Um Lençóis Jazz e Blues Festival de inspiradas homenagens

Jota P - foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
Jota P – foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
Alice Caymmi e Eduardo Farias - foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
Alice Caymmi e Eduardo Farias – foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
JJ Thames com Igor Prado ao fundo - foto: Diana Melo
JJ Thames com Igor Prado ao fundo – foto: Diana Melo

Para deleite do público, Hermeto Pascoal (1936-2025) não foi o único homenageado da 16ª. edição do Lençóis Jazz e Blues Festival, encerrado ontem (1º.) na Avenida Beira-Rio, em Barreirinhas. À homenagem anunciada desde a identidade visual do evento somaram-se outras, a Maria Bethânia, Djavan e Nana Caymmi (1941-2025), nos shows de Luciana Pinheiro, Vanessa Moreno e Alice Caymmi, respectivamente.

O show de Vanessa Moreno não foi dedicado exclusivamente ao repertório do alagoano. Além de Djavan, acompanhada pelo guitarrista Tarcísio Santos, ela desfilou temas como “Refazenda” (Gilberto Gil), “Bananeira” (Gilberto Gil e João Donato), com direito a participação especial da flautista Morgana Moreno — que se apresentou ao lado de Arismar do Espírito Santo, num dos shows representativos dos “hermetismos pascoais”; o outro foi o do saxofonista Jota P, que integrou o grupo de Hermeto Pascoal por 10 anos.

O baixista, que estava na plateia vendo a apresentação, não se fez de rogado quando recebeu o convite de Vanessa e, com Morgana e o guitarrista, fecharam a apresentação com “Emoriô” (Gilberto Gil e João Donato).

Jota P (saxofone, flauta e flautim) estava acompanhado pelos jovens Luiz Gabriel (trompete e flugelhorn), Tom Sickman (guitarra), Gabriel Biel (baixo) e Luiz Gustavo Rocha (bateria) e abriu sua apresentação literalmente com “Xeque mate”, faixa autoral que abre seu ótimo “Baile dos língua preta” (2023) — na sequência, alguém da plateia se levantou e foi até ele, entregar-lhe uma peça de xadrez, que ele agradeceu dizendo que iria guardar com muito carinho o presente.

No bloco em homenagem a Hermeto Pascoal, Jota P tocou “Santo Antônio” (Hermeto Pascoal) e “Florescer” (Jota P), além de “Hermeto me avisou” (Jota P), segundo ele baseada em fatos reais. Sua inspirada apresentação no Lençóis Jazz e Blues Festival, marcada pelo clima descontraído e pela capacidade de improvisação, foi encerrada com outra autoral, outra homenagem, “Airto e Flora” — flores em vida ao casal formado pelo percussionista Airto Moreira e pela cantora Flora Purim —, que fecha o citado álbum.

Alice Caymmi fez um show comovente, “Para minha tia Nana”, de levar às lágrimas boa parte da plateia, acompanhada apenas pelo piano de Eduardo Farias. Já disse a que veio ao iniciar sua apresentação com “Resposta ao tempo” (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos), seguida por “Acalanto” (Dorival Caymmi) — “essa meu avô compôs quando minha tia nasceu” — e “A noite do meu bem” (Dolores Duran).

Não faltaram “Atrás da porta” (Chico Buarque e Francis Hime), “Derradeira primavera” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes) e “Sabe de mim” (Sueli Costa). Fez troça ao anunciar “Mentiras” (João Donato e Lysias Enio): “essa é da época em que ela [Nana Caymmi] era casada com João Donato (1934-2023), agora vocês tiram como é que era isso”.

Cantou ainda “Sem você” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), “Meu menino” (Danilo Caymmi), “Cais” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), “Tens (Calmaria”) (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza) — “ninguém conhece, mas é linda” —, “Dora” (Dorival Caymmi), “Só louco” (Dorival Caymmi) e “Suave veneno” (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos). Fechou com “Não se esqueça de mim” (Roberto Carlos e Erasmo Carlos).

A homenagem de Alice a Nana superou questões políticas que mantiveram afastadas sobrinha e tia nos últimos anos, num espetáculo que nada tem de oportunista e que demonstra que a Caymmi, como qualquer família brasileira, não está imune a eventuais divergências.

O festival foi encerrado com a apresentação vibrante da americana JJ Thames acompanhada da Prado Brothers Band, que colocou boa parte do público para dançar no gargarejo. A programação de alto nível dificulta o exercício de eleger apenas um como melhor show.

*

A reportagem se hospedou na Pousada e Ponto de Cultura Sítio Paraíso do Caju, onde foram realizadas as jam sessions do Lençóis Jazz e Blues Festival este ano.

“Só o que não se cansa é a gente se querer bem”

"Para viver um grande amor" (Vinícius de Moraes e Toquinho), às vezes é preciso olhar o retrovisor - foto: Zema Ribeiro
“Para viver um grande amor” (Vinícius de Moraes e Toquinho), às vezes é preciso olhar o retrovisor – foto: Zema Ribeiro

O título deste texto (ridículo, como toda carta de amor, não é, Fernando Pessoa?) é verso de “Nossa canção” (Ana Terra e Danilo Caymmi), sucesso de Nana Caymmi (1941-2025), não por acaso a música que abre a playlist “Depois daquela dança”, que alimentamos constantemente desde a dança que precedeu nosso primeiro beijo.

