Amores, im/permanência e maturidade

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Inspirada estreia solo de Carolinaa Sanches (vocalista dos grupos Caburé Canela e Pisada da Jurema), “Curva de rio” chega às plataformas de streaming dia 8 de abril (sexta-feira)

Curva de rio. Capa. Reprodução

Após disponibilizar dois singles, a cantora Carolinaa Sanches lança no próximo dia 8 de abril (sexta-feira), o álbum “Curva de rio”, sua estreia solo – ela integra os grupos Caburé Canela e Pisada da Jurema, além de ser artista visual e uma das gestoras da editora artesanal Grafatório, cujas obras-primas lançadas garantem a felicidade de quem ama livros.

O trabalho reafirma seu talento e maturidade artística. “Curva de rio” abre com “Cantar” (Carolinaa Sanches), o segundo single apresentado ao público, que conta sobre o mágico, difícil e sagrado ofício do verbo que lhe empresta o título. Ela se acerca de gerações distintas de cantores, nas presenças da veterana Alzira E., além de Gustavo Galo (da Trupe Chá de Boldo) e Isabela Lorena, também da Pisada da Jurema.

“Quando você chegou/ eu quis comemorar/ eu quis dançar até o amanhecer/ eu quis beijar você”, segue “Instante” (Carolinaa Sanches/ Layse Moraes), segunda faixa do álbum. A esta altura o ouvinte já está envolvido e bem poderia ser ele, ela, qualquer um de nós, devolvendo à Carolinaa a declaração. Cantada a seis vozes – além de Carolinaa e a parceira, Caruh Spisla, Francesco Mugnari, Guilherme Kirchheim e Mariana Franco –, um clima samba-jazzy se instala, no diálogo entre contrabaixo (Mariana Franco), teclado (Lucas Oliveira) e bateria (João Bolognini).

“Curva de rio” é delicado, bonito, gostoso de ouvir. Um alento nestes tempos trevosos. Letras inteligentes dialogam com melodias que convidam à dança. Carolinaa Sanches literalmente põe o coração na voz. “Cartas claras sobre a mesa/ desfrutar dos nossos sóis/ e a gente de peito aberto/ cada vez chega mais perto/ de entender o que é nós”, como diz na letra de “Nós” (Carolinaa Sanches), canção de amor que se equilibra entre o xote e o jazz, pontuada pelos contrabaixos de Mariana Franco (que também canta na faixa), a bateria de Paulo Moraes e o clarinete de Pedro José – os três, seus colegas de  Caburé Canela.

Ao longo do disco, Carolinaa revela-se, desnuda-se, derrama-se, entrega-se por completo. “Entre uma palavra e outra/ entra uma palavra noutra/ nenhuma boca chama assim meu nome/ nenhuma boca deixa em chama assim”, começa a letra de “Primeira primavera” (Carolinaa Sanches/ Barbara Blanco), cantada em dueto com Fernanda Branco Polse. Sim, o amor (e suas declarações) permeia(m) “Curva de rio” – um rio que transborda amores –, mas aqui o mais universal (e manjado) dos temas de música e poesia é cantado de forma extremamente original.

Se “amar é um elo entre o azul e amarelo”, como diria o conterrâneo Paulo Leminski – ele curitibano, ela londrinense –, a cantora e compositora dialoga com o universo do poeta em “Profundo amarelo” (Carolinaa Sanches), outra faixa em que baixo e clarinete se destacam. Versos como “não fosse tanto era quase/ não fosse isso era menos” invertem o título do famoso livro do artista multimídia (antes de o termo ser inventado), o que ela também é, mantendo o diálogo, o respeito e fazendo merecida reverência.

Em “Órbita” (Carolinaa Sanches), a canção mais experimental do disco, ela canta, em quarteto com Pedro José, Mariana Leon e Mariana Franco: “sentir seu coração/ faz-me entrar em outra constelação / e mesmo sem entrar em órbita/ eu já consigo tirar meus pés do chão/”. O ouvinte é tripulante da nave musical, viagem sem volta tanto a quem já conhecia a artista dos grupos que ela integra quanto àqueles a quem será apresentada por este lançamento.

