes mestres. No Barrica, quando entrei, como passei por muito preconceito, eu ia comendo de outras fontes, pra já chegar lá sabendo. Em vez de aprender só lá, como eles não queriam me ensinar, “não, tu é de fora, então eu não vou te ensinar, se tu quiser, tu olha, tu aprende”, eu ia por fora, eu ia na Liberdade, eu ia nos encontros que tinha no Reviver [o bairro da Praia Grande], eu participei dos primeiros Pungar, encontros de tambor de crioula, Leonardo [mestre de tambor de crioula] ainda vivo. Então a gente ia por esse caminho, observando, conversando com Zé Olhinho [mestre de bumba meu boi].

E no cenário nacional? Qual é o nome que chama tua atenção? [Marcos] Suzano, que hoje é meu amigo, Celsinho Silva, meu amigo também, fiz oficinas com eles, saí daqui, peguei meu ônibus, fui bater em Teresina, oficina com Suzano. Na linha do pandeiro eu digo que tenho umas cinco influências: Jorginho do Pandeiro, Celsinho Silva, Marcos Suzano, Bira Presidente [pandeirista do grupo Fundo de Quintal] e Jackson do Pandeiro. Fora também o estilo de tocar de pandeiro diferente aqui, do pessoal do Fuzileiros da Fuzarca [bloco carnavalesco da Madre Deus]. E influência assim que eu tenho da percussão geral, eu gosto muito do Gustavo di Dalva, que toca com Gilberto Gil, Leonardo Reis, são os grandes nomes de percussão mais ou menos nesse jeito que eu gosto de tocar. Por que tem várias linhas: tem o cara que é do axé, tem o cara que é do forró…

A gente sabe que a percussão é um mundo. Na falta de instrumentos, até numa mesa dessa aqui você vai fazer música. Em que instrumento você se sente mais à vontade? O que eu sinto mais à vontade são os instrumentos de percussão maranhense, por essa vivência toda que eu tive durante esses 15 anos lá dentro da Companhia [Barrica], eu colhi muito. Os próprios músicos, o próprio Zé Pretinho, o pessoal lá de frente da percussão, eles dizem que eu fui o único que soube pegar de lá e botar em outro lugar. Os instrumentos daqui, o pandeiro de couro, que eu estudei mais, e os instrumentos também de samba, que vem do tempo em que eu tocava cavaquinho.

Quais seriam esses instrumentos maranhenses? Zabumba, tamborito, pandeirão, tambor de crioula – a parelha, eu toco todos três –, vindo pro lado do carnaval, contratempo, retinta, particularmente todo instrumento maranhense eu toco. A própria caixa do divino, que é um instrumento tocado por mulheres, lá no Barrica quem tocava era eu.

Além de Barrica e Bicho Terra de que outros grupos você já participou? Quando eu saí, que eu decidi me profissionalizar, eu já toquei com quase tudo que é grupo de São Luís.

Mas como integrante? Como integrante praticamente só lá. Toquei em grupos de samba: toquei no Retoque, desde a época do cavaquinho eu tirava mais festa. Eu tava nesse processo: cavaquinho, percussão, nessa briga. Ou eu escolhia um ou outro. Podia chegar num ponto que eu não seria melhor em nenhum, eu seria mediano nos dois. Então eu decidi estudar.

E grupo de choro? Choro foi o seguinte: quando eu entrei na Escola eu vi o [Instrumental] Pixinguinha tocando e eu sempre me interessei. E eu tinha comigo que eu não sabia tocar pandeiro. Aí eu vi aquilo e disse: vou aprender isso aí. Comecei a estudar e o primeiro grupo de choro, formado, bonitinho, foi o Chorando Calado. Na época em que eu entrei, éramos eu, Jordani [percussão], Tiago [Souza, sax e clarinete], Wendell [Cosme, cavaquinho e bandolim] e João [Eudes, violão]. Depois Jordani saiu, ficamos só nós quatro.

Qual a importância do Chorando Calado pra você? A gente é uma família, nós quatro. Quatro irmãos. Através de muito estudo, muita repetição, ensaio, a gente conseguiu essa abertura no meio dos grupos grandes que já existiam aqui, de chorões. A gente recebeu, como éramos da Escola, muito apoio do Pixinguinha, a maioria eram nossos professores, botavam a gente pra tocar nos eventos lá. Às vezes a gente sabia só 10 músicas. Hoje quando a gente se junta, é só olhar um pro outro.

Mas o Chorando Calado nunca mais fez apresentações como Chorando Calado. O que está faltando? Tiago! Nós chegamos a botar outros, [os flautistas] Lee Fan, [João] Neto, até Zezé [Alves, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013], mas a gente decidiu não usar mais o nome. Até por que teve a história do Clube do Choro [Recebe] dar um tempo. Eu tenho esperança que volte, foi uma escola pra gente na época. Um projeto de suma importância, na época era o nosso palco. Ali que a gente começou a fazer nosso trabalho, a ter novidades no repertório.

Fora o Chorando Calado, você integrou outros grupos de choro? Eu já toquei com o Pixinguinha, um tempo em que o Nonatinho se afastou. Já toquei nOs Cinco Companheiros, com Osmar do Trombone [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 23 de junho de 2013]. Essa vivência [no Clube do Choro Recebe] fez com que eu tivesse o prazer de hoje já ter tocado com praticamente todos os grupos de choro daqui.

Daqui a pouco quando você terminar essa entrevista, vai participar da gravação de um dvd [o show Justiça de Paz e Pão, em que servidores do Tribunal Regional do Trabalho no Maranhão interpretaram obras de compositores maranhenses]. De que discos você já participou? Já, bastante discos. [O compositor Luiz] Bulcão, [a cantora] Teresa Cantu, cds e dvds. Várias bases de bumba meu boi. [O cantor] Mano Borges é um trabalho constante, uma das pessoas que na época em que fui tentar me profissionalizar foram pessoas que me deram apoio, começaram a me injetar nas coisas, Oberdan [Oliveira, guitarrista], Antonio Paiva [contrabaixista]. Outra influência de que lembrei agora, que eu tive na infância, bastante grande, foi a Casinha da Roça. Eu cresci naquilo ali.

A gente percebe essa vivência, essa tua natureza da cultura popular do Maranhão em tua base percussiva. Como você percebe a relação da percussão da cultura popular do Maranhão com a prática do choro? É possível fazer esse encontro? Você acha interessante? É possível, é bastante interessante, até por que essa questão do ritmo maranhense não é valorizado pelo maranhense, mas quando a gente viaja, que dá uma volta por outros ares, é o diferencial. É o que tu chega, é o que tu mostra, e o pessoal fica de boca aberta.

Cabe no choro? Cabe. Inclusive a gente lá no Chorando Calado botava muito boi, bloco misturado com choro. Cabe. É uma célula a mais. O choro em si é um gênero, então ele agrega um monte de ritmos. Eu sou um admirador da cultura popular do Maranhão. Meu set up tem um monte de instrumentos de fora, mas tem os instrumentos daqui pelo meio. Eu não me esqueço de onde eu vim. O Barrica, pra mim, foi uma escola. Quando eu viajava, eu sempre ia conversar com músicos, ia atrás de informação, sempre fui bastante curioso.

O que é o choro para você? Tanto quanto é o bumba boi é uma influência musical muito grande. É visto com preconceito, como música de velho, mas na verdade é uma música muito difícil. Eu digo pra meus alunos: todos os que vão pra linha do choro se tornam bons músicos. Os compositores de choro são grandes mestres da música. O choro não tem música feia. Até as mais atuais, a qualidade é lá em cima.

Com toda essa vivência já demonstrada na seara da cultura popular, você se considera um chorão? Considero. Até meus amigos dizem que quando vai pro lado do choro eu sou meio ranzinza. Eles, “não, Wanderson, é por que tu é chorão” [risos]. Eu me considero. Eu ouço choro todo dia: Zé da Velha, Silvério Pontes, Tira-Poeira, Época de Ouro, Zé Nogueira. Eu escuto tudo, os tradicionais, os modernos. As músicas de choro que eu mais gosto vêm daquele tempo que eu tocava cavaco: gosto muito de Naquele Tempo, de Pixinguinha, Minhas mãos, meu cavaquinho, de Waldir [Azevedo]. É essa linha que eu gosto mesmo de escutar, de sentar pra escutar.

Você tocou no disco inédito de Joãozinho Ribeiro [Milhões de Uns, disco de estreia do compositor, gravado ao vivo no Teatro Arthur Azevedo, em novembro de 2012]. O que significou para você? Você vê o quanto o trabalho do maranhense é esquecido. Ali eram só composições antigas, só que totalmente atuais. Tem muita música ali que eu nem sonhava em tocar, são atuais, podem tocar em qualquer lugar. Foi uma experiência muito boa, os músicos, todo mundo voltado pro show. Eu já escutava muito [a música] Milhões de Uns, quando eu me vi naquele local tocando, era uma coisa que eu almejava fazer e hoje eu faço parte. Pessoas com quem eu nem sonhava tocar.

Paulinho da Viola faz única apresentação hoje (22) em São Luís

Última passagem do artista pela Ilha aconteceu durante o Festival Internacional de Música, em 2002

Foto: Zema Ribeiro
Foto: Zema Ribeiro

Paulinho da Viola volta à São Luís para um show depois de 12 anos de sua última apresentação na ilha – no Festival Internacional de Música que celebrou os 390 anos da cidade. O artista se apresenta hoje (22), no Patrimônio Show (Aterro do Bacanga), às 21h, acompanhado de sua banda: Beatriz Faria (vocal), Celsinho Silva (percussão), Cristóvão Bastos (piano), Dininho (contrabaixo), Hércules (bateria), João Rabello (violão), Marcos Esguleba (percussão) e Mário Sève (sax, flauta e clarinete). A abertura fica por conta do DJ Franklin, em um set de samba que dá pequena amostra de sua vasta vinilteca e de seu conhecimento profundo do assunto.

A elegância e a serenidade de sempre estavam impregnadas no homem que surgiu para a coletiva de imprensa com pouco mais de meia hora de atraso. Calça clara e camisa listrada, sequer havia almoçado, embora pouco se importasse com isso. Vanessa Serra, assessora de comunicação da produtora Ópera Night, disse-lhe que todos os que ali estavam, eram, além de jornalistas, seus fãs.

