Coreiras dançando tango

Hamilton de Holanda e Mestrinho no palco do Festival Ilha Sinfônica, ontem (29) - foto: divulgação
Hamilton de Holanda e Mestrinho no palco do Festival Ilha Sinfônica, ontem (29) – foto: divulgação

Os telões que ladeavam o palco do Ilha Sinfônica mostraram: coreiras do Tambor de Crioula de Mestre Felipe dançando tango, enquanto Hamilton de Holanda (bandolim) e Mestrinho (sanfona) tocavam “Libertango” (Astor Piazzolla). A imagem sintetiza a proposta do festival, que juntou música clássica e música popular, com um elenco que uniu a Orquestra Ilha Sinfônica (formada por músicos ludovicenses para o evento) aos dois citados, expoentes em seus instrumentos, além de nomes já bastante conhecidos da cena local, incluindo o homenageado da noite, o cantor e compositor César Nascimento.

A apresentação de Hamilton de Holanda e Mestrinho, que pela primeira vez tocaram juntos em São Luís, começou com “Canto de Xangô” (Baden Powell e Vinícius de Moraes) e baseou-se no repertório de Canto da Praya (Deck, 2020), álbum que lançaram juntos. Em aproximadamente uma hora de apresentação, desfilaram temas como “Escadaria” (Pedro Raimundo), “Te Devoro” (Djavan) – juntos cantaram o refrão, para delírio da plateia –, “Drão” (Gilberto Gil) – cantada por Mestrinho –, “Afrochoro” (Hamilton de Holanda), “Evidências” (José Augusto e Paulo Sérgio Valle), que o público cantou a plenos pulmões, “Isn’t She Lovely” (Stevie Wonder) e “Palco” (Gilberto Gil). No bis, “Te Faço Um Cafuné” (José Abdon).

Antes da dupla, o Quarteto de Cordas da Orquestra Ouro Preto preparou o terreno. Hamilton de Holanda e Mestrinho ainda voltariam ao palco com a Orquestra Ilha Sinfônica, regida por Jairo Moraes e pelo regente convidado Rodrigo Toffolo (maestro da Orquestra Ouro Preto); o primeiro solou “Bela Mocidade” (Donato Alves) e o segundo, “Engenho de Flores” (Josias Sobrinho). A apresentação da orquestra marcou também o lançamento de “Valsa Ludovicense” (César Nascimento), disponível nas plataformas digitais desde 8 de setembro, aniversário de São Luís.

A Orquestra Ilha Sinfônica acompanhou artistas como Nosly (que cantou e tocou violão em “June”, parceria sua com Celso Borges), o idealizador e produtor do evento Emanuel Jesus (“Filhos da Precisão”, de Erasmo Dibell), Adriana Bosaipo (cantora (e compositora) talentosa que errou a letra de “Eulália”, de Sérgio Habibe) e César Nascimento, que se emocionou ao relembrar “Ilha Magnética”, já um clássico de sua autoria, e “Corêro” (Josias Sobrinho), que encerrou a noite da orquestra com todos os participantes cantando junto, no palco. O Bumba Meu Boi Unidos de Santa Fé, sob o comando de Zé Olhinho ainda se apresentaria.

O cerimonial anunciou que ano que vem tem mais, encerrando o mês de aniversário da capital brasileira do reggae, do bumba meu boi e do tambor de crioula. Tenho certeza que todos os presentes à praça lotada ontem (29) já aguardam ansiosos.

Festival Gestores em Movimento une música popular e de concerto neste fim de semana em São Luís

Apresentação do violonista Augusto Nassa no programa Pátio Aberto, do Centro Cultural Vale Maranhão, em 2020

Todo mundo já ouviu falar ou já pode testemunhar a riqueza, a força e a diversidade da cultura popular do Maranhão. Estamos em junho, mês em que isto pode ser demonstrado ainda mais intensamente na prática: grupos de bumba meu boi, tambor de crioula e cacuriá, entre muitas outras manifestações, ocupam os arraiais da capital e interior.

O diálogo entre estes e outros ritmos e a música de concerto é a matéria-prima do Festival Gestores em Movimento, marcando o encerramento do programa homônimo, que capacitou 35 gestores e produtores culturais ao longo de seis dias de imersão ao longo da etapa ludovicense do citado programa.

Os cursistas aprofundaram temas como a visão geral do funcionamento de orquestras e salas de concerto, a formatação de projetos para leis de incentivo, elaboração de orçamentos públicos e privados, contratos e legislações sobre estes, além de planejamento e execução das etapas de produção, noções básicas de economia da cultura e rotinas de palco, como iluminação e sonorização, entre outros.

Simbolicamente chamado de Sala Guarnicê, o evento acontece de hoje (7) a domingo (9), no Teatro da Cidade de São Luís (antigo Cine Roxy, Rua do Egito, Centro), com entrada franca, sempre às 19h, com patrocínio do Instituto Cultural Vale através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.

