O Divino e o guia

O Divino em mim. Frame. Reprodução
O Divino em mim. Frame. Reprodução

 

Vinicius Maciel é literalmente o guia de O Divino em mim [documentário, Brasil, 2018, 30 minutos]. Guia de turismo em Alcântara, o jovem chama a atenção pela enorme barba e grandes alargadores que usa nas duas orelhas – além do sorriso cativante, que ele mesmo destaca, longe de imodesto, em uma de suas falas.

É ele que a câmera de Luiza FC – que assina direção, roteiro, câmera e edição do documentário – segue ao longo de meia hora de filme, com depoimentos de outros personagens importantes da Festa do Divino de Alcântara, a mais tradicional e possivelmente a mais longeva do Brasil, como a bandeirinha Andressa, o coordenador Seu Moacyr, as caixeiras Marlene e Romana, entre outros.

Vinicius é narrador, mas o protagonista é o Divino Espírito Santo, a festa a ele devotada, exercício de fé em catolicismo popular que une sacro e profano.

Distante pouco mais de 22 quilômetros de São Luís, o município de Alcântara é cinematográfico e sobrenatural, o que por si só já garante belas imagens. Luiza FC opta pelo percurso que faz a maioria absoluta dos turistas que vai até o município: de barco, a partir do cais da Praia Grande, em São Luís, atravessando a Baía de São Marcos, em uma viagem de cerca de uma hora. Já durante a travessia Vinicius começa a falar de sua relação com o município e com a festa.

É um filme que abarca a importância dos festejos para a população local, para o turismo de Alcântara, da preservação da tradição e, de modo divertido, as relações desta com o dia a dia do lugar: os papéis de cada homem e mulher na sua realização – a Festa do Divino tem lugar certo no calendário religioso, mas mobiliza tarefas durante todo o ano – e o bom humor de quem a faz, entre doses de licor, cachaça e conhaque, doces de espécie (iguaria típica do lugar) e uma bandinha de metais e percussão tocando músicas religiosas e sambas e marchinhas como Trem das onze (Adoniran Barbosa) e O teu cabelo não nega (José Victor Valença, José Raul Valença e Lamartine Babo). Nunca é demais lembrar que é desse híbrido de sagrado e profano que surge a Dança do Cacuriá, cuja base rítmica é alicerçada nas caixas do Divino.

O documentário foi realizado pela maranhense Luiza FC como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da USP. Sábado passado (28), às vésperas do início de mais uma Festa do Divino, o filme foi exibido em Alcântara, no Café com Arte (Rua Grande, 76, próximo à Casa do Divino). Hoje (30), às 18h, O Divino em mim será exibido no Laborarte (Rua Jansen Müller, 42, Centro), com entrada franca.

As sessões do filme integram a Mostra Divino Tambor, junto com o documentário Coreiras, da documentarista também maranhense Júlia Antunes, com apoio da Unesp. Semana que vem os filmes terão exibições no Rio de Janeiro (serviço na imagem abaixo).

Divulgação

Provando do próprio veneno

Eu não sou um homem fácil. Frame. Reprodução

 

Eu não sou um homem fácil [Je ne suis pas un homme facile, 2018, 98 minutos, produção: Netflix] é uma comédia inteligente sobre a guerra dos sexos. Equilibra-se entre engraçadíssimo e caricato, mas propõe reflexões importantes e urgentes.

Seu protagonista, Damien (Vincent Elbaz), um machista contumaz (redundância intencional), bate a cabeça e acorda em um mundo em que os papéis se invertem e os homens passam a sentir na pele (literalmente) toda a opressão desde sempre relegada às mulheres: agora são os homens as vítimas de assédio, os que se preocupam com a barriga que o chope pode proporcionar, os que recebem cantadas nas ruas, os que precisam se depilar, já que “pelo é sinônimo de nojeira”, entre outras violências a que as mulheres sempre estiveram submetidas, supostamente em nome de padrões morais, estéticos e, por que não dizer?, machistas.

O filme faz pensar rindo (ou rir pensando), ao tocar de forma bem-humorada numa chaga social, infelizmente naturalizada, pois profundamente enraizada por diversas culturas, geografias e tempo afora. Eu não sou um homem fácil demonstra como seria ridícula essa troca de lugares de opressores/as e oprimidos/as.

A diretora Eleonore Pourriat já havia pautado o tema no curta-metragem Maioria oprimida [Majorité Opprimée, 2010], em que os papéis também se invertem e um homem é vítima de opressão pelo simples fato de ser homem.

Não chega a ser um libelo anti-machista, mas pode levar à desnaturalização de certos padrões nocivos de comportamento. Tanto que o protagonista, após voltar ao “mundo real”, de antes da pancada na cabeça, engaja-se numa passeata pelos direitos das mulheres. Como deveríamos fazer todos/as nós, homens e mulheres, na construção de uma sociedade justa e igualitária.

Um duplo (re)play feminino

Homem de vícios antigos, este blogue, completa hoje (28) 14 ininterruptos anos no ar.

Em clima de retrospectiva, ligeira e possível, mas anunciando novidades, torno a duas mulheres sobre cujas obras já escrevi por aqui.