“O que fazer com este beijo represado há 20 anos?”, perguntei, ousado, logo após nossos lábios se encontrarem pela primeira vez. Tudo começou há 20 anos, na plateia de uma apresentação de Elomar — a música sempre presente — no finado Circo da Cidade (mais precisamente dia 19 de agosto de 2005), que assistimos em cadeiras lado a lado.

Apresentados por um amigo comum, eu me apaixonei, mas um coquetel de álcool, juventude (leia-se inexperiência) e lerdeza me impediu de perceber os sinais da reciprocidade, à época.

Como a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios, “nossos destinos foram traçados na maternidade” (Cazuza, Leoni e Ezequiel Neves) — com distâncias geográficas e temporais mínimas: ela nasceu na Maternidade Benedito Leite e eu na Santa Casa de Misericórdia, ambas no Centro de São Luís/MA, com apenas 15 dias de diferença.

Mas desde o citado show de Elomar, quis o acaso que “as retas mais curvas que o mundo tem” (Chico Maranhão) nos provassem, na prática, a teoria de Vinícius de Moraes (1913-1980): “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida”.

Vivemos: acertamos, erramos, fomos felizes e tristes, pertos e distantes, mas sempre amigos, com gostos parecidos, posturas políticas semelhantes e vez por outra, entre “encontros e despedidas” (Milton Nascimento e Fernando Brant), nos esbarrando aqui e acolá, em agendas de “festa, trabalho e pão” (Gilberto Gil e Capinan), bem menos do que gostaria, é verdade, admito.

Mas já dizia Paulo Leminski (1944-1989), outro poeta-músico de nossa predileção: “um bom poema leva anos/ cinco jogando bola,/ mais cinco estudando sânscrito,/ seis carregando pedra,/ nove namorando a vizinha,/ sete levando porrada,/ quatro andando sozinho,/ três mudando de cidade,/ dez trocando de assunto,/ uma eternidade, eu e você,/ caminhando junto”.

É um poema sobre seu próprio ofício poético e sobre maturação, para além da poesia, também do amor: o nosso levou 20 anos para poder ser vivido plenamente. E está apenas começando, embora sempre estivesse ali, pulsando quietinho. “Ah, infinito delírio chamado desejo/ essa fome de afagos e beijos/ essa sede incessante de amor” (Gonzaguinha); “não dá mais pra segurar/ explode coração” (idem).

Quando nos conhecemos, logo apelidei-a, carinhosamente, “menina de olhos amendoados”, estas duas petecas cor de mel que me espelharam e abriram as portas da paixão, a primeira coisa que me chamou a atenção. “Quando vi você me apaixonei” (Chico César), para logo depois cantar o Djavan de “Um amor puro”: “te adoro em tudo”.

Quando nos reencontramos, até tentamos, mas foi impossível conter a explosão: “nós somos fogo e gasolina” (Carlos Rennó e Pedro Luís). Sempre me refiro à nossa história, que adoro contar, como “um caso de loucura e mágica” (Ritchie e Antonio Cicero).

“O futuro já sabia, mas a gente ainda não” (Barro e Ed Staudinger): a dona dos olhos amendoados é hoje, finalmente, a “dona da minha cabeça” (Fausto Nilo e Geraldo Azevedo).

Volto ao show de Elomar, tendo-o como um marco: 20 anos não são 20 dias. Pensei em escrever algo sobre tudo isto, aproveitando a efeméride, e dei de cara com um poema, escrito também há 20 anos, uma singela quadrinha, com algum poder de síntese, já estava tudo lá: “teus olhos, duas pedras raras/ me deixam mudo/ com tua beleza me calas/ e se sou teu, tenho tudo”.

*

para Diana Melo

Ilha, 20 de agosto de 2025

Re/encontrando Vicente Barreto

O cantor e compositor Vicente Barreto - foto: Zema Ribeiro
O cantor e compositor Vicente Barreto – foto: Zema Ribeiro

Eu devia ter uns 14 ou 15 anos. Estava em um bar, tomando refrigerantes e vendo uma apresentação do violonista rosariense Fran Gomes. À época eu já tinha um conhecimento razoável de música, adquirido fuçando as coleções de vinis de meus avós, pais e tios. Naquela tarde fiz do músico uma espécie de jukebox – algo que hoje condeno, obviamente – e desdenhava de algo que eventualmente ele não sabia cantar ou tocar.

Foram tantos “toca Zé Ramalho”, “toca Zé Geraldo”, “toca Geraldo Azevedo”, “toca Fagner”, “toca Gilberto Gil”, “toca Chico Buarque”, “toca Caetano Veloso”, “toca Belchior”, “toca Djavan” e toca tudo que eu conhecesse, sem falar do infaltável “toca Raul!”, que ele retrucou: “eu vou cantar uma que tu não conhece”. A letra me pegou na hora – é até hoje uma de minhas canções prediletas em toda a MPB – e ao fim ele perguntou quem era e eu não soube responder. Era “A notícia”, parceria de Celso Viáfora e Vicente Barreto: “O New York Times não deu uma linha/ a BBC de Londres nem uma palavra/ mas ontem no Xingu um índio se afogou/ e um guarda-marinha se atirou nas águas/ para salvar a sua vida/ Na mesma hora um favelado da Rocinha/ que tinha sete filhos, arrumou mais um/ era um menino loiro de olho azul/ que tinha sido abandonado nu/ numa avenida/ Gente má, gente linda/ dia vem, noite finda/ em todo lugar”. A música é tão marcante que digito sua letra consultando apenas a memória.

