Um Lençóis Jazz e Blues Festival de inspiradas homenagens

Jota P - foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
Jota P – foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
Alice Caymmi e Eduardo Farias - foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
Alice Caymmi e Eduardo Farias – foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
JJ Thames com Igor Prado ao fundo - foto: Diana Melo
JJ Thames com Igor Prado ao fundo – foto: Diana Melo

Para deleite do público, Hermeto Pascoal (1936-2025) não foi o único homenageado da 16ª. edição do Lençóis Jazz e Blues Festival, encerrado ontem (1º.) na Avenida Beira-Rio, em Barreirinhas. À homenagem anunciada desde a identidade visual do evento somaram-se outras, a Maria Bethânia, Djavan e Nana Caymmi (1941-2025), nos shows de Luciana Pinheiro, Vanessa Moreno e Alice Caymmi, respectivamente.

O show de Vanessa Moreno não foi dedicado exclusivamente ao repertório do alagoano. Além de Djavan, acompanhada pelo guitarrista Tarcísio Santos, ela desfilou temas como “Refazenda” (Gilberto Gil), “Bananeira” (Gilberto Gil e João Donato), com direito a participação especial da flautista Morgana Moreno — que se apresentou ao lado de Arismar do Espírito Santo, num dos shows representativos dos “hermetismos pascoais”; o outro foi o do saxofonista Jota P, que integrou o grupo de Hermeto Pascoal por 10 anos.

O baixista, que estava na plateia vendo a apresentação, não se fez de rogado quando recebeu o convite de Vanessa e, com Morgana e o guitarrista, fecharam a apresentação com “Emoriô” (Gilberto Gil e João Donato).

Jota P (saxofone, flauta e flautim) estava acompanhado pelos jovens Luiz Gabriel (trompete e flugelhorn), Tom Sickman (guitarra), Gabriel Biel (baixo) e Luiz Gustavo Rocha (bateria) e abriu sua apresentação literalmente com “Xeque mate”, faixa autoral que abre seu ótimo “Baile dos língua preta” (2023) — na sequência, alguém da plateia se levantou e foi até ele, entregar-lhe uma peça de xadrez, que ele agradeceu dizendo que iria guardar com muito carinho o presente.

No bloco em homenagem a Hermeto Pascoal, Jota P tocou “Santo Antônio” (Hermeto Pascoal) e “Florescer” (Jota P), além de “Hermeto me avisou” (Jota P), segundo ele baseada em fatos reais. Sua inspirada apresentação no Lençóis Jazz e Blues Festival, marcada pelo clima descontraído e pela capacidade de improvisação, foi encerrada com outra autoral, outra homenagem, “Airto e Flora” — flores em vida ao casal formado pelo percussionista Airto Moreira e pela cantora Flora Purim —, que fecha o citado álbum.

Alice Caymmi fez um show comovente, “Para minha tia Nana”, de levar às lágrimas boa parte da plateia, acompanhada apenas pelo piano de Eduardo Farias. Já disse a que veio ao iniciar sua apresentação com “Resposta ao tempo” (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos), seguida por “Acalanto” (Dorival Caymmi) — “essa meu avô compôs quando minha tia nasceu” — e “A noite do meu bem” (Dolores Duran).

Não faltaram “Atrás da porta” (Chico Buarque e Francis Hime), “Derradeira primavera” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes) e “Sabe de mim” (Sueli Costa). Fez troça ao anunciar “Mentiras” (João Donato e Lysias Enio): “essa é da época em que ela [Nana Caymmi] era casada com João Donato (1934-2023), agora vocês tiram como é que era isso”.

Cantou ainda “Sem você” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), “Meu menino” (Danilo Caymmi), “Cais” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), “Tens (Calmaria”) (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza) — “ninguém conhece, mas é linda” —, “Dora” (Dorival Caymmi), “Só louco” (Dorival Caymmi) e “Suave veneno” (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos). Fechou com “Não se esqueça de mim” (Roberto Carlos e Erasmo Carlos).

A homenagem de Alice a Nana superou questões políticas que mantiveram afastadas sobrinha e tia nos últimos anos, num espetáculo que nada tem de oportunista e que demonstra que a Caymmi, como qualquer família brasileira, não está imune a eventuais divergências.

