Zeca Baleiro lotou duas sessões ontem (25), no Teatro Arthur Azevedo

Foto: Patrícia Castro
Foto: Patrícia Castro

“Quero ficar no teu corpo feito tatuagem”. Os versos iniciais da clássica “Tatuagem” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), com que Zeca Baleiro abriu o show “Fado Tropical”, ontem (25), no Teatro Arthur Azevedo, bem traduzem a relação do maranhense com seu público, consolidada em 26 anos, se contarmos apenas a partir de sua estreia fonográfica, com “Por Onde Andará Stephen Fry?” (MZA Music, 1997).

Por falar em 26 anos, chegou hoje às plataformas de streaming “Você Goza Com Dinheiro” (Zeca Baleiro), segundo single de uma série com que o artista está celebrando a inusitada efeméride.

Como ele mesmo contou, para gargalhadas do ótimo público presente: “quando eu lancei meu primeiro disco, me ligaram e disseram que tinham conseguido botar uma música minha na nova novela do Manoel Carlos, “Por Amor”; eu sempre fui noveleiro, sabia tudo, elenco, ficha técnica, trilha sonora, ficava disputando com minha irmã Lúcia [Santos, poeta] para saber quem tinha mais conhecimentos novelísticos; eu voltei a assistir novela e fiquei esperando, mas os capítulos passavam e nada da música; lá pelo capítulo 45, eu já quase desistindo de acompanhar, achando que não ia rolar, o personagem de Antônio Fagundes deu um beijo de cinema na Cássia Kis e a música tocou por dois minutos e meio, um tempão para televisão, no horário nobre; eu fiquei emocionado, chorei, mas depois a música nunca mais tocou, pois o personagem de Antônio Fagundes trocou a Cássia Kis pela Regina Duarte; tinha o dedo podre, o Fagundes”. E atacou de “Bandeira” (Zeca Baleiro), com o público cantando junto.

Acompanhado por Rui Mário (piano e sanfona), Lui Coimbra (violoncelo) e Luiz Cláudio (percussão), Baleiro desfilou um repertório de clássicos. De sua autoria e de Ruy Guerra, parceiro de Chico Buarque na música que intitulou o espetáculo, e de quem o próprio Zeca tornou-se parceiro recentemente, ao compor a trilha sonora do musical “Dom Quixote de Lugar Nenhum”, de autoria do brasileiro nascido em Moçambique.

O show foi montado para promover a peça, que estreia em junho no Teatro Oi Casagrande, no Rio de Janeiro, e após temporada no Sudeste, circulará pela região Nordeste no segundo semestre – “incluindo São Luís”, como Baleiro fez questão de frisar. Ele mesmo salientou que aquele era um show único, já que não há perspectiva de se repetir para além da sessão extra, realizada ontem mesmo, fruto da grandiosidade e generosidade do artista. Explico: a sessão de 20h seria apenas para convidados e para o Instituto Cultural Vale, que patrocina a realização de “Dom Quixote de Lugar Nenhum”. Baleiro não via muito sentido em fazer um show fechado em sua própria terra e fez distribuir ingressos para o público em geral, mediante a troca por um quilo de alimento não perecível. Não deu para quem quis e após reclamações gerais e algum tumulto, a produção do artista e a direção do TAA conseguiram garantir uma sessão extra, às 22h.

Baleiro estava à vontade, literalmente em casa e entre amigos. Presença ilustre na plateia, o ator Mateus Nachtergaele, a quem o cantor se referiu como “um dos maiores atores brasileiros de todos os tempos”, e a convite dele, de seu lugar, anunciou “Processo de Conscerto do Desejo”, que apresentará domingo (28), às 19h, no TAA. Nachtergaele sintetizou o espetáculo: “minha mãe morreu quando eu tinha três meses de idade. E deixou uma pasta com poemas, muito bonitos. Ela tinha 22 anos quando se suicidou e hoje eu estou feliz em poder trazer isso a público”. Baleiro perguntou-lhe o porquê de São Luís e o ator não titubeou: “por que esse é um dos teatros mais bonitos do mundo”, elogiou.

Baleiro brincou com as intérpretes de Libras, reconhecendo a importância da acessibilidade cultural em espetáculos. Revelou se interessar mais pela língua brasileira de sinais que por inglês, mas que ainda não tinha tido tempo de estudar. Com uma delas, repassou a letra de “Quase Nada” (Alice Ruiz/ Zeca Baleiro) – que cantou com citação de “Sangue Latino” (Paulo Mendonça/ João Ricardo). “Tem poesia isso aí, o gestual dela”, arrematou.

Zeca Baleiro prestou ainda uma comovente homenagem ao parceiro Celso Borges (1959-2023). “Foi um dos maiores incentivadores da minha carreira e de muitos artistas daqui. Foi um cara que se envolveu com tudo, música, poesia, rádio… São Luís fica um pouco mais triste sem sua presença. Nós fizemos mais de 30 canções juntos e eu gravei algumas poucas. Vou cantar a mais conhecida”, disse, antes de cantar “A Serpente (Outra Lenda)”, esquecendo-se de citar o terceiro parceiro, o percussionista argentino Ramiro Musotto (1963-2009).

“Bárbara” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), “Babylon” (Zeca Baleiro), “Ana de Amsterdã” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), “Não Existe Pecado Ao Sul do Equador” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), “Banguela” (Zeca Baleiro), em arranjo caliente, e “Fado Tropical”, incluindo a sífilis (“que todo general devia ter àquela época”, ironizou Baleiro) censurada pela ditadura militar, foram alguns outros clássicos presentes ao repertório.

Ao fim da apresentação, parte do elenco de “Dom Quixote de Lugar Nenhum” subiu ao palco para apresentar algumas canções da trilha sonora do espetáculo e anunciar o cortejo que acontecerá hoje (26), às 17h, nas imediações da Praça Nauro Machado (Praia Grande). Nesse momento, Zeca Baleiro e Lui Coimbra se juntaram à trupe tocando instrumentos de percussão.

Ainda com atores e atrizes em cena, à guisa de bis, Baleiro anunciou que ia fazer “Telegrama” (Zeca Baleiro), para delírio da plateia, que cantou junto. Após pouco mais de hora e meia o dito popular “tudo que é bom dura pouco” parecia demonstrar sua validade, mas o show precisava terminar para o acesso do público para a segunda sessão, também lotada.

10 músicas (+1) para viver São Luís

[publicado originalmente nO Imparcial de hoje (8)]

Uma playlist afetiva com repertório que tem a Ilha capital como inspiração

Economista de formação marxista, quase padre, o jornalista Bandeira Tribuzi acabou alçado à condição de poeta oficial da cidade de São Luís do Maranhão: são dele a letra e música de Louvação a São Luís, hino da capital maranhense. Triste ocaso/acaso, ele morreria aos 50 anos, em 1977, exatamente no dia em que a capital maranhense, segundo as contas oficiais e afrancesadas, completava 365 anos. “Oh, minha cidade, deixa-me viver!”, começa sua mais conhecida criação.

Qual um Damião que busca visitar o trineto, palmilhando a ilha madrugada adentro, no romance Os tambores de São Luís, de Josué Montello, percorreremos aqui uma playlist: 10 músicas para lembrar São Luís, singela homenagem à cidade por seu aniversário – há controvérsias!

Lances de agora, o antológico elepê de Chico Maranhão gravado em quatro dias na sacristia da secular igreja do Desterro, é impregnado de São Luís do Maranhão, cidade onde ninguém nasce e vive impunemente, como cravou solenemente em texto na contracapa o produtor Marcus Pereira, responsável pelo registro, em 1978. Entre outras, lá está Ponta d’Areia, de um dos versos mais bonitos da história da MPB: “caranguejeira namorando a parede”.

Durante muito tempo, a Ponta d’Areia reinou absoluta entre as praias da capital maranhense: mais próxima do centro da cidade, com fácil acesso a partir de barcos ou ônibus – antes ou depois da construção da Ponte do São Francisco –, era a diversão barata dos finais de semana de minha infância. Também é lembrada pelo compositor Cesar Teixeira em Ray-ban: “na Ponta d’Areia eu vendi protetor/ dei uma de cego na igreja, doutor/ no dia do eclipse eu vendi meu ray-ban”, diz a letra, que lembra também o Cine Rialto, outrora instalado na Rua do Passeio, Centro, onde os fundadores assistiram ao filme que viria a batizar o mais longevo bloco carnavalesco da cidade: Os Fuzileiros da Fuzarca.

Em 1996, quando lançou seu segundo disco, Cuscuz clã, Chico César invadiu o dial e causou alguma estranheza com uma parceria com Zeca Baleiro: tratava-se de Pedra de responsa, batizada por uma gíria para classificar os melhores reggaes, que agitam a pista em clubes de São Luís, mas gravada pelo paraibano como um carimbó. “É pedra, é pedra, é pedra/ é pedra de responsa/ mamãe, eu volto pra ilha/ nem que seja montado na onça”, diz o refrão. No ano seguinte, em seu disco de estreia, Por onde andará Stephen Fry?, o maranhense registraria a composição como reggae, dedicando-a aos compositores Cesar Teixeira, Josias Sobrinho e Joãozinho Ribeiro.

Não há ludovicense que não se balance ou não comece a assobiar Ilha bela, ao ouvir seus primeiros acordes: “que ilha bela/ que linda tela conheci/ todo molejo/ todo chamego/ coisa de negro que mora ali”. Pernambucano que foi beber nas águas musicais do Rio Tocantins, em Imperatriz, Carlinhos Veloz, é um dos artistas mais respeitados de nossa música popular, sucesso de público por onde passa.

Outra faixa irresistível neste quesito é Ilha magnética, de César Nascimento, maranhense por acaso nascido no Piauí. A canção faz jus ao título e magnetiza o ouvinte ao lembrar as belas paisagens, sobretudo litorâneas, da capital maranhense, numa época em que o município de Raposa, citado entre as praias, ainda não havia sido emancipado: “Ponta d’Areia, Olho d’Água e Araçagy/ mesmo estando na Raposa/ eu sempre vou ouvir/ a natureza me falando/ que o amor nasceu aqui”.

A ilha é mesmo tão magnética que desperta paixão até em quem nunca pisou a areia de suas praias ou os paralelepípedos de seu Centro Histórico. “É o tambor de crioula/ é a Casa de mina/ é a estrela do norte/ boi bumbá que me ilumina”, acerta em cheio o compositor Paulo César Pinheiro no misto de bumba meu boi e tambor de crioula São Luís do Maranhão, música gravada por Alexandra Nicolas em Festejos (2013), seu disco de estreia. Adiante, ele “se encanta-nos” com as “ruas de pés de moleque” e “casario de azulejos”.

Alê Muniz e Luciana Simões, o duo Criolina, em parceria com o poeta Celso Borges, erguem uma bela ponte poético-musical até a ilha de Cuba em São Luís-Havana, faixa de Cine Tropical (2009). Nela, mesclam-se paisagens das ilhas maranhense e caribenha, além de mestres da música cubana e do bumba meu boi: é linda a participação do terceiro autor, recitando os nomes de, entre outros, Compay Segundo, Coxinho, Omara Portuondo, Zé Olhinho, Pablo Milanés e Humberto de Maracanã.

Outra parceria com a assinatura de Celso Borges que não poderia faltar a esta playlist é A serpente (outra lenda), dele com Zeca Baleiro e o percussionista argentino Ramiro Musotto, já falecido. Com participações especiais do saudoso compositor Antonio Vieira, que recita trecho de um sermão do padre escritor seu xará, Chico Saldanha e Josias Sobrinho, a música acabou ganhando uma dimensão política, por versos ácidos como “eu quero ver/ quero ver a serpente acordar/ pra nunca mais a cidade dormir”.

No recém-lançado Bagaça (2016), seu quarto disco, Bruno Batista presta bela homenagem a capital em A ilha, desmistificando ícones e totens. Nela, lembra o poeta Nauro Machado, cujas barbas saem para passear, na letra. Autor de mais de 40 livros, falecido em novembro passado, ele próprio confundia-se com a cidade, parte integrante de sua paisagem.

Bonus track – Outro “estrangeiro” que homenageou maravilhosamente São Luís foi o pernambucano Carlos Fernando, autor de um hit do repertório de Geraldo Azevedo, habitué de palcos da cidade. Em seus shows por aqui nunca falta Terra à vista. Quem nunca se emocionou ao ouvir os versos “Sã, sã, sã, São Luís do Mará”, das duas uma: ou não é ludovicense ou nunca ouviu a música, falha que deve ser corrigida agora mesmo. Como a maior parte do repertório aqui apresentado, é fácil de encontrar no youtube. Buscar!

A poesia cortante de Celso Borges

Fazia tempos eu não experimentava a sempre deliciosa porção de paçoca e creme de macaxeira preparada por dona Antonia, ela uma das vendedoras de comida daquelas barracas ali por perto do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, na Praia Grande. A terceira opção, para quem prefere, é o arroz de maria isabel. Meu pratinho foi acompanhado por um copo “considerado” de suco de abricó. Uma delícia!

Apesar do coquetel servido – e disputado – ao final, foi a fome quem me fez deixar o recinto apressado, na noite da última terça-feira (10), ocasião em que, no citado centro, o poeta Celso Borges apresentou seu Sarau Cerol, acompanhado por Beto Ehongue (trilhas e efeitos eletrônicos no laptop), Alê Muniz (guitarra) e Luiz Cláudio (percussão) – anunciados como participações especiais, os dois últimos tocaram o show inteiro. Se na barraca de dona Antonia eu saciava minha fome de comida, antes eu já havia me embriagado de poesia da melhor qualidade.

Da esquerda para a direita, Alê Muniz, Celso Borges, Luiz Cláudio e Beto Ehongue

A apresentação aconteceu numa Galeria Valdelino Cécio absolutamente lotada. Celso Borges leva ao palco sua experiência de misturar poesia e música, sobretudo a comprovada em seus livros-discos XXI (2000), Música (2006) e Belle Époque (2010), onde a palavra de papel vira a palavra de ruído e este/esta é música. Qual Cacaso, Chacal e Leminski, para citar apenas três poetas que admira, ele, também letrista de música popular, parceiro de gente que sai pelo ladrão, incluindo os integrantes de seu power-trio aquela noite.

Uma São Luís surreal, de propósito ou por acaso, sabe-se lá, lhe servia de fundo de palco, perfeito contraste para um poeta que tira sarro do cânone, da oficialidade em torno dos controversos 400 anos de sua cidade natal e até mesmo dos “turistas de pacote” com seus “boizinhos de butique”.

“O futuro tem o coração antigo”: Celso Borges, quase 53, talvez por isso não tenha saudades do passado. Copia a frase do escritor italiano Carlo Levi – que já usara de epígrafe em XXI – para colar no título de seu próximo livro, a ser publicado ainda em 2012. “Antigamente era antigamente e era muito pior”, reza noutro poema, A saudade tem seus dias contados, de Belle Époque.

De uma forma ou outra, ninguém sai intacto, imune, impune de uma apresentação de Celso Borges – e aí caberiam palavras como show, espetáculo e quetais: quem já gosta(va) de poesia sai gostando ainda mais, quem não gosta(va), passa a gostar, nem que seja um tiquinho, todos contentes com as possibilidades que a poesia pode oferecer, para além de saraus modorrentos, monótonos, mofados, enfadonhos.

Sarau, a palavra em si, geralmente assustadora, lembrando professoras de literatura velhas, chatas e de óculos fundo de garrafa, recitando de cor e por força nos querendo obrigar a decorar sonetos do século retrasado.

“Serol foi feito pra cortar”, já havia escrito, com s, em Pedra de cantarei, poema de Persona non grata (1990) que virou música, um tambor de mina em parceria com Zeca Baleiro (em XXI). Para cortar de vez clichês e sustos, o poeta unta com cerol a linha do sarau.

Por que poesia pode e deve pulsar e fazer pulsar. Como ele diria em A serpente (Outra lenda), outra parceria com Zeca Baleiro, além do saudoso Ramiro Musotto: “eu quero ver a serpente acordar/ pra nunca mais a cidade dormir”.