Quase 30 anos depois do episódio que me apresentou a obra de Vicente Barreto – porque depois do maravilhamento que foi ouvir Fran tocá-la e descobrir um artista que eu então não conhecia, ir atrás de outras composições, discos etc., foi um pulo. Aquele moleque de 14 ou 15 anos se tornou jornalista, perdeu a empáfia e teve a oportunidade de entrevistar o artista baiano, por ocasião de seu álbum mais recente, “Na força e na fé” – hoje finalmente conheci-o pessoalmente, por ocasião de entrevista que concedeu ao Timbira Cult, com Gisa Franco, na Rádio Timbira FM (95,5), quando contei-lhe a história com que abro este texto.

Parceiro de nomes como Alceu Valença (“Tropicana”, “Cabelo no pente”, “Pelas ruas que andei”), Tom Zé (“Hein?”, “Lá vem cuíca”, “Na parada de sucesso” e “Esteticar” – esta também com Carlos Rennó), Celso Viáfora (a citada “A notícia”, “A cara do Brasil”, gravada por Ney Matogrosso), Paulo César Pinheiro (“Capitão do mato”, gravada por Maria Bethânia), Chico César (“Ilusão retada”) e Zeca Baleiro (“Saudades de te ver, Paraíba”), Vicente Barreto se apresenta hoje (12) e amanhã (13), às 20h, no Miolo Café Bar (Av. Litorânea, 100, Calhau). O cantor e compositor maranhense Djalma Chaves faz o show de abertura.

Coreiras dançando tango

Hamilton de Holanda e Mestrinho no palco do Festival Ilha Sinfônica, ontem (29) - foto: divulgação
Hamilton de Holanda e Mestrinho no palco do Festival Ilha Sinfônica, ontem (29) – foto: divulgação

Os telões que ladeavam o palco do Ilha Sinfônica mostraram: coreiras do Tambor de Crioula de Mestre Felipe dançando tango, enquanto Hamilton de Holanda (bandolim) e Mestrinho (sanfona) tocavam “Libertango” (Astor Piazzolla). A imagem sintetiza a proposta do festival, que juntou música clássica e música popular, com um elenco que uniu a Orquestra Ilha Sinfônica (formada por músicos ludovicenses para o evento) aos dois citados, expoentes em seus instrumentos, além de nomes já bastante conhecidos da cena local, incluindo o homenageado da noite, o cantor e compositor César Nascimento.

A apresentação de Hamilton de Holanda e Mestrinho, que pela primeira vez tocaram juntos em São Luís, começou com “Canto de Xangô” (Baden Powell e Vinícius de Moraes) e baseou-se no repertório de Canto da Praya (Deck, 2020), álbum que lançaram juntos. Em aproximadamente uma hora de apresentação, desfilaram temas como “Escadaria” (Pedro Raimundo), “Te Devoro” (Djavan) – juntos cantaram o refrão, para delírio da plateia –, “Drão” (Gilberto Gil) – cantada por Mestrinho –, “Afrochoro” (Hamilton de Holanda), “Evidências” (José Augusto e Paulo Sérgio Valle), que o público cantou a plenos pulmões, “Isn’t She Lovely” (Stevie Wonder) e “Palco” (Gilberto Gil). No bis, “Te Faço Um Cafuné” (José Abdon).

Antes da dupla, o Quarteto de Cordas da Orquestra Ouro Preto preparou o terreno. Hamilton de Holanda e Mestrinho ainda voltariam ao palco com a Orquestra Ilha Sinfônica, regida por Jairo Moraes e pelo regente convidado Rodrigo Toffolo (maestro da Orquestra Ouro Preto); o primeiro solou “Bela Mocidade” (Donato Alves) e o segundo, “Engenho de Flores” (Josias Sobrinho). A apresentação da orquestra marcou também o lançamento de “Valsa Ludovicense” (César Nascimento), disponível nas plataformas digitais desde 8 de setembro, aniversário de São Luís.

A Orquestra Ilha Sinfônica acompanhou artistas como Nosly (que cantou e tocou violão em “June”, parceria sua com Celso Borges), o idealizador e produtor do evento Emanuel Jesus (“Filhos da Precisão”, de Erasmo Dibell), Adriana Bosaipo (cantora (e compositora) talentosa que errou a letra de “Eulália”, de Sérgio Habibe) e César Nascimento, que se emocionou ao relembrar “Ilha Magnética”, já um clássico de sua autoria, e “Corêro” (Josias Sobrinho), que encerrou a noite da orquestra com todos os participantes cantando junto, no palco. O Bumba Meu Boi Unidos de Santa Fé, sob o comando de Zé Olhinho ainda se apresentaria.