“Clássicos do Maranhão” é o título do concerto de abertura do evento, hoje (7), apresentado pelo violonista Augusto Nassa. Amanhã (8) é a vez do Instrumental Pixinguinha, o primeiro grupo de choro do Maranhão a registrar seu trabalho autoral em disco – o cd Choros Maranhenses, estreia do grupo, foi lançado em 2005. O choro foi recentemente declarado patrimônio cultural imaterial brasileiro. Domingo (9), no encerramento da programação, se apresentam a soprano Rose Nogueira e a pianista Ângela Marques.

A força de dois cometas musicais

Sérgio Habibe, ladeado por Edinho Bastos e Zezé Alves. Foto: Guta Amabile
Sérgio Habibe, ladeado por Edinho Bastos e Zezé Alves. Foto: Guta Amabile

Vi semana passada dois shows que chamam a atenção por diversos aspectos, que me perdoe a meia dúzia de fiéis leitores a demora no comentário.

Primeiro, Sérgio Habibe, na quarta-feira (6), véspera do feriadão, no Miolo Café Bar, no projeto Sonoridades, produção de Tutuca Viana. Aos 74 anos recém-completados – no último dia 31 de agosto –, o cantor e compositor demonstra estar em plena forma e por que é considerado um dos maiores da música popular brasileira.

Acompanhado de Edinho Bastos (violão) e Zezé Alves (flauta), bastava o rosário que desfiou, cada canção uma conta: “Solidão”, “Cavalo cansado” (gravada por Doroty Marques), “Eulália”, “Ponteira”, “Dia de será” (parceria com Cláudio Nucci e Juca Filho), “Panaquatira” e outras, em pouco mais de uma hora de apresentação.

Aberta por Léo Vianna (compromissos me impediram de chegar a tempo de ver), a noite transformou-se em verdadeira jam session, com canjas inspiradas de Alberto Trabulsi, César Roberto, Gerude, Tutuca, Célia Leite e Fátima Passarinho (que cantou “Vestido Bordeaux”, de Habibe com Raíque Macau, à capela).

Rita Benneditto. Foto: Márcio Vasconcelos
Rita Benneditto. Foto: Márcio Vasconcelos

Depois, Rita Benneditto, no último sábado (9), na Noite da Encantaria, na programação das celebrações do aniversário de 411 anos de São Luís, realização da Prefeitura Municipal de São Luís.

Para além da exuberância de figurino, repertório, arranjos e arregimentação, a apresentação da cantora e compositora era necessária – talvez uns já soubessem, mas quem ainda não, e foi à praça, comprovou.

Rita Benneditto celebra em 2023 os 20 anos em cartaz de “Tecnomacumba”, projeto que já rendeu álbuns de estúdio e ao vivo, dvd e o irretocável show com que continua na estrada, longe de soar repetitivo ou única carta na manga da artista – que mantém outros projetos, com outras formações e repertórios, em paralelo.

Acompanhada da banda Cavaleiros de Aruanda – Fred Ferreira (guitarras e vocais), Wagner Bala (contrabaixo e vocais), Ronaldo Silva (bateria, programações eletrônicas e vocais) e Júnior Crispim (percussão e vocais) – Rita Benneditto equilibra os tambores dos terreiros das religiões de matriz africana, e consequentemente de nossa ancestralidade, costurando um repertório entre clássicos da música popular brasileira e pontos entoados em terreiros, não raro alguns números se encaixando em ambas as prateleiras. Em entrevista concedida a este repórter e veiculada no Balaio Cultural do dia do show, comigo e Gisa Franco, na Rádio Timbira, ela comentou certo incômodo e cansaço com a eterna tentativa de setores da mídia de rotulá-la.

Além da banda, Rita Benneditto contou com intervenções da bailarina Kiusam de Oliveira e do diretor, ator e bailarino Ciro Barcelos, celebrando os orixás Oxum e Oxóssi, e ao fim formou-se uma bela roda de tambor de crioula, com integrantes dos grupos da Floresta (Apolônio) e Liberdade (Leonardo).

O prefeito de São Luís Eduardo Braide afirmou, fazendo às vezes de mestre de cerimônias, ao anunciar a apresentação de Rita Benneditto, após a de diversos artistas locais: “vocês não são invisíveis. Desde ano passado, e todos os anos, na celebração do aniversário da cidade, haverá uma noite na programação dedicada à encantaria, aos povos de terreiro”. A plateia aprovou a iniciativa, com aplausos.

Ao repertório não faltaram clássicos como “Jurema” (domínio público adaptado por Rita Benneditto) – que antes de “Tecnomacumba” (2003), inaugurou a incursão da artista por este universo, gravada em seu álbum de estreia, ainda “Rita Ribeiro” (1997) –, “Domingo 23” (Jorge Benjor), “Oração ao Tempo” (Caetano Veloso), “A Deusa dos Orixás” (Toninho/ Romildo), “Tambor de Crioula” (Oberdan Oliveira/ Cleto Jr.) e “7Marias” (Felipe Pinaud/ Rita Benneditto), entre outras.