No lobby bar do Grand São Luís Hotel, que hospeda o príncipe do samba, o clima era de descontração. Às perguntas, o músico respondia calma e longamente, sem se importar que dali a pouco teria que sair para comer algo. De repente sua esposa advertiu: “Paulinho, o pessoal está querendo ir!”. “Que pessoal?” Ela se referia às equipes de televisão presentes, que precisavam captar sonoras e correr para o fechamento das edições. Não sem antes passar para gravar um pronunciamento patético do senhor prefeito sobre as chuvas que ora castigam a cidade.

O artista lembrou-se das origens, o início ao violão, as rodas de choro que ocorriam em sua casa, “humilde, modesta”, e de figuras como Jacob do Bandolim, a cujo Conjunto Época de Ouro seu pai, o violonista César Faria, pertenceu. Lembrou ainda a influência dos mais velhos, particularmente do pai, e a preocupação deste em o filho seguir seu caminho, além de gravações importantes que presenciou.

Com a elegância que lhe é peculiar, confessou-se atrapalhado com tantos flashes. Parecia perder o fio da meada. Uma pausa de um fotógrafo menos contido e continuou as histórias. Em meio às várias que contou, respondendo perguntas dos repórteres e emendando memórias – cantando e/ou chorando –, chegou a lacrimejar lembrando seu Zé Maria, seu primeiro professor de violão: “meu irmão encontrou-o muitos anos depois, se apresentou. Ele não disse nada. Simplesmente continuou o caminho, e falou: sabe por que o socialismo não vai dar certo? Por causa da vaidade do homem”.

Paulinho da Viola deu poucas pistas do repertório do show de hoje: mesclará suas obras mais conhecidas a repertório inédito. O artista tem gravados dois discos ao vivo ainda não lançados e esta turnê não terá registro. Tampouco haverá choro no repertório: “há tempos não toco; choro você tem que tocar todo dia, não dá para fazer de qualquer jeito. Mas preciso voltar, as pessoas cobram”. Alguma coisa de Lupicínio Rodrigues será lembrada, por conta do centenário de nascimento que o gaúcho completa neste 2014 – Nervos de aço batizou seu disco de 1973, com a gravação mais conhecida desta sublime dor de cotovelo.

Lembrei-lhe A obra para violão de Paulinho da Viola, disco que João Pedro Borges gravou em meados da década de 1980, com participação do compositor e de seu saudoso pai. Gravado pela Kuarup e distribuído como brinde a clientes de uma empresa mineira, o álbum nunca teve relançamento em cd. O maestro gaúcho Radamés Gnattali – com quem o maranhense tocou na Camerata Carioca – dizia ser quase possível falar em uma escola Paulinho da Viola do instrumento. Perguntei-lhe se não havia planos de relançar o disco.

“Eu falei com João algumas vezes. Como não existe mais a empresa que fez o brinde, aquilo [o disco] nos pertence. Eu pensei em mais uma vez conversar com ele, encontrá-lo agora [aproveitando esta sua passagem pela ilha] e a gente tentar fazer isso. Isso foi em 80 e pouco, 85, por aí. E ficou lá escondido, brinde, não foi vendido nem nada. Aconteceu um fato engraçado: uma violonista, não sei como, ouviu, e me procurou. Márcia Taborda. E disse: “olha, eu ouvi, tenho um amigo que tem o disco, e eu gostaria de saber se eu poderia fazer um trabalho com estas músicas”. E eu falei “claro”. Ela foi na minha casa algumas vezes e eu passei a maior vergonha, não estava encontrando as partituras e ela queria tirar algumas dúvidas comigo. E eu pegava o violão e algumas coisas eu não lembrava mais, foram muitos anos, e ali tem algumas músicas que não são muito simples, você precisa estar permanentemente tocando. E eu há muitos anos não tocava aquilo e passei uma vergonha [risos], eu tinha que me lembrar e dizer “foi feito assim”,    e algumas coisas eu tinha que voltar ao disco. Depois eu achei as partituras e ela gravou um disco [Choros de Paulinho da Viola, Acari, 2005] e gravou até outra música [Além das 10 faixas de A obra para violão de Paulinho da Viola, Marcia Taborda gravou Rosinha, essa menina, Escapulindo e Floreando]. Foi lançado comercialmente, um trabalho bonito que ela fez também. Mas este disco podia ser reeditado, é legal”, relatou.

Éramos poucos repórteres no recinto, mas além dos disparos de máquinas fotográficas, celulares tocavam vez por outra atrapalhando o fluir da entrevista. Paulinho da Viola manteve a elegância e a tranquilidade. Disse que propagava histórias justamente contando-as aos outros. Perguntei-lhe se não havia planos de escrever um livro. “Eu, até para escrever um bilhete para alguém, demoro. Escrevo, isso não está bom, apago, muda uma palavra. Leva tempo. Acho que não, eu escrevo mal”. Lila Rabello discordou. Eu também, e trechos de músicas de vários discos seus vieram-me imediatamente à cabeça. Um gênio manso e modesto.

Lembrei-me de Chico Buarque, que gravou sua Sinal fechado, dos grandes intervalos entre seus últimos discos – o que ocorre também ao autor do diálogo musical que virou símbolo de resistência à ditadura militar – e do tempo roubado àquele pela literatura. Paulinho da Viola disse que a relação com as gravadoras mudou, sobretudo com o advento da internet. “Qualquer um, com um equipamento não muito sofisticado pode obter, em um quarto, uma sonoridade que não conseguíamos em estúdios há uns anos. Isso realmente mudou toda a relação artística com o público, a distribuição de determinado produto. Eu gravo uma música, ponho na internet, posso não ganhar nada, ou ganhar de outro jeito”, declarou.

Alguns grandes nomes da música brasileira de sua geração agruparam-se no Procure saber, defendendo o veto às biografias. Sobre o assunto, ele é a favor da publicação sem a necessidade de autorização prévia. “Biografia tem que ser uma coisa aberta mesmo. Eu só não quero saber de fofoca”, afirmou.

A banda já tinha se mandado na frente. Paulinho da Viola, a esposa e a produção iam almoçar. Eu seguiria para outro compromisso. A pressa impediu-me de perguntar-lhe ainda sua opinião sobre as manifestações que tomaram conta do Brasil desde junho passado. Ele volta à São Luís para um show e encontra a cidade em meio a chuvas torrenciais, protestos diários e greves anunciadas para hoje, dia de seu espetáculo. Que seja como o título de um de seus choros: Inesquecível!

Chorografia do Maranhão: Turíbio Santos

Confesso que tremi.

Eu queria revelar isso sem soar desrespeitoso com todos os outros instrumentistas que já entrevistamos e com aqueles que ainda entrevistaremos.

Turíbio Santos, violonista maranhense de consolidada carreira internacional, estaria em São Luís para um concerto por ocasião das comemorações de aniversário da cidade. Tocou com João Pedro Borges, 7 de setembro, véspera do aniversário, na Praça Maria Aragão, cartão postal da lavra de Niemeyer, no centro da Ilha.

Feita completamente sem recursos (os chororrepórteres tiram do bolso a gasolina e a cerveja e das famílias o tempo) a série não podia perder a oportunidade de entrevistar um dos maiores violonistas do mundo em todos os tempos.

Levei meu exemplar de Mentiras… ou não?, livro do músico, para catar o autógrafo. Saí de lá também com uma coletânea com que ele presenteou a chororreportagem. No show, ao procurá-lo para adquirir outros discos, comprei uns e ganhei mais outros e Turíbio esbanjou simpatia e elogiou o projeto e sua equipe, destacando a importância da Chorografia para a música, o jornalismo, a história do Maranhão.

Confesso que emudeci.

No sofá da sala da casa de João Pedro Borges, onde Turíbio estava hospedado, Ricarte conduziu quase a íntegra da entrevista. Arrisquei umas poucas perguntas. Rivanio, depois, quando comentei esse nervosismo diante do mestre, revelou: “é, vendo a cara de vocês dois, pareciam crianças com brinquedo novo”.

Revelado isso, à entrevista, pois.

[O Imparcial, 29 de setembro de 2013]

Maior responsável pela divulgação da obra de Heitor Villa-Lobos no mundo e um dos mais importantes violonistas brasileiros em todos os tempos, Turíbio Santos é o 16º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVANIO ALMEIDA SANTOS

Um dia um aluno perguntou-lhe desconfiado: “Professor, o senhor tem discos gravados?” “Devo ter gravado uns 25”, respondeu. “Mas, professor, eu não encontro nenhum disco seu nas lojas”, o aluno insistiu. Turíbio Santos também se aborrecia com aquilo e a história é ele mesmo quem conta na Abertura de Mentiras… ou não? – uma quase autobiografia [Jorge Zahar, 103 p.], livro que publicou em 2002. Adiante, no mesmo texto, o violonista se surpreenderia: estava errado o número, até responder ao aluno curioso ele já tinha lançado 35 discos. No final do livro uma discografia apresenta 54 títulos.

O músico esteve em São Luís por ocasião das festividades de 401 anos de São Luís, quando se apresentou ao lado de João Pedro Borges [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] na Praça Maria Aragão – a casa de Sinhô, onde Turíbio se hospedou, abrigou a entrevista. Vez por outra o anfitrião rememorava nomes e datas, num luxuoso auxílio à chororreportagem. Esta, aproveitando sua passagem pela Ilha, também lhe perguntou: quantos discos? O 16º. entrevistado da Chorografia do Maranhão não sabia dizer ao certo: 68 ou 70, ficou de conferir. Turíbio Santos parecia estar preparado para a conversa, em que os chororrepórteres pareciam ser apenas figurantes: suas falas, longos depoimentos, dispensavam quaisquer perguntas.

Se Heitor Villa-Lobos foi um dos fundadores da moderna música brasileira, unindo erudito e popular, Turíbio Santos é certamente o principal responsável pela divulgação mundo afora da obra do genial maestro – que ele conheceu pessoalmente. Um dos mais importantes violonistas brasileiros de todos os tempos, Turíbio Soares Santos nasceu em 7 de março de 1943, na Rua Pereira Rego (hoje Craveiros, continuação de São Pantaleão), no centro da capital maranhense. Filho da assistente social e psicanalista Neide Lobato Soares Santos e do administrador – “um burocrata” – Turíbio Soares Santos, cantor e violonista diletante – “um seresteiro” –, de quem herdou a paixão pelo violão e pela música.