O cerimonial anunciou que ano que vem tem mais, encerrando o mês de aniversário da capital brasileira do reggae, do bumba meu boi e do tambor de crioula. Tenho certeza que todos os presentes à praça lotada ontem (29) já aguardam ansiosos.

O baile de Chico César, em casa

TEXTO E FOTOS: ZEMA RIBEIRO

Chico César se apresentou ontem (2), na Praça das Mercês, no Desterro, no Centro Histórico da capital maranhense, na programação do aniversário de 412 anos de São Luís. Cantou por pouco mais de hora e meia, numa demonstração de sua relação atávica, umbilical e orgânica com a cidade. Muita gente, ainda hoje, acredita que o paraibano é maranhense.

Prestes a completar 30 anos de sua estreia fonográfica, com Aos Vivos (Velas, 1995), ele escolheu “Beradêro”, faixa que abre o citado trabalho, para inaugurar seu show, com a plateia cantando junto desde ali e direito a um “viva Paulo Freire (1921-1997)!” – o educador é citado na letra – respondido a plenos pulmões pelo público presente.

Artista experiente e experimentado, com pleno domínio de palco, Chico César soube fazer o público cantar junto, aplaudir, dançar e vibrar, em êxtase coletivo. Marcado para às 21h, o show só foi começar pouco depois de 23h30. O artista desculpou-se, mas disse que o atraso nada tinha a ver com ele e sua equipe, que esperaram pacientemente todas as apresentações que o antecediam. E revelou: “a gente preparou um show de duas horas, mas vai ter que diminuir um pouquinho. Minha equipe precisa estar no aeroporto às duas”. Após ouvir um “ah” de insatisfação do público, respondeu: “amanhã vocês trabalham”. E o público, para rir de si mesmo: “não!”.

Chico César conhece o chão que pisa, sabia que estava na ilha do reggae. Após “Beradêro” mandou “Árvore”, clássico do baiano Edson Gomes (que ele havia cantado em duo com Marcelo Jeneci em Night Club Forró Latino (volume I), álbum mais recente do sanfoneiro), seguida por “Mama África”, “Brilho de Beleza” (Nego Tenga) – trocando o nome de Bob Marley (1945-1981) da letra original pelo de Marielle Franco (1979-2018) – e finalizando o longo medley com “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores” (Geraldo Vandré), transformando a praça num salão de baile em que os presentes não têm intervalo para interromper a dança.

Dizer que o público foi à loucura pode ser redundante em se tratando deste show, de muitos pontos altos. Chico César cantou “Sereia Linda de Cumã” (Humberto de Maracanã/ Zé Maria), faixa de Aldeia Tupinambá (Ná Music/ Tratore, 2020), de que ele participa (quem esteve no Festival Zabumbada em 2022 não esquece o encontro do paraibano com o batalhão, na mesma Praça das Mercês). A esta seguiram-se “Vestido de Amor” e “À Primeira Vista”, com citação de “Samurai” (Djavan), numa apresentação recheada de intertextos, em que Chico César vai descortinando sua formação e sua relação com o lugar, sem nunca forçar a barra.

No palco ao lado do Monumento da Diáspora Africana, na Praça das Mercês, Chico César exaltou o papel dos negros e das mulheres, por vezes repetindo a frase “lugar de mulher é onde ela quiser” – metade do sexteto que o acompanha – a banda Machifeme, como ele apresentou – é feminino: Síntia Piccin (saxofone e flauta), Richard Fermino (trompete e flauta), Larissa Humaitá (percussão), Gledson Meira (bateria), Helinho Medeiros (teclado e sanfona) e Lana Ferreira (baixo).

“Pensar em Você” trouxe outras citações: “Nossa Canção” (Luiz Ayrão), além de um trechinho de “Dia Branco”, de Renato Rocha e Geraldo Azevedo – com quem Chico divide Violivoz (Ao Vivo) (Chita/ Geração/ LF + C, 2023). Quando cantou “Deus me Proteja” agradeceu a Dominguinhos (1941-2013) e Juliette, por colocarem sua composição no coração dos brasileiros. Presenteou os presentes com uma inédita, “composta ontem” – quando postou-a no instagram: “Namorar no Maranhão”, uma toada que primeiro cantou sozinho ao violão e depois acompanhado da banda. Dedicou-a a “Josias Sobrinho e Chico Saldanha, meus mestres”, que estavam presentes. Outra viria mais à frente, “composta durante a pandemia, mas também parece que foi ontem”, sobre os Lençóis Maranhenses – que ele revelou não conhecer, “ainda”, brincando com o fato de serem “muita areia para seu caminhãozinho”.

“Agalopado” (Alceu Valença), faixa que abre Espelho Cristalino (Som Livre, 1977), inaugurava um bloco de formadores de Chico César, como ele mesmo revelou. Seguiram-se “Sobradinho” (Sá e Guarabyra), cuja regravação pelo paraibano foi abertura de novela da Rede Globo, e “Admirável Gado Novo” (Zé Ramalho). O fio autoral foi retomado com “Palavra Mágica” e “Da Taça”, com incidental de “Lenha”, do parceiro maranhense Zeca Baleiro (com que Chico divide o álbum Ao Arrepio da Lei (Saravá/ Chita, 2024). O medley se completava com “Proibida Pra Mim” (Chorão/ Marcão/ Champignon/ Pelado), sucesso do grupo Charlie Brown Jr., também regravada por Baleiro, “Onde Estará o Meu Amor”, “Diana” (Paul Anka em versão de Fred Jorge [1928-1994]) e “Filme Triste” (John D. Loudermilk [1934-2016] em versão de Romeu Nunes), na porção jovem-guardista do espetáculo.