Também chamou a atenção e mostrou-se mais necessário que nunca, a performance do artista plástico Fernando Mendonça, que ao longo do show retratou Iemanjá em uma tela. Era uma espécie de desagravo, como demarcou Rita Benneditto, lembrando de mais um episódio de violência, racismo e intolerância religiosos ocorrido recentemente em São Luís: a depredação da estátua do orixá na praia do Olho d’Água. “Você pode quebrar quantas estátuas quiser, mas nunca vai quebrar nosso axé”, disse a cantora. Recado dado!

Afetos e canções: Joãozinho Ribeiro reúne amigos em show plural

[release]

Apresentação acontece sexta-feira (16) no Convento das Mercês, com entrada franca – com sugestão de doação de um quilo de alimento não-perecível para as comunidades carentes do entorno

O compositor Joãozinho Ribeiro. Foto: Murilo Santos. Divulgação

O compositor Joãozinho Ribeiro volta a reunir os amigos no show “Com o afeto das canções II”. Beneficente, o evento – cuja primeira edição aconteceu ano passado – ocupa o pátio do Convento das Mercês (Rua da Palma, Desterro), na próxima sexta-feira, 16, às 20h. A entrada é gratuita, com a sugestão da doação de um quilo de alimento não-perecível; a arrecadação será destinada a comunidades carentes do entorno da Fundação da Memória Republicana Brasileira (FMRB), instituição sediada no prédio secular do Centro Histórico da capital maranhense, que completou recentemente 25 anos de inclusão na lista de cidades patrimônio mundial da Unesco.

Joãozinho Ribeiro terá como convidados especiais o Bloco Afro Akomabu, George Gomes, Rosa Reis, Célia Maria, Josias Sobrinho, Rita Benneditto – que gravou em dueto com Zeca Baleiro (que participa virtualmente do show, através de uma mensagem em vídeo), a música que dá título ao espetáculo, cuja produção é assinada por Lena Santos. O espetáculo é uma realização da Dupla Criação e Fundação da Memória Republicana, com patrocínio da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma) e Potiguar, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão.

Rui Mário (sanfona, piano e direção musical), Marquinhos Carcará (percussão), Danilo Santos (saxofone e flauta), Hugo Carafunim (trompete), Robertinho Chinês (cavaquinho e bandolim), Arlindo Pipiu (contrabaixo), Tiago Fernandes (violão sete cordas), Ronald Nascimento (bateria), Katia Espíndola (vocal) e Mariana Rosa (vocal) formam a superbanda que acompanhará Joãozinho Ribeiro e convidados em “Com o afeto das canções II”.

O repertório do show alinhava clássicos da lavra de Joãozinho Ribeiro a músicas inéditas. A pandemia de covid-19 e o isolamento social por ela imposto renderam ao artista dezenas de novas composições, sozinho ou em parceria. Entre os gêneros abordados no roteiro figuram baião, balada, bolero, bumba meu boi, carimbó, divino, ijexá, maxixe, merengue, reggae, salsa, samba e tambor de crioula.

“Esse show é uma espécie de exorcismo. Após quatro anos de massacres diariamente desferidos contra a cultura brasileira, para citar apenas uma área, voltamos a respirar ares democráticos e plurais, voltamos a ser um país, feito de nossa diversidade e riqueza culturais, é o que nos propomos a celebrar, com todo afeto das canções”, anuncia o compositor anfitrião.

Serviço

O quê: show “Com o afeto das canções II”
Quem: o compositor Joãozinho Ribeiro e convidados
Quando: dia 16 de dezembro (sexta-feira), às 20h
Onde: Convento das Mercês (Rua da Palma, Desterro, Centro Histórico)
Quanto: grátis. Sugere-se a doação de um quilo de alimento não-perecível, destinada às comunidades carentes do Centro Histórico
Realização: Dupla Criação e Fundação da Memória Republicana
Patrocínio: Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma) e Potiguar, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão.

Ponte Bahia-Maranhão: o axé de Mariene de Castro

Mariene de Castro levou a plateia ao delírio, ontem (6), na Praça Maria Aragão. Foto: Zema Ribeiro

Sem meias palavras: a apresentação de Mariene de Castro, ontem, na Praça Maria Aragão, foi um arrebatamento. “O sino da igrejinha faz Belém/ dêm/ dêm”, adentrou ao palco cantando, após ser chamada pelo prefeito Eduardo Braide (Podemos) em pessoa (quase sempre errado, acertou a mão na programação de aniversário da cidade, e na noite anterior já tinha usurpado o papel do cerimonialista ao chamar ao palco o jamaicano Eric Donaldson).

Era a noite dedicada às religiões de matriz africana e a escolha da baiana Mariene de Castro (Bahia e Maranhão têm as maiores populações afrodescendentes do país) revelou-se mais que acertada. Sua trajetória coerente já revelava sua devoção e reverência às nossas heranças ancestrais e o show parecia estreitar essas relações, com seu repertório de pontos, sambas, chulas e suingueira, que incluiu peças como “O vira” (Luhli/ João Ricardo), sucesso do grupo Secos e Molhados, e “Mamãe Oxum”, tema de domínio público popularizado por Zeca Baleiro e Chico César.