Titane canta Elomar – Na estrada das areias de ouro. Capa. Reprodução

A primeira, a cantora mineira Titane e seu disco mais novo, Titane canta Elomar – Na estrada das areias de ouro, sobre o qual escrevi para a coluna Emaranhado, no site do Itaú Cultural, e cuja entrevista publiquei cá no blogue. A novidade é que desde ontem o disco está disponível nas plataformas de streaming, vale ouvir.

A segunda, Monique Moraes, diretora e roteirista de Mulheres que transformam a ilha, em cuja sessão de estreia tive a satisfação de estar presente. A novidade é que o documentário está disponível no youtube para quem quiser ver/rever:

Re-Fellini

Ao descobrir o cinema de Fellini, Lucy tenta se corresponder com o ídolo. Frame. Reprodução

 

Federico Fellini (1920-1993) é como sarapatel: ou se ama ou se odeia.

Em busca de Fellini [In search of Fellini; EUA, drama/romance, 93 min; exibido esta semana no Cine Lume, Edifício Office Tower, Renascença] é uma linda homenagem ao cinema do italiano, autor de obras-primas como 8 ½, A doce vida, Amarcord, A estrada da vida e Noites de Cabíria, entre muitos outros – e por extensão, a música de David Campbell uma bela homenagem a Nino Rota, colaborador constante do homenageado.

O filme se passa em 1993, ano da morte de Fellini, e acompanha a viagem da americana Lucy Cunningham (Ksenia Solo) até a Itália, após descobrir o cinema felliniano e apaixonar-se pelo cineasta em um festival chamado Tutto Fellini – título de uma exposição ocorrida no Brasil em 2012 no IMS/RJ e Sesc Pinheiros.

Reverente, o filme não deixa de tirar onda: Claire (Maria Bello) e Kerri (Mary Lynn Rajskub), mãe e tia de Lucy, respectivamente, repetem o que comumente se ouve de quem não compreende o universo onírico de Fellini: “quem vê isso?”, perguntam-se, referindo-se aos filmes do diretor, tidos como “confusos”. É hilariante a cena em que uma diz: “essa é a parte que eu mais gosto”, enquanto a outra responde: “mas você ainda não viu isso”, e ouve de volta: “me refiro a ter chegado ao final”.

O filme de Taron Lexton é hábil ao entremear a obra de Fellini na jornada de Lucy, enquanto sua mãe definha, vítima de um câncer. “A vida é isso: seguir seus próprios sonhos”, diz um personagem a determinada altura. Mais felliniano impossível.

Aos 20 anos, Lucy deixa a bolha em que vivia, sob os cuidados da mãe superprotetora, para viver uma aventura idílica, recheada de atrasos, desencontros, fugas, perigos, paixões, fantasia e poesia.

“O visionário é o único realista”, nos ensina Fellini, em frase citada mais de uma vez em Em busca de Fellini. Mais do que nunca, nos tempos sombrios em que vivemos, o cineasta tem razão.

Para ver e se embriagar.

Ficção barata

 

Os efeitos especiais são inversamente proporcionais à qualidade do roteiro. Como se uma dose exagerada daqueles pudesse sustentar a fragilidade deste.

De Uma dobra no tempo [Fantasia/ficção científica, EUA, 2018, 120 min.], megaprodução da Disney, salva-se apenas a mensagem para que crianças e adolescentes acreditem em seu potencial. E olhe lá! De resto, é uma mistura de ficção científica barata, aventura juvenil e autoajuda.

O argumento é frágil: o cientista Alex Murry (Chris Pine) desaparece ao descobrir a tal dobra no tempo do título do filme e fazer uma viagem no tempo e no espaço. Some sem deixar rastro, passando por pai desnaturado, deixando os filhos à mercê da gozação de colegas no colégio e diante do próprio sofrimento e da mãe, a também cientista Kate Murry (Gugu Mbatha-Raw).

É aí que, “acreditando em si próprios”, após visitas de estranhos seres mágicos dotados de erudição barata e nomes estranhos (Sra. Qual, interpretada por Oprah Winfrey; Quequeé, por Reese Witherspoon; e Sra. Quem, por Mindy Kaling), os filhos – Meg (Storm Reid) e Charles Wallace (Deric McCabe), um superdotado de seis anos –, mais o colega Calvin (Levi Miller), partem em busca do próprio pai embarcando também na tal dobra do tempo.

Baseado no livro homônimo de Madeleine L’engle, ao filme da diretora Ava DuVernay não faria mal meia hora a menos. Para quem ainda não descobriu dobras no próprio tempo, melhor aproveitá-lo de maneira mais útil.

Cine MIS exibirá Manuel Bernardino: o Lenin da Matta

[release]

A cineasta Rose Panet. Foto: Zema Ribeiro

 

O documentário Manuel Bernardino: o Lenin da Matta, da cineasta franco-brasileira Rose Panet, será exibido no Cine MIS, dia 24 de março (sábado), às 18h, evento do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (Av. Europa, 158, Jd. Europa, São Paulo/SP) – entrada gratuita, retirada de ingressos uma hora antes da sessão, na recepção do MIS.