Além de músico você tem outra profissão? Não. Quer dizer, eu tive várias ocupações, mas não profissão. Profissão minha, quando eu preencho profissão, profissão é músico. Mas eu dirigi o Museu Villa-Lobos durante 24 anos, fui professor da UFRJ durante 33 anos, morei fora do Brasil durante 20 anos, onde fui professor também, além de concertista, mas tudo sempre ligado à música.

Quando você percebeu que ia viver de música? Ainda criança? Como é que foi a entrada nesse universo? É o seguinte: a paixão pela música provavelmente foi inoculada por meu pai. Meu pai era aquele que domingo de manhã ouvia um programa de música brasileira, não sei em que rádio, provavelmente na Rádio Nacional, não sei também o nome do programa, mas seria tipo Hora da Saudade ou Serestas do Brasil. Algumas vezes ele ouvia ópera também dentro de casa. Ele tocava violão e cantava muito bem, era seresteiro. Antes de eu nascer, aqui no Maranhão, meu pai já tinha discos de [os violonistas] Andrés Segovia e Dilermando Reis. Quer dizer, aquilo fazia parte da casa, aquele som, o som do violão. A paixão pela música começou pelo som do violão, isso com certeza absoluta. Você vai guardando, no teu inconsciente tem uma gaveta onde você vai guardando alguns valores misteriosos que você só descobre aos 70 anos [gargalhada]. É pena, né? Mas se você descobrisse aos 10 anos acabava a mágica. Pelo menos alguma coisa você leva de bom fazendo 70 anos [risos], você descobre que esse som tava na gaveta desde aquela época.

Quando você começou a aprender a tocar, a mexer no violão? Nós nos mudamos pro Rio quando eu tinha três anos e meio. No Rio de Janeiro, quando eu tinha mais ou menos 10 anos, minhas duas irmãs mais velhas começaram a estudar violão. Elas já tocavam violão. Meu pai foi casado duas vezes, as duas irmãs do primeiro casamento, Lilá e Conceição, já cantavam e tocavam violão, influenciadas pelo pai. Arrumaram um professor chamado Molina. Isso é muito engraçado. Esse Molina era mecânico da aviação, boêmio. Eu ficava na moita, olhando as aulas, depois pegava o violão. Eu já tinha 12 anos e já tinha brincado muito com o violão. O Molina veio para a aula, eu fingi que estava tendo a primeira aula, ele dava as coisas e eu pram [imita o som das cordas do violão com a boca], matava de primeira [gargalhada]. Ele ficou impressionado e eu, moita. Terminou a aula, ele disse para minha mãe, “esse garoto é impressionante, eu ensino as coisas parece que ele já sabe”. E eu, moita, fiz o show até o final [risos]. Depois o Molina nunca mais apareceu lá em casa [gargalhada]. Aí elas foram estudar com o Chiquinho, um cara engraçadíssimo, aquele professor famoso, em Copacabana, o violão sempre debaixo do braço, careca. Ele tinha dois filhinhos pequenos, foi aluno de Dilermando Reis. Ele tinha competência no acompanhamento, no solo, tinha muito bom gosto, tinha um som parecido com o Dilermando, já familiar para mim por causa de meu pai. A aula dele era uma bagunça de tal ordem, que uma cena ficou para sempre na minha memória: eu tocando, e o Chiquinho de repente diz: “ô, Luzia, tira esses meninos daqui!” Eu levantei para ver o que estava acontecendo, aquela careca luzidia, os meninos tinham empurrado uma boia, ele estava dando aula com aquela boia enfiada na cabeça [risos]. O Chiquinho era muito divertido, mas tive pouco tempo aula com ele, uns três meses, aí eu galopei na aula, comecei a tocar coisas que nem ele tocava, saí à toda velocidade. Nessa época meu pai me levou pra ver um filme de Andrés Segovia, na embaixada americana. Eu tava com 12 anos. O filme eram vários artistas e aquelas duas aparições de Segóvia, tocando uma Sonatina de [o compositor espanhol Federico Moreno] Torroba e Variações sobre um tema de Mozart, de [o violonista espanhol Fernando] Sor, ficaram tão impregnadas na minha cabeça, foi um choque, um impacto tão alucinante, que eu nunca mais vi esse filme. Fui revê-lo 30 anos depois, já em vídeo, mas parecia que eu o tinha visto há cinco minutos, de tal maneira ele tinha entrado na cabeça. Essa noite para mim foi importantíssima. Quem fez aquilo foi a Associação Brasileira de Violão. Nessa noite estavam presentes [o violonista] Antonio Rebello, que viria a ser meu professor, [o compositor] Hermínio Bello de Carvalho, que foi quem me mostrou o mundo da música popular, e [o violonista] Jodacil Damasceno, que me mostrou o mundo da música clássica. Através de Hermínio eu conheci todos os grandes músicos, os grandes, grandes mesmo: Jacob do Bandolim, Pixinguinha. O Antonio Rebello me marcou muito como cidadão. Eu era ávido, com um ano e meio eu já estava correndo atrás da passagem de [o violonista uruguaio Oscar] Cáceres pelo Rio. Ele veio uma vez, depois veio outra, sempre a ABV. Esse capítulo é importante por que naquela época havia muita atividade voluntária na música. Eu sinto muita falta disso, sinto que houve uma perda e nós estamos ganhando de volta esse espírito. O que aconteceu? Eu vi mais tarde, na evolução da profissão, acabei dando meu primeiro concerto, por causa da dona Lilah Lisboa, na SCAM, Sociedade de Cultura Artística Maranhense.

Isso era que ano? Já foi em 1962. Ainda em 1962 eu fui tocar meu segundo concerto na SCAV, Sociedade de Cultura Artística de Vitória. Olha que interessante: a partir de 1964 houve uma coisa estatizante, onde as secretarias de cultura entraram e praticamente acabaram com essas sociedades. Por que virou aquela coisa estatal, de governo, “o governo vai fazer”. E o governo não fez droga nenhuma, só fez asfixiar e não colocou nada de volta. Agora acho que nós aprendemos muito com essa lição e há várias coisas renascendo, com a colaboração também de governos, com a colaboração estatal, mas não naquele sentido de vir de cima pra baixo, hoje todo mundo quer participar. Eu já tava de olho grande na profissão, não de ser violonista, mas eu queria saber o que era esse negócio de ser concertista. Eu peguei um ônibus e fui atrás do Oscar Cáceres. Eu ia pro DOPS [o Departamento da Ordem Política e Social, órgão repressor da ditadura militar brasileira], ficava esperando, aquela coisa do serviço público, o passaporte estava ali, “não, você volta amanhã”, amanhã “volta amanhã”, passei uma semana, o cara viu que eu não ia desistir, me deu o passaporte e eu, com a autorização de meu pai, me mandei de ônibus para o Paraguai. Até Montevidéu e de lá conviver com o Cáceres. Na época eu arrumei uma namorada no Rio Grande do Sul, então parava em Porto Alegre [risos]. Depois as coisas simplificaram mais ainda, que eu arrumei uma namorada em Montevidéu, a irmã do Cáceres [risos]. Ele vivia em condições muito modestas, já tinha estado na Europa, não deu certo. Eu pensei: bom, isso é o pior que pode acontecer? Então vai dar pra eu ser violonista. Ele toca o dia inteiro, tem os alunos dele, a mulher era pianista. Fiquei muito amigo deles. O Cáceres foi um professor que nunca me deu uma aula formal. Ele me deu todas as aulas possíveis me deixando estar perto dele. E eu era chato pra burro, eu era furão. Eu dizia pra ele, quando ele estava aqui no Rio, “eu posso ir ao seu hotel te olhar estudar?” Ele ficava sem graça, queria dizer não e eu chegava. Ele pensava, “puxa, lá vem aquele pentelho!”, eu sentava lá e ficava vendo-o estudar [risos]. Isso ele só me disse anos depois: “como você enchia o saco!” [risos]. Foram acontecendo as coisas no Rio. Um dia o Hermínio me levou pra fazer uma conferência, eu, Jodacil Damasceno, lá no MEC, pra Arminda Villa-Lobos. Ela me viu tocando, a Mindinha, uma pessoa fantástica. Outra pessoa que entrou na minha vida… ela me ouviu tocando e pediu para eu ir ao Museu. Conversando, ela disse “eu queria que você fizesse o primeiro disco do Museu”. Eu pensei que ela queria que eu gravasse um 78 rotações. “Eu quero que você grave os 12 estudos [para violão]”. Nove meses depois estava feito.

Esse disco foi o teu primeiro disco? E também o teu primeiro contato com a obra de Villa-Lobos ou já existia? Primeiro disco [O contato com a obra de Villa-Lobos], já existia há muito tempo. Logo, logo, quando eu vi Segovia, por conta própria pegava os Estudos, estudei com Cáceres, Rebello. Eu gravei esse disco e propus à gravadora fazer um disco com Cáceres: “você não quer gravar um disco com a gente?” e o dono da gravadora, a Caravelle, topou. Cáceres veio, fizemos um concerto no Rio, eu já estava com dois discos, agora eu tenho que pensar sério nessa brincadeira. Aí pensaram sério por mim e deram o golpe de Estado. O último dia que eu fui à universidade [Turíbio cursava Arquitetura] foi o dia 31 de março de 1964 [quando teve início a ditadura militar brasileira]. Não volto mais aqui, não vou perder meu tempo. Fiquei indignado, horrorizado. Eu procurei me informar qual era o grande concurso de violão que existia fora do Brasil. Aí eu descobri o concurso da Rádio e Televisão Francesa, a RTF, e me inscrevi nesse concurso. Eu fui pedir uma passagem no Itamaraty, era o Vasco Mariz [autor de Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro, de 1948] que estava no serviço de relações exteriores, ele pediu os documentos para ver que eu tinha sido classificado entre os cinco finalistas. Ele me deu a passagem ida e volta, eu fui e ganhei o concurso.

Você ficou quanto tempo em Paris? Fiquei 10 anos. Ao todo 20 anos, por que os outros 10 anos eu estava no Rio, mas a minha sede continuava lá.

