Letra & Música no Roxy

Ok, ainda chamo o Teatro da Cidade de São Luís de Roxy, o nome do cinema que funcionou no prédio há até bem pouco tempo.

Nesta sexta-feira 13, dia de Santa Luzia, a santa que carrega os olhos num prato, Fernando Abreu e Nosly apresentam Letra & Música, espetáculo sobre o qual já escrevi. A dobradinha mais recente foi durante a 7ª. Feira do Livro de São Luís, no Poesia no Beco, nas escadarias do Beco Catarina Mina. Desta vez contam com a participação especial do percussionista Luiz Cláudio.

Quem tiver olhos para ver, veja. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça. Depois não digam que não avisei.

Pitomba neles!

POR FLÁVIO REIS

A primeira vez que ouvi falar em Pitomba como nome de uma editora foi mais ou menos há cinco anos. Era uma reunião entre amigos, inclusive livreiros, sobre a organização de uma editora e Bruno Azevêdo, que tinha ideia semelhante, foi contatado, aparecendo já com a sugestão do nome Pitomba, que causou estranheza geral. Achei até bom para os textos que ele fazia, bastante influenciados pela linguagem dos quadrinhos, mas ruim para os livros que tínhamos em mente publicar de imediato, sobre São Luís e o Maranhão. O projeto da editora “séria”, entretanto, gorou muito cedo. A obsessão de Bruno com a Pitomba, felizmente, não.

Conseguiu, então, um logotipo canalha para o selo, uma pitomba que é também uma bomba, expressando de forma bem inteligente a dupla face da coisa, e começou a publicar livros e outros materiais. Os livros sempre trazem seis tópicos colocados como manifesto, programa ou algo similar, ou talvez apenas uma grande tiração com isso tudo, afirmando que a palavra “não é palavra, antes de ser ouvida” e, se há de ser dito, “que seja dito com cacófatos e microfonias, pra que, assim, quem ouça também diga” (…) “porque a informação não se pertence e a posse de ter é a posse de dar e é essa posse que reivindicamos”. No resumo, “porque para além do caroço, que é quase tudo, existe a casca, que se quebra, e existe a polpa, que se quer: pitomba!” Sacou?

Pois é, muita gente sempre torceu o nariz pra esse “manifesto” da Pitomba, mas ele continuou lá. Nesse tempo ainda inicial, Celso Borges voltava de São Paulo, após vinte anos, enquanto Reuben da Cunha Rocha fazia o caminho inverso, não sem antes eles se cruzarem, resultando na invenção de uma revista sem periodicidade ou critério de classificação. Decidiram embarcar no nome e na tirada do logotipo e batizaram a nova cria com o mesmo nome da editora.

Nascia a Pitomba, uma revista fora do sério, pra provocar e avacalhar, na trilha da literatura, das artes, mas num clima underground, de liberdade e doideira, que aqui sempre é difícil. Nada muito sofisticado, apesar da elaborada e agressiva diagramação, nem de bairrismos, nordestinismos e outras baboseiras, tão comuns em publicações regionais, apesar de trazer em seu cerne um princípio corrosivo que se volta diretamente contra a antiga cultura ateniense e contra a exaltação publicitária da cultura popular.

Material cru, pra saborear com sangue: poesia variada (da boa e da ruim, quem sou eu, hein), traduções, frases-bomba, desenhos malucos, fotografias, quadrinhos, novelas, fotonovelas, pornografia variada, sátira política, crítica cultural e o que mais pintar. Em quase três anos e apenas cinco números lançados, acredito que este seja um caso muito estranho em que nem os editores nem os (poucos) leitores parecem saber ao certo do que trata mesmo a revista e até o que esperar dela. Justamente aí, no entanto, reside o melhor da coisa. Existe uma diferença entre a editora e a revista, a primeira saiu da cabeça de Bruno e é dirigida por ele, a segunda, não. Mas uma é a cara da outra na disposição anárquica, no traço de caravana.

Pitomba não chegou a se configurar como “movimento” ou “coletivo”, é bem menos complicada, nem tem objetivo claro ou programa é, antes, fruto de uma f(r)icção de individualismos, que se estimulam e energizam no coletivo. Talvez se resuma mesmo apenas a um “estado de espírito”, uma caravana aberta aos acasos, onde ressoa a necessidade urgente de acelerar a destruição de determinadas ideias canonizadas sobre cultura e literatura, num lugar onde estes termos tornaram-se sinônimos de tombamento,  de exaltação vazia. Para isto, apostaram decisivamente na estratégia do atrito. Como disse Celso em entrevista: “eu acho que tem que manter o atrito, é uma característica da revista. Isso a gente não tem que abrir mão, nem é essa coisa do atrito, é a coisa da irritação mesmo”.

Na cultura da afirmação e do elogio em que vivemos, mergulhados na sedação da mediocridade, a estranheza e o incômodo que a revista pode causar se traduziu apenas no silêncio, no desconhecimento puro e simples. Nada de espantar, Narciso só repara nos seus próprios movimentos e na situação atual da cidade, quatrocentona em estado terminal, não consegue esboçar mais nenhuma reação senão aos clichês do próprio espetáculo.

Entretanto, tal reação (ou ausência de) nunca mudou nada na determinação dos editores, na lógica radical explicitada por Reuben: “nós não temos apoio, portanto faremos”. É um caso de combinação, de articulação entre o individual e o coletivo, de pulsações que se encontram na mesma pegada. Sem a diagramação, a anarquia e a putaria de Bruno, a revista perderia sua linguagem mais atual e desconcertante; sem Celso, a cara da poesia, sua capacidade de misturar códigos e, principalmente, a disposição de juntar, a revista sequer existiria; e sem Reuben, perderia na crítica cultural, feita diretamente ou através de traduções que são também finas transposições de situações, reflexões, e na experimentação, ou seja, perderia em densidade e aventura, risco.

No geral, um não gosta de poesia, enquanto outro não vive sem ela, nem se sente à vontade com os quadrinhos e outro transita mais facilmente entre estas linguagens; um gosta de brega, outro é roqueiro de raiz, mas aberto, ouve de tudo, enquanto outro anda garimpando todo tipo de experimentalismo e doidice sonora. No fundo, eles terminam se encontrando na eletricidade do rock e na firme disposição em embaralhar e ampliar o escopo do que seja literatura, sem nenhuma preocupação com convenções, prêmios, público, nada.

Pra fazer a revista, não é fácil, é uma briga. Segundo o depoimento dado em entrevista preciosa ao Vias de Fato, feita por Zema Ribeiro e Igor de Sousa, Celso precisa tocaiar Bruno e “hostilizá-lo” para a coisa começar a sair do papel e das ideias para o computador. Recolher o material nem é tanto o problema quanto traduzir isso tudo em forma gráfica, em diagramação. O processo costuma ser mais fácil quando está presente o ponto de união entre os extremos, Reuben. Mas ele mora longe, tornando o lance mais complicado. Foi o que vimos neste segundo semestre. Celso, envolvido com várias coisas, não obteve êxito na tocaia e Bruno conseguiu escapar, colocando todos os esforços no Isabel Comics! ano II, no Baratão 66 e outras iniciativas da editora Pitomba. Era muito difícil mesmo a missão de Celso, mas agora ele terá a ajuda de Reuben para tocaiar e prender Bruno, o passo decisivo para a elaboração da Pitomba.

Não tem a revista no final do ano (e que ano intenso!), mas tem uma festa de arromba da editora nesta quarta 11/12, no QG de quase todas as experiências de doideira que tem rolado nos últimos anos por aqui, o Chico Discos. É a Pitomba espocando pra valer, lançando de uma tacada mais quatro publicações de seu já variado catálogo, que até agora comporta quadrinhos, “novela trezoitão”, poesia, ensaios, “romance festifud”, e experiências para além de qualquer classificação.

É o caso do livro de Reuben, As Aventuras de Cavalodada em + Realidades Q Canais de TV, o mais louco dos novos lançamentos.  Manipulando principalmente o aforismo e outras formas fragmentárias, como o anúncio, a citação, a colagem, no ritmo da escrita sintética das redes, saturada de visualização e sonorização, o livro destila veneno pra todo lado, numa percepção ácida e virulenta da cultura do espetáculo e da brutalização do cotidiano. Respira e transpira todo o clima de insurreição cultural que já se insinua claramente em certos círculos da moçada mais criativa das cidades.

Em movimentos rápidos, toca em temas como circulação e apropriação dos espaços urbanos, através de figuras tão inesperadas como o mijador de rua e o skatista; a crise dos sistemas de signos, através do pixador (assim mesmo), “cavalo das ruas”, o anunciador do “estado da escrita na realidade onde vivemos”; ou as relações entre diamba e bruxaria, vale dizer, entre a maconha e experimento de sensações, a questão crucial da alteração da percepção num mundo de sobrecarga visual e atrofia de sensibilidades.