O telefilme, de 52 minutos, remonta a trajetória do líder camponês, socialista, vegetariano e espírita Manuel Bernardino, que ganhou a alcunha de Lenin da Matta dos jornais “Diário de São Luís” e “A Pacotilha”, na primeira metade do século XX.

A estrutura do roteiro é construída a partir do depoimento do protagonista em uma delegacia de polícia de São Luís em 1921 – o filme é narrado por Zeca Baleiro.

Personagem pouco conhecido, Manuel Bernardino arregimentou cerca de 200 homens para a Coluna Prestes quando da passagem das tropas do “cavaleiro da esperança” pelo Maranhão, talvez o maior contingente do movimento tenentista.

Em 2014 Manuel Bernardino: o Lenin da Matta foi selecionado em edital do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro (Prodav), através do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e está à disposição das emissoras públicas de tevê do Brasil.

O filme foi finalizado e lançado em 2017, já tendo sido exibido pelas tevês UFPE, UFMA, Assembleia (MA) e Rede Minas (MG). Em abril estreará também na TV Senado. Manuel Bernardino: o Lenin da Matta também vem fazendo carreira em festivais: participou da mostra paralela Cinema contra o Golpe, na programação do Curta Canoa, em Aracati/CE, e recebeu menção honrosa no Mumbai International Film Festival, na Índia.

Sobre Rose Panet – Paraibana radicada no Maranhão, Doutora em Antropologia pela École Pratique des Hautes Études (Paris, França), professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), a cineasta realizou mais de 15 curtas-metragens didáticos sobre a questão indígena para a Secretaria de Estado da Educação do Maranhão (Seduc). Finalizou recentemente o curta-metragem Amniogênese, sua estreia na ficção, filme convidado do 5º. Festival Internacional Lume de Cinema, encerrado ontem (21) no Cine Lume. Sua participação no debate após a sessão no Cine MIS tem apoio cultural da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo do Maranhão (Sectur).

Sobre o Cine MIS – O Cine MIS tem por objetivo criar um espaço permanente de lançamento de filmes, de todos os gêneros, captados em qualquer formato, sem limite de duração (curtas, médias e longas-metragens), que ainda não tenham sido exibidos em circuito comercial. Mensalmente são selecionados e exibidos no MIS de dois a cinco filmes realizados por diretores brasileiros, em datas selecionadas pelo Museu.

O micróbio da poesia

Os poetas Severina Branca e Jorge Filó em cena de O silêncio da noite é que tem sido testemunha de minhas amarguras. Frame. Reprodução

 

As reações à palavra poesia podem ser as mais diversas. Muita gente pode lembrar uma não rara desastrada experiência escolar, quando professores tentam empurrar goela abaixo, e pior, fazer decorar versos que ao aluno e seu entorno fazem nenhum sentido. Outros pensam em coisa de iluminados, gente com inspiração divina para cometer versos ou coisa parecida.

Dessacralizar o universo da poesia é justamente o que faz o documentário O silêncio da noite é que tem sido testemunha de minhas amarguras [documentário, Brasil, 2016, 78 min.], do serra-talhadense Petrônio Lorena (que assina também a trilha sonora), que estreia hoje (22) no Cine Lume (Edifício Office Tower, Renascença). Literalmente um baita título, síntese de dor e delícia de ser poeta.

Dessacralizar talvez nem seja bem o termo: a poesia continua sendo sagrada. O que o filme mostra, no entanto, é que pode ser fruto da cabeça (e coração) de qualquer reles mortal. Há uma cena em que um poeta, num bar (uma das locações mais constantes do documentário), advoga a favor do uso de álcool e outras drogas – em nome da poesia.

Geograficamente, o filme se localiza na divisa entre Paraíba e Pernambuco, em Ouro Velho e Prata, naquela, e São José do Egito, neste, lembrando mitos da poesia nordestina, entre vivos e mortos, privilegiando depoimentos de poetas em vez de especialistas – comparecem histórias de, entre outros, Lourival Batista e Biu de Crisanto.

Sobra bom humor em constantes exercícios de memória: não raro um poeta lembra uma glosa bem humorada, contextualizando a situação em que o verso foi composto, a tiração de onda de um repentista para com outro, a resposta deste àquele, e por aí vai. No fundo, a gente se sente bebendo entre amigos, a relembrar velhos causos, e rindo.

O longo e poético título é mote dado por Severina Branca a Didi Patriota. De poeta a poeta, ela também boêmia e prostituta, é uma das personagens mais interessantes do longa-metragem, considerada por muitos a Eleanor Rigby do Nordeste.

As reações à palavra poesia podem ser as mais diversas. Para alguns, ela significa a própria vida e sina.

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Veja o trailer de O silêncio da noite é que tem sido testemunha de minhas amarguras:

Fogo que não brinca

Limpam com fogo. Cartaz. Reprodução

 

A prática não é recente mas, convenhamos, tornou-se recorrente mais recentemente: incêndios criminosos em favelas como método barato de desapropriação ou reintegração de posse. Higienização e gentrificação, a gente vê por aqui, poderia dizer o slogan de uma rede de tevê, onde certamente nunca se verá Limpam com fogo [documentário, Brasil, 2016, 84 min.], título mais direto impossível.