Lá em Paris entre aulas e concertos, sempre. Aí começou toda uma mecânica. A rádio de um lado funcionando, o disquinho da Catedral e do Choros, o disco da Maria Aparecida [discos iniciais de Turíbio Santos], algumas conferências e recitais nas Juventudes Musicais Francesas. Aí um dia me telefona um cara da [gravadora] Musidisc Europe. “Olha só, a gente fez um levantamento aqui e o Richard Anthony gravou o Concierto de Aranjuez numa versão popular, Aranjuez, mon amour, vendeu milhões. Se a gente fizer com um jovem violonista desconhecido, a gente pode vender pelo menos uns 10 mil discos a preço popular. Então a gente pensou em você. A proposta é: a gente paga mil dólares a você, mas do outro lado do disco você grava o que você quiser, desde que seja espanhol” Aí ele perguntou: “você já tocou com orquestra?”, eu disse: “lógico!”, nunca tinha tocado [risos]. “Toca o Concierto de Aranjuez?”, “Todo dia” [risos]. Aí eu fiquei pensando, deve ser daqui a seis meses. “Ótimo, tá fechado, 15 de janeiro você grava”. Era 15 de dezembro. Cheguei em casa era o Concierto de Aranjuez pra o quarteirão inteiro se mudar, noite e dia. Pra completar eu tinha decidido que ia trazer o Cáceres pra Paris. Olha o círculo que se armou. Eu tinha um atelier d’artiste, era uma sala desse tamanho, um quartinho e a cozinha. Eles vieram, 30 de dezembro. Minha mulher, a Sandra, ficou doida, coitadinha. No dia em que eu fui gravar eu tinha febre de 40 graus. Gravamos o concerto, o regente não era grande coisa, a orquestra também não era grande coisa, mas não era uma vergonha. O disco vendeu 300 mil. A porta do mercado discográfico abriu pra mim. A Erato, a maior companhia de música clássica de lá, me ligou perguntando se eu queria gravar um disco de música espanhola pra Erato. Eu falei que não. “Como?” “Não, eu quero gravar pra Erato os 12 Estudos de Villa-Lobos”. “Mas Villa-Lobos não tem mercado aqui, você está novo”. “Ou isso ou nada”. Decisões fantásticas que você toma na vida. Vendeu feito batatinha. Os caras se empolgaram, “agora o segundo disco, agora é música espanhola, não é?” Eu falei “não, ainda não. Agora eu peguei o gostinho, eu quero fazer o Concerto para Violão e Orquestra, o Sexteto Místico e a Suíte Popular Brasileira”. “Mas é um investimento isso”. “Ué, não vendemos bem? Custa você arriscar?”. Meti o pé outra vez e outra vez arrebentamos a boca do balão. Botei o Cáceres dentro dessa editora, ele gravou discos solos, briguei com o produtor Roberto Vidal, que estava ganhando royalties escondido, eu não sabia, e em 18 anos gravei 18 discos para eles. Depois que a carreira pegou o embalo é que fui descobrir onde eu estava metido.

Sua carreira parece que chegou num momento em que cansou. É o primeiro capítulo desse livro [aponta para o exemplar de Mentiras… ou não? que autografou para um dos chororrepórteres]. Eu nunca tive intenção de ficar lá. Chegou um momento em que a gente [ele e Sandra Santos, sua esposa] pensou no que ia fazer. O primeiro filho, Ricardo, nasceu lá em 1970; depois nasceu uma menina, a Manuela, em 1972. Em 74 a gente decidiu: voltar para o Brasil. Por que a garotada vai pra escola no Brasil, pra saber como é o país. Se botar na escola aqui, nunca mais a gente volta. As facilidades sociais eram espetaculares. Esse conforto todo material de lá a gente preferiu trocar pela espontaneidade do Brasil, a alegria de poder criar no Brasil. Eu fiz algumas aventuras lá, algumas delas muito importantes. Eu comecei a ver o repertório do violão e descobri que tinha peça original de [o compositor] Darius Milhaud que não tava gravada, tinha peça de [o compositor] Henri Sauguet que nunca tinha sido tocada. Eu fui bater na Erato, depois de ter feito os discos que eles queriam, “vamos fazer um disco de música francesa”. “Não vamos fazer nada, você é louco!” Dessa vez eles tinham razão: o disco foi um fiasco comercial [risos]. Mas virou cult, foi um sucesso artístico que dura até hoje. Até no Brasil, de vez em quando tem um garoto que manda me pedir música.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

Voltando para o Brasil, você foi direto para a universidade? Como foi o retorno? O retorno ao Brasil ocorreu da seguinte maneira: em 1974 voltamos ao Brasil. 10 anos de França, dois filhos. E agora? Eu não avisei ninguém na Europa. Disse, no máximo: meu endereço por uns tempos passa a ser esse. Eu estava indo para Japão, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Alemanha, não podia interromper esse movimento, tinha muita companhia, muito empresário envolvido. Mantive o movimento lá fora e as viagens começaram a doer na alma. Eu saía e passava 40 dias fora, voltava, passava 15 dias com as crianças na praia. Aquilo foi doendo na alma. Fiquei de 74 até 84 fazendo esse tipo de loucura. Em 1980 eu tive uma ruptura interna terrível. Eu estava desesperado, foi o único momento da minha vida em que pensei em suicídio. Eu fiquei entocado e aconteceu uma coisa maravilhosa. O Guilherme Figueiredo estava como presidente da Funarj [a então Fundação de Artes do Rio de Janeiro] e teve um grande entrevero entre ele e a direção da Sala Cecília Meireles. Um dia ele me liga e diz “Turíbio, eu preciso de sua ajuda. Você não pode falar com seus amigos compositores, quem pode assumir a direção?”. Eu consultei, ninguém podia. Ele me convidou. “Mas eu viajo direto”. “Eu te dou autorização para viajar, eu posso fazer isso”. Eu assumi detestando. Um dia aconteceu uma coisa: “ué, ele tá aí? Ele não vive viajando?”. A primeira universidade que me convidou para abrir a classe de violão foi a UFRJ, do outro lado da rua. Ao mesmo tempo o Guilherme também soube da história e o [professor] Luiz Paulo Sampaio veio da Unirio perguntando se eu não queria abrir também lá. “Olha, pessoal, é o seguinte, a ideia me fascina completamente, eu estou até aqui com esse negócio de viagem. Só que não pode ser assim de repente. Eu agora vou freando as coisas devagarzinho até conseguir sair com elegância de uma série de compromissos”, havia compromissos assumidos até três anos na frente.

Você falou detalhadamente de alguns discos feitos na Europa e na volta ao Brasil saíram dois discos, um pouco depois, que eu considero muito importantes: Valsas e Choros [1979] e Choros do Brasil [1977], de que participaram [os violonistas] João Pedro Borges e Raphael Rabello. Como foi o contato com Raphael? Qual era a data, João Pedro, em que a gente saiu pelo Brasil fazendo o Seis e Meia? [“76, 77”, responde João Pedro]. Nessa época eu tava procurando um violão sete cordas. Aí liguei pro Hermínio: “Você conhece algum bamba?” “Tem um garoto que tá começando, vou mandar aí pra tua casa”. Abri a porta tinha um molequinho, gorducho, sério pra burro, não ria nem por decreto. Sentei, “pega o violão aí”, ele destroçou o violão, e eu, “caramba, você é um ET!” [risos]. Mas não ria, seríssimo: Raphael Rabello. Aí nós saímos pra turnê com ele: João Pedro, Raphael, Jonas no cavaquinho, [a cantora] Alaíde Costa, [o flautista e clarinetista] Copinha e Chaplin na percussão. Percorremos o Brasil todo, João Pedro era o carrasco do Raphael. Ele acompanhava muito e João Pedro dizia: “você tem que solar, dominar como solista”. As pessoas viam a precocidade do Raphael, já ganhando dinheiro, acompanhando todo mundo. Tanto batemos que mais tarde quando ele encontrou Radamés [Gnattali, pianista e maestro], ele tava lendo bem música, conhecia o outro lado da música, não ficava só preso no acompanhamento, que ele fazia muito bem.

E como era sua relação com Radamés? Ótima! Eu conheci Radamés, mais uma vez, por causa do Hermínio. O Radamés fez uma série de estudos e o número 1 é dedicado a mim e eu nunca toquei. Aí um dia ele me telefonou, “ô, Turíbio, você nunca tocou o meu estudo? Que negócio é esse?”. “Ô, Radamés, eu gosto muito dos estudos, acho eles lindos, mas cada estudo é a cara do violonista que você dedicou, mas não é a sua cara. Eu ouvi os discos com Edu da Gaita, com seu sexteto, esse é o Radamés! Por que você não faz um negócio Radamés para o violão? Samba, bossa nova, choro…” “Deixa que eu vou fazer”. 15 dias depois tava pronto. Aí eu gravei pra Erato, publiquei na coleção Turíbio Santos, da [editora] Max Eschig, e fiz a estreia, meu circuito era Londres, Paris e trouxe tudo isso pra ele. Ele ficou felicíssimo. Chama-se Brasilianas 13, com bossa nova, samba bossa nova, a valsa e o choro e era a cara do Radamés. Aí ele ligou: “Vamos fazer outros?” [risos]. Fez outra e eu disse, “Radamés, está faltando uma literatura do Nordeste para violão”, aí ele fez uma pequena suíte com toada, frevo. Foi a última música que ele fez. Ele não morreu logo em seguida, mas foi a última música que ele conseguiu escrever e trabalhar.

Você saiu muito cedo do Maranhão, aos três anos e pouco de idade. Como é a relação com a terra natal? Fortíssima! Eu saí com três anos, mas meu pai vinha todas as férias, eu sempre vinha com ele. A Rua das Hortas eram só parentes e amigos. Infelizmente a maioria morreu.

De alguma forma isso influenciou tua música? Quando Fernando Bicudo estava dirigindo o teatro [Arthur Azevedo], ele me chamou para uma semana de reestreia e sugeriu: “por que você não compõe alguma coisa?”. Aí eu compus uma suíte chamada Teatro do Maranhão, que virou disco e depois virou concerto para violão e orquestra.

Teus discos hoje estão quase todos esgotados. O que se acha é para download na internet. O disco de violão, como todos os cds, eles fazem uma tiragem. Botam mil no mercado. A cabeça dos caras é o seguinte: se os mil venderem em uma semana, eles fazem mais mil. Mas se durar um mês eles não fazem mais. É uma loucura! Na Europa não se usava esse critério pavoroso de lucro, de ganância a qualquer preço. Ontem eu toquei na Academia Brasileira de Letras e tinham seis discos meus à venda. As companhias são tremendamente predadoras.

Como é a sua relação com tecnologia? É boa, eu acho a tecnologia ótima, contanto que ela não interfira na coisa interior que eu tenho. Que ela sirva!