As Aventuras de Cavalodada estão carregadas da experiência urbana contemporânea, da redefinição da relação com o espaço, buscando discernir a “camuflagem superposta da comunicação das ruas”. Tenta mesmo fundir novamente cidade e literatura, na esteira dos modernistas mais radicais, e neste sentido é texto complexo, um grito contra o “pensamento pobre” e o “pensamento conveniente”. Pode até ser lido como pura curtição, mas, no fundo, é de leitura densa, na leveza enganosa da colagem de curiosidades ou reflexões ditas de maneira extemporânea.

Depois de alguns trabalhos publicados, entre eles o incrível O Monstro Souza, seguramente um dos retratos mais cruéis e cômicos já feitos da cidade de São Luís, realismo fantástico do século XXI, Bruno traz à luz o Baratão 66 (ou 69, depende da hora), uma novela em quadrinhos, misturando erotismo, sátira e crítica de costumes, ao seu estilo. Agora, no entanto, aparece mais afiado, com o controle maior do ritmo e do entrelaçamento das partes da narrativa, feita em camadas que se revelam aos poucos, como um saco infindável de surpresas.

 Este é um traço em que ele vem caprichando, principalmente com a experiência de A Intrusa, novela erótica em 12 capítulos, publicada originalmente como folhetim no jornal alternativo mensal Vias de Fato e também já disponível em forma de livro pela Pitomba. O enredo, desta vez, se desenrola numa casa que, durante o dia, funciona para depilação, cuja especialidade são os desenhos nos pelos pubianos, o Baratão 66; e, durante a noite, transforma-se num puteiro, o Baratão 69, onde se aceita tudo, menos “fazer cu fiado”.

Bruno fala da sacanagem e dos puteiros como traço identitário do maranhense e satiriza um futuro reconhecimento como patrimônio da cultura, através da instalação da Casa de Cultura Baratão 66. A trama é cheia de surpresas, envolvendo Francinete, a dona do bordel e seus ataques com as lembranças do marido, suas filhas e a ambição de deixarem a vida de puta, o porteiro apaixonado pelo padre, mas com obrigação de comer a velha matrona, o representante da Piu-Piu, franquia de desenho de boceta e o governador, sonho de dez entre dez putas do Baratão que almejam algum golpe na dureza da vida.

A edição é cuidadosa e os desenhos de Luciano Irrthum são um ponto alto, onde afinal se materializa todo o tom de excesso da trama. O livro saiu com duas capas diferentes, à escolha do freguês e é repleto de detalhes gráficos. Tem ainda um posfácio escrito por quem entende do riscado. Enfim, uma beleza, presentão de natal, “quadrinhos para toda a família!”.

O pacote traz também o livro de Celso Borges, O futuro tem o coração antigo, uma experiência com “poemas fotográficos” e imagens do centro antigo, em fotografias tiradas por alunos do Curso Técnico em Artes Visuais do IFMA, utilizando um dos métodos mais antigos, sem lentes, com câmeras feitas à mão, com latas ou caixas, um furo em um dos lados e um pedaço de filme no outro. É o método pin hole, criando imagens não muito nítidas e que podem sofrer deformações ou alterações variadas, dependendo do formato das caixas e do tempo de exposição do filme à luz.

O resultado é um encontro conflituoso do poeta consigo mesmo e com a cidade, numa superposição de suas metamorfoses, em que os tempos se embaralham e a poesia tornada palavra-imagem e palavra-som (o trabalho se completa com o vídeo, feito em colaboração com Beto Matuck) se volta sem melancolia ou saudosismo, mas não sem saudade, para uma cidade que, numa palavra, simplesmente morreu, não existe mais. A edição, como sempre nos trabalhos de Celso, é caprichada, o texto todo datilografado numa máquina Hermes, criando um detalhe estético forte associado à questão do tempo, papel de primeira, textura em preto e branco, formato retangular, capa dura. Um luxo.

Tem ainda um romance que é a estreia de Jorgeana Braga na prosa, A Casa do Sentido Vermelho, ela que tem um livro de poesia publicado na Pitomba. Este ainda não li, vou adquirir no lançamento, mas já comecei a gostar pela capa, sem contar o que ouvi falar acerca da beleza de sua escrita. A conferir.

Enfim, com site na rede, um cartel de cerca de dez publicações (já com material fora de catálogo), uma caixa de madeira novinha pra venda ambulante e, principalmente, muita irreverência e disposição para chutar o pau da barraca, a Pitomba está em festa e justa celebração, literalmente “cuspindo os caroços”. Editora, revista, espaço de criação, base de lançamento… É Pitomba neles!

De quatro é mais gostoso

A lua, a data e o catálogo da Pitomba são crescentes. 11/12/13. Noite. Chico Discos. Quatro autores, Bruno Azevêdo (Baratão 66, com Luciano Irrthum), Celso Borges (O futuro tem o coração antigo), Jorgeana Braga (A casa do sentido vermelho) e Reuben da Cunha Rocha (As aventuras de Cavalodada em + realidades q canais de tv), autografam seus novos livros, a estreia, no caso do último.

Se liguem: dia onze, mês doze, ano treze. Sacaram? “O gato preto cruzou a estrada/ passou por debaixo da escada”. Antes isso que ficar em casa nessa data. Pra quem não for, nunca a frase “azar o seu” fez tanto sentido.

Apareçam! Encontrem conhecidos e desconhecidos. Conversem. Bebam. Tirem gosto com queijo e azeitona. E principalmente: comprem e leiam os livros, que estão lindos por fora e por dentro.

Mais sobre cada um digo depois (sobre o de Celso eu e Flávio Reis, autor também publicado pela Pitomba, já dissemos). De aperitivo, deixo-lhes as capas.

Esse sai com duas capas. A outra vocês conhecerão no lançamento
Poesia de Celso Borges vem embalada em registro fotográfico da cidade fora do convencional
Segundo livro da poeta, que estreia no romance
Entre a poesia e o manifesto, a estreia de Reuben da Cunha Rocha

A palavra acesa e celebrada de José Chagas

CAPA_CD

Em primeira mão, a capa de A palavra acesa de José Chagas, disco em que a poesia do mais maranhense de todos os paraibanos é tornada música. A maioria é inédita, mas estão lá Palavra acesa e Palafita, já gravadas pelo Quinteto Violado, a primeira, tema da novela Renascer, da Rede Globo. Um de nossos maiores versejadores, José Chagas completa 90 anos em 2014.

Participam do disco este timaço de feras listado na capa. A produção é de Celso Borges e Zeca Baleiro. Os desenhos são de Paullo César e o projeto gráfico é de Andréa Pedro.

O lançamento acontece na próxima quinta-feira (5), às 21h, no Teatro da Cidade de São Luís (antigo Cine Roxy). Haverá uma sessão de audição do disco e a exibição de um vídeo, realizado especialmente para o projeto.

O blogue voltará ao assunto.

Em tempo (já falei sobre, mas não custa repetir): a foto do cabeçalho deste blogue, clicada por Murilo Santos, mostra Josias Sobrinho e Cesar Teixeira fazendo um par de violeiros na peça Marémemória, baseada no livro-poema homônimo de José Chagas. O livro é de 1973, a peça, do ano seguinte.

Narciso em estado terminal

FLÁVIO REIS*

Um trabalho de Celso Borges é sempre promessa de surpresas. Poeta visceral, afeito a experimentações e radicalismos, há muito deixou de fazer propriamente livros, no sentido mais comum do termo. Apresenta, antes, objetos de arte. Foi o que vimos no esmerado design dos livros-cds que compõem a trilogia A Posição da Poesia é OposiçãoXXI, Música e Belle Epoque. O livro se completa noutra coisa, a poesia é lançada furiosamente ao encontro de sons, vozes, colagens, em meio a um grafismo elaborado, num jogo de cores, desenhos, fotografias, apropriações, citações, que são o invólucro para os petardos que estouram em nossas lentes, ouvidos e mentes.

O Futuro tem o Coração Antigo, lançado recentemente no Cine Roxy, é a nova e desconcertante iguaria desse alquimista da palavra, que vem misturando poesia com música, artes plásticas, cinema, fotografia, num esforço sempre múltiplo, coletivo. O jogo de Celso no entrelaçamento das palavras com as imagens e os sons ganha mais um capítulo, com duas faces.

De um lado, poemas curtos, como um click, chamados por ele mesmo de fotográficos, tendo ao fundo fotografias tiradas por alunos de um curso técnico do IFMA, coordenado pelo professor Eduardo Cordeiro. As fotos utilizam uma técnica antiga, criando imagens meio embaçadas, disformes, distantes, em uma palavra, fantasmagóricas.