“Eu vou cantar uma música que eu lembro que a primeira vez que eu cantei em público foi aqui, num carnaval, em cima de um trio elétrico. Não é fácil a gente lançar uma música assim”, lembrou-se antes de cantar “Pedrada”. Como ontem, este repórter estava lá e lembra do impacto da mensagem, em pleno carnaval de 2019. Pelo meio da música mandou a palavra de ordem: “sem anistia!”.

Em meio a “Estado de Poesia” gritou “viva Celso Borges (1959-2023)!”, lembrando o parceiro que o apresentou a Zeca Baleiro. Quando cantou “Pedra de Responsa” (Chico César/ Zeca Baleiro) voltou a apresentar a banda, referindo-se a cada músico como uma pedra de responsa, a gíria maranhense que designa os reggaes muito bons, os prediletos. Era a noite do povo de axé, e Chico César terminou a apresentação cantando “Mamãe Oxum” à capela. O tema de domínio público, adaptado por Zeca Baleiro, foi cantado em dueto por ambos no álbum de estreia do maranhense, Por Onde Andará Stephen Fry? (MZA Music, 1997).

Chico César saudou São Luís pelos 412 anos que a cidade completará no próximo dia 8 de setembro e disse esperar estar de volta em 12 anos para esta festa. O gracejo de um artista que adora o lugar, por ele é adorado e tem vindo com frequência, para alegria de seu público fiel: de 2019 para cá, só não se apresentou em 2020 e 2021, os anos mais graves da pandemia de covid-19.

Passava um pouco de uma da manhã quando as luzes do palco se apagaram e os resistentes começaram a fazer o caminho de volta para casa, satisfeitos, mas com o gosto de quero mais por contradizer-lhes, certamente em estado de poesia.

“Violivoz”: Chico César e Geraldo Azevedo para êxtase da plateia

Fotos: Hebert Alves. Divulgação

Foi uma noite de fartura.

O cearense Lucas Ló, radicado há cinco anos em São Luís, desfiou um repertório inteiramente nordestino, com especial destaque para o ídolo conterrâneo Belchior, com bastante personalidade.

Acompanhado por Jessé Fonseca, num teclado cheio de balanço e personalidade, passeou ainda por nomes como Fagner, Djavan, Carlinhos Veloz, César Nascimento, Sérgio Habibe e Josias Sobrinho.

Aos pedidos insistentes de “Barco de papel”, joia de sua autoria, respondeu com um educado “já rolou”; o pedido partia dos que adentraram a sala atrasados. Um dos nomes mais sofisticados da noite ludovicense, Ló se apresentou por cerca de hora e meia preparando o terreno para a noite inesquecível que viria, ao mesmo tempo sendo parte dela.

Não faltaram clássicos como “Apenas um rapaz latino-americano”, “Pequeno mapa do tempo”, “Alucinação”, “Fotografia 3×4”, “A palo seco” e “Mucuripe”, da lavra de Belchior, esta última em parceria com Fagner, “Noturno” (Graco/ Caio Silvio), “Serrado” (Djavan), “Ilha bela” (Carlinhos Veloz), “Ilha magnética” (César Nascimento), “Eulália” (Sérgio Habibe) e “Engenho de flores” (Josias Sobrinho).

“Se alguém me dissesse, há cinco anos, quando saí do meu Ceará, que hoje eu estaria aqui, abrindo o show dessas duas figuras centrais na minha formação, nesse teatro lotado, eu não acreditaria. É um momento muito importante para mim”, revelou Ló, agradecendo a presença do público, em cujo repertório se destaca ainda a também autoral “Ode a São Luís”, inédita, em que ele, de certo modo canta sua rota e a receptividade com que foi acolhido na ilha do amor. Uma avant-première aos atentos que chegaram cedo.

Quando Chico César e Geraldo Azevedo subiram ao palco, a cama estava pronta.

“Violivoz” é um show vigoroso e sincero. Sobem ao palco sem firulas, dizendo logo a que vieram: atacam a introdução de “Táxi lunar” (Alceu Valença/ Geraldo Azevedo/ Zé Ramalho), mas antes de cantarem, emendam a “Cantiga (Caicó)”, das Bachianas Brasileiras, de Heitor Villa-Lobos, sucesso de Teca Calazans, com alterações na letra, a homenagear suas terras natais e reafirmar a admiração mútua: “oh, mana, deixa eu ir/ oh, mana, eu vou a pé/ oh, mana, deixa eu ir/ para o sertão de Catolé”, começa Chico, referindo-se a Catolé do Rocha, na Paraíba, seguido por Geraldo: “oh, mana, deixa eu ir/ andar é minha sina/ oh, mana, deixa eu ir/ para o sertão de Petrolina”, e depois: “oh, mana, deixa eu ir/ oh, mana, eu vou cedo/ oh, mana, deixa eu/ cantar com Geraldo Azevedo” e “oh, mana, deixa eu ir/ andar com quem me preza/ oh, mana, deixa eu/ cantar com Chico César”. A determinada altura de “Táxi lunar”, Geraldo Azevedo solta um “vai, Zé!” e Chico César imita a voz de Zé Ramalho. E era apenas o primeiro número.