Então você é a favor do download? Eu não compraria um disco meu hoje, tá tudo no youtube, com imagem, com tudo [risos]. Não tem como ser contra. A produção não consegue ser protegida defronte dessa máquina. Ela nivela por baixo. Havia uma seleção, bem ou mal, eu passei por várias seleções até chegar a fazer esses discos todos. De repente, esses discos todos sumiram. Hoje em dia qualquer garoto faz o seu disco em casa e bota na internet. É uma coisa aproximativa, com o som mais ou menos, e bota no youtube, é terra de ninguém. Eu mesmo, quando quero pesquisar alguma coisa a meu respeito, eu vou no youtube direto. É mais rápido eu achar lá do que na minha estante.

Uma das primeiras ocorrências é a execução do Choros nº. 1 [Heitor Villa-Lobos] com você e a Orquestra de Violões. Ah, é. Aquela é muito forte!

Falando em Villa-Lobos, como foi seu contato pessoal com ele? Eu só tive um contato com Villa-Lobos. Mas não podia ser melhor do que foi. Eu fiquei três horas sentado numa mesa com ele, ele falando da música dele para violão e da carreira dele toda. Foi em 1958, um ano antes dele morrer, no antigo Conservatório de Canto Orfeônico, no Rio. Na mesa estavam sentados Arminda Villa-Lobos, ele e Julieta, irmã da Arminda, e do lado de cá estavam Ademar Nóbrega, que veio a ser um biógrafo dele, eu e mais uma outra pessoa. Eu fui parar ali, com 15 anos de idade, por que havia um programa de rádio chamado Violão de ontem e de hoje, feito pelo Hermínio e pelo Jodacil, e eles não podiam ir. O Hermínio, como sempre visionário e memorialista, disse: “anota tudo o que ele disser, mesmo que você ache que não seja importante, um dia vai ser”. E eu fiz exatamente isso. Ele falou três horas, mostrou música, mostrou disco de Segóvia. Isso eu transformei num livrinho chamado Villa-Lobos e o violão, editado pelo Museu Villa-Lobos, com a revisão da própria Arminda, que estava lá.

Chorografia do Maranhão: Raimundo Luiz

[O Imparcial, 15 de setembro de 2013]

Diretor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo e titular do bandolim do Instrumental Pixinguinha, Raimundo Luiz é o 15º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivânio Almeida Santos

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Bandolinista, cavaquinhista, violonista, violinista. Músico, enfim. Raimundo Luiz está em São Luís a passeio. Quer dizer: ele nunca retornou à cidade natal depois de chegar à Ilha entre 1975 e 76, movido pela curiosidade de descobrir o que era “a cidade”. Atualmente, visita Cedral e a baixada a trabalho, difundindo o choro e pesquisando-o, num movimento de mão e contramão como o da maré que o trouxe para cá, numa época em que para se chegar à São Luís eram necessários dois ou três dias de barco.

Raimundo Luiz Ribeiro nasceu em 15 de junho de 1960 no povoado Jacarequara, em Cedral – então Guimarães –, Litoral Ocidental Maranhense. Sobre a origem do nome de seu lugar, ele explica: “tinha uns alagados, os jacarés quaravam, ficavam lá de papo pra cima, quando tinha um sol quente”.

Sua genética musical talvez se explique pelo fato de o pai, o lavrador e carpinteiro Lucílio Ribeiro, ter sido “uma figura que adentrou muito na coisa do boi de zabumba, na época era o Boi do Jacarequara. Ele fazia parte do cordão, era um brincante”. O pai construiu a maioria das casas do povoado e outros adjacentes, por onde andava, entre o boi e a carpintaria. “Segundo alguns documentários históricos, o boi da região de Guimarães nasceu por ali, outros interiorezinhos, Damásio”, remonta Raimundo. Edite Rosa Ribeiro, sua mãe, era também lavradora, primeiro campo em que atuou o bandolinista do Instrumental Pixinguinha, hoje diretor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo.

Raimundo Luiz recebeu a chororreportagem nos jardins da EMEM, quando findava a tarde. Durante a conversa, tocou Elegante, choro de sua autoria, gravado em Choros Maranhenses, disco de seu grupo que registra o que entrega o título, e Flor Amorosa, de Joaquim Callado.

Entre discos que já tocou, lembra, além do citado Choros Maranhenses, do primeiro disco do Cacuriá de Dona Teté, onde compareceu de banjo e violino, além de Hongolô, de Cláudio Pinheiro – é dele o violino em Tocaia, de Cesar Teixeira, vencedora do Festival de Marabá/PA, em 1994. Aos pais, já falecidos, deixou um agradecimento: “Eu queria deixar um recado a meus pais, que mesmo na labuta da roça, no seu dia a dia de lavradores, mesmo sem me propiciar grandes condições de educação, me propiciaram estar aqui agora. Isso pra mim é extremamente saudável, enquanto homem e enquanto músico”.

Foto: Rivânio Almeida Santos

Jacarequara já virou nome de choro? Ainda não [risos], mas há perspectivas pra isso.

Você ainda visita a região? Jacarequara eu estou tendo a satisfação de ir mensalmente. Nós colocamos no ano passado um projeto de interiorização do choro, eu e Zezé [Alves, flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013], e eu coloquei dentre as seis cidades de minha região, o município de Cedral, como coloquei Cururupu, Guimarães e outras pra cá [mais perto de São Luís]. Justamente pra tentar buscar essa coisa da música instrumental, que eu vi lá desde criança, molequinho, 10 anos. A minha cidadezinha, embora seja um povoado bem rural, tinha nem luz elétrica na época, tinha um quarteto de música na cidade, um quarteto de irmãos, um tocava trompete, outro a zabumbinha, pandeiro, a percussãozinha e um banjo. Esses homens adentravam em todas as manifestações folclóricas e religiosas dos povoadozinhos: festa de São Luís, Santa Luzia, São Sebastião, Santana, Divino, Pastor, até hoje é muito forte pra lá o pastoral. Eu adorava ver esses senhores tocando! Paralelo a essa coisa, a essa prática instrumental dele, também tinha as radiolas, que não são as radiolas de reggae de hoje. Eram pequenas radiolas de festa, que tocavam na época muita música instrumental, muito [o saxofonista] Saraiva, [o cavaquinhista] Waldir Azevedo, principalmente a música de sopro. Aquela coisa foi nascendo em mim esse desejo, esse sabor pela música instrumental. Daí eu comecei esse gosto musical.

Você se lembra de estar inserido nessas festas a partir de que idade? Acho que 12, 13, 15 anos. Até então a gente não ia pra festa, os pais não deixavam.

Dá para perceber nessas suas falas, a vivência musical na cidade, no povoado. Como era a vivência musical em casa? A vivência dentro da minha casa, não tinha. Praticamente assim, só rádio mesmo. Lembro que papai tinha rádio, escutava muito a Rádio Educadora de madrugada. Mas a gente não tinha radiola, não tinha nada de som na minha casa. Até pela própria carência mesmo, a gente morava em uma casinha de taipa, coberta de palha, não tinha luz, não tinha nada.

Com essa idade com que você começou a frequentar as festas já se interessou por querer aprender a tocar? A vontade de tocar era imensa, mas a condição, entendeu? Daí a primeira oportunidade que eu tive de vir morar em São Luís, até por uma curiosidade que eu tinha, de saber o que era a cidade. Só se viajava pra cá de barco, barco a vela. Eram dois, três dias pra chegar aqui, principalmente no inverno. Meus dois irmãos já moravam aqui, só os via de dois em dois anos. Eu ficava me questionando e aos meus pais, “pra onde meus irmãos tão?”, “tão pra cidade”, “e o que é a cidade?, eu também quero conhecer a cidade, como é que esse barco chega toda semana cheio de arroz, lata de querosene, onde é que se faz isso?”, eu ficava com aquela coisa em mim.

E o impacto com a cidade? Pode crer! Eu cheguei ainda na época dos jipes, achei uma coisa, a minha cabeça pirou. Tanto é que eu não voltei mais, já procurei meios de ficar por aqui mesmo. E fui buscando meu caminho musical.

Tua vinda, então, foi a passeio, e você não voltou mais? Eu tinha uma necessidade de ficar, uma necessidade pessoal mesmo. Eu queria fazer algo diferente. Essa coisa da música que eu tinha como raiz, lá não ia me proporcionar. Procurei alguns serviços, trabalhei em inúmeros locais, em casa de umbanda, como atendente, fazer os banhos, defumador. Vendi livros. Depois consegui um emprego de auxiliar de serviços operacionais numa empresa, e com esse primeiro emprego eu tive meu primeiro salário e comprei meu primeiro violão, novembro de 79.

Você chegou a trabalhar na roça? Literalmente na roça. Com 12, 13 anos. Capinando, abatendo, roçando, plantando, as mais diversas colheitas. Quando eu não ia pra roça, eu ia pra pesca, por que como eu já tava meio taludinho, como papai dizia e Luiz Gonzaga, que ele gostava muito de ouvir, enquanto ele ia pra roça eu ia pra pescaria, botar uma rede, tirar um sururu, de alguma forma, pra quando ele chegasse meio dia já ter o sustento [alimento].

Quais são as melhores lembranças desse período? Sinceramente, além desse sabor musical que eu adquiri na infância, mesmo sem saber tocar nada, essa cultura que eu tive, familiar, de respeito, de admiração pelo que eu sou hoje, por essa relação que meus pais me deram de entendimento, de família.

E na Escola de Música, você entrou quando? Trabalhando como operacional nessa empresa, eu tive o prazer de sair dessa coisa de rua, de office boy, e fui trabalhar numa sessão de fotocópias. Essa empresa ficava na rua Treze de Maio, que era próximo à Rua da Saavedra, onde era a Escola de Música. Sempre ia uma senhora lá, dona Maria José, chegava semanalmente com uma pilha de material de música pra tirar cópia. Eu tinha chegado na sessão na época e fiquei loucamente curioso pra saber que monte de coisa pretinha era aquela. “Ah, isso aqui é música, é partitura!”. Ela me levou à Escola de Música, em 1980, já fora do período de inscrição, me apresentou para a então diretora Olga Mohana. Ela já tinha esse sonho que nós temos até hoje, de ter uma Orquestra Sinfônica no estado. Ela já me viu tocando violino, já me ofereceu o violino pra estudar. Eu não tinha instrumento e queria isso mesmo.