O documentário conta o drama de diversos moradores de várias favelas paulistanas vítimas de incêndios, cujas investigações, com a construção de um discurso midiático a serviço de imobiliárias, construtoras e incorporadoras patrocinadoras de jornais e políticos, sempre aponta cinicamente para curtos-circuitos em gambiarras, panelas em fogões improvisados, o material utilizado no erguimento dos barracos ou qualquer outra desculpa que sirva para desresponsabilizar o poder público ou tirar o foco da especulação imobiliária, a real interessada em determinadas áreas.

O filme conta com depoimentos de especialistas como Ermínia Maricato, ex-secretária municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo (1989-1992) e ex-secretária executiva do Ministério das Cidades (2003-2005), e Guilherme Boulos, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), então ainda não alçado à condição de pré-candidato do PSol à presidência da república, colocando-os em diálogo com o drama das vítimas.

Em determinada altura, um dos entrevistados revela ter filmado um dos incêndios que consumiu a favela em que morava. Segundo ele, uma emissora de tevê ofereceu uma boa grana pelas imagens, mas ele preferiu não vender, por achar errado ganhar dinheiro em cima da tragédia alheia, no que o filme de Rafael Crespo, Conrado Ferrato e César Vieira também acerta: não há exageros, pieguice ou exploração gratuita da desgraça alheia. As vítimas são retratadas em seus papéis, de protagonistas de suas próprias histórias, agentes políticos, com sua organização, sua relação afetiva com as comunidades, projetando discussões sobre a função social da propriedade, entre outros temas de direitos humanos – direito à moradia, direito à cidade, transporte público, trabalho etc. O filme foi realizado com recursos obtidos através de crowdfunding.

Temporalmente o documentário se localiza nas gestões municipais do petista Fernando Haddad (2013-2016), que aparece no filme, e do então democrata Gilberto Kassab (2006-2012), hoje no PSD, que se negou a gravar entrevista.

Limpam com fogo é um instantâneo de Brasil, retratando alguns episódios de uma tragédia entre tantas possíveis, que todos os dias acontecem cada vez mais, infelizmente.

O filme foi exibido no Festival Internacional Lume de Cinema, encerrado hoje (21), no Cine Lume (Edifício Office Tower, Renascença). Por iniciativa dos professores Raoni Muniz, Rose Panet e Débora Garreto, do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), Limpam com fogo será exibido novamente amanhã (22), às 10h, no Cine Lume, para estudantes da instituição – a sessão extra é aberta ao público em geral. Os ingressos custam R$ 12,00.

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Veja o trailer de Limpam com fogo:

Filme de Sérgio Ricardo abriu ontem Festival Internacional Lume de Cinema

Antonio Pitanga e Osmar Prado durante as gravações de Bandeira de retalhos. Foto: divulgação

 

Sérgio Ricardo é mais conhecido como autor das trilhas sonoras de Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha, e pelo episódio em que, ao interpretar Beto bom de bola, música de sua autoria em um festival da TV Record, em 1967, irritado, quebrou o violão e atirou pedaços do instrumento contra a plateia.

Um lado seu que pouca gente conhece é o de cineasta. Sua mais recente realização, após mais de 40 anos longe das claquetes, o longa-metragem Bandeira de retalhos [drama, Brasil, 2018, 90 min.] foi exibido ontem (15), no Cine Lume (Edifício Office Tower, Renascença), na abertura do 5º. Festival Internacional Lume de Cinema.

O filme parte de um episódio real, a tentativa de despejo de moradores do morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, em 1977. A partir deste mote, Sérgio Ricardo desenvolve um roteiro com elementos que mostram o quão pouco o Brasil mudou em quatro décadas.

A trama costura o típico morro para gringo ver, com seus encantos, roda de samba e alegria, com o morro típico de tragédias como a que recentemente vitimou Marielle Franco, vereadora do PSol no Rio de Janeiro.

Sérgio Ricardo é sagaz ao questionar “quem é bandido?”, se um perseguido pela polícia, cria daquela favela, que viu os pais serem assassinados, ou se os poderosos de terno e gravata (ou com a farda cheia de divisas), a extorquir e agir a serviço da especulação imobiliária e do poder político e econômico – quase sempre uma coisa só.

É uma obra de ficção (embora baseada em fatos reais), mas qualquer semelhança com a realidade, e com o Brasil sob a égide dos golpistas, não é mera coincidência – e justifica o retorno de Sérgio Ricardo, aos 85 anos, ao cinema.

O diretor resgata imagens em preto e branco do noticiário da época, com depoimentos de moradores e autoridades, mesclando-as à trama, em que os atores mais conhecidos são Antonio Pitanga (João da Lua, um cego que é a memória viva do morro) e Osmar Prado (o deputado Délio dos Santos). De baixíssimo orçamento, o filme foi realizado com recursos captados através de crowdfunding.

O roteiro é bem urdido e podemos dizer que se trata de um filme de final ao mesmo tempo feliz e triste. No campo social, a comunidade vence a batalha. Já ao terreno do amor o destino não reserva a mesma sorte.

Serviço

O 5º. Festival Internacional Lume de Cinema segue até a próxima quarta-feira (21). Veja a programação completa.