De outro, a transposição dos poemas e fotografias para o formato de vídeo, num filme realizado em parceria com Beto Matuk, onde a experiência alcança sua maior complexidade, com a inclusão dos sons, a ampliação das imagens e a duração, revelando de maneira mais intensa todo o estranhamento que está na base da construção. Estamos falando de um momento de inflexão, em que o poeta olha sua longa relação/obsessão com a cidade sem saudosismo, somos logo avisados na abertura do livro/vídeo, mas como um “exercício de ternura” na “carne da cidade futura”.

A combinação aponta, no fundo, para um mergulho necessário e urgente nas sombras do passado. Não o passado da memória narcísica, inerte, perdido nos devaneios da autoglorificação, mas aquele turvo, borrado, sujo, que teimamos em recalcar na imagem dos casarões. O objetivo do salto é de estabelecer um novo encontro com o passado, sem as fantasmagorias que nos impedem de olhar de frente os olhos do futuro.

Celso carregou na vida a paixão da cidade natal, que demarca em três momentos bem distintos: da infância até os 30, quando criou a sua experiência de São Luís e inscreveu a cidade em si; depois, os vinte anos seguintes passados em São Paulo, quando a cidade ganhou os contornos da memória; por fim, a volta em 2009 e o encontro com uma “terceira cidade”, quando os alicerces da memória são então sacudidos pela crueza de uma realidade na qual “cercas elétricas se engalfinham sobre os muros” e o cenário é de destruição e medo.

O livro/vídeo é sobre este terceiro momento, mas se constrói de maneira que não aparece apenas como presente ou simples evocação do passado, e sim como fantasmagoria, uma projeção do passado no presente.  Compõe-se de dois poemas, o poema-título e A Terceira Cidade.

No primeiro, um bordão forte, “o futuro tem o coração antigo”, serve de base para a artilharia diversificada de Celso, alvejando lugares, figuras, situações, de ontem e de hoje, embaralhando as coisas e os tempos, enquanto “os azulejos portugueses encardidos nos observam do alto de sua nobreza rachada”. É a certeza de que “o futuro tem o coração antigo porque a fonte do ribeirão nunca vai secar e os condomínios do renascença morrem de medo”, “porque gullar ainda não escreveu o poema sujo e gonçalves dias não conheceu sabiás empalhados”, “porque o maria celeste ainda queima no cais da sagração” e, principalmente, “porque faustina faustina faustina”, eco que se perde no oco do tempo.

Em pequenos flashs são provocados nomes e imagens emblemáticas da nossa história. Uma história nebulosa, onde o fundador é uma miragem e “ninguém sabe se bequimão é uma força ou uma farsa na forca”. Celso trabalha à vontade em meio aos pedaços, pois sabe que “o futuro tem o coração antigo porque precisamos continuar bebendo na fonte de marcel duchamp”.

No poema A Terceira Cidade, mais longo e propriamente na forma de “poema fotográfico”, vemos todo o impacto da antiga cidade dos azulejos violentada num progresso devastador, mas ao mesmo tempo o anúncio do rompimento do casulo em que a cidade se manteve até então. A abertura não deixa dúvida, “Ó, ilhéus, abris os portais do futuro para o renascimento do maravilhoso”. O recomeço indica que o tempo passou, pois “alguma coisa já não é mais a mesma”. O enredo é simples: “era uma vez uma cidade e a cidade já era”.

Desfilam a devastação e a violência vivenciadas hoje nos quatro cantos da Ilha. São trechos quase sempre estarrecedores, mesmo em sua acidez crítica, expondo as muitas fraturas de uma cidade perdida em meio a ruas engolidas por buracos, a destruição ambiental e a lenta agonia dos casarões, quando “o berro mudo dos cupins devora a pele podre da parede do prédio”, enquanto “uma boca de lobo uiva na camboa”, “jegues abandonados vagueiam em procissão pelas estradas da maioba” e “centenas de carros rosnam na jerônimo de albuquerque”.

Superposição de cenas cotidianas: “ratos mascam chiclets num bueiro de vinhais. baratas brincam de esconde-esconde no calçadão da rua grande. impossível fotografar”. A cidade atulhada de carros, retratados de maneira turva, entupindo as vielas entre os casarões perdidos no tempo, mergulhados na sujeira e no abandono, por trás das placas cheias de cifrões com as promessas nunca cumpridas de reconstituição. Tudo parece distante e, no fundo, totalmente próximo, incômodo. Fantasmas que nos paralisam mesmo quando agonizam.

Momento de morrer, momento de renascer, “a mais bela flor do mundo agoniza. osso duro de morrer”. É também o momento do encontro entre as três cidades, entre as três eras, como um ajuste de contas. Onde se esconde São Luís? Onde se encontra São Luís? Em que visões, em que memórias, em quais sonhos? Terá a antiga cidade dos azulejos virado um grande pesadelo? Ou este foi sempre seu retrato mais fiel, sua imagem mais profunda? Ciente da urgência, Celso sabe que “chega uma hora em que chegou a hora”, “uma hora em que os gatos latem os cães piam e os bambis atiram pra matar”. Para São Luís e os ludovicenses essa hora parece soar. “O centro da cidade é um ciclope se mirando no espelho: narciso em estado terminal”.

Submetida a um processo desordenado e brutal de expansão, sem a resolução mínima de problemas estruturais seculares, chegando mesmo ao ponto de explosão, a cidade afunda a olhos vistos, sob a complacência de uma elite mesquinha apodrecida. “fidumaséguas!” berra o poeta. O fundo do poço em que nos encontramos parece o momento final da cidade na lenda da serpente, evocada no fecho do poema. A hora mítica do despertar, da destruição das fantasmagorias que dominam a nossa cultura. Momento possível, atual, de quebra da adoração vazia dos símbolos em que estamos atolados, seja da cultura ateniense, da cultura popular ou da união hipócrita de ambas executada sob o comando da mídia, em prol de uma apropriação criativa da própria história, pela invenção, pela negação desse futuro perverso vendido como redenção, onde o “turista de pacote clica a tanga da brincante do boizinho de butique”.

Uma obra em processo, que não tem programa, roteiro ou atores definidos, nem precisa, pois começa a se desenhar anarquicamente em experiências descontínuas e dispersas neste momento de cruzamento de gerações, traduzindo-se em movimentações variadas que podem confluir de maneira a criar fendas nas visões canônicas da cultura e da identidade ludovicenses. Nada mais adequado para celebrar a urgência deste “espírito destrutivo”, aliás, que a própria dedicatória feita por Celso naquela noite. Em sua maneira direta, diz apenas: “Chega de boferagem. Viva a fúria!”.

*Flávio Reis é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA, autor de Cenas Marginais (2005), Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão (2007) e Guerrilhas (2012).

O reencontro do poeta com a cidade

Não que poesia careça de explicação, não é disso que estou falando, mas a melhor definição de seu novo livro é o próprio Celso Borges quem dá. Os versos impressos na contracapa – e que o abrem – anunciam: “o futuro tem o coração antigo/ não é um livro saudosista/ mas um exercício de ternura/ a pele da flor na carne da cidade futura”.

O título do livro é mantra que martela a cabeça do poeta, que já havia usado a frase do italiano Carlo Levi como epígrafe em XXI (2000), seu primeiro livro-disco, que inaugura a trilogia A posição da poesia é oposição, continuada com Música (2006) e completada com Belle Epoque (2010).

O futuro tem o coração antigo [Pitomba, 2013] é um livro de poemas curtos, que marcam o reencontro de Celso Borges com sua São Luís natal, após 20 anos de São Paulo – ele voltou a morar aqui em 2009 e em rápida apresentação, divide sua existência em três blocos, as três cidades de São Luís em que viveu: a primeira entre 1959 e 1989, a segunda, a mudança para São Paulo, e a terceira o retorno, período em que foram concebidos os poemas deste novo livro.

Celso Borges não é saudosista, “antigamente era antigamente e era muito pior”, já disse num poema [A saudade tem seus dias contados, que fecha Belle Epoque]. Mas em tempos de instagram e toda tecnologia do mundo recorre a recursos, digamos, rudimentares, para compor seu novo livro: O futuro tem o coração antigo é datilografado e ilustrado por retratos da cidade realizados através da técnica pin hole. Sua poesia, sincera e marcante, prescinde de ferramentas e técnicas. Exige, sim, seu coração de homem antenado com a realidade, batendo no compasso do ofício pelo qual foi escolhido – poeta!