O festival foi encerrado com a apresentação vibrante da americana JJ Thames acompanhada da Prado Brothers Band, que colocou boa parte do público para dançar no gargarejo. A programação de alto nível dificulta o exercício de eleger apenas um como melhor show.

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A reportagem se hospedou na Pousada e Ponto de Cultura Sítio Paraíso do Caju, onde foram realizadas as jam sessions do Lençóis Jazz e Blues Festival este ano.

Paulinho da Viola faz única apresentação hoje (22) em São Luís

Última passagem do artista pela Ilha aconteceu durante o Festival Internacional de Música, em 2002

Foto: Zema Ribeiro
Foto: Zema Ribeiro

Paulinho da Viola volta à São Luís para um show depois de 12 anos de sua última apresentação na ilha – no Festival Internacional de Música que celebrou os 390 anos da cidade. O artista se apresenta hoje (22), no Patrimônio Show (Aterro do Bacanga), às 21h, acompanhado de sua banda: Beatriz Faria (vocal), Celsinho Silva (percussão), Cristóvão Bastos (piano), Dininho (contrabaixo), Hércules (bateria), João Rabello (violão), Marcos Esguleba (percussão) e Mário Sève (sax, flauta e clarinete). A abertura fica por conta do DJ Franklin, em um set de samba que dá pequena amostra de sua vasta vinilteca e de seu conhecimento profundo do assunto.

A elegância e a serenidade de sempre estavam impregnadas no homem que surgiu para a coletiva de imprensa com pouco mais de meia hora de atraso. Calça clara e camisa listrada, sequer havia almoçado, embora pouco se importasse com isso. Vanessa Serra, assessora de comunicação da produtora Ópera Night, disse-lhe que todos os que ali estavam, eram, além de jornalistas, seus fãs.

No lobby bar do Grand São Luís Hotel, que hospeda o príncipe do samba, o clima era de descontração. Às perguntas, o músico respondia calma e longamente, sem se importar que dali a pouco teria que sair para comer algo. De repente sua esposa advertiu: “Paulinho, o pessoal está querendo ir!”. “Que pessoal?” Ela se referia às equipes de televisão presentes, que precisavam captar sonoras e correr para o fechamento das edições. Não sem antes passar para gravar um pronunciamento patético do senhor prefeito sobre as chuvas que ora castigam a cidade.

O artista lembrou-se das origens, o início ao violão, as rodas de choro que ocorriam em sua casa, “humilde, modesta”, e de figuras como Jacob do Bandolim, a cujo Conjunto Época de Ouro seu pai, o violonista César Faria, pertenceu. Lembrou ainda a influência dos mais velhos, particularmente do pai, e a preocupação deste em o filho seguir seu caminho, além de gravações importantes que presenciou.

Com a elegância que lhe é peculiar, confessou-se atrapalhado com tantos flashes. Parecia perder o fio da meada. Uma pausa de um fotógrafo menos contido e continuou as histórias. Em meio às várias que contou, respondendo perguntas dos repórteres e emendando memórias – cantando e/ou chorando –, chegou a lacrimejar lembrando seu Zé Maria, seu primeiro professor de violão: “meu irmão encontrou-o muitos anos depois, se apresentou. Ele não disse nada. Simplesmente continuou o caminho, e falou: sabe por que o socialismo não vai dar certo? Por causa da vaidade do homem”.

Paulinho da Viola deu poucas pistas do repertório do show de hoje: mesclará suas obras mais conhecidas a repertório inédito. O artista tem gravados dois discos ao vivo ainda não lançados e esta turnê não terá registro. Tampouco haverá choro no repertório: “há tempos não toco; choro você tem que tocar todo dia, não dá para fazer de qualquer jeito. Mas preciso voltar, as pessoas cobram”. Alguma coisa de Lupicínio Rodrigues será lembrada, por conta do centenário de nascimento que o gaúcho completa neste 2014 – Nervos de aço batizou seu disco de 1973, com a gravação mais conhecida desta sublime dor de cotovelo.