O protagonismo de Torquato

Torquato Neto – Todas as horas do fim. Cartaz. Reprodução

 

A voz de Jards Macalé em sua parceria com Torquato Neto em Let’s play that (1972) e a voz de Jesuíta Barbosa no poema Cogito, cujo último verso dá título a Torquato Neto – Todas as horas do fim [documentário, Brasil, 2017; em cartaz no Cine Lume, sessão diária às 20h30], abrem o filme de Eduardo Ades e Marcus Fernando, coalhado de referências, fazendo jus ao homem múltiplo e intenso que foi o tropicalista piauiense.

O primeiro anuncia: “quando eu nasci/ um anjo louco/ um anjo solto/ um anjo torto/ muito louco/ veio ler a minha mão”. E arremata: “vai bicho/ desafinar o coro dos contentes”. O segundo, voz que acompanhará o espectador por todo o filme, lê poemas, cartas e textos jornalísticos de Torquato Neto – cuja voz, de seu único depoimento gravado, de 1968, também é usada.

É um filme reverente, cuja montagem inteligente evoca todas as facetas de seu protagonista: poeta, letrista de música popular, jornalista, ator. Os depoimentos que ajudam a contar sua história são cobertos por trechos de filmes do cinema marginal e do cinema novo. As rápidas aparições de nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé são filmadas em super oito, de modo a manter a estética da época e não destoar das imagens de arquivo – resultado semelhante ao de No, de Pablo Larraín.

Curioso é o depoimento de Moreira Franco, ex-governador do Rio de Janeiro, hoje ministro-chefe da secretaria-geral do governo do ilegítimo, nome ligado a escândalos na política nacional, apelidado pelo saudoso Brizola de Gato Angorá, primeiro amigo de infância de Torquato Neto.

Entre as inúmeras citações cinematográficas – uns mais conhecidos, outros mais raros – comparecem O bandido da luz vermelha (1968, de Rogério Sganzerla), Vidas secas (1963, de Nelson Pereira dos Santos), Macunaíma (1969, de Joaquim Pedro de Andrade), Deus e o diabo na terra do sol (1964, de Glauber Rocha), Nosferato no Brasil (1971, de Ivan Cardoso, em que Torquato atua), O demiurgo (1970, de Jorge Mautner, em que Caetano atua), Apocalipopótese (1968, de Raymundo Amado), e Hitler terceiro mundo (1968, de José Agripino de Paula).

Se Gal Costa (uma das grandes intérpretes de Torquato) e Jards Macalé (um de seus muitos parceiros) não comparecem em depoimentos, aparecem cantando Mamãe, coragem (parceria com Caetano Veloso), ele tocando violão na banda dela. Não faltam composições como Pra dizer adeus (parceria com Edu Lobo), Geleia geral, A rua e Marginália II (as três com Gilberto Gil) e Deus vos salve esta casa santa (com Caetano), a dar ideia do quão relevante foi Torquato, não apenas para o Tropicalismo, apesar do suicídio aos 28 anos.

Torquato Neto escrevia compulsivamente. Foto: divulgação

A morte de Torquato Neto completou 45 anos em novembro passado e as homenagens que lhe têm sido prestadas ajudam a jogar novas luzes sobre sua obra. O piauiense foi o homenageado da última edição da Balada Literária, organizada pelo incansável Marcelino Freire – ano passado, além de São Paulo, seu território tradicional, chegou a Teresina, cidade natal de Torquato, e Salvador, para onde ele se mudou aos 16 anos e onde conheceu “o pessoal da Tropicália”.

A gaúcha radicada no Maranhão Isis Rost transformou seu trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais (UFMA) no livro O risco do berro – Torquato Neto: morte e loucura [ed. da autora, 2017], cujo projeto gráfico evoca a Navilouca, revista de número único editada por Torquato com Waly Salomão (1943-2003), que no filme sintetiza o amigo como uma atualização de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Décio Pignatari. A autora foca, desde o título, em dois temas pouco presentes a Torquato Neto – Todas as horas do fim.

O documentário não especula, nem tira conclusões, mas faz bonito ao somar-se aos esforços de manter vivo o espírito de Torquato, protagonista da Tropicália, através de sua obra, vasta e diversa, para alguém que morreu tão jovem.

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Veja o trailer de Torquato Neto – Todas as horas do fim:

Quantas vidas cabem numa só?

Lou. Frame. Reprodução

 

Quantas vidas alguém precisará viver para viver uma vida como a de Lou Andreas-Salomé [1861-1937]? Esta é uma das perguntas possíveis ao término de uma sessão de Lou [drama/histórico/biografia, Alemanha/Suíça; 113 min.; em cartaz no Cine Lume], de Cordula Kablitz-Post, cinebiografia da escritora e psicanalista que influenciou Sigmund Freud [interpretado por Harald Schrott], o pai da psicanálise – só dizer isto já dá ideia da grandeza da personagem.