Se a ponte Bahia-Maranhão não foi construída por Mariene de Castro, ela certamente enfeitou-a, embelezou-a, tornando o caminhar mais aprazível. Ela mesmo disse, durante o show, que a noite de ontem era “um divisor de águas”. Um marco não só em sua carreira, mas na de grande parte do público presente, que não esquecerá tão cedo do que ou/viu e certamente terá neste um dos grandes shows da vida.

Atriz e cantora coabitam pacificamente uma artista que é pura ginga, e logo no início, após umas poucas rodopiadas dela pelo palco, entendi porque ela fez questão de citar o nome de seu figurinista (Wilson Ranieri) na entrevista que ela me concedeu: seu vestido (depois de rodopiar à vontade, ela tirou a capa) parece ter vida própria, um espetáculo à parte, com seu esvoaçante bailado alegre. Sem falar no painel, “de Alaíde e Alaído Almeida, mãe e filho, que desenharam a nossa gente nordestina”.

Se o povo de santo, os fiéis das religiões de matriz africana, parecem não ter motivos para festejar, vítimas cotidianas de discursos e práticas de ódio, as milhares de pessoas presentes à praça ontem, certamente têm em Mariene de Castro uma embaixatriz, alguém que não se cala diante de violências e injustiças e tampouco separa arte de política por conveniência. Pelo contrário: seu show demarca uma posição, num tempo em que esta é exigida, sobretudo a artistas, estes formadores de opinião sempre tão violentados em tempos fascistas e autoritários.

Mariene de Castro não citou o nome de nenhum dos primeiros colocados nas pesquisas eleitorais, mas não se incomodou com os cantos pró-Lula e contra Jair Bolsonaro que a plateia entoou ao longo de sua apresentação. Engrossou o coro, falando em mudanças e transformações. Citou o Nelson Cavaquinho que não cantou: “isso tudo vai passar e o sol vai brilhar mais uma vez”.

Depois de “Alguém me avisou” (Dona Ivone Lara), “Sonho meu” (Délcio Carvalho/ Dona Ivone Lara) foi interrompida: uma fã conseguiu driblar a segurança para anunciar, aos prantos, no palco, que havia se perdido da filha criança. Apesar do susto, Mariene pediu calma à mulher e à segurança, e repetindo o nome da criança ao microfone; logo várias mãos apontaram-na e, com mãe e filha se reencontrando, “Sonho meu” acabou ficando mesmo pela metade. “Eu sou mãe, fiquei nervosa. Que nenhuma mulher precise mais chorar a dor da perda de um filho”, rogou, referindo-se, talvez, a quem perdeu parentes para a pandemia de covid-19, mas não só. Entoou uma Salve Rainha, acompanhada por grande parte da plateia, lição prática de sincretismo. Seguiu com a sequencia com que homenageava a centenária Dona Ivone Lara, cantando “Um sorriso negro” (Adilson Barbado/ Jair Carvalho/ Jorge Portela).

“Eu sou contra qualquer interrupção dos direitos humanos”, ousou dizer, sempre sem meias palavras. “Contra a homofobia, o racismo, o feminicídio, a intolerância religiosa”, bradou.

A determinada altura, seus percussionistas encararam a parelha do tambor de crioula. “Cheguei, cheguei, cheguei com a minha turma, cheguei”, cantou o famoso refrão de Mestre Felipe. Noutra altura o percussionista maranhense Mariano tocou caixa e eles cantaram juntos um medley do Cacuriá de Dona Teté: “Choro da Lera”, “Jabuti/Jacaré” e “Assa cana”.

Voltou ao palco aos gritos de mais um e recebeu das mãos do prefeito um buquê de rosas brancas e vermelhas. “Nunca um prefeito tinha visto um show meu inteiro de cima do palco”, agradeceu. Sim, Eduardo Braide surfa na onda da popularidade dos artistas que fazem a festa da cidade – na véspera, beijava a primeira-dama enquanto aparecia no telão dançando agarradinho com ela “Cinderella”, primeira “pedra” que Eric Donaldson cantou ao subir ao palco na noite regueira do aniversário da Jamaica brasileira. 

Ela distribuiu ao público quase todas as flores, antes de receber no palco a representação de sete orixás, um a um saudados por ela. Por fim, saudou os erês fechando a conta com “O que é, o que é?”, clássico de Gonzaguinha, deixando o público com gosto de quero mais, apesar de ter cantado por aproximadamente duas horas. Puro axé, que volte logo e sempre!