Primeiro single lançado, em fevereiro passado, e primeira faixa a ganhar videoclipe, “Petricor” (Maria Thomé), literalmente o cheiro da chuva, é canção ensolarada – e não reside aí nenhuma contradição –, espécie de arco-íris do disco. O baião, de autoria da percussionista da Caburé Canela, reafirma a estreita ligação de Carolinaa Sanches com a cultura popular nordestina, algo percebido ao longo de todo “Curva de rio”.

O inspirado disco termina com “É” (Carolinaa Sanches), canção de despedida com os dois pés nos terreiros das religiões de matriz africana, infelizmente ainda alvos de tanta discriminação e violência. A faixa reflete sobre o individual e o coletivo, reivindicando o respeito aos seres humanos, mais que independentemente de suas diferenças, mas para além e também por causa delas. É faixa quase exclusivamente feminina, a que comparecem Thais Hamer (alfaia e voz), Maria Thomé (tambor de mão e voz), Edna Aguiar (voz), Guilherme Kirchheim (voz), Isabela Lorena (voz), Naná Souza (voz), Thunay Tartari (voz) e Mariana Franco (voz). “Junto ser único”, palavra de ordem.

Carolinaa Sanches não anda só; além de aqui e acolá seus colegas de bandas comparecerem, ao álbum plural se fazem presentes mais de 20 artistas, entre autores, intérpretes e instrumentistas. Artista de raro talento, em seu solo ela está muito bem acompanhada, como a subverter o dito popular: Gabriel Kruczeveski (flauta transversal, efeitos, violão e voz), João Bolognini (bateria), Lara Moratto (flauta transversal), Lucas Oliveira (teclado), Maria Thomé (tambor de mão, caxixi, zabumba, triângulo e voz), Mariana Franco (contrabaixos, violão e voz), Paulo Moraes (bateria) e Pedro José (clarinete, viola caipira e voz) formam sua banda base.

Essa soma de talentos e a entrega de cada um/a a cada nota, garantem uma diversidade de timbres que mantém o disco distante de qualquer sintoma de monotonia. “Curva de rio” foi gravado em Londrina, no Toqô Estúdio, por Gabriel Kruczeveski, que assina também sua mixagem e masterização. A direção musical é de Mariana Franco. A capa é assinada pela própria Carolinaa Sanches, sobre foto de Paula Viana.

Carolinaa Sanches resume o conceito por trás do título do disco: “A princípio pensava na curva de rio como um espaço onde as “coisas” param. No meio do processo fui entendendo que as coisas param por um tempo, pois o rio está sempre em movimento e as leva para outros lugares. Então as coisas passam pela curva. As “coisas”, nesse trabalho, dizem respeito mais às “pessoas” mesmo. Como é um trabalho que envolve muitos anos, envolve diferentes amores em que me inspirei para as músicas, e também, foi um álbum construído a muitas mãos. Tenho pensado que a curva sou eu. O espaço que permitiu que outras acessassem e conhecessem essa parte do rio. Aceitando a impermanência e também a permanência das relações. A curva de rio pode ser vista de cima e também de dentro, mergulhada nos amores profundos, que mesmo que findem, ficam”.

“Curva de rio” tem patrocínio do Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Londrina). Ouça sem moderação!

A cantora, compositora e artista visual Carolinaa Sanches. Foto: Paula Viana

Serviço: “Curva de rio”, álbum de Carolinaa Sanches. Disponível nas plataformas de streaming na próxima sexta-feira (8). Siga a cantora nas redes sociais e plataformas digitais: instagram, spotify, youtube, deezer e apple music. Faça a pré-save:

“Meu caso de biógrafo da família”

O último pau de arara. Capa. Reprodução

“O último pau de arara” [Grafatório, 2020, 172 p.; R$ 79,90], novo livro de Jotabê Medeiros, bem poderia ser um roteiro dos irmãos Coen e, se digo isto, não é pela inevitabilidade do clichê, mas pela habilidade do próprio autor em jogar com seu ofício – o universo da cultura pop sempre foi seu ganha-pão – ao contar a história de alguém que, embora o respeitasse, nunca ligou muito para isso, tratava quadrinhos com desprezo e nunca foi ao cinema.