Lembrei-lhe A obra para violão de Paulinho da Viola, disco que João Pedro Borges gravou em meados da década de 1980, com participação do compositor e de seu saudoso pai. Gravado pela Kuarup e distribuído como brinde a clientes de uma empresa mineira, o álbum nunca teve relançamento em cd. O maestro gaúcho Radamés Gnattali – com quem o maranhense tocou na Camerata Carioca – dizia ser quase possível falar em uma escola Paulinho da Viola do instrumento. Perguntei-lhe se não havia planos de relançar o disco.

“Eu falei com João algumas vezes. Como não existe mais a empresa que fez o brinde, aquilo [o disco] nos pertence. Eu pensei em mais uma vez conversar com ele, encontrá-lo agora [aproveitando esta sua passagem pela ilha] e a gente tentar fazer isso. Isso foi em 80 e pouco, 85, por aí. E ficou lá escondido, brinde, não foi vendido nem nada. Aconteceu um fato engraçado: uma violonista, não sei como, ouviu, e me procurou. Márcia Taborda. E disse: “olha, eu ouvi, tenho um amigo que tem o disco, e eu gostaria de saber se eu poderia fazer um trabalho com estas músicas”. E eu falei “claro”. Ela foi na minha casa algumas vezes e eu passei a maior vergonha, não estava encontrando as partituras e ela queria tirar algumas dúvidas comigo. E eu pegava o violão e algumas coisas eu não lembrava mais, foram muitos anos, e ali tem algumas músicas que não são muito simples, você precisa estar permanentemente tocando. E eu há muitos anos não tocava aquilo e passei uma vergonha [risos], eu tinha que me lembrar e dizer “foi feito assim”,    e algumas coisas eu tinha que voltar ao disco. Depois eu achei as partituras e ela gravou um disco [Choros de Paulinho da Viola, Acari, 2005] e gravou até outra música [Além das 10 faixas de A obra para violão de Paulinho da Viola, Marcia Taborda gravou Rosinha, essa menina, Escapulindo e Floreando]. Foi lançado comercialmente, um trabalho bonito que ela fez também. Mas este disco podia ser reeditado, é legal”, relatou.

Éramos poucos repórteres no recinto, mas além dos disparos de máquinas fotográficas, celulares tocavam vez por outra atrapalhando o fluir da entrevista. Paulinho da Viola manteve a elegância e a tranquilidade. Disse que propagava histórias justamente contando-as aos outros. Perguntei-lhe se não havia planos de escrever um livro. “Eu, até para escrever um bilhete para alguém, demoro. Escrevo, isso não está bom, apago, muda uma palavra. Leva tempo. Acho que não, eu escrevo mal”. Lila Rabello discordou. Eu também, e trechos de músicas de vários discos seus vieram-me imediatamente à cabeça. Um gênio manso e modesto.

Lembrei-me de Chico Buarque, que gravou sua Sinal fechado, dos grandes intervalos entre seus últimos discos – o que ocorre também ao autor do diálogo musical que virou símbolo de resistência à ditadura militar – e do tempo roubado àquele pela literatura. Paulinho da Viola disse que a relação com as gravadoras mudou, sobretudo com o advento da internet. “Qualquer um, com um equipamento não muito sofisticado pode obter, em um quarto, uma sonoridade que não conseguíamos em estúdios há uns anos. Isso realmente mudou toda a relação artística com o público, a distribuição de determinado produto. Eu gravo uma música, ponho na internet, posso não ganhar nada, ou ganhar de outro jeito”, declarou.

Alguns grandes nomes da música brasileira de sua geração agruparam-se no Procure saber, defendendo o veto às biografias. Sobre o assunto, ele é a favor da publicação sem a necessidade de autorização prévia. “Biografia tem que ser uma coisa aberta mesmo. Eu só não quero saber de fofoca”, afirmou.

A banda já tinha se mandado na frente. Paulinho da Viola, a esposa e a produção iam almoçar. Eu seguiria para outro compromisso. A pressa impediu-me de perguntar-lhe ainda sua opinião sobre as manifestações que tomaram conta do Brasil desde junho passado. Ele volta à São Luís para um show e encontra a cidade em meio a chuvas torrenciais, protestos diários e greves anunciadas para hoje, dia de seu espetáculo. Que seja como o título de um de seus choros: Inesquecível!