Em preto e branco juntam-se os poemas de Celso Borges às fotografias dos alunos de Eduardo Cordeiro no IFMA, sob o design de Luiza de Carli, que já havia materializado ideia do poeta na revista Pitomba, de que é um dos editores.

Seu reencontro com a cidade – sem mágoas, expectativas ou juízos de valor – não faz do livro obra para iniciados – ou faz? Qualquer um que tenha nascido, vivido, passado (ainda que rapidamente) ou ouvido falar de São Luís poderá apreciá-lo – como à cidade, sob algum ângulo. E mesmo quem não conheceu Faustina ou A vida é uma festa – evento semanal ainda na ativa –, o Cine Éden do passado ou o Box idem, poderá extrair beleza dali, o que O futuro tem o coração antigo transborda. Foi Fabiano Calixto ou Marcelo Montenegro – dois poetaços – quem disse uma vez, não faz tanto tempo numa rede social, que Celso Borges faz os livros mais bonitos do mundo?

Há várias maneiras de lermos este O futuro tem o coração antigo. Como um longo poema. Como vários poemas curtos. Como pílulas poéticas, cartões de visitas, guias para um passeio pelas cidades, que São Luís é várias, mesmo se nos contentarmos com a clássica divisão cidade nova versus cidade velha, as pontes por sobre o Rio Anil, este também um personagem, unindo a São Luís horizontal com a vertical. Ou ainda como um álbum de fotografias que retrata São Luís entre o belo e o feio, o casario tombado pelo patrimônio histórico e o prestes a tombar pela falta de conservação por parte de proprietários e poderes públicos irresponsáveis, os buracos que se tapam e reabrem a cada chuvisco, o esgoto a céu aberto, os cartões postais, a São Luís real, de verdade, pura poesia. Mesmo quando trisca em política, o que temos de mais nojento desde sempre, o autor soa poético, o que talvez lhe explique a alcunha de homem-poesia com que o tratam os amigos.

Mas a intenção aqui não é estabelecer um manual de instruções para o livro. Cada um o apreciará à sua maneira, difícil mesmo será quem não o faça – haverá?

Depois da volta de Celso Borges à Ilha, o Cine Roxy, quase em ruínas e então exibindo apenas filmes pornôs, tornou-se o Teatro da Cidade de São Luís – embora velhos como este blogueiro ainda prefiram chamá-lo pelo antigo nome –, hoje palco de importantes acontecimentos no cenário cultural da capital maranhense, o que inclui o lançamento de O futuro tem o coração antigo, amanhã (21), às 19h, com entrada franca. Na ocasião o livro será vendido por R$ 30,00 e haverá a exibição de um vídeo, o teaser abre-ilustra este post, realizado por Beto Matuck e Celso Borges.

O futuro tem o coração antigo e o passado tem lugar certo em nossos corações. Sem nostalgias baratas ou gratuitas, que pra frente é que se anda, “um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”, como disse outro poeta cujo futuro foi abreviado. Um pé no passado, outro no futuro, a poesia de Celso Borges é um espaço-lugar em que a cidade não para no tempo – para o bem e/ou para o mal, “a cidade só cresce”, sem saber onde vai dar, sem saber se é desta vez que a serpente vai acordar.

De Nostrife para o mundo, via São Luís: a viagem sonora de Babi Jaques e Os Sicilianos

Não é fácil classificar a música de Babi Jaques e Os Sicilianos – assumisse o grupo uma sigla ela seria quase “beijos”. Talvez seja mesmo tarefa impossível e dizer simplesmente liquidificador sonoro certamente soaria clichê. É pop, é rock, é blues, é frevo, é música popular brasileira, mas é muito mais que isso. Ecos de tropicalismo e manguebeat – justificado pela conterraneidade com Chico Science, a quem, aliás, sampleiam na vinheta de abertura de Coisa Nostra, seu disco de estreia –, mas também da vanguarda paulistana de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Ao menos aos ouvidos deste modesto crítico, impossível não lembrar, de cara, das experiências do pianista em Clara Crocodilo.

Talvez pelo fato de a banda ser formada por personagens. O que justifica a multiplicidade, Barbara Jaques, a vocalista, assumindo diversas formas durante uma performance. O disco enquanto suporte – um cd com encarte ou as faixas soltas nas esquinas virtuais para download – não é suficiente para cabê-los. Qualquer busca no google levará o leitor/ouvinte a biografias inventadas – o que pode reacender propositadamente ou não a fogueira em torno da polêmica um tanto vazia e insossa sobre o assunto.

Em Coisa Nostra, disco e show com que chegam à São Luís, por exemplo, travestem-se de mafiosos oriundos da cidade imaginária de Nostrife, evidente soma de máfia e Recife, sua (verdadeira)  terra natal. Babi Jaques pode ser numa faixa cantora de cabaré, noutra dublê de desenho animado, versátil cantora é o que é, afinal de contas. Sua música está próxima da poesia, melodias e harmonias são trilha sonora para a palavra, onde cabem ainda teatro, cinema, circo e, por que não?, música.

Coisa Nostra chega após a participação da banda em coletâneas e na trilha sonora de filmes. Produziram e lançaram ainda o documentário Sabe lá o que é isso, investigando as transformações do frevo, o título um verso do Hino de Batutas de São José, cuja releitura moderna o disco traz de brinde. É a estreia de um grupo que parece ter nascido pronto. São apenas quatro anos de carreira, mas o que se ouve e vê é pura maturidade musical. Alexandre Barros (bateria), Babi Jaques (voz), Thiago Lasserre (baixo) e Well (guitarra) garantem diversão nostrifense aos estrangeiros que se aventuram por seu disco e shows.

Hoje eles aportam em outra cidade imaginária, de tantas alcunhas um tanto já sem sentido: Athenas brasileira, Ilha do amor. Certamente não conhecem a lenda da serpente e é capaz dela despertar para dançar e se divertir – e fumar!: o afundar de São Luís fica pra outra ocasião, hoje no máximo o chão vai tremer ali na Praça Nauro Machado e arredores, onde às 23h Babi Jaques e Os Sicilianos armam sua (fan)farra musical, de graça, dentro da programação da 8ª. Aldeia Sesc Guajajara de Artes. A festa está garantida, como na letra de Evocação sem número: “E não importa se acabou fevereiro/ meu carnaval dura o ano inteiro”.

O quarteto se apresenta ainda em Itapecuru-Mirim (3/11) e Caxias (8/11), antes de continuar as aventuras por Piauí, Ceará, São Paulo, Uruguai e Argentina.

Exercício de raiva e traição*

CELSO BORGES**

Por que escrever apenas dos 16 aos 20 anos? Virar pelo avesso a poesia ocidental e depois abandonar a literatura e rumar para a Abissínia em busca de algumas moedas de ouro? Assim fez o poeta Jean Nicolas Arthur Rimbaud, que ao lado de Charles Baudelaire forma a dupla mais importante da poesia moderna, nascida na França na segunda metade do século 19. “Não penso mais nisso”, diria mais tarde Rimbaud ao amigo Delahaye quando questionado sobre literatura.

O enigma da renúncia do bardo francês atravessa gerações e permanece sem resposta. No caso de Rimbaud, essa deserção tem um caráter mais agudo, pelo curto espaço de tempo que escreveu e pela importância de sua obra para a poesia de seu tempo e além. Para poetas como eu, que carregam a palavra por todo o corpo e nunca pensaram em abandoná-la, a atitude de Rimbaud traz desconforto e alguma angústia. Um lado meu procura compreendê-lo. O outro, chora a perda de um cúmplice e sente o golpe. Como uma traição.

Rimbaudemônio é um grito e um exercício de imaginação contra os fugitivos da literatura, além de uma afirmação da poesia. É um texto de raiva e revolta contra Rimbaud, ainda que dê a ele chances de se defender. Narra um encontro imaginário entre o poeta e o demônio. Depois de beber inspiração no cálice satânico para escrever alguns dos versos mais belos de sua época, Rimbaud abandona a poesia. Antes, porém, sente-se no dever de comunicar isso ao seu grande mestre e para isso vai visitar o diabo no inferno, que se revolta contra ele. 

O inferno, aqui eleito como fonte de desregramento, delírio e rebeldia, é resultado de uma idealização romântica, ou mesmo de uma falsa idealização. Na educação cristã que recebi na infância, a presença de um Deus punitivo e de um juízo final implacável sempre foram mais presentes do que a figura do diabo e do fogo do inferno. Mais tarde, revoltei-me contra essa simbologia do medo. Rimbaudemônio é também, por isso, uma reação, mas sobretudo uma provocação contra esse universo. Para isso, investi num conceito de transgressão que tivesse origem na figura do demônio e no cenário de fogo regido por ele. É dentro dessa concepção que nascem a beleza e a rebeldia de Rimbaud.