O vigor a que me referi diz respeito ao fato de a dupla cantar e tocar – e por vezes dançar – por duas horas e 15 minutos de espetáculo, de pé. A sinceridade é percebida na admiração mútua várias vezes declarada. Um é fã do outro, os dois se tornaram amigos e parceiros. Geraldo Azevedo, ao lembrar de como se conheceram, convidado a gravar uma música de Chico César em um disco produzido por Totonho, que homenageava as vítimas da chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, nunca lançado, já percebeu ali suas qualidades. Depois, quando Chico lançou “Aos vivos” (1995), seu disco de estreia, revelou ter comprado 50 exemplares e distribuído a amigos, produtores, em suas turnês pelo Brasil e Europa. “O Belchior, que é da minha geração, dizia que “nossos ídolos ainda são os mesmos” e Chico César era um ídolo novo e eu queria apresentá-lo pra todo mundo”, disse Geraldo. Chico completou: “Belchior também dizia que “o novo sempre vem”” e revelou a influência exercida sobre o então adolescente pelo disco “Cantoria 1” (1984), que registrou o encontro de Geraldo com Elomar, Vital Farias e Xangai.

“Para mim é uma alegria muito grande dividir o palco com Geraldo Azevedo, é uma baita honra vê-lo cantando uma música minha”, declarou Chico, depois de cantarem juntos “Estado de poesia” (Chico César).

É um show de entrega. Não há momentos solo de um e outro artista. Eles cantam juntos o tempo inteiro o repertório um do outro e de artistas admirados, casos de Geraldo Vandré (“Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)” é emendada a “Mama África”, de Chico), Milton Nascimento e Caetano Veloso (“Paula e Bebeto”, gravada por Geraldo em 1979) e Paul Anka (a versão de Fred Jorge para “Diana”). Ninguém se cansa: nem os artistas no palco, nem a plateia. Todo mundo em comunhão. Ou quase.

Quando Chico César anunciou que cantaria “outra canção de amor, de nosso amor pela Terra, pelos pequenos agricultores, uma parceria minha com Carlos Rennó”, e atacou de “Reis do agronegócio”, um coro de “Fora Bolsonaro!” se ouviu no Centro de Convenções. Uma tentativa de vaia, raquítica, foi encoberta, e prevaleceu a vontade da maioria. Outros gritos de “Fora Bolsonaro!” vieram e Chico César, numa sequência demolidora, mandou, sempre acompanhado por Geraldo Azevedo, “Pedrada” (Chico César), cujo refrão diz: “fogo nos fascistas, fogo Jah!”. “Essa música, a primeira vez que eu cantei, foi em cima dum trio elétrico, num carnaval, aqui em São Luís, para 100 mil pessoas, e eu fiquei muito contente com a receptividade”, lembrou.

Em “Bicho de sete cabeças” (Geraldo Azevedo/ Renato Rocha/ Zé Ramalho), passaram perto de 10 minutos solando seus violões, até cada um cantar uma parte da letra, sem as sobreposições que a tornaram um clássico. Comentaram a pandemia, o isolamento social, a gênese do show, após Chico ter assistido a um show de Geraldo em São Paulo e terem ido para a casa do primeiro, depois do espetáculo, tocar violão na cozinha. Tocaram duas parcerias, uma inédita e o single “Nem na rodoviária”, já disponível nas plataformas de streaming.

São duas gerações de artistas, convivendo harmoniosa e respeitosamente, Geraldo aos 77 anos, Chico aos 58. Têm a mesma grandeza e importância. Nenhum se sobressai ao outro e o equilíbrio é também uma característica de destaque do show. São dois artistas que, cada um a seu tempo, souberam cativar o público de São Luís – suas apresentações por aqui são sempre marcadas por casas cheias e intensa interação das plateias. Ontem não foi diferente.

Perto do fim do show, Geraldo apenas ameaçou cantar “Terra à vista” (Carlos Fernando). Puxou o “San, san, san, São Luís do Mará” do refrão, que a plateia imediatamente repetiu em coro, mas deixou apenas a vontade no público. Alguém na plateia, insistentemente pedia “Pétala”, não o sucesso de Djavan, mas abreviando o título de “Pétala por pétala” (Chico César/ Vanessa Bumagny). “A gente vê muito homem ansioso, mulher é menos. A mulher goza melhor por que ela goza depois, goza mais e melhor; o homem é sempre aquela pressa, de querer gozar logo”, contou para gargalhadas da plateia e o não-atendimento ao pedido renitente.

Chico César citou vários amigos, maranhense ilustres, afirmando ser uma honra estar mais uma vez em sua terra: Papete, Rita Benneditto, Josias Sobrinho, Chico Saldanha, Flávia Bittencourt, Alcione. E Celso Borges, a quem fez especial deferência: “foi quem me apresentou a Zeca Baleiro. A gente já morava em São Paulo e ele um dia me disse: olha, tem um amigo meu, do Maranhão, vindo morar aqui, é meio doidinho assim que nem tu, não é bem compreendido em nossa terra; isso naquela época, e eu entendi de cara o que ele queria dizer”, contou, para risadas da plateia. Em seguida ofereceu-lhe “Você se lembra” (Geraldo Azevedo/ Pippo Spera/ Fausto Nilo).

Também cantaram juntos “Pedra de responsa” (Chico César/ Zeca Baleiro) e na sequência Geraldo puxou, a capella, o refrão de “Cadê meu carnaval” (Geraldo Azevedo), que ele cantou, modificando a letra: “Olê lê lê/ cadê meu carnaval?/ olê lê lê/ cadê meu carnaval?/ carnaval está chegando/ cadê meu carnaval?” – a letra original diz “carnaval está morrendo”. O público ficou cantando enquanto eles se retiraram do palco.

Aos gritos de mais um, retornaram, para delírio dos presentes, mandando o clássico “Dona da minha cabeça” (Geraldo Azevedo/Fausto Nilo), em arranjo de reggae. Já não havia mais ninguém sentado, praticamente todo mundo cantava junto e alguns casais arriscavam uns passos.

Um final apoteótico de um show antológico, de uma turnê adiada e interrompida pela pandemia de covid-19, indefinidamente prorrogada pela irresponsabilidade de uns poucos que insistem em querer um Brasil feio e triste, justamente o contrário do colorido das roupas dos artistas e da diversidade que sua música representa, afinal de contas o Brasil alegre e festeiro, que haverá de prevalecer. Espero que este dueto, esta cantoria, este grande encontro, vire disco. Oxalá!

O futuro da censura

Entre lançamentos e reedições, outras obras podem ter o mesmo infeliz destino desta

Muito já se falou no assunto e eu só não vi mesmo a opinião do Lobão, que agora engrossa o coro de colunistas reaça da Veja. Em pauta as biografias e a censura prévia. Talvez o velho lobo esteja quieto por já ter escrito – com o grande Cláudio Tognolli – sua autobiografia.

Até aqui, de tudo o que foi dito, fico com Alceu Valença e Benjamin Moser. O grupo formado por Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paula Lavigne e Roberto Carlos – perdoem se esqueço alguém – é simplesmente ridículo, a começar pelo nome: Procure saber é um exemplo de pura arrogância.

A meu ver, quem já foi vítima de censura não tem o direito de se tornar censor.

Existem biografias boas e biografias ruins, como tudo na vida. Mas não será a censura que fará este filtro de qualidade. Num momento em que está muito em voga a pauta memória, justiça e verdade, por conta da Comissão Nacional que, apesar dos limites, procura esclarecer crimes de lesa-humanidade cometidos pela ditadura militar brasileira, é no mínimo triste o comportamento da dita elite da emepebê.

Para além do interesse público, pra mim o buraco é bem mais embaixo. Agora censuram biografias. Já imaginou se num futuro próximo tentam censurar a literatura? Deliro? De jeito nenhum. Um ótimo exemplo é a clássica página 73 do Bregajeno Blues – Novela Trezoitão, de Bruno Azevêdo. Leiam-na e tirem suas próprias conclusões.

Este post vai com um abraço ao Paulo César de Araújo!

O maior segredo do Brasil é a tal da perna de pau do Roberto Carlos. Não pode comentar isso. É feio. É errado.

Podem reparar. Já viram isso em alguma revista? Programa de tv? Nada, não sai nada! É a informação mais subversiva do país. Entra governo, sai governo, aparece a nova promessa da música brasileira, morre a nova promessa da música brasileira, fulano chifra cicrano, Nelson Gonçalves abre o jogo, mas ninguém fala da perna de pau do Rei.

Subiu o grande Dominguinhos

Embora o nome artístico fosse um diminutivo, Dominguinhos foi grande. Talentoso e plural, modernizou a música nordestina, que tem ainda em Luiz Gonzaga, nosso primeiro artista pop, seu maior representante, de quem o saudoso sanfoneiro é o maior discípulo.

Dominguinhos é autor de um sem número de clássicos da música brasileira, em parceria com nomes tão diversos quanto Abel Silva, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Nando Cordel, Chico Buarque, Djavan, Fausto Nilo, Manduka, Yamandu Costa, os irmãos Clodo, Climério e Clésio, Guadalupe e, quiçá a mais constante, Anastácia, entre outros.

Sua sanfona passeava pelo forró, xote e baião nordestinos, mas também espraiava-se com igual desenvoltura por choros, sambas, tangos, baladas e o que mais aparecesse – para executar ou inventar. Seu talento de melodista é conhecido de todos nós, que por vezes assobiamos, aqui e ali, músicas suas, muitas vezes desconhecendo sua autoria.

Sabem quando uma música é tão cantada e tocada em todo canto que a noção de autoria fica um pouco perdida? Aquela sensação que nos leva a perguntar: como é que isso sai da cabeça (coração e mãos) de uma pessoa? E a afirmar: gênio! Eis aí um adjetivo perfeitamente cabível a Dominguinhos.

Além de talentoso, Dominguinhos era generoso: teceu merecidos elogios a Rui Mário, em uma apresentação no Rio Grande do Sul, história que ele contou à Chorografia do Maranhão [O Imparcial, 7 de julho de 2013, em breve penduro acá no blogue], e tocou nos dois primeiros discos de Flávia Bittencourt, o segundo, Todo Domingos, inteiramente dedicado ao repertório do sanfoneiro. “Ele foi [participar do disco] numa boa, super atencioso. […] Tem uma coisa de alma, você bate mais com umas pessoas que com outras, foi isso que aconteceu com Dominguinhos. […] Ele me apoiou, me emprestou os discos todos, ajudou na liberação das músicas. […] Vou agradecer sempre a participação dele ativa nesse processo todo”, a cantora me contou em entrevista.

Depois de seis anos de luta contra um câncer de pulmão, o filho mais ilustre de Garanhuns – perdoem-me os lulistas, é apenas uma opinião – partiu ontem para o colo de Santa Luzia, onde certamente já se juntou com Sivuca e o velho Lua Luiz Gonzaga – iluminados pela lua que nos guia com seu sorriso em noite escura.

A festa no céu começou agora, embora alguns apressados já tivessem decretado sua morte, dado o coma em que esteve por sete meses – algo parecido com o que fizeram recentemente com Zé Ramalho, outro artista com quem tocou. Hora de atualizarmos o Choro de pássaros de Ubiratan Sousa, homenagem a Luiz Gonzaga em cuja gravação Dominguinhos desfilou seu talento: “Galo de campina soltou/ sabiá escutou e transmitiu/ que o Dominguinhos/ disse adeus, partiu”.

Subiu Oscar Niemeyer, artista e comunista

O jovem Niemeyer e a maquete da catedral de Brasília

Oscar Niemeyer (1907-2012) era comunista. Morreu sendo, convicto como um José Saramago, idem. Niemeyer era comunista em gestos como comprar uma casa – ou era um apartamento? – para o também comunista Luis Carlos Prestes. Ou ao projetar a casa de seu motorista, cravada nalguma favela carioca. Ou ainda ao dizer que dinheiro só servia para duas coisas: gastar e emprestar aos amigos e não cobrar.

Não sei se a grande mídia fica feliz ou triste com a morte de Niemeyer. A big old media poderia ter certo prazer pela morte de um comunista, num tempo em que isso está tão fora de moda – ou desvirtuado, para dizer o mínimo, embora não fosse este o caso de Niemeyer, um comunista autêntico e absoluto. O partido da imprensa golpista poderia, por outro lado, entristecer-se pela morte de um gênio, que há coisas que ninguém pode negar.

Não lembro a primeira vez que ouvi falar ou vi uma obra do arquiteto. Mas não canso de elogiá-lo como gênio por sua arte: a arquitetura que nos legou Brasília, a capital federal inaugurada por Juscelino Kubitschek em que, a cada vez que passo por lá, não canso de me sentir dentro de uma imensa obra de arte a céu aberto, com os versos de Caetano e Djavan ecoando na cabeça, o “céu de Brasília/ traço do arquiteto”, certamente o céu mais bonito que já vi, coisa de deuses, – que pouco importa que digam que comunistas são ou devem ser ateus – Niemeyer e o que ele foi encontrar agora.

São Luís tem uma obra de Niemeyer, a Praça Maria Aragão em que sempre dá prazer e orgulho pisar. Pelo pássaro arquitetado pelo gênio, pela visão linda que se tem 360 graus, pela homenagem à companheira de comunismo, a médica e militante maranhense. Não tivesse sido Jackson Lago apeado do Palácio dos Leões, capaz de à praça já ter sido anexado o Museu de Arte Contemporânea, cujo projeto foi a Niemeyer encomendado pelo então governador.

Início dos anos 2000 lembro-me de ter usado em um antigo computador de trabalho – época em que eu sequer tinha um em casa – uma proteção de tela, baixada no site da revista Trip. Era uma animação com rabiscos alçados ao status de grande arte que deixavam-nos pensando nas mais básicas ideias da concepção de Brasília, como se o arquiteto estivesse ali, invisível, desenhando para nós.

Dava até vontade de evitar as possíveis lesões por esforço repetitivo e, de hora em hora, parar um pouco o trabalho, só para ficar revendo seus desenhos, que ele, agora invisível, já não fará mais por aqui.

Uma coisa é certa: se Deus deixá-lo trabalhar, o céu estará ainda mais bonito quando a gente chegar por lá.

Kate Moss: "Esse é seu escritório? Você ainda trabalha?" Oscar Niemeyer: "Todos os dias!" (Vogue Brasil, maio de 2011)
Kate Moss: “Esse é seu escritório? Você ainda trabalha?” Oscar Niemeyer: “Todos os dias!” (Vogue Brasil, maio de 2011)

As fotos que ilustram este post, roubei-as, aquela, do blogue da Cynara Menezes, a Socialista Morena, e esta, do Facebook da jornalistamiga Gilda Lamita, agradecendo e abraçando a ambas.