Lances eternos

O ótimo público presente ao Largo da Igreja do Desterro, sábado passado (27). Foto: Rivânio Almeida Santos

Certas coisas, de tão mágicas, não têm explicação. “As retas mais curvas que o mundo tem” parecem convergir em uma só direção. O sarau de encerramento da temporada 2022 do projeto RicoChoro ComVida na Praça, idealizado e coordenado por Ricarte Almeida Santos, é um destes acontecimentos. A coincidência geográfica e temporal, para celebrar um disco atemporal: a comunidade do Desterro, no Centro Histórico da capital maranhense, celebrava Nossa Senhora do Desterro e a procissão chegou em meio aos paralelepípedos quando o dj Jorge Choairy já preparava o terreno – modo de dizer, que a agricultura de seu set list já colhia os frutos plantados desde algum tempo –, numa convergência saudável e respeitosa entre o sacro e o profano. Exatamente como aconteceu há 44 anos, quando Chico Maranhão e o Regional Tira-Teima, a convite da gravadora Discos Marcus Pereira, ocuparam a sacristia da Igreja do Desterro para registrar o antológico elepê “Lances de agora”, de cuja “Ponto de fuga” pinço as aspas com que quase abro este texto.

O lance de agora era a homenagem que o cantor Cláudio Lima prestaria a Chico Maranhão, compositor que chegou aos 80 anos neste agosto, cantando quase a íntegra do citado disco e duas pérolas de outros momentos da carreira de Francisco Fuzzetti de Viveiros Filho, nome de pia do homenageado: “Rapaziada, o tempo mudou” e “Diverdade”. “Eu sei que você fica preso no ar quando eu canto”, diz a letra desta última, metáfora possível para a apresentação do cantor.

Acompanhado do Quarteto Crivador, Cláudio Lima era pura entrega no palco. Brincava, mas trabalhando sério, como é de seu feitio, com a própria voz e com a obra de Chico Maranhão. Prendia a atenção do público presente, devotos da boa música tal qual os admiradores das obras de Chico Maranhão, de Cláudio Lima e de choro em geral.

Cantar como quem reza: o sublime encontro de Cláudio Lima e Dicy, reverenciando Chico Maranhão. Foto: Rivânio Almeida Santos

O nome do grupo anfitrião, tomado emprestado de um dos três tambores da parelha de tambor de crioula, parecia também remeter a outra fase da carreira de Chico Maranhão, quando ele comandou a Turma do Chiquinho, registrado em sua “Ópera Boi – O sonho de Catirina”, de meados da década de 1990. Rui Mário (sanfona e direção musical), Tiago Fernandes (violão sete cordas), Marquinhos Carcará (percussão) e Wendell de la Salles (bandolim) – que se lamentou quando em meio à apresentação inicial do grupo, arrebentou uma corda de seu instrumento, o que nem de longe tirou o brilho do espetáculo – trajaram de personalidade tanto o repertório instrumental do primeiro bloco de sua apresentação, quanto o acompanhamento luxuoso que prestaram a Cláudio Lima e sua convidada especial, a cantora Dicy – que cantou sozinha “Ponta d’areia” e dividiu com ele os vocais em “Vassourinha meaçaba”.

Em respeito às tradições e à religiosidade do local, a passagem de som atrasou. Mas até isso parecia contribuir para o brilho da noite: quem chegou no horário, acabou ouvindo Cláudio Lima cantar “Meu samba choro”, entrada de um delicioso cardápio musical. O público aplaudiu, antes mesmo de o show começar. Era o coroamento de uma ideia que começou há algum tempo: Cláudio Lima, o mesmo cantor e compositor que estava ali, no palco, é designer de formação e assina a capa e o tratamento de imagens do livro “Lembranças, lenços, lances de agora: memórias e sons da cidade na voz de Chico Maranhão” (Palavra Acesa, 2022), que o poeta e jornalista Celso Borges autografou na mesma ocasião. Foi a partir da pesquisa que o multi-artista mergulhou de cabeça no universo do filho de dona Camélia. O resto é história que ficará na memória dos presentes.

Em meio a tudo isso, ainda teve o poeta Fernando Abreu, brindando a plateia com um poema (“Ladainha”, que cita Allen Ginsberg e Chico Maranhão e suas lágrimas com novos poemas e canções) de seu novo livro, “Esses são os dias” (7Letras, 2022), que terá lançamento muito em breve.

Para não dizerem que não aponto defeitos: a temporada foi curta e só retorna às praças da ilha ano que vem.

RicoChoro ComVida na Praça homenageia Chico Maranhão

[release]

Repertório do disco “Lances de agora” (1978) será lembrado em frente à igreja onde foi gravado; compositor completou 80 anos neste agosto

Uma viagem no tempo. É o que promete o último sarau da temporada 2022 do projeto RicoChoro ComVida na Praça, que acontece este sábado (27), às 19h, no Largo da Igreja do Desterro, no Centro Histórico da capital maranhense, em meio aos festejos de São José do Desterro.

A sacristia da secular igreja foi palco, em junho de 1978, das gravações do antológico elepê “Lances de agora”, do compositor Chico Maranhão, com o acompanhamento do Regional Tira-Teima. O disco foi lançado pela gravadora Discos Marcus Pereira, do incansável pesquisador do cancioneiro de um Brasil desconhecido pela maioria dos brasileiros.

Show de Cláudio Lima será uma homenagem a Chico Maranhão. Foto: divulgação
A cantora Dicy fará uma participação especial durante a homenagem. Foto: divulgação

Chico Maranhão completou 80 anos neste agosto, de modo discreto, como é de seu feitio, ao contrário de outros oitentões ilustres da música popular brasileira. Ele receberá homenagem do cantor Cláudio Lima, convidado desta edição do sarau, que apresentará show com o repertório de “Lances de agora”, com a participação especial da cantora Dicy.