Bem realizado na reprodução de cenários e figurinos da época, o filme parte da decisão da protagonista de escrever sua biografia, aos 72 anos. Entra em cena a figura de Ernst Pfeifer [Matthias Lier], então desempregado, que acabará por virar o administrador do espólio de Lou Andreas-Salomé [Nicole Heesters interpreta a personagem aos 72 anos; Katharina Lorenz, dos 21 aos 50; Liv Lisa Fries, aos 16; e Helena Pieske, aos seis], até sua própria morte, responsável pela redescoberta da mulher que se insurgiu contra os padrões então vigentes.

A história tem início em 1933, no período entre-guerras. Lou  é uma senhora reclusa que já havia parado com os atendimentos. O filme se equilibra bem entre os diálogos entre a protagonista e seu datilógrafo – que acaba assumindo um papel misto de repórter e confidente –, que também acaba se apaixonando por ela, e no vaivém das histórias que conta, remontando à infância em São Petesburgo e ao mundo que ganhou ao desafiar a mãe e o status quo, após a morte do pai.

Numa época em que às mulheres não era dado o direito de estudar, é isto o que Lou faz, simplesmente por não aceitar a condição subalterna imposta ao sexo feminino. Seu primeiro livro é publicado com um pseudônimo masculino: os editores de então não acreditavam no sucesso de um livro escrito por uma mulher. Acabou por tornar-se pioneira da psicanálise e do feminismo; no primeiro campo dedicou-se à sexualidade feminina; no segundo, antecipou-se a sistematizações acadêmicas que só aconteceriam no século XX.

Em suas conferências é seguida por um devotado René Maria Rilke [Julius Feldmeier] que, por sugestão dela, adota o pseudônimo Rainer e vem a ser o poeta que conhecemos hoje, tantos anos depois. É ele quem irá quebrar sua repulsa ao casamento, que acreditava ser um sinônimo de perda de liberdade, após a dispensa de pretendentes do naipe dos filósofos Paul Rée [Philpp HauB] e Friedrich Nietzsche [Alexander Scheer].

Sua luta por liberdade tinha um quê de egoísmo, ela mesmo admite a determinada altura. “O que mudou para as mulheres?”, pergunta a seu privilegiado interlocutor noutro momento. Mas certamente inspirou a insurgência de outras mulheres e a (r)evolução que vemos, infelizmente ainda, mais lenta do que gostaríamos e do que o necessário.

A cinebiografia certamente ajudará a jogar luzes sobre esta personagem tão importante quanto desconhecida do grande público. O silêncio sobre ela e sua obra ajuda a compreender as relações de poder estabelecidas, contra as quais Lou dedicou toda a sua vida e obra.

Merecem destaque os grafismos em que Lou movimenta-se por estáticos cartões postais. Piegas é a forma como se apresenta o deus com quem conversa na infância e de quem se lembra no divã de Freud, o que nem de longe tira o brilho do filme, ousado como sua protagonista, ao decidir abarcar tantos aspectos da vida – ou das vidas? Quantas ela viveu numa só? – de Lou Andreas-Salomé.

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Veja o trailer de Lou:

Encontro de almas*

Nossas noites. Frame. Reprodução

 

Baseado no livro de Kent Haruf, o homônimo Nossas noites [Our souls at night; Companhia das Letras, 2017], o filme de Ritesh Batra [drama, 2017] leva vantagem: nem o leitor de imaginação mais fértil poderia pensar no casal protagonista sendo materializado por Robert Redford e Jane Fonda.

Esta seria a primeira vantagem do filme sobre o livro, para quem gosta de comparar expressões artísticas distintas – um livro é um livro, um filme é um filme, e mesmo que um seja adaptado do outro, cada qual é uma obra de arte a seu modo. Neste caso, o filme é fiel ao livro, mas nem sempre é ou deve ser assim. Produção da Netflix, a película é dedicada à memória do autor do livro.

Addie (Fonda) e Louis (Redford) são dois viúvos em na pacata Holt, Colorado. Um dia ela resolve ir à casa dele, convidá-lo para dormirem juntos, “ajudar a passar a noite. A noite é a parte mais difícil, não acha?”, ela pergunta ao encabulado vizinho.

Ele aceita a proposta e começa a frequentar a casa da vizinha, à noite, pela porta dos fundos, com medo da fofoca da vizinhança. Ela lhe serve vinho, eles começam a conversar desajeitadamente, buscando saber mais sobre si mesmos – apesar de vizinhos há décadas, pouco se falavam quando os cônjuges eram vivos, embora soubessem muito da vida um do outro.

A história dos dois não demora a ganhar outros contornos, com a visita do neto de Addie, seu filho que não aceita a relação, ao julgar Louis por seu passado. Não demora também para que a preocupação deste se mostre fundada: seu gesto de levantar-se e ir embora quando os colegas de terceira idade tentam começar a brincar com seus encontros noturnos é também uma declaração de amor, ainda que tardio.

Atores experientes, Redford e Fonda dão conta de sobra dos diálogos bem construídos e intensos. Nossas noites é uma bonita história de amor, que mostra que para este não há limites, amarras, proibições – entre as quais a idade ou outras convenções sociais. A uns, o filme poderá parecer lento demais ou mesmo dar a impressão que nada acontece. Como no amor, seu tema principal, o encanto está na sutileza, na delicadeza.