Cinco tradutores do poeta francês alimentaram a construção deste texto: Augusto de Campos [Rimbaud Livre], Ivo Barroso [Arthur Rimbaud – Poesia Completa], Lêdo Ivo [Uma Temporada no Inferno & Iluminações], Maurício Arruda Mendonça e Rodrigo Garcia Lopes [Iluminuras – Gravuras Coloridas], além dos ensaios Rimbaud e Jim Morrison – Os Poetas Rebeldes [Wallace Fowlie]; A Hora dos Assassinos [Henry Miller]; O Castelo de Axel [Edmund Wilson]; Diabo – Uma Biografia [Peter Stanford]; e inspirações libertárias do Gênesis, de Roberto Piva, dos Pequenos Poemas em Prosa e da obra completa de Charles Baudelaire, e do clássico Simpathy for the Devil (Jagger/Richards), do Rolling Stones, relido pela lente do cineasta Jean Luc Godard.

Sem Lêdo Ivo, o primeiro tradutor de Rimbaud no Brasil, não haveria Rimbaudemônio. Devo muito deste trabalho à sua tradução de Uma Temporada no Inferno & Iluminações, que me trouxe de volta a rebeldia do poeta. Li esse livro há mais de 20 anos e confesso que somente na releitura, no início de 2008, percebi com mais lucidez o impacto de seus versos sobre a poesia moderna.

Lêdo Ivo está fora de minha lista de poetas/tradutores preferidos, talvez por ser um ícone da Geração 45, com a qual não me identifico em razão de sua excessiva e equivocada rejeição ao modernismo de 22 e aos seus desdobramentos. Mas devo reconhecer que bebi do seu entusiasmo no pequeno ensaio que assina no prefácio do livro. Durante a leitura dos versos de Uma Temporada no inferno & Iluminações, esse entusiasmo cutucou minha inspiração e estimulou alguma raiva contra a renúncia do poeta francês. Daí nasceu a ideia de construir um diálogo entre Rimbaud e o demônio.

Outra tradução mais recente, Iluminuras – Gravuras Coloridas, de Rodrigo Garcia Lopes e Mauricio Arruda Mendonça, foi essencial como diálogo com a tradução de Lêdo Ivo. Sobretudo pelos ensaios curtos e luminosos do posfácio, que me ajudaram a compreender um pouco mais o alcance da obra de Rimbaud e mudaram meu olhar, de certa forma ainda ordinário, sobre os truques e trovões rítmicos do poeta de Ardennes.

É importante destacar, no entanto, que Rimbaudemônio está longe dos primeiros experimentos com a técnica cut-up do norte-americano William Burroughs, quando usou trechos das Iluminações (ou Iluminuras, como preferem os tradutores Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça). Aproxima-se muito mais do método detournement (desvio, descaminho, roubo ou rapto, em francês) criado por Lautreamont, cujo objetivo é modificar frases existentes pela troca de algumas palavras ou pela adição de outras cuidadosamente escolhidas. “O plágio é necessário. O progresso exige” (Lautreamont).

A partir de hoje a peça será encenada todas as sextas-feiras, até dezembro, sempre às 21h

*Este texto foi originalmente distribuído aos meios de comunicação junto do release da peça. ** Celso Borges é poeta e jornalista.

Ademir Assunção leva o Jabuti de Poesia

UM QUILO MENOS DISSO

Há uma canção melancólica de Tom Waits que narra a história de uma garota interiorana que vai para Nova York e cai nas mãos de pessoas erradas. No fim, restam apenas alguns litros de sangue na calçada e uma bolsa de pele de crocodilo vazia, jogada no bueiro por um vigarista. Há uma canção de Bob Dylan que narra o desterro de uma garota de nariz empinado que acaba na sarjeta, tendo que filar o rango de um maltrapilho que ela olhava do alto do pedestal. How does it fell/ To be on your own/ With no direction home/ Like a complete unknow/ Like a rolling stone? Há dias de calmaria e há dias de tormenta. Há um disco de Carmen McRae rolando na vitrola. Há céus azuis e há céus cinzentos. Há anjos e há demônios em quase todas as mitologias. Há pessoas que julgam e há pessoas que não se importam mais. It could be right or it could be wrong. Não há erros. Há fluxos, rajadas de vida. E muitas vezes o vento muda de direção. Há pessoas que às vezes estão tristes. Há muito desacerto. Há certezas demais. Há um vazio gigante entre os dois extremos da conexão. Há coisas que acontecem somente para que os antigos laços sejam reatados e novos sejam rompidos. Há drogas pra dormir. Há um avião B-52 caindo, há o rugido pesado de uma guitarra e há o choro de um recém-nascido. Há bombas que foram lançadas em 1944 e ainda não pararam de cair. Há um muro bem ali na frente. Ainda não consigo distinguir sua cor. Não sei nada sobre sua textura. Nem sobre sua densidade. Mas sei que estou indo em direção a ele. A 180 por hora. E não vou tirar o pé do acelerador.

Este poema em prosa abre a sétima noite do diário do ventríloquo – A voz do ventríloquo [Edith, 2012], de Ademir Assunção, é dividido em noites, cada noite uma seção de poemas.

O trecho com que abro este post, batizado por um verso de Sérgio Sampaio, traduz um pouco do que é o poeta, mostra algumas de suas influências e a forma como ele lida com as coisas – principalmente a poesia.

Ademir Assunção esteve em São Luís no final de setembro. Participou de três momentos da Feira do Livro de São Luís. Entrevistei-o por e-mail antes de sua chegada e provavelmente deixei sua indicação ao prêmio Jabuti na categoria poesia de fora do papo por ainda não ter à época a lista dos 10 finalistas – em que figurava também, entre outros, o maranhense Josoaldo Lima Rêgo, meu colega de equipe de curadoria, por Variações ao mar [7Letras, 2012]. Minha conversa com ele foi publicada pela metade nO Estado do Maranhão e inteira cá neste blogue.

No fundo, talvez, se eu já tivesse conhecimento da lista, a pergunta entraria na roda apenas por critérios jornalísticos (acho que a entrevista vai além), justamente por saber que Ademir não escreve poesia – ou prosa, ou jornalismo ou o que quer que seja – para ganhar prêmios. A prova disso são os quatro livros inéditos que ele tem na gaveta – uma coletânea de reportagens, outros de poesia.

Ademir Assunção já era um papo de longa data, ele desde sempre bastante atencioso ao responder e-mails, e conhecemo-nos pessoalmente durante a 7ª. FeliS, um grande acontecimento: nomes importantes como Fernando Moraes e Walnice Nogueira Galvão, por exemplo, preferiram-na à Feira de Frankfurt. As críticas existentes devem deixar a FeliS ainda melhor – e maior – ano que vem.

Mas voltando: como eu disse na mediação de uma das mesas de que ele participou no evento literário, um cara fundamental na minha formação. Conheci sua poesia meio que por acaso: Xico Santos, editor proprietário da Altana, mandou-me de presente seu Zona Branca [2001], publicado por aquela editora. Desde então tenho acompanhado com avidez e alegria sua trajetória, lançamento após lançamento – vem um disco novo aí em novembro! –, suas dicas e suas reações a essa sociedade e seus problemas.

Este post, pois, é para anunciar a vitória de Ademir Assunção na categoria Poesia do prêmio Jabuti 2013, com seu A voz do ventríloquo. Ele, que gostou do que viu e viveu em seus dias de ilha, quem sabe não torna a ela ano que vem? De minha parte será um enorme prazer. Ademir: ligando ou não para prêmios, parabéns!

Cinema via poesia: subiu Giuliano Gemma

Sempre que penso em Giuliano Gemma (ou Montgomery Wood, seu pseudônimo americano), a primeira lembrança que me vem à cabeça é o poema de Celso Borges: “belas as baladas de Cat Stevens que me abalam/ as balas de Giuliano Gemma que não me calam”.

A partir deste poema, que conheci cantado-entoado por Rita Ribeiro em XXI (2001), foi que cheguei ao cinema do ator italiano. Desde então é sempre assim: à menção de seu nome, lembro o poema e depois penso nos tantos filmes que já assisti com o galã.

O mocinho nunca morre no final. É no que vou continuar acreditando para sofrer menos com a subida deste meu herói. Gemma não resistiu aos ferimentos provocados por um acidente de carro e faleceu ontem, na Itália.

Colhendo frutos no pé de laranja mecânica alheio

Ou: uma feira também se faz com um tiquinho de improviso.

Logo mais às 18h, na Galeria Valdelino Cécio, rebatizada Espaço Nauro Machado para a #7felis, no Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, participo de um Café Literário com o poeta pernambucano Fabiano Calixto, autor de Música possível [CosacNaify/ 7Letras, 2006] e A canção do vendedor de pipocas [7Letras, 2013], entre outros. Imensa honra, apesar do susto com o convite em cima da hora, para substituir um convidado faltoso por motivo de força maior. Conversaremos sobre “Blogues e criação literária”.

Apareçam!

“Fui em direção ao jornalismo movido pelo interesse pela linguagem poética”

[Íntegra da entrevista publicada hoje no Alternativo, O Estado do Maranhão]

Jornalista, poeta e letrista de música, Ademir Assunção fará três participações na 7ª. Feira do Livro de São Luís. Com nove livros publicados, um cd lançado e outro a sair ainda este ano, ele concedeu entrevista exclusiva a O Estado do Maranhão

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO

Jornalista, poeta e letrista de música, Ademir Assunção tem nove livros publicados: LSD Nô (poesia, 1994), A Máquina Peluda (prosa, 1997), Cinemitologias (prosa poética, 1998), Zona Branca (poesia, 2001), Adorável Criatura Frankenstein (prosa, 2003), A Musa Chapada (com Antonio Vicente Pietroforte e Carlos Carah, poesia, 2008), Buenas Noches, Paraguaylândia (poesia, Assunção, Paraguai, 2009), A Voz do Ventríloquo (poesia, 2009) e Faróis no Caos (coletânea de entrevistas, 2009). Em 2005 lançou o cd Rebelião na Zona Fantasma, com participações dos parceiros Edvaldo Santana e Zeca Baleiro. Tem inéditos um cd – que lança ainda este ano – e quatro livros – três de poesia e uma coletânea de reportagens publicadas em diversos veículos. Alô, editores do meu Brasil!

Já ganhou alguns prêmios com sua produção, mas não é o tipo de cara que espera por bons ventos ou tempos de vacas gordas: o lance dele é o mar bravio, em que se mete a largas braçadas e pernadas, cara e coragem. Para lançar seu primeiro disco, por exemplo, à época, vendeu um carro. Para selecionar as 29 entrevistas de Faróis no Caos, passou dois meses isolado em uma praia.

Formado na Universidade Estadual de Londrina, o autor, convidado da 7ª. Feira do Livro de São Luís, passou pelas redações da Folha de Londrina, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo, Marie Claire, Veja São Paulo, além de frilar por outras: Revista dos Bancários (SP), O Tempo (Belo Horizonte), Gazeta do Povo (Curitiba), A Notícia (Joinville), Cult, IstoÉ, Revista Educação e Caros Amigos. Quando o jornalismo, sobretudo o cultural, começou a ficar careta ele caiu fora – um de nossos mais interessantes jornalistas está exilado das redações.

Ademir Assunção fará três participações na 7ª. FeliS: dia 28 de setembro (sábado), às 18h, no Auditório da Associação Comercial do Maranhão (Praça Benedito Leite), com mediação deste jornalista, ele profere a palestra “A farsa da big mídia e as revistas fora do centro: uma outra história”. Domingo (29), às 19h30min, apresenta-se no recital Poesia no Beco, no Beco Catarina Mina (Praia Grande), acompanhado do guitarrista Marcelo Watanabe. Dia 30 (segunda-feira), às 16h30min, divide um Café Literário com o também jornalista e poeta Eduardo Júlio. “Poesia rima com rebeldia: Leminski, Torquato e cia. Ilimitada” é o tema da conversa, que acontece na Galeria Valdelino Cécio (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande).

Em entrevista por e-mail a O Estado, Ademir Assunção falou de poesia, jornalismo, música, revistas literárias, sua trajetória, redes sociais e da expectativa por sua primeira visita à São Luís do Maranhão.

ENTREVISTA: ADEMIR ASSUNÇÃO

O Estado do Maranhão – Ano passado você lançou o livro de poemas A voz do ventríloquo e a coletânea de entrevistas Faróis no caos. Sua trajetória parece desde sempre marcada por essa, digamos, vida dupla: a poesia e o jornalismo. Em que sentido um e outro se ajudam e completam e/ou atrapalham?
Ademir Assunção – Fui em direção ao jornalismo movido pelo interesse pela linguagem poética. Peguei um período em que era possível praticar um jornalismo bem mais instigante do que o atual. Era possível desenvolver um estilo, ou vários estilos de escrita, e discutir questões relevantes com mais profundidade. Sempre fui fascinado pela página grande de um jornal, com todas as suas possibilidades criativas, desde a linguagem gráfica, fotográfica, até a própria escrita. O jornalismo me ajudou a criar uma disciplina e a procurar uma poesia mais impura, mais misturada ao cotidiano. E o estudo da tradição poética me ajudou a praticar um jornalismo mais criativo, enquanto foi possível. Embora sejam linguagens e meios bem diferentes, procurei contaminar um ao outro, levando uma consciência poética ao jornalismo e trazendo um pouco das impurezas da linguagem jornalística para a poesia.

Poesia “é saber usar a língua para extrair gemidos, uivos e palavras obscenas das mulheres mais vagabundas”. Esta é a resposta que você deu ao também poeta Edson Cruz, em O que é poesia? [2009], livro que ele organizou. O que mais é poesia? E levando em conta essa definição, você arriscaria um chute? Há muitos ou poucos poetas por aí? Bons ou ruins? Não gosto da poesia como algo puro, uma espécie de virgem imaculada no alto de um pedestal. Prefiro a poesia que vai para o meio da rua, que lambe as feridas dos trombadinhas, que se deixa violentar por tudo o que é humano, que se arrisca aos altos voos mas que tem consciência de que o asfalto é duro é áspero. Como diria Nietzsche: “de tudo o que se escreve, aprecio somente o que é escrito com o próprio sangue.” Sim, há muitos poetas que escrevem com essa fúria e essa urgência. São esses os que mais me interessam.

A mediocrização do jornalismo cultural brasileiro te obrigou a um exílio voluntário. Entrevistas como as reunidas em Faróis no caos estão cada vez mais raras na chamada grande mídia. Neste aspecto, uma volta ao passado parece mesmo impossível? Nada é impossível e o tempo não é linear como pensamos. É possível que a qualquer momento surja uma nova tribo de jornalistas que encare o exercício da escrita e da informação de maneira apaixonada e ousada, e não apenas como uma profissão, onde “quem pode manda e quem tem juízo obedece”. Para mim, isso é uma total falta de juízo. É preciso também que as condições se apresentem para que essas mudanças aconteçam. Quanto ao meu exílio, não foi tão voluntário assim. Passei períodos difíceis, sem grana, sem conseguir trabalho em jornal ou revista algum. Mas nunca estive disposto a vender o que tenho de mais precioso: a minha inquietação.

Muito do conteúdo dos poemas de A voz do ventríloquo é uma crítica a essa sociedade do espetáculo e do consumo desenfreado, que vai mais a um show ou a um restaurante para postar a foto do artista no palco e da comida no prato que para apreciar um ou outro. A experiência parece só existir se compartilhada. Escrever é um exercício solitário, que vai na contramão disso tudo. Como você dosa o exercício de escritor com a exposição na medida que o mesmo deve ter, divulgando a obra, conquistando leitores? Sinceramente, nunca me preocupei em conquistar mais leitores. Sigo fazendo o que tenho que fazer. A escrita, para mim, é vital. Tenho tanto prazer em passar madrugadas escrevendo solitariamente quanto em subir em um palco e apresentar meus poemas com minha banda. É claro que tenho intenção de influenciar mais pessoas, de interferir no resultado do jogo, mas que isso aconteça sem concessões descabidas. A poesia é capaz de abrir o olho de muita gente. Não a encaro como um entretenimento. Não tenho nenhuma dúvida de que minha percepção seria mais pobre se não tivesse lido Uivo, de Allen Ginsberg, ou a tradução da Ilíada por Haroldo de Campos, para citar dois exemplos.

Além dos livros de poesia e prosa e da atividade jornalística, outra atividade sua é a música. Para você, há diferença na hora de compor uma letra de música ou escrever um poema? Apenas diferenças técnicas. No meu caso, a maior parte das minhas parcerias musicais nasceu de poemas já escritos. Poucas vezes escrevi poemas para harmonias ou melodias já prontas. Acho um equívoco pensar que a “grande poesia” só pode existir no livro. Itamar Assumpção, por exemplo, é um poeta de altíssima voltagem. Só que em vez de publicar livros, gravou discos. São meios diferentes, com possibilidades diferentes. Gosto muito do poema cantado de Gilberto Gil [Metáfora, do disco Um banda um]: “Na lata do poeta tudo nada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha caber / O incabível.”

Depois de Rebelião na Zona Fantasma você está preparando um novo disco, fundindo poesia com rock e blues, numa experiência para muito além de recitar poemas com fundo musical. A banda que te acompanha se chama Fracasso da Raça, um belo nome que já traduz uma opinião, uma visão de mundo. Deste novo disco – como se chamará? – já tive a oportunidade de ver o clipe de Bang bang no sábado à noite e ouvir Lena [enviada por e-mail em primeira mão]. Em ambas estão referências fundamentais para tua literatura, como Bob Dylan, John Lee Hooker, Sérgio Leone. O que mais esperar? E qual a previsão de lançamento? Este novo disco, que se chama Viralatas de Córdoba e será lançado em novembro, está mais radical do que Rebelião na Zona Fantasma. Das 14 faixas, há apenas uma cantada, um blues interpretado pela cantora Fabiana Cozza. É um poema que Edvaldo Santana musicou, sem nenhuma alteração. Todos os outros são entoados, com ritmos, com modulações, com intenções de voz diferentes. Porém, meticulosamente encaixados em harmonias e compassos musicais. Como você frisou, não se trata de poemas falados com um “fundo musical” aleatório, improvisado. O processo de composição com os músicos Marcelo Watanabe [guitarrista que o acompanhará em Poesia no Beco, durante a 7ª. FeliS], Caio Góes e Caio Dohogne foi muito curioso. Os próprios compositores jamais haviam trabalhado desta maneira. Gravei também O Deus, parceria com Edvaldo Santana e Paulo Leminski e Nossa Vida Não Vale um Chevrolet, do Mário Bortolotto. Ambas são canções, originalmente cantadas, mas fiz uma versão falada (ou “entoada”, como prefiro). Em Chevrolet acrescentei o poema Eu Caminhava Assim tão Distraído, do poeta e dramaturgo Maurício Arruda Mendonça.

As revistas literárias e culturais são tema de uma das mesas de que você participa na 7ª. Feira do Livro de São Luís. Recentemente a editora Abril fechou a Bravo!, que apesar de já não ser como quando iniciou, ainda tinha alguma importância. É um sinal dos tempos? Ou sempre foi assim: a tesoura que corta o orçamento pega primeiro na cultura? Essa é a realidade do mercado editorial. Se uma publicação comercial não dá lucro financeiro, acaba sendo extinta. Não era um leitor assíduo da Bravo!, mas lamento seu fim. Particularmente, preferia que a Veja fosse extinta e a Bravo! continuasse.

Você é um dos editores da revista Coyote, que já conta 10 anos, 24 edições, um pequeno apoio da Prefeitura de Londrina e muita paixão e teimosia dos editores – a teimosia uma espécie de sal da poesia, tempero que não pode faltar. A meu ver é a mais importante revista de literatura do Brasil, hoje. Como surgiu a ideia e o que os leva a resistir? Rodrigo Garcia Lopes [também convidado da #7felis], Marcos Losnak e eu fizemos outras revistas antes, juntos, ou separados. A Coyote nasceu de uma necessidade nossa de mostrar autores, tanto do passado quanto do presente, que considerávamos importantes e que não víamos em outras publicações. E há uma particularidade da Coyote que as pessoas notam de cara: a linguagem gráfica. Para mim, Losnak é um gênio do design gráfico. Não entendemos a revista apenas como “suporte” para textos. A própria linguagem gráfica assume um papel de altíssima significância.

Que outras revistas literárias te fizeram e/ou fazem a cabeça? Várias, da Navilouca à Azougue. Muitas revistas surgiram nas últimas décadas, a maioria desapareceu, mas deixou contribuições importantes. Para citar algumas: Bric-a-Brac (Brasília), Orobóro e Medusa (Curitiba), Imã (Vitória), Ontem Choveu no Futuro (Campo Grande), Carioca e Inimigo Rumor (Rio de Janeiro), Pulsar (Teresina, se não me engano), Pajeurbe (Fortaleza) e Revista de Autofagia (Belo Horizonte). Há várias outras que me escapam à lembrança no momento.

Você conhece a Pitomba, editada aqui por Bruno Azevêdo, Celso Borges e Reuben da Cunha Rocha? Qual a Coyote, também tem periodicidade de-vez-em-quandal e é feita com pouquíssimo apoio, no fim das contas sai do bolso do trio mesmo. O que acha da publicação? Gosto do tom de provocação e irreverência da Pitomba. Cada poeta ou grupo de poetas traz suas referências críticas e criativas. É importante que elas apareçam, que causem atritos. Os atritos provocam movimento, abrem novos horizontes perceptivos.

Outro tema que você debaterá é relação entre poesia e rebeldia, passando por obras de Paulo Leminski e Torquato Neto, entre outros, poetas que também influenciaram teu trabalho, você um rebelde. Quem são os rebeldes de hoje, que nomes valem a pena e mereceriam uma indicação tua, a um amigo, dentro de uma livraria? É preciso situar o termo “rebeldia”, para que não se torne algo caricato. Atitudes rebeldes surgem da necessidade de se firmar outras maneiras de viver e de fazer as coisas. Elas são vitais para ampliar a percepção, as experiências, para não cair na vala da acomodação, do mais-do-mesmo. Espíritos rebeldes sempre existiram, no passado, no presente e existirão no futuro. A lista dos poetas vivos que mais me instigam não é pequena. Para citar apenas cinco deles, eis alguns que procuro acompanhar com grande interesse: Douglas Diegues, Rodrigo Garcia Lopes, Fabrício Marques, Celso Borges e Micheliny Verunschk. Mas há um punhado de outros, que podem se sentir incluídos.

Você participa ainda do Poesia no Beco, em um espetáculo de voz e guitarra, espécie de miniatura do que será o disco. Quais as expectativas para esta apresentação e em geral, nesta sua primeira visita à Ilha natal de Ferreira Gullar? O que vou apresentar em São Luis do Maranhão, com o guitarrista Marcelo Watanabe, é uma versão, digamos, mais descarnada das composições que estão nos dois discos, o Rebelião e o Viralatas. Não tem os arranjos, com bateria, baixo, backing vocais, percussão, que estão presentes nos discos. As composições serão apresentadas mais próximas da raiz, de como elas nasceram. Tomara que as pessoas se sintam estimuladas com o que vão ouvir. Quero aproveitar essa minha primeira viagem ao Maranhão para mostrar o que estamos fazendo e também conhecer o que os criadores daí estão aprontando.

2984

– incorporando Clara Crocodilo e o Bandido da Luz Vermelha

assim falou Zaratustra
ao Recruta Zero: quem tiver de sapato
não sobra

office-boy com mortadela
na diarreia de dr. Phibes
Clarabela de biquíni
num anúncio de soda

sorrisos de latas de ervilha
e holofotes de esparadrapo
na sucursal
do Grande Frigorífico

enquanto estereofônicos repolhos
zombam de tudo isto
e nada disso

Desembucha, canalha!
gargalhadas de Rosebud
nos buchos do precipício

corta essa, nenhum grilo
esculhamba e avacalha
o Bandido da Luz Vermelha
aos gritos
de Clara Crocodilo

Durango Kid Alighieri
Perfume de Gardênia

uma lâmina no olho
e o cérebro equipado
para a próxima amnésia

*

Poema do Marcelo Montenegro, de seu Orfanato portátil [AtritoArt, 2003; Annablume, 2012, p. 52-53], que ele autografará na Ilha, em breve, bem como o mais recente, Garagem lírica. O poeta é um dos autores convidados da 7ª. Feira do Livro de São Luís. Este poema o blogue dedica ao professoramigo Flávio Reis.

Medo

Quererei tudo
depois da morte.

Até lá,
quero apenas ressuscitar.
Em cada dia,
ressurgir dos mortíferos desfechos.

Lá vem o poeta, dizem.
E abrem alas, receosos.

Não me importa:
de vivo não quero memória.

Medo tenho
é de ser enterrado sem história.

Maputo, 2006

O poetaço Mia Couto em Idades cidades divindades (2007, p. 31), na edição moçambicana da Ndjira, que o queridamigo Novarck Oliveira me trouxe numa de suas andanças por lá. Gracias!

A música de Paulo Leminski

[O Estado do Maranhão, 1º. de setembro de 2013]

Digitalização de acervo e livro de partituras mostrarão outra porção de um múltiplo Leminski, cuja poesia foi recentemente reunida em livro

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO

A coleção de poemas que Paulo Leminski publicou em livros, inclusive póstumos, reunida em Toda Poesia [Companhia das Letras, 2013, 421 p.], bateu recordes: alcançou os 50 mil exemplares vendidos, soma nada desprezível para o mercado livreiro, e particularmente de poesia, no Brasil.

Leminski foi vários: poeta, publicitário, jornalista, tradutor, professor, judoca, romancista, contista. E músico. Revoltava-lhe, aliás, ser reconhecido apenas como letrista. Tinha razão: embora compusesse em parceria, e muito de sua obra musical ter surgido pelas mãos de parceiros que musicaram versos publicados em livros, o samurai malandro compunha letra e música.

Casos de Verdura, gravada por Caetano Veloso em Outras palavras [1980], e Luzes, gravada por Suzana Salles e Arnaldo Antunes, ela uma das Orquídeas do Brasil, banda de mulheres que acompanhou Itamar Assumpção – parceiro de Leminski – no triplo Bicho de Sete Cabeças [1993].

Não à toa, antes dos apêndices – orelhas, prefácios e tais – de Toda Poesia, lemos Notas sobre Leminski cancionista [p. 385], breve artigo assinado por José Miguel Wisnik – que já musicou tradução de Leminski. Entre as histórias que conta, aliás, está a de como Luzes chegou, através de recados ao telefone, aos ouvidos e mãos de Suzana e Arnaldo, num episódio que envolve, além dele, Alice Ruiz e Zé Celso Martinez Correa.

Wisnik diz que se o projeto de um Leminski músico não se concretizou plenamente, encontra na obra do ex-Titã sua mais perfeita tradução: a combinação entre o poema grafado na página do livro e a canção gravada no disco. Canção pop.

Através de sua obra, Leminski permanece vivíssimo hoje. É inegável que a gravação de Verdura por Caetano tenha colaborado para sua popularidade na década de 1980, quando Caprichos e relaxos [1983] esgotou edições na saudosa Brasiliense, que teve como editor Luiz Schwarz, que devolve Leminski às estantes em Toda Poesia, e que lançou no Brasil autores fundamentais como Jack Kerouac e John Fante – este, aliás, traduzido por Leminski.

Leminski músico – No campo musical Leminski tem obra curta, mas nada desprezível. Só as duas aqui citadas já lhe garantiriam lugar no panteão de nossos grandes compositores, merecendo mais espaço no dial. Entre outras de sua lavra poderíamos citar rapidamente Custa nada sonhar, Dor elegante, Filho de Santa Maria, Vamos nessa (as quatro com Itamar Assumpção), Mudança de estação, sucesso dA Cor do Som, Promessas demais (com Moraes Moreira e Zeca Barreto), gravada por Ney Matogrosso, Polonaise (com José Miguel Wisnik, gravada pelo próprio), Além alma (com Arnaldo Antunes), O velho León e Natália em Coyoacán (com Vitor Ramil), Reza (com Zeca Baleiro) e O Deus (com Ademir Assunção e Edvaldo Santana).

Leminski com Caetano Veloso e Alice Ruiz, em Curitiba (1976)

Leminski colecionou histórias engraçadas envolvendo sua produção musical. Uma delas a citada revolta confessada quando queriam rotulá-lo simplesmente letrista. “Eu sou músico!”, bradava, revoltado. E sonhava com o dia em que todas as pessoas fossem músicos, tocassem algum instrumento.

Com a grana dos direitos autorais da gravação de Verdura, por Caetano Veloso, comprou um fusca verde, justamente batizado de… Verdura. Detalhe: Leminski não dirigia. Foi Leminski quem deu ao xará Paulo Diniz o título de uma de suas mais famosas músicas: Ponha um arco-íris na sua moringa. Era uma frase do Catatau, que estava escrevendo quando os dois moravam no Solar da Fossa. Diniz usou-a para intitular a música e o poeta, em homenagem ao amigo, retirou-a do livro.

Também é famosa a correção que o poliglota Leminski aplicou ao mesmo Paulo Diniz na construção da letra de Quero voltar pra Bahia, cujo refrão é em inglês: “I don’t want to stay here/ I wanna to go back to Bahia”. Mexer na letra e retirar o verbo duplicado, como queria Leminski, iria acabar com a métrica e a homenagem do baiano ao conterrâneo exilado acabou saindo com o erro com que a conhecemos.

A obra musical de Paulo Leminski será sua próxima porção a chegar ao público. Aprovado pelo Programa Petrobras Cultural, o projeto A obra musical de Paulo Leminski – um patrimônio cultural do Paraná e do Brasil prevê a digitalização das fitas cassetes deixadas por Leminski (contendo dezenas de canções inéditas) e a posterior organização de um livro de partituras com sua obra musical completa.

Sobre este e outros assuntos, em entrevista por e-mail, uma das responsáveis pela empreitada, a musicista Estrela Ruiz Leminski, filha de Alice Ruiz e Paulo Leminski, deu detalhes sobre a produção.

Poeta, musicista, professora: Estrela Leminski seguiu os passos do pai

“NÓS JÁ SABÍAMOS DA FORÇA DA POESIA DELE”
ENTREVISTA: ESTRELA RUIZ LEMINSKI

A compositora, escritora e professora Estrela Leminski, filha do poeta, é responsável pelo resgate da obra do pai. Na entrevista, ela comenta essa fase da redescoberta do público em relação a grandiosa obra do pai.

O Estado do Maranhão – A Companhia das Letras publicou recentemente Toda Poesia, que reúne a obra poética publicada em livro por Paulo Leminski. A editora anunciou para breve a reedição de Vida, livro que reúne as quatro biografias que o poeta escreveu, de Bashô, Cruz e Souza, Jesus Cristo e Trotsky. Agora, a digitalização de fitas com músicas de Leminski e a produção de um livro de partituras com sua vasta obra musical foi recentemente selecionada num edital da Petrobras. Qual a importância de fazer Leminski, sempre vivo entre nós, voltar a circular?
Estrela Ruiz Leminski – Acho que a resposta se justifica na tua pergunta. Tudo também se deve ao fato da gente ter se mobilizado para segurar as rédeas da obra dele. Resolvemos ir atrás de tudo que faltava fazer para a obra dele, tão múltipla, vir à tona! Nessa tua lista ainda falta pontuar a exposição Múltiplo Leminski, realizada em Curitiba, no MON [o Museu Oscar Niemeyer], que vai circular o país.

Quando o projeto foi apresentado já se tinha dimensão do tamanho da obra musical de Leminski? Ou as coisas foram sendo descobertas ao longo da jornada? O aspecto musical dele é uma empreitada minha. Eu cresci ouvindo essas músicas, ele cantava muito em casa, e depois sempre curti o que foi gravado. O público vai se surpreender com a variedade e com o lado cancionista da obra dele.

Lembro-me de uma entrevista [ao jornalista Aramis Millarch] em que Leminski mostrava-se indignado quando as pessoas o chamavam letrista, já que ele compunha letra e música. Na mesma entrevista, ele afirmava sonhar com o dia em que todas as pessoas fossem músicos, isto é, que tocassem algum instrumento ou cantassem. Você, que acabou seguindo os passos de seu pai, na música e na poesia, acredita que esse dia vai chegar? Sonha com isso? Além de ser compositora e escritora sou professora de música. É isso que eu busco. É uma inquietação minha. As pessoas têm que ter pelo menos o direito de compreender os contextos culturais musicais, ter ferramentas críticas ao que escutam. Isso não acontece e se agravou muito com a falta do ensino da música nas escolas.

O que achou da poesia de Leminski desbancar os tons cinzentos de uma literatura pobre em uma rede de livrarias? O boom do livro não foi surpresa, foi alívio. Nós já sabíamos da força da poesia dele, da atualidade. Para a gente é a sensação de que ele está começando a ocupar um espaço merecido há tempos.

O retorno de Leminski às livrarias dá um gás no culto ao poeta, mas ele sempre teve um grande número de leitores, admiradores, fãs, seguidores. Enfim, de gente que consome e faz circular sua obra. O poeta e jornalista Ademir Assunção, que já organizou uma exposição sobre a vida e a obra de Leminski, teve dificuldades, por exemplo, para publicar uma entrevista de Raul Seixas em Faróis no Caos [Edições Sesc-SP, 2012, 407 p.], coletânea de entrevistas que ele fez ao longo de quase 30 anos de atividade jornalística. A entrevista de Leminski está lá. Como você, enquanto herdeira, lida com a obra de seu pai? Tem um aspecto de ser herdeira que é o fato de ser artista. E ainda por cima artista auto-produtora. Por um lado batalho mesmo que cada vez mais gente tenha contato com a obra dele como um todo, mas por outro não faço isso na ingenuidade. Conheço o caminho da roça e como negociar as coisas. A burocracia que isso envolve é chata, mas é necessária. Não vou julgar as famílias que por algum motivo causem entraves. De qualquer forma, sei que essa dinâmica, sendo parceira na empreitada com minha mãe e irmã [Aurea Leminski], dividindo as tarefas, tem dado cada vez mais certo.