O poeta Celso Borges lerá trechos de “Lembranças, lenços, lances de agora: memórias e sons da cidade na voz de Chico Maranhão” . Foto: Layla Razzo. Divulgação

Ainda na ocasião, o poeta e jornalista Celso Borges fará novo lançamento do livro “Lembranças, lenços, lances de agora: memórias e sons da cidade na voz de Chico Maranhão” (Palavra Acesa, 2022, 265 p.), misto de bastidores da gravação do disco e biografia de Chico Maranhão, com uma boa dose de imaginação poética – ao aproximar Maranhão e Bob Dylan, por exemplo.

Quarteto Crivador. Montagem. Divulgação

Cláudio Lima e Dicy serão acompanhados pelo Quarteto Crivador, formado por Marquinho Carcará (percussão), Rui Mário (acordeom e direção musical), Tiago Fernandes (violão sete cordas) e Wendell de la Salles (bandolim). O nome do grupo é tomado emprestado de um dos tambores da parelha do tambor de crioula, ritmo genuinamente maranhense que também é alvo do interesse do compositor homenageado, seja em músicas que compôs, seja na Turma do Chiquinho, grupo de tambor de crioula que comandou durante a década de 1990.

As atrações se completam com o dj Jorge Choairy, o mais tropicalista de nossos disc-jóqueis, antropofagicamente falando: seu set list é fruto de uma alimentação sonora que não conhece preconceitos, abarcando diversos gêneros, épocas e geografias, numa salada sonora sempre suculenta.

RicoChoro ComVida na Praça é uma realização da Sociedade Artística e Cultural Beto Bittencourt, com produção de Girassol Produções e RicoChoro Produções Culturais, que agradecem ao deputado federal Bira do Pindaré, que tornou possível a realização desta edição do evento, ao destinar emenda parlamentar à Prefeitura Municipal de São Luís, através da Secretaria Municipal de Cultura (Secult).

Acessibilidade cultural – Os saraus RicoChoro ComVida na Praça garantem acessibilidade cultural, com banheiros químicos adaptados, assentos preferenciais, audiodescrição e tradução simultânea em Libras, a língua brasileira de sinais.

Arte na luta contra a fome – O projeto RicoChoro ComVida na Praça é parceiro do “Pacto pelos 15% com fome”, da ONG Ação da Cidadania. Atualmente mais de 33 milhões de brasileiros não têm o que comer. O objetivo da campanha é “promover uma grande aliança entre entidades da sociedade civil e empresas, grupos de mídia, agências de comunicação e publicidade, pessoas físicas, artistas e influenciadores, para atuarem na linha de frente no combate à fome e às desigualdades sociais”. O evento é gratuito e aberto ao público, mas recomenda-se a doação de um quilo de alimento não-perecível, como gesto concreto de engajamento na campanha. O volume arrecadado será destinado a comunidades em situação de vulnerabilidade social.

Divulgação

Serviço

O quê: sarau RicoChoro ComVida na Praça
Quem: dj Jorge Choairy, Quarteto Crivador, o cantor Cláudio Lima, com participação especial de Dicy Rocha, e o poeta e jornalista Celso Borges
Quando: dia 27 (sábado), às 19h
Onde: Largo da Igreja do Desterro, Centro Histórico de São Luís
Quanto: grátis
Informações: @ricochoro (instagram e facebook)

A Jamaica brasileira invade a Pauliceia

Cultura da radiola terá destaque na Virada Cultural, em São Paulo. Duo Criolina e convidados farão 12 horas celebrando ritmos jamaicanos e maranhenses.

Pouco tempo depois de inventado na Jamaica o reggae se consolidou como preferência popular no Maranhão. Não à toa a capital São Luís recebeu a alcunha de Jamaica brasileira. O gênero musical e seu principal porto brasileiro serão lembrados durante a programação da Virada Cultural, em São Paulo, entre os dias 18 e 19 de maio. Num palco comandado pelo duo Criolina, formado por Alê Muniz e Luciana Simões, o reggae à maranhense comparecerá, com as presenças do poeta Celso Borges, dos djs Otávio Rodrigues, Joaquim Zion e Vanessa Serra e da atriz Áurea Maranhão.

Ano passado a Semana Internacional da Música (SIM-São Paulo) levou representantes maranhenses para uma noite, também numa parceria com o Festival BR-135, organizado pelo duo Criolina. Desta vez serão 12 horas de reggae, entre às 18h de sábado até às 6h de domingo, celebrando a cultura da radiola – lá fora conhecida como sound system –, muito difundida no Maranhão.