*uso aqui o mesmo título que dei ao texto sobre o livro no qual o filme se baseia.

As elipses

Jovem mulher. Frame. Reprodução

 

Jovem mulher [Jeune femme, drama, França, 2017; em cartaz no Cine Lume], da estreante Léonor Serraille, vencedor da Câmera de Ouro em Cannes, é um filme que se explica pelas elipses: é no não dito que os espectadores têm que prestar atenção. Por exemplo: Paula [Laetitia Dosch] engravida, mas não há sequer uma cena de sexo explícito na película. Tampouco há a certeza se ela e Ousmane [Souleymane Seye Ndiaye], colega segurança da loja de calcinhas em que trabalha, transam.

Se nas primeiras cenas a protagonista parece uma fracassada, obcecada que rasteja em busca do homem que supostamente ama, aos poucos vamos nos afeiçoando à personagem de olhos bicolores e percebendo que ela é senhora de si, dona da situação.

Abandonada pelo namorado após uma década de relacionamento, Paula, sem dinheiro, abriga-se na casa de amigos, em hotéis baratos, até “fixar residência” num “buraco de rato”, como ela mesmo dirá. Zanza por Paris, com quem tem uma relação de ódio. Em Paris ou qualquer lugar temos que viver, é mais ou menos o que invariavelmente responde a quem pergunta por que então ficar na cidade.

O filme é carregado de bom humor, em tiradas sutis. Num encontro no metrô, por exemplo, ela finge ser quem não é; noutro, responde com certa agressividade a um passageiro que lhe alerta que o celular está tocando e que ela se esqueceu de tirar o crachá: “e você se esqueceu de tirar a gravata. A gravata é o crachá dos idiotas”.

Jovem mulher perpassa diversas situações e relacionamentos. As conturbadas relações de Paula com Joachim Deloche [Grégoire Monsaingeon], o professor e fotógrafo de quem engravida, e com sua mãe [Nathalie Richard], com Lila [Lila-Rose Gilberti], de quem se torna babá, e com a mãe da menina [Erika Sainte], que a contrata, numa inversão de sentimentos: quando a garota se afeiçoa à babá, a mãe perde a confiança, diante de deveres de casa mal corrigidos, serviços domésticos pendentes, horários não cumpridos e, sobretudo, guloseimas oferecidas à criança.

No meio disso tudo há uma bela gata, peluda e graúda, e uma cicatriz que acompanhará Paula por todo o filme, talvez simbolizando outras cicatrizes colecionadas em sua vida de jovem mulher.

Legado beatle

How the Beatles changed the world. Frame. Reprodução

 

O fim dos Beatles caminha para meio século e a banda segue das mais – se não a mais – influentes no planeta em todos os tempos. Provas disso são suas músicas continuarem sendo regravadas ao redor do mundo e qualquer coisa que leve seu nome/marca vender como água (o que começou a acontecer ainda enquanto estavam juntos), sejam edições remasterizadas de seus discos de carreira, gravações inéditas ou raras ou até mesmo brinquedos.

Nada mau para um grupo cuja união durou menos de uma década.

Ao longo deste tempo os Beatles operaram algumas revoluções no fazer artístico, elevando a música pop à categoria de obra de arte. John Lennon, Paul McCarney, George Harrison e Ringo Star foram, sem dúvida, dos artistas mais documentados em todos os tempos. Em meio ao turbilhão, difícil um filme, uma reportagem, ou o que quer que seja, dizer algo novo sobre os fab four.

Não parece ser a intenção de How the Beatles changed the world [EUA, Inglaterra, 2017; disponível na Netflix], documentário de Tom O’Dell, que localiza a importância do fenômeno Beatles para a compreensão da década de 1960 e de tudo o que viria depois, em termos de música, cultura e comportamento – mesmo Rolling Stones, quase sempre apontados como rivais dos Beatles, num Fla x Flu musical sem sentido, The Doors e Beach Boys, para citar (apenas) outras bandas surgidas na mesma década, aconteceram a reboque do protagonismo beatle.

Através de entrevistas com críticos de música, pessoas próximas ao quarteto de Liverpool e trechos de entrevistas dos próprios Beatles, O’Dell aponta-os como precursores em se tratando da relação música e lisergia, de aproveitar ao máximo o que os estúdios oferecem (as limitações técnicas eram enormes nos anos 1960, sabemos) e no componente político: em visita aos Estados Unidos os Beatles foram pioneiros em abordar assuntos espinhosos à época, como a guerra do Vietnã, além de tirar onda com a própria rainha da Inglaterra.

A cena é conhecida, mas nos faz rir novamente: a um auditório lotado, Lennon manda: “para o próximo número precisamos da ajuda de vocês. As pessoas nos assentos mais baratos batam palmas; as demais, basta chacoalhar suas joias”. Close numa constrangida rainha da Inglaterra, volta a imagem a um John qual criança pego em travessura.