O livro é um misto de biografia de João Francisco de Medeiros, seu pai, autobiografia, autoficção e ensaio sociológico sobre migrações internas, muito mais comuns no Brasil de outrora, mas ainda presentes, sobretudo no recrutamento de trabalhadores em situações análogas à escravidão. Há alguma doçura na forma como são narrados certos episódios de violência, e não são poucas as cenas de fúria incontida de seu pai, jamais soando condescendente. “Essa é uma obra de fricção. Espremida entre a memória e a vontade de contar”, diz em boutade, em que anuncia também um escancarar de intimidades, também nunca soando vulgar.

Aos três anos de idade, em 1965, o 11º filho do “Paraíba”, o primeiro homem entre 15 filhos, viajou de Sumé até a nascente Cianorte, no Paraná, em um caminhão de sal. Dessa viagem clandestina vem o título do livro, emulando o sucesso de Fagner, de autoria de José Cândido, Venâncio e Corumba.

A partir de remontar fragmentos da trajetória de seu próprio pai, Jotabê Medeiros remonta a trajetória de sua enorme família – e a sua: o paraibano do interior que se muda muito cedo para o Paraná, em busca de melhores condições de vida, forma-se em jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina e depois se muda para São Paulo, onde viria a se tornar um dos maiores jornalistas culturais do país – isto não é ele quem diz no livro, sou eu quem digo novamente, aqui e agora –, autor das festejadas e honestas biografias de Belchior (2017) e Raul Seixas (2019).

O jornalista é hábil em contar uma história que nos prende a atenção, mesmo em não se tratando de um protagonista de vida pública – o autor não nos poupa mesmo de suas dúvidas durante o processo de feitura do livro: seria seu próprio pai um personagem biografável? Embora aqui e acolá falemos dele no passado, como o faz também o autor, João Francisco de Medeiros está vivo – sofreu um AVC e teve uma perna amputada nos últimos anos – e completará 103 no próximo abril.

Baseado na própria memória, em conversas com familiares, viagens e rara documentação, Jotabê Medeiros não se deixa vencer pelas lacunas, urdindo texto delicioso, como é de seu feitio, histórias que se entrecruzam, como os constantes escambos que seu pai acabou tornando meio de vida. Em meio a tudo isso há um belo tributo ao irmão apelidado Jack, batizado em homenagem a Jackson do Pandeiro, ídolo de sua mãe – a ele o autor dedicou “Belchior: Apenas um rapaz latino-americano”: o irmão faleceu justo na semana em que o biógrafo viajaria a Santa Cruz do Sul, nos rastros do biografado então desaparecido. Com a mudança de planos e a ida ao velório do irmão, Belchior faleceu em sequência e aquela biografia foi finalizada com o relato de seu velório, entre a Sobral natal e Fortaleza.

A realçar a delicadeza e elegância do texto de Jotabê Medeiros, o estonteante projeto gráfico da Grafatório – marca da pequena casa editorial de Londrina/PR –, com xilogravuras de Luiz Matuto. A tiragem limitadíssima de 750 exemplares foi possível graças a um financiamento coletivo. Os que contribuíram já recebemos um pdf por e-mail, no que adiantei a leitura, na certeza de que relerei tão logo me chegue às mãos o exemplar impresso – a pindaíba, a pandemia e o capricho editorial acabaram atrasando um pouco as coisas, mas de mais longe já viemos, como quem desce de Sumé à Cianorte num caminhão de sal.

Leia um trecho de “O último pau de arara”.