O duo Criolina. Foto: Layla Razzo

Representando o Maranhão, “Criolina, Radiola e convidados” será uma das festas de rua que acontecerão durante a Virada Cultural. As demais irão representar algum aspecto cultural dos estados da Bahia, Pará e Rio de Janeiro. “A Virada é o maior evento cultural do planeta, um festival com 24h de programação, gratuito e além de ocupar as ruas, conta com programação em centros culturais das periferias, as unidades do Sesc, teatros da cidade e vários equipamentos culturais. É ótima e uma boa desculpa para ocupar as ruas com arte, sair de casa e afirmar a nossa cultura como expressão popular e cidadã”, advoga a cantora Luciana Simões.

“Diminuíram consideravelmente os recursos nacionais para a cultura e justamente por ser um espaço de fomento devemos estar presentes e resistentes. A proposta de colocar o Maranhão no mapa também segue como uma grande bandeira pra nós. Eu acho que o espaço oferecido ao Criolina é um reconhecimento ao Maranhão, e uma ótima oportunidade para se mostrar a cena reggae, que é uma forte cena de rua, representativa e que causa bastante curiosidade”, pondera Alê Muniz, seu companheiro de Criolina.

Joaquim Zion também comenta o interesse dos paulistanos pela cultura reggae, mas aponta algumas diferenças entre as cenas. “A cultura reggae é bem forte em  São Paulo. Já há alguns anos vem crescendo a cultura sound system, que é um pouco diferente do estilo Inna Maranhão das radiolas daqui, porque lá eles tocam com radiolas, DJs e MCs rimando nas bases e o estilo basicamente é ragga, enquanto aqui o nosso lance é one drop, lovers rock, essa batida que chamamos para dançar agarrado a dois. Mas a mensagem é a mesma”, pontua. Ele comenta também sua expectativa: “é máxima pra gente, e o público pode esperar um grande set de hits, clássicos e raridades que fazem parte do imaginário do regueiro do Maranhão. São Paulo tem muitos maranhenses e tenho certeza que será uma grande festa”, promete.

O jornalista e dj Otávio Rodrigues diante de uma radiola. Foto: divulgação

Alcunhado Doctor Reggae, o jornalista e dj paulista Otávio Rodrigues ajudou a difundir o reggae no Brasil e consolidar São Luís como uma de suas principais praças, quando morou na cidade, na década de 1990. “Minha relação com o Maranhão é orgânica, me sinto como se tivesse nascido aí também. Morei na Ilha, viajei bastante pelo interior, fosse em busca de manifestações folclóricas, paisagens ou reggae – ou as três coisas juntas”, lembra.

Ele discotecará e dividirá o palco com o poeta Celso Borges; juntos, apresentam o espetáculo Poesia Dub, em que misturam poesia, com elementos de música jamaicana e da cultura popular do Maranhão. “No Poesia Dub, eu e Celso resgataremos algumas gemas do nosso repertório, como Morto vivo, Matadouro, Bumba meu dub e Linguagem [lista títulos de poemas apresentados no formato], e também mostraremos coisas novas, algumas com participação de Gerson da Conceição, gravadas pouco antes de sua súbita partida”, anuncia, lembrando o amigo baixista que se somava à trupe, recém-falecido.

O poeta Celso Borges. Foto: Layla Razzo

O poeta Celso Borges relembra as origens do espetáculo: “Eu costumo dizer que eu tenho dois santos em minha vida: São Luís e São Paulo. Cidades que estão entranhadas na minha alma, no meu coração. Morei 20 anos na Pauliceia. Aquela cidade, o tempo que eu morei lá, foi um tempo de muita alegria, de muita celebração, encontros com muitas pessoas, muitos artistas, fiz muitas amizades, tive diálogos maravilhosos com poetas, compositores, letristas. E foi ali também que eu, junto com Otávio, desenvolvi o Poesia Dub, a partir de 2004, 2005. É uma alegria enorme poder voltar a São Paulo e voltar fazendo uma nova apresentação do Poesia Dub. Vai ser uma grande celebração, estou muito animado”. O espetáculo é composto por poemas de Celso Borges, com citações de obras de Torquato Neto, Allen Ginsberg, um poema de Bandeira Tribuzi, e trilhas de Otávio Rodrigues.

“Na marcação de baixo poderosa que ele fazia, ele fazia também os vocais, a gente vai usar bases gravadas dele, e vou ler uma parceria nossa”, antecipa a homenagem a Gerson da Conceição, que estaria no palco com eles.

A estrutura do palco maranhense incluirá uma radiola de sete metros de largura, que tocará reggae, ritmos caribenhos e os gêneros musicais que permeiam a cultura popular do Maranhão, com destaque para o bumba meu boi e o tambor de crioula. A dj Vanessa Serra, que também esteve na Sim-SP, anuncia seu set list, reverenciando grandes nomes: “Vou levar um set com hits da música jamaicana e maranhense, que ouvíamos nas festas, nas rodas de violão e nas rádios de São Luís. Expoentes como o som de Nonato e Seu Conjunto, Humberto de Maracanã, Nicéas Drumont, Betto Pereira, Papete, João do Vale, Jacob Miller, Eric Donaldson e Beto Douglas não vão faltar”.

“Radiola e tambor de crioula são duas coisas que não podem faltar numa autêntica festa maranhense. Muito mais do que minha opinião, esse é o testemunho de alguém que já viu festejos no Maranhão de ponta a ponta: onde quer que se vá, na hora de celebrar tem de ter radiola e tambor”, finaliza Otávio Rodrigues.