Outras revoluções beatle: a transmissão em cadeia mundial de tevê de All you need is love (com Mick Jagger e outros famosos na plateia), o fim das aparições públicas enquanto banda (quantas, hoje, não vivem de separar e juntar de acordo com as necessidades, sobretudo financeiras), as guinadas artísticas em discos fundamentais como Rubber soul, Revolver e Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, além dos primeiros solo de John Lennon (uma trilogia com Yoko Ono, sua segunda esposa) e Paul McCartney – se hoje são corriqueiros discos solo de integrantes de bandas, nisso os Beatles também foram pioneiros, como haviam sido, no começo da carreira, ao decidirem gravar material autoral (o que não era padrão na época).

Recentemente Quincy Jones deu uma entrevista afirmando que os Beatles eram os piores músicos do mundo. Lembrou o Lobão da época em que vivia falando mal de Caetano e Gil. Ver How the Beatles changed the world lembrou-me o Oscar Wilde de A alma do homem sob o socialismo: “não é a obra de arte que tem que aspirar a se tornar popular; o povo é que tem que se tornar artístico”. Sob a égide do “mas é isso o que o povo gosta”, muitos artistas acomodam-se e ofertam mais do mesmo (ou menos do mesmo, se a ideia é facilitar); com os Beatles era diferente.

How the Beatles changed the world pode não trazer novidades, sobretudo aos beatlemaníacos mais ferrenhos; mas localiza o legado beatle num contexto de profunda transformação da cena pop no mundo. Para sempre.

Mais que uma declaração de amor ao cinema

A forma da água. Frame. Reprodução. © 2017 Twentieth Century Fox Film Corporation

 

Antes de tudo, A forma da água [The shape of water, 2017], de Guilhermo del Toro, é uma declaração de amor ao cinema. Pelas qualidades próprias do filme – elenco, roteiro (Guilhermo del Toro e Vanessa Taylor), fotografia (Dan Laustsen) e trilha sonora (Alexandre Desplat), coalhada do jazz de nomes como Benny Goodman e Glenn Miller, impecáveis – e pelas várias citações que aparecem ao longo das duas horas da trama – que se passam sem que percebamos.

Para começo de conversa, é difícil classificar A forma da água. Estão ali elementos de comédia romântica, thriller, policial, aventura, cinema mudo (como a protagonista), fábula e musical.

Conta a história de Elisa (Sally Hawkins, em destacada atuação), faxineira de um laboratório americano em plena Guerra Fria, que acaba se apaixonando por um estranho ser (Doug Jones), uma bela espécie de homem-peixe, criatura fisgada em águas amazônicas, onde era tratado como um deus pelo povo do lugar. A criatura começa a ser estudada a fim de ser usada na corrida espacial – os russos (no meio disso tudo há um espião) já haviam colocado um cachorro em órbita.

Eis o mote para o desenrolar da trama. Elisa é uma garota simples. Muda, ajuda Giles (Richard Jenkins) um vizinho pintor, homossexual e seu confidente – e também a voz do narrador que aparece aqui e acolá. Enquanto ele pinta e conversam, a televisão em preto e branco está sempre ligada em musicais.

Os apartamentos em que moram, localizam-se sobre o Orpheum, um decadente cinema de rua, enorme, que já não angaria espectadores para suas sessões, mas que segue firme graças à paixão (e teimosia) de seu proprietário. Em uma das cenas os funcionários estão colocando os nomes dos filmes que entrarão em cartaz: A história de Rute [filme de Henry Koster, de 1960] e As noites de Mardi Grass [de Edmund Goulding, de 1958].

O filme homenageia O monstro da lagoa negra [de Jack Arnold, de 1954, também protagonizado por uma estranha criatura]. Há várias outras, mas identifiquei citações a Bonanza, Mr. Magoo, Cinderela, Uma noite no Rio [de Irving Cummins, de 1941, que abre com Carmen Miranda interpretando Chica chica boom chic (Harry Warren/ Mack Gordon)], A mascote do regimento [de David Butler, de 1935, a cena do sapateado na escada, que Elisa e Giles imitam batendo os pés no chão], além da dupla Fred Astaire e Ginger Rogers, na cena em preto e branco em que Elisa e a criatura dançam, quando A forma da água se transforma mais especificamente em um musical.

A melhor amiga de Elisa é a colega de trabalho Zelda (Octavia Spencer), que comete pequenos delitos como fumar em local proibido (fora do alcance da vigilância das câmeras de segurança) e não hesita em embarcar na aventura da amiga.

De forma hábil, ao ter como protagonista uma criatura quase humana, A forma da água discute temas demasiadamente humanos como crueldade, racismo, machismo, misoginia, homofobia, intolerância, hierarquia (sobretudo a militar; o coronel Strickland, interpretado por Michael Shannon, é uma caricatura com fortes traços de outros temas desta lista), entre outros. Quem são mesmo os monstros?

A forma da água deve levar, merecidamente, diversas estatuetas do Oscar para casa – foi indicado em 13 categorias [Filme, Diretor, Atriz (Sally Hawkins), Roteiro original, Ator coadjuvante (Richard Jenkins), Fotografia, Atriz coadjuvante (Octavia Spencer), Direção de arte, Figurino, Edição, Trilha sonora, Mixagem de som e Edição de som]. O filme é uma celebração ao respeito às diferenças e ao amor, sobretudo o amor ao cinema, mas não só. Perceberá quem tiver olhos – e coração – para ver.

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Assista ao trailer: