Assinando simplesmente B. Kucinski, Bernardo Kucinski só estreou na literatura de ficção quando já contava 74 anos. Já era um professor bastante respeitado, graduado em física, jornalista e cientista político, reconhecido como autor de livros fundamentais em currículos acadêmicos nas áreas de jornalismo, economia e política.
K: relato de uma busca [Expressão Popular, 2011; Cosac Naify, 2014; Companhia das Letras, 2016, 176 p.; leia um trecho], a estreia, é uma autoficção em que o autor narra o desaparecimento da própria irmã entre os horrores da ditadura militar brasileira. A obra bastou para colocar-lhe entre nossos grandes ficcionistas, tendo sido traduzida para oito idiomas e finalista de seis prêmios literários, no Brasil e no exterior. O autor voltaria ao tema nos contos de Você vai voltar pra mim [Cosac Naify, 2014, 188 p.].
Não é à toa ou mera jogada de marketing o anúncio ao pé de Os visitantes [Companhia das Letras, 2016, 85 p.; leia um trecho], o título na capa de seu novo livro: “do autor de K: relato de uma busca”. É que, magro, mas consistente, este volume não existiria sem aquele – embora a leitura do primeiro não seja imprescindível à compreensão deste.
Trata-se de misto de mea-culpa e making of em que o autor, modesto, assume erros e confessa vacilos, num jogo envolvente com o leitor: o título da novela alude aos que vão até sua casa, quase sempre com o pretexto de criticar o livro ou o autor.
Citações interessantes ao longo de Os visitantes – os escritores Chico Buarque, Enrique Vila-Matas, Fiódor Dostoievski, Franz Kafka, Juan Rulfo, Primo Levi – não fazem de Kucinski um “escritor de escritores”, nem é arroto gratuito de erudição.
Kucinski desfila uma rica galeria de personagens para construir uma espécie de errata em forma de novela. Personagens e situações tão consistentes que, a despeito da magreza do livro, acabam por explicar melhor determinadas passagens de K: relato de uma busca. Se a estreia já alçara o autor ao status de grande entre nossos ficcionistas, este Os visitantes é uma espécie de carimbo de confirmação de seu lugar nessa galeria.
O subtítulo anuncia e é exatamente disso que se trata: “a história e as histórias do samba-canção”. Em seu novo livro, cujo título pega emprestado o de um clássico do brasileiríssimo gênero, de Dolores Duran, A noite do meu bem [Companhia das Letras, 2015, 510 p.; leia um trecho], Ruy Castro, ao biografar o samba-canção, oferece ao leitor uma radiografia musical, sociológica, geográfica, sentimental e “etilírica” do Brasil entre o final da década de 1930 e meados da de 60.
Experiente, autor de diversas biografias tornadas clássicas – Carmen Miranda, Garrincha, Nelson Rodrigues, a Bossa Nova –, Ruy Castro mesmo foi testemunha ocular do ocaso das boates cariocas, tendo estreado no jornalismo em 1967, no Correio da Manhã. Mas seu foco neste livro é o apogeu, os dias de glória e glamour de cenários lendários, como o Vogue, Sacha’s e Golden Room, entre outras.
“Não eram “sambas de sambista”, como se definiam os sambas rasgados e sincopados de Assis Valente, Wilson Baptista ou Geraldo Pereira. Eram sambas, sem dúvida – o ritmo, apesar de mais lento, era inconfundível –, só que românticos, intimistas e confessionais, com frases musicais longas e licorosas, perfeitos para ser dançados como sambas, mas devagarinho, com o rosto e o corpo colados. O samba fora para a cama com a canção, numa romântica noite de bruma, e resultara neles, os sambas-canção, com suas letras narrativas, que contavam uma história – e esta, com frequência, se referia a um caso de amor desfeito, como de praxe nas músicas românticas em qualquer língua” (p. 70), anota o autor sobre a gênese.
Além do samba-canção em si e de muitas histórias por trás de muitos deles, estão ali os bastidores, as alcovas e camarins, a estreita relação do ambiente das boates com o poder central do Brasil – o Rio era ainda a capital federal – e seus namoricos, a militância de diversos personagens em várias frentes. Nomes como Antonio Maria, Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta) e Fernando Lobo atuavam em rádio, jornal, produção, compunham e ainda tinham tempo para beber olimpicamente.
Ruy Castro advoga ter sido, talvez sem querer, Noel Rosa um dos inventores do samba-canção. Mas isso só se descobriu após a morte do compositor de Vila Isabel, quando Aracy de Almeida – sua maior intérprete – foi contratada para cantar no Vogue e, entre conhecidas e inéditas – “Feitio de oração, Feitiço da Vila e Pra quê mentir, de Noel e Vadico, e Não tem tradução, Pela décima vez, Silêncio de um minuto, O X do problema e Último desejo, só de Noel” – talvez por sua interpretação, “uma sambista que não precisava requebrar as cadeiras para cantar, só então se percebeu que todos aqueles grandes sambas de Noel eram… sambas-canção” (p. 65).
Não faltam clássicos e personagens monumentais ao texto elegante qual os frequentadores das boates em sua origem, quando ternos e gravatas não eram dispensados a seus frequentadores. A noite do meu bem entremeia histórias diversas, pelas quais passam a fundação da Última Hora de Samuel Wainer, o suicídio de Getúlio Vargas, a invenção da Bossa Nova, a construção e inauguração de Brasília, o golpe militar, entre outras, trágicas, anedóticas e/ou lendárias. Craque de nosso jornalismo, Ruy Castro oferece aos leitores mais um livro fundamental para a compreensão de parte importante da História (da Música, com M maiúsculo) do Brasil.
Ah, como era boa a ditadura… [Companhia das Letras, 2015, 287 p.; leia um trecho]: só podia mesmo ser o título de um livro de Luiz Gê o único lugar onde essa frase soa bem. Pura e fina ironia, obviamente. “A história dos últimos anos da ditadura militar nas charges da Folha de S. Paulo”, como anuncia o subtítulo explicita melhor: a obra não é mera coletânea, é uma Aula, com A maiúsculo, de História, com H idem.
O livro cobre o trabalho de Luiz Gê no jornal paulista entre 1981 e 1984, o que, por um lado, pode parecer facilitar seu trabalho à época, afinal de contas, eram os anos da chamada abertura, da redemocratização do país. Acompanham os desenhos textos explicando o contexto, (re)apresentando personagens – dando nomes aos bois –, tornando-o leitura obrigatória para estudiosos e interessados em humor, história, quadrinhos e até mesmo àqueles que hoje em dia frequentam passeatas pedindo a volta da ditadura – estou certo de que alguns poderiam mudar de opinião após “reviver” com atenção o período.
“Quer que eu desenhe?” é irônica pergunta comumente usada para iniciar uma contraposição a argumentos. Luiz Gê desenha e escreve com propriedade de quem (sobre)viveu (a)o regime, ousando contestá-lo. E defende algumas teses interessantes: primeiro, é falacioso falar em ditadura militar, pois o golpe de 1964, em sua urdidura, contou com civis e graças a este apoio é que foi possível; segundo, a ditadura não durou apenas 21 anos, já que José Sarney, que governou o país entre 1985 e 1990, não foi eleito, mas chegou à cadeira do poder central após mudar de partido (olha o fisiologismo aí, gente!) e a morte do titular Tancredo Neves, de quem o maranhense era vice.
Gê aborda ainda heranças malditas da ditadura, para além das mais óbvias: os métodos das polícias militares, a permanência da prática de tortura, apesar de diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e da lei que a proíbe, e a anistia que perdoou torturadores: até hoje, no país, ninguém foi punido pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante o regime, ao contrário de outros países latino-americanos que também sofreram com ditaduras.
“Mas a pior de todas as heranças, a que até hoje não foi superada, foi a destruição da altamente bem-sucedida experiência educacional e do ensino público anterior a 1964. Escolas públicas tinham o mesmo nível ou maior que muitas escolas ditas de elite. Essa experiência, que poderia ter sido aperfeiçoada e ampliada para alcançar um maior número de pessoas, foi sumariamente eliminada sem jamais ter se recuperado, algo crucial que vem afetando profundamente o desenvolvimento de nossa sociedade e de nosso país”, escreve Luiz Gê à página 278. E na seguinte: “o Brasil de hoje, foi criado naquela ruptura no ano de 1964. Quem não puder enxergar o que foi exatamente que ocorreu durante os 21 anos que se seguiram não pode entender aquilo que vive hoje. Havia outra possibilidade para o Brasil e para o nosso presente […]. Tudo “mudou” para permanecer fundamentalmente igual. As relações de poder político e econômico se reajustaram. Qual dos dois manda mais em nosso sistema?”, indaga-se/nos.
Lúcido e lúdico, Ah, como era boa a ditadura… é vasto painel com muito material ainda bastante atual, infelizmente, sobretudo no que diz respeito à nossa fauna política – o folclore, a burrice, o oportunismo – e ao pensamento único da grande mídia – algumas concessões são benesses dos ditadores a apoiadores do regime.
O autor – Personagem menos conhecido e cultuado, mas tão ou mais talentoso que muitos de seus pares, o paulista Luiz Gê é arquiteto e professor universitário, entre inúmeras outras atribuições, com contribuições fundamentais à cultura brasileira ao menos nos últimos 45 anos: fundou as revistas Balão – que revelou talentos como Angeli, Laerte e os irmãos Paulo e Chico Caruso – e Circo, é autor da cultuada graphic novel Av. Paulista [1991, reedição da Companhia das Letras, 2012, 88 p.], em que conta, à sua maneira, parte da história de São Paulo, fez os projetos gráficos de Clara Crocodilo [1980] e Tubarões voadores [1984], de Arrigo Barnabé – este segundo disco são quadrinhos de Luiz Gê musicados por Arrigo –, e roteirista do matutino global TV Colosso. Como quadrinhista venceu os prêmios Casa de Las Américas, em Cuba [1981], o troféu HQ Mix, no Brasil [1991] e o prêmio Angelo Agostini de Mestre do Quadrinho Nacional, concedido pelo Senac [2005]. Ano passado presidiu o júri do Salão de Humor de Piracicaba, um dos mais importantes do país, que também o premiou, ainda na década de 1970. Na ocasião, realizou sua primeira exposição, Luiz Gê quadro a quadro, com cerca de 600 obras.
É como se Miguel Del Castillo fosse um Nelson Cavaquinho da literatura: seus contos permeados de morte e separação, ele escolhido um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros pela revista Granta.
Restinga. Capa. Reprodução
Em Restinga [Companhia das Letras, 2015, 127 p.; leia o conto-título], que dá título e abre o livro, a mãe da protagonista tem um último desejo antes de morrer: visitar a restinga da Marambaia, em conto que cita o Tom Jobim de Querida: “Longa é a praia, longa restinga, da Marambaia à Joatinga”.
“Começou as sessões um ano após a separação” e “Ainda não contou detalhes da separação na terapia” são frases que adiantam apenas em parte Olimpíadas. Empire State retrata um conflito entre irmãos com ecos bíblicos.