Então você passou por violão, por conta própria… É, estudei esse violãozinho lá no bairro do Monte Castelo, morava lá com os parentes. Tive certa resistência por parte da família daqui: vim do interior, fui logo comprar um violão. Enfim, consegui mostrar pra todo mundo, que a partir do violão eu consegui chegar onde eu queria.

Você concluiu o curso de música por aqui? Me formei em violino. Comecei a estudar o violino, trabalhava fora também o violão, que eu tocava na Igreja da Conceição, no Monte Castelo, em grupo de jovens. Em 1984, sempre tinha em Brasília, Curitiba, esses festivais de verão, festivais de inverno, eu procurava sempre me aperfeiçoar no violino. Ia eu, várias pessoas aqui da Escola, pegava o ônibus, ia pra Curitiba, pra Brasília, fiz vários cursos, e consegui trabalhar o violino. Mas sempre, paralelo ao violino, eu estudava também o violão. Cheguei a estudar também cavaquinho, toquei em grupos de samba. Em 1987 eu peguei dois serviços com música, já era monitor na Escola de Música, de solfejo, teoria musical, e fui convidado pra ministrar aulas no [Colégio] Marista e nesse mesmo período fui convidado a fundar um coral com os funcionários dos Correios. Eu louco pra viver de música, aceitei os serviços. Trabalhava duas vezes por semana nos Correios e tinha uma carga horária no Marista também, trabalhando com educação musical em sala de aula, para o fundamental e também para o ensino médio. Passei quase 12 anos no Marista como professor de música, a [cantora] Flávia Bittencourt foi minha aluna lá.

A partir daí você passou a viver de música? Literalmente. Viver de música. O trabalho com o coral dos Correios foi tão bacana, viajamos vários regionais Norte e Nordeste. A Associação dos Correios, que na época era o [bandolinista] César Jansen, o [percussionista] Carbrasa, era todo mundo de lá, “vamos criar um grupo de samba”, e lá vem o professor Raimundo Luiz, criamos o Arco Samba, tocamos aí na época no Dunas Center [centro comercial, na Cohama], Maré Chic [próximo ao retorno do São Francisco]. Foi uma boa temporada também com a coisa do samba. Daí eu comecei a gostar do cavaquinho, viajei várias vezes para Brasília, estudei com [o cavaquinhista] Henrique Cazes, depois fiquei só com o bandolim.

Como se deu essa passagem, em definitivo, para o bandolim, que é o instrumento pelo qual você é mais reconhecido hoje?

Ele veio, acho que pelo gosto do choro, da coisa pequenininha lá do interior. Eu escutava o chorinho no bandolim, no cavaquinho, no saxofone, na sanfona e me identifiquei com a coisa do bandolim, abracei o bandolim. Embora eu nunca tenha abandonado o violino. Achei também mais vantagem financeira no bandolim, a gente estava sempre tocando o bandolim.

O sonho da orquestra vem desde a época de Olga Mohana. Como está esse processo hoje? Nós temos um núcleo de cordas que sustenta ainda esse sonho. Temos uma mini orquestra de 20, 25 músicos, uma pequena orquestra de câmara, sob a coordenação do professor Joaquim Santos [violonista]. O que falta para essa orquestra é vontade política. Pra que ela cresça, nesse ponto de vista da orquestra sinfônica, precisa ter muita força de vontade. Uma orquestra sinfônica eu a vejo vinculada à instituição, eu não vejo a Escola de Música tomando conta de uma orquestra, por que nós vamos deixar nossos afazeres didático-pedagógicos pra tomar conta de uma orquestra. Uma orquestra sinfônica, ela, em si, é uma instituição, e muito grande, por sinal. Muita gente pergunta por que a Escola não faz uma orquestra, não tem uma orquestra? Não tem que ter! A Escola já tem uma função, que cumpre muito bem. Eu acho, né? [risos].

Quando é que você passa a atuar como professor da Escola de Música? Em 83 eu já comecei a ministrar aula. Quando eu formei em 88, violino, eu fui nomeado. Nessa época não tinha concurso. Eu, [o violonista sete cordas] Domingos Santos, Zezé, Paulinho [Paulo Santos Oliveira, flautista], todo mundo trabalhava como monitor.

E o choro? Quando é que começou efetivamente? Minha participação no choro, eu entrei no Pixinguinha em 94, 95, o Pixinguinha começou em 90, eu entrei cinco, seis anos depois, comecei a trabalhar o bandolim no choro.

Você entrou no Pixinguinha tocando cavaquinho ainda, não é? Foi, no cavaquinho, fazendo base. O bandolinista era o Jansen. Carbrasa na percussão, depois entrou [o percussionista] Quirino, ou foi o contrário. Paulinho já foi do Pixinguinha, Zezé, [o violonista] Marcelo Moreira, Garrincha fez a percussão um bom tempo.

E a sua chegada à diretoria da Escola? Eu fui convidado em março ou abril de 2009. Ligaram da Secretaria [de Estado da Cultura, à qual a EMEM é vinculada] se eu aceitaria, passei umas horas pensando. Resolvi aceitar, não pelo cargo, mas pelos quase 30 anos que eu tinha, na época, de Escola de Música. Eu tinha na cabeça as necessidades que a gente desejava, enquanto professor. A gente já tem uma noção das perspectivas, acredito que eu já realizei algumas delas, estamos realizando outras. Há coisas muito boas que temos feito por aqui, sinceramente. Dentre elas a conclusão de nosso plano político-pedagógico. Não tinha! Era um documento antigo, metodologia antiga. Fizemos várias equipes, caímos para pesquisar, desde 2010. Terminamos em 2012, agora. Dois anos de pesquisa bibliográfica pra arrumar, adequar essa nova metodologia, novo padrão de ensino, baseado no currículo nacional.

Qual a diferença que hoje tem o processo de ensino-aprendizagem na Escola para o que era antes? O que significou a consolidação desse documento? Esse documento, diga-se de passagem, ainda não está aprovado no Conselho Estadual de Educação, embora já o estejamos utilizando. Ele traz de diferente uma série de fatores, entre eles as diversas metodologias de ensino que nós usamos hoje em sala de aula, tanto na teoria quanto na prática, os padrões de estudos, os novos métodos de teoria musical, ritmo, solfejo, que você aplica, estudos práticos em turmas coletivas, a descentralização dos cursos. Por exemplo, hoje nós temos cursos básico infantil, fundamental infantil, fundamental adulto e técnico profissionalizante, separou tudinho. Estamos reduzindo esse curso técnico profissionalizante, que era de cinco anos, para três anos.

Teoria e prática caminham juntas agora? Teoria e prática, não tem mais essa coisa de passar um ano na teoria para depois chegar na prática. Entrou, caminhando junto.

Durante muito tempo a Escola de Música teve um perfil erudito. Como está o espaço da música popular hoje, na formação? A gente sempre tem procurado acabar com essa linguagem, que é pejorativa. A gente tem que procurar fazer a música, a boa música. A Escola de Música está mais aberta, hoje a gente vê muito evento popular, dizem que “a música popular chegou à escola de música”; não é isso: não se trata de música popular ou erudita, é a música, o povo quer ouvir música de qualidade.

Mas durante muito tempo as escolas de música e os conservatórios meio que negligenciaram a música popular. Em Pernambuco o choro está tendo um papel fundamental no conservatório de música, o próprio Marco César [bandolinista] esteve aqui recentemente e disse que foi uma luta, uma conquista recente. Nós fizemos ano passado, isso também foi uma conquista, nós tínhamos aqui na Escola encontros que a gente denominava de semanas. Semana de piano, semana de canto lírico, semana de violão. A partir do ano passado, nós decidimos fazer encontros de música de câmara. Aí você junta, esse aqui do piano, com aquele ali do canto, com esse aqui do violão erudito e trabalha conjuntamente e no final da semana, você está trabalhando vários núcleos no mesmo período e no mesmo palco e fica a coisa camerística. Foi um ganho que a Escola teve. Para esse ano nós já estamos pensando, nesse segundo encontro, que será agora em novembro, dentro do Encontro de Música de Câmara, a primeira Oficina de Choro do Maranhão. Eu tive um contato há duas horas com [o flautista] Toninho Carrasqueira, ele já está fazendo contato com outros. Em breve teremos a definição desse grupo, da oficina que estará dentro do encontro.

Falando em choro, qual a situação do Pixinguinha hoje? E o que significa este grupo para você? O Pixinguinha, para mim, é minha identidade pessoal maior. É o que eu mais trabalho, o que eu mais toco, o choro é o gênero que eu abracei, com que convivo diariamente. O Pixinguinha tocou nove anos na Lagoa da Jansen e depois que eu assumi a Escola não tive mais tempo. Preocupado com a gestão, eu não tinha como sair daqui sete da noite, chegar lá, tocar até meia noite. Eles ficaram lá os quatro, depois resolveram deixar. De lá para cá temos tocado muito em eventos particulares. Ao menos duas vezes por mês a gente toca. Nossa perspectiva é trabalharmos o segundo cd.

O que significou para você o fato de o Pixinguinha ter sido o primeiro grupo a gravar um disco de choro no Maranhão, registrando músicas tanto de vocês, membros do grupo, quanto de chorões que estavam inéditos? Isso foi uma pesquisa muito interessante que a gente começou a fazer logo que pensamos em gravar. Saímos buscando as pessoas. O choro de Zé Hemetério [Viajando pra Carajás], eu pensei logo, eu morava próximo dele no Monte Castelo, próximo à Estrada de Ferro na época. Toquei com ele no Canta Nordeste [festival de música da Rede Globo], defendemos a música do César Nascimento. Zezé procurou outros e assim a gente saiu caçando, Nuna Gomes [Um Sorriso]. Esse registro, pra mim, foi fantástico, não pelo fato de ser o primeiro grupo, mas por registrar, ver a coisa acontecendo, colher a partitura, copiar, registrar.

Esse disco foi registrado nos estúdios da Escola de Música? Como está esse estúdio hoje? Tudo foi feito lá, masterização, uma parte foi feita com o Henrique Duailibe, que na época era técnico do estúdio. Hoje ele está um pouquinho a desejar, mas muito em breve, já estamos com os recursos alocados para dar uma recauchutada. Vamos trocar toda essa parte de informática e de áudio.

Choros Maranhenses. Capa. Reprodução

O [disco] Choros Maranhenses me parece ter tido um desdobramento com o Caderno de Partituras de Zezé. O que o Pixinguinha está pensando para o segundo disco? Há alguma relação com esse caderno? Com certeza! Esse segundo disco a gente vai tirar uma boa parte do que já pesquisamos por onde andamos, com esse projeto no interior, e buscar outras pesquisas, até pra fazer um segundo caderno, se for o caso, e ampliar esse repertório do choro, o qual já vai fazer parte do nosso acervo bibliográfico. A Escola de Música tem um projeto apoiado pela Fapema [Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão] de digitalização de todo o acervo. Todos os equipamentos já estão chegando, pra gente digitalizar tudo o que nós temos, fitas k7, VHS, LPs, tudo vai ser digitalizado e vamos criar também um banco de partituras de autores maranhenses. É bom que toda a cidade esteja sabendo, os artistas que não têm suas músicas copiadas, escritas, podem trazer que a Escola vai fazer isso. Já temos profissionais e bolsistas contratados para isso.

Como você está observando a cena brasileira do choro hoje? Cada dia que você põe um programa, assiste um canal, a gente vê coisa nova, impressionante, a gente pira. Novas invenções, novos retratos da música, do choro. Pra mim é extremamente inovador, criativo, interessante. É uma nova roupagem. É igual aquela capa do cd do Pixinguinha: aquele monte de tinta, vem a do meio, a de fora, é tudo se renovando.

Que nomes você destacaria? Pelo Maranhão mesmo eu falaria do Robertinho [Chinês, bandolinista e cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013], acho que é um grande nome que temos por aqui, tem uma pegada própria dele, tem uma versatilidade muito boa, acho muito interessante o trabalho.

E dos grandes mestres, de outras gerações? Quem é a sua grande referência? Não vamos falar do Jacob [do Bandolim], por que Jacob é Jacob e é de todos. Eu pessoalmente adoro o Joel [Nascimento, bandolinista], estudei três vezes com ele, em três oficinas. Foi o Joel quem me deu um laboratório de bandolim. Fui o bebezinho do Joel. É um cara que tem um jeito todo especial de lidar com o aprendiz.

Hoje os bandolinistas mais jovens, todo mundo cita, é quase uma unanimidade, o Hamilton de Holanda. Com certeza! O Hamilton é uma referência. Em 90 e alguma coisa eu era aluno do Joel e o Hamilton também era aluno do Joel. Nós éramos da mesma sala, nos encontrávamos. Nessa época o Hamilton já era o Hamilton. As palavras do Joel para o Hamilton eram “você já é músico, já faz o que faz, tem o domínio do instrumento, o que você faz é seu, é isso mesmo”, isso em sala de aula.

Se a gente observa bem o choro feito em São Paulo, Rio, Porto Alegre, Recife, Pará, tem estilos particulares. Você consegue identificar isso? O disco do Pixinguinha meio que deu uma mostra do nosso estilo. Você acha que temos um jeito próprio de fazer choro no Maranhão? Essa mistura, essa identidade do choro do Maranhão está nessa riqueza rítmica que a gente absorve, não tem como se livrar disso. Se você vai no Recife tem algo diferente, o Pará tá bem aqui, a gente tá nesse meião, sem falar nessa polirritmia que a gente tem aqui. O cd do Instrumental veio com essa cara.

Você se considera um chorão? Com lágrimas! [risos]. Eu gosto. Gosto muito de choro, mas eu não sou só choro. Mas eu diria que 90% do meu eu é choro.

Isso te faz um chorão. Isso me faz um chorão [risos].

O fôlego musical de Zé da Velha e Silvério Pontes

[sobre o show da dupla, ontem (19), no Clube do Choro de Brasília, em companhia dos amigos Glauco Barreto, Ricarte Almeida Santos, Nelson Oliveira e Paulo Sá ]

Visivelmente mais magro após uma cirurgia, o trompetista Silvério Pontes não deixa nada a dever. Esbanjou boa forma e saúde musical ontem (19) no palco do Clube do Choro, em Brasília/DF.

Ao lado do trombonista Zé da Velha, com quem forma uma dupla – “a menor big band do mundo” – há 28 anos, desfilou um repertório vibrante de choro, acompanhados do quarteto Choro Livre, grupo anfitrião da capital federal, um dos tantos formados no bandolim projetado por Oscar Niemeyer que serve de sede ao Clube do Choro brasiliense.

Abro parênteses: impossível não adentrar o recinto, entre bar e teatro, adornado por um painel com temas chorístico-musicais, o fundo de palco evocando o homenageado do ano, o pianista acriano João Donato, e perguntar quando São Luís, outra importante praça do mais brasileiro dos gêneros musicais, terá uma sede algo parecida. Fecho parênteses.

Foi com música de João Donato que Zé da Velha e Silvério Pontes abriram o show: uma execução primorosa de A rã (letrada por Caetano Veloso). Clássicos do choro, como Cheguei (Pixinguinha), Pedacinhos do céu (Waldir Azevedo), Carioquinha (Waldir Azevedo), misturaram-se a temas menos conhecidos, como Casa nova (Pedroca) e Maxixe da família (Silvério Pontes).

Ainda houve espaço para piadas, entre as declarações da dupla pelo prazer de voltar à cidade em que ainda tocam hoje (20) e amanhã (21), às 21h (ingressos à venda no local, R$ 20,00). “Já são 28 anos tocando juntos, já é Zé da Velha e Seu Velho Pontes”, brincou o trompetista.

Com seus cabelos prateados e timidez característica, além do fôlego para soprar seu trombone, Zé da Velha ainda cantou Ai, que saudades da Amélia (Mário Lago/ Ataulfo Alves), para deleite da plateia.

Para semana que vem a produção do Clube do Choro anunciou apresentações do bandolinista baiano Armandinho Macedo, “depois do turbilhão do carnaval”. Inspirado nos acontecimentos chorísticos em Brasília/DF, Ricarte Almeida Santos, que estava na plateia, estuda a possibilidade de o Clube do Choro do Maranhão tornar às suas atividades musicais em breve.

Carlinhos Patriolino recebe amigos Entre Notas

A primeira vez que ouvi falar no cearense Carlinhos Patriolino foi em 2010, quando ele emprestou seu talento a Pra chorar no Rio, parceria de Ricarte Almeida Santos e Gildomar Marinho, gravada em Pedra de cantaria, segundo disco do segundo.

O bandolim do talentoso músico foi fundamental para o choro da dupla, letra de Ricarte, música de Gildomar.

Ano passado foi minha vez: parceria deste que vos perturba com Lena Machado (estreando como compositora) e Gildomar Marinho, o maranhense gravou, com o bandolim de Patriolino, Perdão de cônjuge, em seu terceiro disco, Tocantes. Acompanhando o processo de produção do disco, eu já havia ouvido versões cruas da parceria. Finalmente, antes de o disco sair, Gildomar me mandou por e-mail o mp3 com a gravação definitiva de nosso sambossa: as oito cordas do cearense eram o que faltava.

A honra de tê-lo em uma singela criação só aumentou minha admiração pelo bandolinista, sem dúvidas um dos maiores do país. E é dele que quero falar. Ou melhor: de seu projeto Entre Notas, inaugurado semana passada. Que bimestralmente irá reuni-lo a um parceiro, algum talentoso instrumentista ou algum talentoso artista da voz.

Os vídeos da série serão disponibilizados no canal do músico no Youtube. Para a estreia, Patriolino convidou ninguém menos que Nonato Luiz, talentoso violonista, seu conterrâneo. Juntos, tocaram Vivências, de autoria do bandolinista, título de seu novo disco, a ser lançado em breve.

“O projeto surgiu da vontade de gravar com pessoas que eu aprecio. Quis chamar grandes músicos que são meus amigos para tocar músicas que a gente gosta”, declarou Patriolino no material de divulgação de Entre Notas. O release não afirma, mas não será má ideia, num futuro breve, os registros tornarem-se disco e/ou dvd, não é?

Confiram Carlinhos Patriolino (bandolim) e Nonato Luiz (violão) em Vivências:

Lena Machado inaugura a série Amigos do Tira-Teima

O Tira-Teima em ação no saudoso palco do Bar e Restaurante Chico Canhoto, no projeto Clube do Choro Recebe

O Regional Tira-Teima completou 40 anos de atividades em 2013 e este ano planeja lançar seu disco de estreia, com repertório autoral e de grandes nomes do choro no Maranhão. O disco, ainda sem título, está sendo gravado no estúdio de Gordo Elinaldo e conta com arranjos de Ubiratan Sousa e dos integrantes do grupo.

São eles: Paulo Trabulsi (cavaquinho solo), Zeca do Cavaco (cavaquinho centro), Francisco Solano (violão sete cordas), Zé Carlos (percussão) e Serra de Almeida (flauta). O grupo já passou por várias formações, tendo figurado nos créditos do antológico Lances de Agora (1978), disco de Chico Maranhão gravado por Marcus Pereira na sacristia da Igreja do Desterro, em São Luís.

Dando prosseguimento à jornada comemorativa, o quinteto inaugura amanhã (31) a série Amigos do Tira-Teima. Revivendo os tempos de Clube do Choro Recebe, o grupo terá ao longo do ano diversos convidados especiais no palco. A primeira será a cantora Lena Machado, que noutras ocasiões já dividiu o palco com o mais antigo grupamento de choro em atividade no Maranhão.

O reencontro acontece às 20h, no terraço do Brisamar Hotel, lugar que faz jus ao nome e se configurou, há pouco mais de um ano, o palco regular do Regional Tira-Teima, com seu repertório de choro, todas as sextas-feiras.

Nesta, a participação de Lena Machado somará a Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Waldir Azevedo, Ernesto Nazareth e outros grandes mestres, gênios da criação musical brasileira como Bororó (Curare), Paulinho da Viola (Para um amor no Recife), Cesar Teixeira (Flanelinha de avião), Josias Sobrinho (Terra de Noel), Candeia (Preciso me encontrar) e, entre outros, Argemiro Patrocínio, cuja Amém cantará em dueto com Zeca do Cavaco.

A noite promete. E esta frase pode ser lida no plural, já que a lista de amigos do Tira-Teima é grande.

João Pedro Borges: um perfil necessário

Este perfil de João Pedro Borges tecido pelo jornalista Wilson Marques não pretende ser uma biografia definitiva do músico, mas preenche uma lacuna sentida quando se trata de pesquisar a vida e obra deste talentoso artista maranhense, que se declara professor, acima de tudo.

João Pedro Borges foi o mestre, o gênio escolhido por Wilson Marques para inaugurar esta coleção de perfis em que pretende retratar, em breve e daqui por diante, diversas personalidades das artes do Maranhão, quase sempre carentes de bibliografia que lhes abarque.

Renomado violonista, de fama internacional, João Pedro Borges, o Sinhô, participou de capítulos importantíssimos da música brasileira, como a Camerata Carioca do maestro gaúcho Radamés Gnattali e a consequente renovação do choro no Brasil, ali iniciada, além da “aterrissagem” do brasileiríssimo gênero nos Estados Unidos, para ficarmos apenas nestes exemplos, pois mais não caberiam nesta orelha.

Razão e sensibilidade, como cravou a poeta e amiga Arlete Nogueira da Cruz em artigo, João Pedro Borges não é apenas um, equilibrando-se entre o erudito e o popular, usando para tal não corda bamba, mas as cordas do instrumento que há muito abraçou profissionalmente: o violão é a vida de João, rima barata, ofício não. Nele combinam-se ainda a grandeza de ser um dos maiores neste vasto universo musical e a simplicidade e humildade que conquistam qualquer um com quem converse, sobre qualquer assunto, em particular sobre música.

Música o que queremos ouvir, tocada por João Pedro Borges, durante e após esta leitura, de tão agradável, ligeira.

[Orelha que escrevi para João Pedro Borges: violonista por excelência (Clara Editora, 2013), do jornalistamigo Wilson Marques, livro que inaugura a série Perfis maranhenses]

Tribo musical em palco da cidade

Conheci Ronaldo Rodrigues há mais de 10 anos, envergando uma guitarra numa das formações que teve o Som do Mangue, que depois se tornaria a Negoka’apor – já sem ele entre os membros.

Em minha memória o nome não se apagou, mesmo o músico tendo morado um tempo em Londres, voltado, e ido embora para o Rio de Janeiro: vez por outra eu ouvia demos da Som do Mangue a que tive acesso. Lá estava sua guitarra. No entanto, somente numa tarde quente de um sábado em agosto do ano passado nossos caminhos de talentoso instrumentista e ouvinte curioso, ele e eu, respectivamente, tornariam a se cruzar.

Os irmãos Almeida Santos, Ricarte e Rivânio, e este que vos perturba fomos entrevistá-lo na Barraca Paradise (Av. Litorânea). Na ocasião tocaria ali o Regional Tira-Teima, integrado por Francisco Solano (violão sete cordas), tio do entrevistado. Ronaldo já havia trocado a guitarra pelo bandolim e o rock e o blues pelo choro. Trocar é força de expressão, que vez ou outra ele volta a um e outro ou, melhor ainda, mistura tudo duma vez. A entrevista, para a série Chorografia do Maranhão, foi publicada nO Imparcial em 1º. de setembro de 2013.

Integrante do Novos Chorões, o moço começou bem na terra de Noel, referendado por Ricardo Cravo Albin, o homem-dicionário musical. Entre o bacharelado no instrumento de Jacob na UFRJ e o grupo, ainda arranja tempo para a Tribo de Jorge Amorim, baterista consagrado que já acompanhou nomes como Archie Shepp, Baden Powell, Dom Um Romão, Graham Haynes e Sivuca, entre outros.

Jorge Amorim e Tribo é um grupo formado pelo baterista, percussionista e compositor com Ronaldo Rodrigues (bandolim e guitarra), Bruno Makenzie (saxofones e flauta), Régis Alves (contrabaixo) e Wiliam Belle (guitarra). Em São Luís os dois primeiros tocarão acompanhados por Sávio Araújo (saxofone), Davi Oliveira (contrabaixo) e Tony Araújo (percussão). O show acontece nesta terça-feira (28), às 19h, no Teatro da Cidade de São Luís (antigo Cine Roxy). Os ingressos estão à venda na bilheteria do teatro e custam R$ 20,00.

Sobre o repertório, autoral, Jorge Amorim afirma, em vídeo de divulgação do grupo: “É samba, forró, xote, xaxado, jazz, fusion, hard. A música orgânica sempre estará presente!”. No show o público ouvirá músicas dos dois discos do grupo, além de inéditas que estarão no terceiro, que já está sendo gravado.

Versátil e incansável, Ronaldo Rodrigues tocará antes do grupo: entre o choro e o jazz, fará um show de abertura, entre bandolim solo, e duos com Francisco Solano e Morais (violão).

Gravado em Belo Horizonte, Cinco Gerações será lançado amanhã (24) em São Luís

Como o disco de estreia de Osmar do Trombone show de lançamento terá participações especiais

Oriundo de Carajri, na Baixada Maranhense, Osmar do Trombone é um talentoso músico, cujo nome pode ser lido em diversas fichas técnicas de discos e shows, além das rodas informais, escola fundamental para qualquer músico que se preze, ainda mais em se tratando de choro.

A genética não explica tudo e é sempre necessário muito trabalho para se desenvolver um talento. Feito pimenta e facebook, Osmar do Trombone vem sendo curtido já faz bastante tempo. Nascido em uma família de músicos, a história é por demais conhecida. Frequentadores do saudoso Clube do Choro Recebe, ouvintes do Chorinhos e Chorões de Ricarte Almeida Santos na Rádio Universidade FM (106,9MHz) e, mais recentemente, leitores da Chorografia do Maranhão nas páginas de O Imparcial, série para a qual o músico foi entrevistado em junho passado, já a leram ou ouviram, talvez mais de uma vez.

Inspirado e cheio de brejeirice, Osmar compôs um choro ao qual deu o nome de Quatro gerações. Eram ele – o próprio Osmar –, seu filho Osmar Jr., saxofonista, seu pai e seu avô. Depois, ao descobrir um bisavô que já tocava, mudou o nome da música: Cinco Gerações.

O belo choro batiza a estreia de Osmar do Trombone em disco solo, gravado ano passado em Belo Horizonte. O nome do solista não aparece na capa. Cinco Gerações é encarado como um trabalho da dupla formada por pai e filho, ou além, da grande roda que se tornou a feitura desta bolachinha recheada de felizes coincidências.

Osmarmanjos filho e pai em detalhe do encarte de Cinco Gerações

Depois de desistir do curso de Administração e resolver dedicar-se integralmente à música, Osmar Jr. prestou vestibular para Música em Minas Gerais – está cursando o bacharelado em saxofone na UFMG. Rapidamente virou figurinha fácil em rodas de choro em bares como Salomão, Pastel de Angu, Bolão e Mosteiro – tive a oportunidade de visitar este último em dezembro passado e já deveria ter escrito algo para compartilhar com os poucos mas fiéis leitores, não é mesmo?

Nestas rodas, Osmarzinho, como também é conhecido, sempre falou do pai – “papai toca trombone” – e sempre procurou mostrar a música instrumental produzida no Maranhão. Um dia Osmar foi visitá-lo, descascou o trombone e mandou ver Na Glória (Ary dos Santos/ Felipe Tedesco/ Raul de Barros): quase toma de seu filho o posto de xodó dos mineiros.

Entre idas e vindas entre Maranhão e Minas, sem pressa, com participações especiais e um repertório entre o autoral e as belas criações de nossos grandes mestres na arte de compor, Osmar do Trombone foi moldando Cinco Gerações, sonho agora realizado, já acalentado há bastante tempo.

Solidariedade e gentileza sabemos o que geram: senhor de seu instrumento, Osmar humildemente permitiu a presença de outros trombonistas em seu disco, o que certamente contribuiu para enriquecê-lo. O resultado evidencia as qualidades de Osmar enquanto instrumentista e compositor, um artista apto a subir em qualquer palco no mundo, sem nunca esquecer as referências de sua Baixada, de seu Maranhão de origem. As influências estão ali nas células rítmicas de suas criações, mesmo quando elas deixam livres – para improvisar e mostrar também suas influências – os músicos de Minas que aparecem na ficha técnica: Abel Borges (pandeiro), Alaécio Martins (trombone), Fábio Martins (percussão), Gilberto Júnior (trompete), Lucas Ladeia (cavaquinho), Lucas Telles (violão sete cordas), Luísa Mitre (sanfona), Marcelo Braga (sax soprano), Marcos Flávio (trombone), Miguel Praça (trombone), Oszenclever (pandeiro), Rafael Francisco (flauta), Raíssa Anastásia (flauta), Rodrigo Picolé (pandeiro), William Alves (trompete), além dos maranhenses João Neto (flauta) e Osmar Jr. (saxofones), este também integrante do Quarteto de Saxofones completado por Cesar Baracho (sax alto), Harrison Santos (sax tenor) e Luís Flávio (sax barítono).

Osmar do Trombone assina cinco composições: Saudades de Tororoma, homenagem a um rio que lhe banhou a infância, Cinco Gerações (que aparece em duas gravações, uma um bis em execução do Quarteto de Saxofones integrado por Osmar Jr. na UFMG), Momentos, Pulo do Gato, com acento jazzístico, e De ladeira abaixo. Intercaladas à porção autoral, as demais faixas funcionam como uma antologia do choro maranhense: O samba é bom (Antonio Vieira), Das cinzas à paixão e Rayban (ambas de Cesar Teixeira), Saiba, rapaz (Joãozinho Ribeiro) e Terra de Noel (Josias Sobrinho) demonstram também a coragem de Osmar do Trombone. Não é fácil nem simples regravar em leitura instrumental, choros com letras, ainda mais da lavra destes compositores. Não é que o músico dispense a lírica dos bardos, isso não explicaria: o que Osmar e companhia fazem é tornar – nunca reduzi-las a – instrumentais as criações alheias.

Cesar Teixeira, Joãozinho Ribeiro e Josias Sobrinho são alguns dos convidados do show de lançamento de Cinco Gerações, que acontecerá nesta sexta-feira (24), às 21h, no Barulhinho Bom (R$ 10,00, ingressos à venda no local). Além do filho Osmar Jr. (saxofones), Osmar do Trombone será acompanhado por Daniel Cavalcante (trompete), Domingos Santos (violão sete cordas), João Neto (flauta), João Soeiro (violão), Luciano Lima (percussão), Rafael Guterres (cavaquinho), Rui Mário (sanfona) e Wanderson Santos (percussão). Mas como em qualquer roda de choro que se preze, no Maranhão, em Minas Gerais ou em qualquer lugar, outros nomes com certeza aparecerão. São Cinco Gerações festejando: você não vai deixar a sua fora dessa, vai?