A Violeta que batiza conto sobre as ditaduras militares latino-americanas também morre. No texto se mesclam realidade, memória e ficção, português e espanhol.
Paranoá é outro conto povoado pela morte. A música volta a dar as caras, desta vez Stairway to heaven, do Led Zeppelin: “Naquela época cabia pouca coisa no disco. Acho que tiveram que parar a música do nada para fazer caber”, a narrativa termina abruptamente como supostamente a música.
Uma garota se lembra da babá – morta – enquanto passeia em um Cruzeiro. Leme, a narrativa mais curta do volume, é sobre desencontro – de algum modo, uma espécie de separação. Em Cancun, reencontro e fuga: um menino brasileiro de onze anos vai visitar no México o pai envolvido sabe-se lá com o quê. Ferido, o pai resolve voltar ao Brasil.
Duas gêmeas, o casamento e a separação de uma delas, outrora o marido era seu sócio, em Colônia. Em Arraial, em tempos de facebook, a tentativa de uma turma de amigos do tempo de colégio de se reencontrar no Recife.
O subtítulo anuncia na capa: “dez contos e uma novela”. Laguna, a novela que encerra o livro, acompanha as aventuras de um jornalista pelo Uruguai, com uma guia de museu recém-conhecida. É um passeio por paisagens e sensações, numa narrativa em que o abandono também se faz presente, como a música do Ratones Paranoicos, grupo oitentista de rock argentino. “No pierdas tiempo, nunca”, diz uma pichação catalogada no último texto de Restinga. Uma espécie de lição de que a vida é o que acontece enquanto a planejamos.
O que quer alguém que já venceu o Oscar, o Pulitzer e o Obie Awards ao se meter e fazer uma graphic novel? Esfregar sua genialidade na cara da humanidade? “O que é que pode fazer um homem comum neste presente instante?”, hein, meu caro Belchior?
O melhor a fazer é deleitar-se com o exagerado talento de Jules Feiffer, 87, esfregado em nossa cara página a página, quadro a quadro de Mate minha mãe [Companhia das Letras/ Quadrinhos na Cia., 2015, 160 p., leia um trecho].
50 tons de cinza (e marrom) que realmente valem a pena, trama bem urdida, nada a ver com o soft pornô, best seller em livrarias e cinemas – refiro-me à coloração desta obra-prima de Feiffer, ser incomum e raro (redundo?), avalizado na contracapa por Neil Gaiman, Art Spiegelman, Chris Ware e Stan Lee. Querem mais?
Com talento mais que comprovado em outras áreas, Feiffer, escritor e cartunista com mais de 35 livros publicados, estreia em grande estilo com esta graphic novel policial, recheada de música. Não à toa, suas personagens cantam e dançam (às vezes literalmente), equilibrando-se na corda bamba entre o rabisco e a obra de arte.
Assistente de Will Eisner na adolescência, Feiffer, de cara, agradece a mestres que dão pistas das referências encontradas em Mate minha mãe: os quadrinhistas Milton Caniff e o próprio Eisner, os romancistas Dashiell Hammett, Raymond Chandler e James M. Cain e os cineastas John Huston, Billy Wilder e Howard Hawks.
Dividida em dois atos, a história se passa nas décadas de 1930 e 40. Pode soar clichê, mas parece impossível fugir da comparação dos quadrinhos com o cinema (noir): os diálogos rápidos, os capítulos curtos, a agilidade das personagens, saltando fora dos quadrinhos, os núcleos se cruzando: cinco mulheres e um alcoólatra arremedo de detetive.
Blues, bom humor, ironia: Feiffer tira um sarro de Hollywood, onde se passa a segunda parte da história, com uma personagem transgênero desfilando entre as estrelas, em determinado momento convertidas em atrações para soldados em guerra.
Quadrinista tornado escritor, Lourenço Mutarelli entrou para a história: foi o primeiro escritor brasileiro a protagonizar a adaptação de um livro seu para o cinema, O natimorto [DBA, 2004; Companhia das Letras, 2009], após uma ponta em O cheiro do ralo, também adaptação de um sucesso literário seu.
O Grifo de Abdera. Capa. Reprodução
Em O Grifo de Abdera [Companhia das Letras, 2015, 264 p.; leia um trecho], Mutarelli realiza um interessante exercício literário ao brincar com várias faces de si mesmo. É um jogo de trocadilhos, desde a composição dos nomes dos personagens, anagramas que ganham vidas e histórias, de dar à vida aspectos de ficção, e de revelar segredos por trás dos bastidores do ofício de escritor – ou do quadrinista, muito mais trabalhoso e menos reconhecido, embora ambos, de algum modo, glamurizados.
Mutarelli tira onda até mesmo com sua fórmula de escrever romances: os protagonistas são sempre homens mais ou menos em sua faixa etária, levando vidas mais ou menos comuns, até um acontecimento surpreendente e uma guinada, confessa.
Suas obras, entre as realmente lançadas e fictícias, estão lá citadas. Amigos escritores, de verdade e inventados, tornam-se personagens: Paulo Lins, Marcelino Freire, Marçal Aquino, Ferréz, além de Raimundo Maria Silva, Oliver Mulato e Mauro Tule Cornelli, que “assinam” O Grifo de Abdera com Mutarelli, este último seu anagrama. Um deles é quem figura nas fotos de orelha e viagens do autor a eventos literários, dentro e fora do Brasil.
O livro é a história de um duplo, fabricado a partir da chegada, às mãos de um dos protagonistas, da moeda que dá título à obra. As obsessões continuam perseguindo o autor, entre citações – entre outros, William S. Burroughs e Kurt Vonnegut, que já tiveram os nomes inscritos noutras obras de Mutarelli –, diálogos ligeiros e certeiros, exigindo e prendendo a atenção do leitor, a vasta pesquisa – um personagem acometido de síndrome de Tourette repete frases grosseiras e, portanto, inoportunas em espanhol digitadas pelo duplo no tradutor do Google – e o entrecruzar de diversos enredos paralelos, a vidinha nada besta de professores, escritores e biscateiros.
É recorrente também a ideia de Mutarelli, personagem, retomar os quadrinhos. Dividido em três partes – O livro do fantasma, O livro do duplo e O livro do livro – O Grifo de Abdera é um presente aos fãs que o acompanham desde Transubstanciação [1991] e/ou aos recém-chegados. Após cinco anos do último romance – Nada me faltará [2010] – quatro do último álbum – Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente [2011] – e três do volume único que reuniu a trilogia do detetive Diomedes [2012], o múltiplo Mutarelli mescla romance e quadrinhos (as 80 páginas centrais do livro) em uma obra que, além de agradar a leitores antigos e mais novos, certamente aumentará seu fã-clube. A pergunta, talvez óbvia, que não lhes calará é: quando O Grifo de Abdera será adaptado ao cinema?
Desde Caim o planeta azul sempre foi povoado por variada gama de mentes doentias e criminosas. Quando a máscara cai – A verdadeira história do homem que fingiu ser um Rockefeller [Companhia das Letras, 2015, 247 p., tradução de Sérgio Tellaroli; leia um trecho], de Walter Kirn, é a biografia de uma dessas mentes, um assassino que se passou por integrante de uma das mais famosas e ricas famílias americanas. Um mergulho atormentado/r na mente de um manipulador profissional e a tentativa de autoconhecimento, o porquê de se deixar enredar na teia farsesca.
Um ser humano fascinante, é como o autor o classifica, a maldita mania de quem, jornalista e/ou escritor por paixão e/ou vício, acredita que tudo e todos podem render grande reportagem e/ou romance. É aí que começa a via crucis de Kirn, que atravessa boa parte dos Estados Unidos dirigindo uma caminhonete – e depois pegando um avião – para entregar ao suposto Rockefeller uma cadela presa a uma cadeira de rodas.
O episódio é relatado minuciosamente: fazer um favor de tal monta a um Rockefeller, era mais que estar próximo de um, e o autor de Amor sem escalas embarcou literalmente na aventura a fim de ter um personagem para um próximo romance. O desembarque e seu encontro com aquela personalidade desencadeia uma série de mentiras: da coleção de obras de arte falsificadas a empresas, bancos, propriedades, veículos e vizinhos famosos (Tony Bennett e J. D. Salinger, por exemplo), tudo é teatro nas mãos – e imaginação – hábeis do manipulador, que chegou a usar nove nomes falsos – ou além: a encarnar nove personalidades diferentes – ao longo de sua jornada criminosa.
O que ninguém sabia – e o autor sequer imaginava quando começou a pensar em tomá-lo como personagem – é que o falso Rockefeller era um assassino frio, que armazenou pedaços do corpo esquartejado de sua vítima em sacolas de livraria. Ao longo dos capítulos dedicados a seu julgamento e condenação – e após, quando o personagem insiste em seu teatro doentio – há diversas citações (Jornada nas estrelas, Alfred Hitchcock e Patricia Highsmith incluídos) de filmes, livros e séries de tevê, usadas para compreender o impostor, suas motivações e até mesmo o comportamento do júri durante o julgamento. Era de onde ele retirava ideias, citações e trejeitos: era um mero plagiador, sem ideias próprias, inclusive para seus livros e roteiros para cinema – outras frustrações em seu currículo.
Quando a máscara cai é ainda uma espécie de assunção pública de fraqueza e vergonha de alguém que caiu feito um pato no enredo de mentiras de um terceiro – e ali se manteve durante 15 anos de “amizade”. O autor lança-se ao personagem pensando no romance e consegue um livro interessante e bem escrito, de alguma forma comparado, guardadas as devidas proporções, a A sangue frio, de Truman Capote, e O talentoso Ripley, de Patricia Highsmith, de onde vem uma das epígrafes do livro. No fim das contas, do começo da amizade com o protagonista à sua condenação por sequestro e assassinato, a aventura de Walter Kirn é sobre a escrita do livro em si, não ficção em que sobressai o talento jornalístico do romancista.
Contando 40 anos de carreira literária e fiel ao conto, o sergipano Antonio Carlos Viana aprofunda algumas obsessões em Jeito de matar lagartas [Companhia das Letras, 2015, 147 p.; leia um trecho]: a velhice, o sexo (ou a falta dele), a solidão, a morte. “Pode-se dizer que todos os seus contos giram em torno do corpo e suas vicissitudes”, adverte-nos Paulo Henrique Britto nas orelhas.
A muralha da China, que abre o volume, por exemplo, é sobre como uma vizinha ensaia seus filhos para uma mentira antes de (quase) noticiar a morte do marido e do filho da protagonista. No conto-título o sexo está nas entrelinhas, no sabor de descoberta entre as ocupações do fim da infância e começo da adolescência.
Em Florais a protagonista, após enviuvar, descobrirá algo inédito em se tratando de sexo. Em Lucy in the sky a mulher do título abre a porta a um desconhecido para torná-lo outro homem. E descobrir-se outra mulher. Em Balé, Aline nunca mais voltará a andar. Em Madame Viola faz escova progressiva, a mulher que batiza o conto torce ardentemente por tornar-se viúva, após ver uma notícia na televisão sobre um acidente de que presumivelmente seu marido teria tomado parte.
Paixão no delta relata o encontro de dois velhos, ela “68 anos”, ele “cabelos alvíssimos e espessos”, e a falta de memória dele para relatar o encontro. Dona Deusinha tem horror à morte e achou que seu casamento com seu Odilon “tinha tudo para não durar”, após a primeira noite com ele, nos fundos da funerária onde foram morar. Falecido o marido, em Cremação, a primeira coisa que a mulher faz é mudar-se para bem longe, ir em busca de uma antiga paixão da juventude e anunciar aos filhos o desejo de ser cremada.
Em Um traidor dona Maria Reina “faz sessenta anos, sozinha”. Em seu registro o escrivão esqueceu da letra g, ponto que ela descobriu depois, masturbando-se em uma cadeira com vista para o mar. Em Missa de sétimo dia um cliente deseja dar o último adeus a uma prostituta, sendo hostilizado por familiares da falecida.
O autor é cruel, mas extremamente humano, com senso de humor aguçado. Por vezes o que se chamaria humor negro em tempos menos politicamente corretos. Seus contos, sempre curtíssimos, nunca excedem o necessário. Ao longo das 27 breves narrativas de Jeito de matar lagartas vez por outra sentimos pena desta ou daquela personagem, mas, cruéis que também somos, quando em vez flagramo-nos com um sorriso no rosto.
Ex-feirante, dj e cozinheiro, Julio Bernardo, filho de feirante, nos brinda com uma minuciosa radiografia do ambiente das feiras livres, guiado por sua prodigiosa memória, em Dias de feira [Companhia das Letras, 2014, 189 p.; leia um trecho].
Da infância e adolescência passadas em feiras livres, o autor repassa biografias de feiras e feirantes, temperadas por saudosismo, ranzinzice, algum glamour e certa preocupação. Cada ingrediente é justificado.
É um livro recheado de saudades de um tempo que não volta mais, entre histórias hilariantes e trágicas. Mesmo sem perder o bom humor, até para contar as segundas, há críticas a fast foods, a comida super-higiênica – ao menos na aparência – de grandes cadeias de supermercado, à playboyzada consumidora de comida sem graça e, por extensão, ao capitalismo em si, já que na boa e velha feira livre mais valia a lei do fio do bigode. Daí o glamour: algumas situações – calotes, roubos e outros delitos –, eram resolvidos na base da violência, o que o autor aplaude. A preocupação dialoga com o saudosismo e reside no que nos reserva o futuro: o avanço das grandes redes e sua produção em escala industrial acabando com pequenos comércios e seus atendimentos personalizados, o preparo de alimentos mais saudáveis e caseiros, de acordo com as preferências do freguês enquanto sujeito singular.
Dias de feira é engraçado, dedicado aos pais do autor, e nele é reconstruído o ambiente das feiras livres, de sua montagem à hora da xepa, passando por feirantes e fregueses, relações estabelecidas, velhos truques para aumentar as vendas ou, às vezes, lesar donas de casa, embora a honestidade dos feirantes seja sempre exaltada por Julio Bernardo.
O bar é um caso à parte, com dados impressionantes sobre o alcoolismo dos comerciantes – ele não poupa sequer os pais, o que torna seu relato ainda mais verídico e, portanto, próximo do ambiente das feiras, prato principal destas memórias, apesar de o livro ser classificado como ficção na ficha catalográfica.
Apesar da vasta galeria de personagens e histórias, o livro não tem qualquer pretensão sociológica, antropológica ou coisa que o valha. No fiel da balança pesam as lembranças bem humoradas do autor em seus não poucos dias por detrás da banca.
O André Sant’Anna é filho do Sérgio Sant’Anna, mas querer explicar todo seu talento pela genética pode diminuí-lo. Os dois são dois dos maiores contistas brasileiros em atividade, o que mostra que Deus é injusto: como pode tanto talento numa só família? Coisa assim só se viu, talvez, na família do Caetano e da Bethânia. Ou na família Sarney, mas esta não fez nada de útil pelo Brasil ou pelo Maranhão, apesar de tanto tempo no poder. Esta última família seria uma espécie de família de anti-talentosos. Mas o que importa mesmo, aqui, agora, são os Sant’Anna. Na verdade, o Sant’Anna, o André. E seu livro novo, nem tão novo assim, já com quase um ano de lançado, O Brasil é bom [Companhia das Letras, 2014, 190 p., leia um trecho] – o título do livro –, o Maranhão é uma província e às vezes o, digamos, crítico, pode demorar a ler e resenhar coisa ou outra. Está lá, embalado por aquele prato com uma banana espetada por um garfo, o Campo de batalha 5, óleo sobre tela de Antonio Henrique Amaral, de 1974, a prosa elegante e mui característica de um, repito, dos maiores contistas brasileiros em atividade. Sim, o André, que já havia provado isso em livros como Inverdades [7Letras, 2009], Sexo e amizade [Companhia das Letras, 2007] e O paraíso é bem bacana [Companhia das Letras, 2006], mesmo este último sendo um romance. O André, que é escritor, mas também mexe com música e publicidade, sabe utilizar muito bem a ironia, ou vocês não notaram isso a começar pelo título? O Brasil é bom tem um conto chamado O Brasil não é ruim, que ele enxerta o texto inteiro com vários “nãos” para terminar por dizer a verdade. Começa assim: “Os deputados brasileiros não são vagabundos, não ganham quase vinte e cinco mil reais por mês mais uma série de ajudas de custo como passagens aéreas, casa, comida, roupa lavada etc., não passam só três dias da semana em Brasília, onde não atuam somente em causa própria, comprando e vendendo favores e outras paradas que não os tornariam cada vez mais ricos ilicitamente”. E termina assim: “Por isso é que o Brasil é bom”. O primeiro conto do livro, Deus é bom Nº 8, começa tirando uma onda com Lula e a guinada à direita dos governos petistas. O presidente é Cristo e Judas negocia com o centrão e o livra da crucificação, mas o afasta de todos os ideais que moviam o partido antes do mesmo chegar ao poder. É claro que o André Sant’Anna adverte que “os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles” e aí está outra coisa muito interessante na prosa de Sant’Anna, o André, de mesclar ficção e realidade e tornar pessoas reais personagens de ficção, tipo a Glória Peres, no conto inicial, que quando “Jesus nasceu num barraco bem pobrinho […] falou: esse menino vai se chamar Jesus. Jesus Cristinho”. Ou o George Harrison que ele foi. Todo mundo foi, um dia, na infância, um ídolo. O beatle aparece em vários contos, os últimos do livro, A história da revolução, A história do rock, A história do futebol e A história da Alemanha. No penúltimo, dedicado a Sérgio e Ivan Sant’Anna, “quando o futebol foi inventado, em 1969, o George Harrison era de Belo Horizonte, e no prédio dele, na escola dele, na rua dele as pessoas ou eram Atlético ou eram Cruzeiro. O primo do George era Atlético. O George era o Tostão do Cruzeiro”. Há ainda contos intitulados O futuro vai ser bom, Nós somos bons, O brasileiro é bom e Amor à pátria. Tudo ironia pura, fina ironia. Duas aspas, o começo e o fim deste último: “Porque eu sou assim: a nível de futebol, a pátria em primeiro lugar”. “A nível de futebol, o que importa é o sangue”. Comentário na rede sobre tudo o que está acontecendo por aí ironiza o discurso de ódio da classe média e da polícia sobre militantes e movimentos de defesa dos direitos humanos. Antológico, este conto mereceria transcrição integral, mas fiquemos com uns trechos, apenas, até para vocês se interessarem pela parada, digo, a prosa do André Sant’Anna, e comprarem o livro – e lerem, que é o que realmente importa: “A culpa é toda do direitos humanos, que vem aqui se meter no Brasil e não cuida dos problemas deles mesmos, desses países que se acha. Porque lá todo mundo faz o que quer, faz terrorismo, fuma drogas, anda pelado com os seios de fora e até faz sexo com homens do mesmo sexo. […] Aí, quando vem um bandido e pega o seu carro no farol e dá um tiro na sua cara, você que é um cidadão de bem, com a sua família, o que é que acontece? Vem o direitos humanos e protege os bandidos e quer que a gente que é homens de bem, que não temos direitos humanos nenhum, fique quieto vendo os estupradores todos levando boa vida lá na cadeia, comendo comida que a gente paga e até levando mulher lá prá dentro, prá fazer sexo. […] Brasileiro não precisa nada desses gringos. Esses gringos é que fazem esses terrorismos. Pode ver que aqui no Brasil não tem terrorismo, não tem terremoto nem nada disso. […] Os gringos vêm aqui e ficam querendo botar esse direitos humanos aqui prá soltar os bandidos todos da cadeia. Mas eles lá prendem bandido de menor. Lá na terra deles pode até pena de morte. Só aqui é que não pode porque os gringos do direitos humanos não deixa. […] Eu sou igual o velho lobo Zagallo, totalmente verde e amarelo”. Na história mais longa do livro, Lodaçal, um par de amigos tem várias vezes seu futuro interrompido, sempre de maneira trágica, tudo narrado com a categoria futebolístico-literária de André Sant’Anna, mineiro que hoje vive em São Paulo e talvez não torça pelo Fluminense, como o pai dele, não sei. Toninho e Chiquinho, os personagens, se alimentam, entre outras coisas, de papel higiênico usado. Há sexo, drogas, violência, “o Toninho engolindo os próprios dentes, a visão toda turva, mas pelo menos não saiu pedaço de cérebro pela orelha, coisa que ia acontecer se o Chiquinho deixasse o Toninho nas mãos dos cidadãos de bem”. É irônico, e talvez por isso engraçado, que a ficção de André Sant’Anna revele tão bem o Brasil cotidiano, com seus problemas, sua ignorância, seus preconceitos, o que deveria ser papel da imprensa, mas esta, na maior parte do tempo e das vezes, prefere praticar ficção para agradar aos patrões, e o André é competente também ao escrever não-ficção, que eu já li, aqui e acolá. “Vou dizer uma coisa pra você, uma coisa que, no país da Copa do Mundo, dos Jogos Olímpicos e das instituições de espancar crianças seria considerado uma blasfêmia absoluta: a Alemanha é muito melhor do que o Brasil. Pode crer.”, termina o livro A história da Alemanha, o livro escrito e publicado antes da Copa do Mundo de 2014, antes da reeleição de Dilma Rousseff, antes, portanto, do panelaço e do “impítima”. Qual a capa de seu livro – quem vê de longe e ligeiro pensa em retrato, mas é uma pintura – o que André Sant’Anna faz é pintar um quadro – futurista? – do Brasil, um Brasil em que a Lei de Murphy devia ser artigo da Constituição. É por isso que a literatura de André Sant’Anna é tão boa!
Companhia das Letras reedita obra do autor, cronista bem humorado, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta
POR ZEMA RIBEIRO ESPECIAL PARA O IMPARCIAL
O homem ao lado. Capa. Reprodução
O homem ao lado [Companhia das Letras, 2014, 247 p., leia um trecho] apresenta um Sérgio Porto mais lírico, embora o bom humor permeie as crônicas ali selecionadas. O livro é a reedição de sua primeira coletânea de textos jornalísticos – isto é, publicados na imprensa [1958] – e A casa demolida [1963], que era uma versão ampliada do primeiro, incluindo as crônicas então selecionadas pelo próprio autor.
Sérgio Porto é o nome de batismo de Stanislaw Ponte Preta, multimídia antes do termo ser inventado: cronista, radialista, compositor, o bancário trabalhou ainda em teatro e televisão. Nasceu e morreu no Rio de Janeiro e é responsável por uma galeria de personagens conhecidos, como Tia Zulmira, Rosamundo e Primo Altamirando, além do antológico e – infelizmente – atualíssimo Febeapá [a edição mais recente saiu pela Agir em 2006], o Festival de Besteiras que Assola o País.
Também são de sua lavra ditados populares cuja autoria acabou diluída de tanta repetição. Para ficarmos em apenas dois exemplos: foi ele quem usou pela primeira vez a expressão “mais perdido do que cego em tiroteio”. Ou o “samba do crioulo doido”, de fato um samba-enredo composto por ele, hoje em desuso após o advento do politicamente correto.
Publicadas entre 1952 e 1956 em veículos como a revista Manchete e os jornais Diário Carioca e Tribuna da Imprensa, as 71 crônicas reunidas em O homem ao lado atestam a proficuidade do gênero e do autor. Tudo é assunto para a crônica e ele escreveu um sem número delas. “Direis que homem no banheiro não é assunto de crônica. Talvez, minha senhora, talvez. Depende do homem, do banheiro, do cronista”, escreve em A janela de Marlene (p. 153). Sabia o que dizia. E mais ainda: sabia como dizê-lo.
Ao lado de nomes como Otto Lara Resende, Millôr Fernandes e Paulo Mendes Campos – autores também reeditados pela Companhia das Letras –, entre outros, Porto foi um dos responsáveis por “consolidar a crônica como a manifestação literária mais fecunda e popular do país”, como afirma o jornalista Sérgio Augusto no texto de apresentação de O homem ao lado – ele, o curador da reedição da obra de Porto pela editora. Uma pena a brasileiríssima crônica ter perdido espaço, salvo raras exceções em jornais da metade de baixo do mapa do Brasil.
A graça, o bom humor, o lirismo, a leveza e a elegância permeiam toda a obra de Porto, cuja reedição aparece em boa hora. “O sol entrava em suas frases por todos os lados”, atestou o escritor Barbosa Lima Sobrinho.
Bondes, traições, trajetos, quintais, lembranças da infância – muitas crônicas evocam a casa demolida que acabou por batizar-lhe um livro – vizinhas, corações partidos, sambas, boemia, jogo do bicho, repartições públicas, conversas ouvidas: tudo eram panos para as mangas de Sérgio Porto. Recortava “no violento sol da praia, pedaços dos jornais que lia sem parar, aproveitando o tempo. Pois era, como quase todos os humoristas brasileiros, um trabalhador braçal”, escreveu Millôr Fernandes em O Pasquim em outubro de 1970, num dos textos sobre Sérgio Porto trazidos no volume a guisa de posfácio – as coisas mudaram muito após quase 50 anos do falecimento do escritor e os humoristas já não são tão engraçados ou trabalhadores assim.
“De que morreu Sérgio Porto? Todos os seus amigos dizem a mesma coisa: do coração e do trabalho”, escreveu Paulo Mendes Campos na Manchete de 30 de novembro de 1974 – o texto saiu em O mais estranho dos países [Companhia das Letras, 2013] e completa o “posfácio” de O homem ao lado, ao lado do texto de Millor Fernandes. Ao leitor só resta constatar que tanta vida e tanto trabalho valeram tanto a pena.
Sérgio Sant’Anna é o melhor contista brasileiro em atividade. A quem porventura discordar da afirmativa, recomenda-se urgentemente a leitura de O homem-mulher [Companhia das Letras, 2014, 183 p.; leia um trecho], seu mais recente volume dedicado às histórias curtas.
“Conto é tudo aquilo que chamamos conto”, diz a célebre definição de Mário de Andrade. Daí que esta obra de Sérgio tenha contos de duas páginas até O homem-mulher II, que encerra a antologia, com suas 44 páginas, na linha tênue entre o conto e a novela. Ou o roteiro cinematográfico.
Eis aí, aliás, uma espécie de baliza particular para avaliar a qualidade de um livro de contos: quantos deles dariam bons filmes? Sérgio que é autor, por exemplo, de Um crime delicado [1997], romance que originou Crime delicado [2005], de Beto Brant, tem ao menos quatro contos cinematográficos em O homem-mulher: os contos-títulos, que abrem e fecham o volume (o primeiro uma organizada versão cut-up do segundo, como se Sant’Anna guardasse o melhor – e mais trágico – para o final), Lencinhos – comovente sem perder o erotismo, uma das marcas de sua literatura – e As antenas da raça – que seria ainda melhor se terminasse no “suicídio” da protagonista, sem o autor (tentar) entrar na “psicologia” de uma barata.
Os contos-título contam a história de Adamastor Magalhães – ou Fred Wilson, ou ainda Zezé –, paraense que se veste de mulher no carnaval e vai ao Rio de Janeiro tentar a vida como ator, para terminar de forma trágica. Lencinhos narra a paixão de um cinquentão por uma vendedora de lenços cujo marido definha vítima de câncer. As antenas da raça relata o suicídio acidental da embaixatriz Berenice Azambuja, que resulta da vaidade e orgulho bestas da dita grã-finagem. Em O conto maldito e o conto benfazejo e Prosa Sant’Anna reflete sobre o ofício de escritor. Clandestinos revela um adultério. O torcedor e a bailarina relata a paixão instantânea de um torcedor cujo time é derrotado na final de um campeonato por uma bailarina que toma a tela após uma zapeada deste torcedor – que logo esquece a derrota e o mundo ao redor. E há ainda 11 outras histórias, para deleite do leitor, iniciante ou mais acostumado à pena elegante do mestre carioca.
O sexo, a violência, o futebol e a morte, obsessões deste torcedor do Fluminense, estão presentes. E há mesmo um conto – Amor a Buda – em que o autor comenta a “escultura Tentação (Tangseng e Yaojing), de 2005, do chinês Li Zhanyang”, que ilustra a capa e O homem-mulher.
Autor profícuo e consagrado, Sant’Anna iniciou sua premiada carreira literária há 45 anos, com os contos de O sobrevivente (1969), a que se seguiram quase vinte livros entre contos, novelas, romances, peças de teatro e um de poesia [Junk box, de 1984]. Venceu quatro vezes o prêmio Jabuti e é pai do também escritor André Sant’Anna – que a julgar pela qualidade da obra que vem construindo, herdou muito do pai.
A pergunta que não cala ao encerrarmos um livro monumental como O homem-mulher é: como um autor há tanto tempo na estrada consegue soar original? Determinados temas são como marcas de sua prosa, mas a forma como Sant’Anna os aborda soará sempre singular. Para ele, parece, a literatura é a própria vida, que começa com sexo e termina com morte – longe de querer, aqui, entregar o ouro ao bandido. Repete-se a recomendação com que se abre esta resenha: a quem não conhece, o volume serve também como uma bela porta de entrada à obra do autor.
O irmão alemão [Companhia das Letras, 2014, 237 p., leia um trecho] é, de longe, o melhor romance de Chico Buarque. A começar pelo mote: a procura por um filho que Sergio Buarque de Holanda, seu pai, teve na Alemanha, em 1930, antes do casamento.
Compositor consagrado, Chico Buarque – que completou 70 anos neste 2014 – já é também, há algum tempo, nome prestigiado no universo literário, dentro e fora do Brasil. Em O irmão alemão ele mescla memória e autobiografia à pesquisa e ficção.
Notas ao fim do livro dão conta de quem foi Sergio Günther, o irmão alemão de Chico Buarque, “filho de Sergio Buarque de Holanda e Anne Ernst”, que “gravou um número incerto de discos, hoje fora de circulação”.
O livro é narrado por um professor de literatura – alter ego do autor –, que se diverte com o cometimento de pequenos delitos – Chico Buarque chegou a ser detido por um furto de automóvel na adolescência –, a boemia, em fazer a corte a moças desvirginadas por seu irmão mais velho e em fuçar cartas ocultas no interior dos livros da vasta biblioteca de seu pai.
As cartas, reais – com reprodução fac-símile de algumas ao longo da obra –, algumas escritas em alemão, dão conta da existência do personagem-título do livro, o que instiga a porção detetivesca de Ciccio, como é chamado o filho mais famoso de Sergio, a cujo amor pelos livros O irmão alemão presta merecido tributo – lê-lo é como mergulhar nas altas estantes do sociólogo, espalhadas pela casa inteira, cujas “paredes eram feitas de livros”. É quase correr os dedos nas lombadas dos incontáveis títulos de sua coleção.
Não à toa o novo romance de Chico Buarque é oferecido a Sergios: o pai e o irmão, ambos já falecidos, de quem o compositor-escritor se reaproxima, permitindo a seus leitores uma espiadela em sua vida privada – mas só o quanto ele mesmo permite ao descortiná-la, senhor absoluto da situação.
O resto é um piano ecoando ao longe, gemidos no quarto vizinho ou o cochilo do pai com um livro no colo e um charuto em uma das mãos.
O novo romance de Martin Amis é uma fábula contemporânea sobre o mundinho deslumbrado e tresloucado das celebridades fast food e o ridículo que as cerca.
Lionel Asbo [Companhia das Letras, 2014, 360 p., tradução de Rubens Figueiredo; leia trecho], antes Pepperdine, ganha este nome ao assumir sua “condição de comportamento antissocial” (na sigla em inglês), depois de reiteradas passagens por prisões, graças a crimes em Diston Town, subúrbio londrino em que vive.
Para a criminalidade o personagem-título demonstra predisposição e talento. Não à toa cria dois pitbulls, Joe e Jeff, “ferramentas de trabalho”.
O sobrinho Desmond, que vive com ele, chama-o carinhosamente de Tio Li. O garoto consegue algum futuro justamente seguindo às avessas os conselhos recebidos de Asbo, sobre trânsito – dirige perigosamente – e a universidade – o tio não a valoriza, é semianalfabeto e tem problemas de dicção; o sobrinho torna-se um aluno de destaque, enquanto faz bicos de taxista para se sustentar. O que não o torna um santo: por várias vezes, escondido do tio, Des faz sexo com a própria avó.
Na loteria, um jogo que costuma classificar de “para otários”, Lionel ganha 140 milhões de libras, por meios não convencionais. Torna-se celebridade instantânea, qual um ex-BBB, paparicado por paparazzi e outras engrenagens dessa indústria, o que não o livra de novas confusões.
Ele desperdiça dinheiro com futilidades como as suítes mais caras de hotéis de luxo, farras megalomaníacas e prostitutas, enquanto sua mãe agoniza num asilo. A narrativa é conduzida com bom humor e leva o leitor a reflexões sobre a distância entre gestos e palavras – quantos aspiram tornar-se celebridade no fantasioso mundinho das redes sociais? –, além de ironizar a relação da mídia e da sociedade com astros e estrelas meteórica e artificialmente fabricados.