Serviço

O palco maranhense fica na Rua Cásper Líbero (ao lado da Igreja de Santa Efigênia). Os shows são gratuitos. Conheça os horários das apresentações:

18h – Criolina + Luh Del Fuego
19h – Vanessa Serra
20h – Poesia Dub
21h – Joaquim Zion
22h – Otávio Rodrigues
23h – Criolina + Luh Del Fuego
0h – Vanessa Serra
1h – Poesia Dub
2h – Joaquim Zion
3h – Otávio Rodrigues
4h – Criolina + Luh Del Fuego
5h – Vanessa Serra.

Antes das apresentações do Poesia Dub e Criolina haverá performances da atriz Áurea Maranhão.

Música sem fronteiras

A música se chama Marabaixo, ritmo típico do Amapá. Mas o grande homenageado é o tambor de crioula do Maranhão. A dupla Prettos, formada pelos cantores e instrumentistas Magnu Sousá e Maurílio de Oliveira, seus autores, gravou o segundo videoclipe do disco Essência da origem (2017) entre os Lençóis Maranhenses e o Centro Histórico da capital maranhense.

Magnu e Maurílio, ex-integrantes do Quinteto em Branco e Preto, grupo com relevantes serviços prestados à música brasileira e à preservação da memória de gigantes do universo do samba como Adoniran Barbosa e Ataulfo Alves, entre outros, fazem uma música sem amarras ou limites, sejam rítmicos ou geográficos.

Conheceram o marabaixo numa visita ao Amapá com a cantora Beth Carvalho, apaixonaram-se pelo tambor de crioula no Maranhão e, além dos dois ritmos das culturas populares locais, a faixa, batizada pelo primeiro, é um samba com pitadas de forró.

Beleza musical, beleza feminina: o clipe é estrelado por Deise D’anne, Miss Maranhão 2016, além das bailarinas Thalyta e Isabela Sousa e das coreiras do Tambor de Crioula da Alemanha – o duo Prettos gravou uma apresentação do grupo no São João maranhense, colocando a parelha em diálogo cênico com o cavaquinho e o pandeiro que emolduram versos como “olha a nega é bonita e faceira/ e tem muita tradição/ marabaixo, tambor de crioula de São Luís do Maranhão/ ela gosta de samba de roda, de dançar forró no Cachuera/ ai, meu Deus! Umbigada com ela é brincadeira”.

Sobram ginga e malemolência em samba bonito de ver e ouvir.

Veja o clipe de Marabaixo:

Um gesto grandioso

Dom Valdeci (C), o "bispo quilombola", em seu nobilíssimo gesto. Fotosca: Zema Ribeiro
Dom Valdeci (C), o “bispo quilombola”, em seu nobilíssimo gesto. Fotosca: Zema Ribeiro

 

Um dos momentos mais marcantes da 12ª. Romaria da Terra e das Águas do Maranhão, em Chapadinha/MA, dias 17 e 18 de outubro, se deu quando Dom Valdeci, bispo diocesano de Brejo, virou um coreiro, tocando tambor de crioula durante a apresentação do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom) – à esquerda na foto, Murilo Santos também capta o momento.

Contrariando o sábio padre Antonio Vieira, ainda atualíssimo em se tratando de Maranhão, aquele homem não fez aquilo por vaidade. Impera ali, em seu gesto de grande carga simbólica, o reconhecimento da Igreja Católica – e dos homens e mulheres que a fazem – como morada de Deus e dos homens e mulheres que são – ou deveriam ser – sua real razão de existir.

Dom Valdeci fez valer o lema do evento – “tire as sandálias! O lugar onde estás é chão sagrado” (Êx 3) – ao afirmar suas raízes quilombolas, numa noite/madrugada/manhã em que a autoridade episcopal e cada romeiro e romeira ali presentes foram também indígenas, ribeirinhos, quebradeiras de coco, trabalhadores e trabalhadoras rurais.

Seu gesto, nobilíssimo, dialoga diretamente com o ar progressista que a Igreja Católica começa a respirar sob o papado de Dom Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco.

O tema da Romaria, “território livre para o bem viver dos povos”, incorpora o grito dos mesmos e o rufar dos tambores, especialmente o tocado por um bispo negro, soma-se a este e a tantos gritos que há tempos não querem calar.

O coroataense José Valdeci Santos Mendes, 54, o “bispo quilombola”, ainda se aventurou depois, a acompanhar a cantora Lena Machado, em toadas clássicas do repertório do Maranhão, como Engenho de flores (Josias Sobrinho), Bela mocidade (Donato Alves) e Lua cheia (Godão e Bulcão), além de juntar-se ao coro de mais de 10 mil vozes que entoou Oração latina (Cesar Teixeira), hino autêntico do povo maranhense, sempre em busca de melhores dias.

Uma toada bastante conhecida no registro de Mestre Felipe sofreu alterações na letra, adaptada à realidade das comunidades quilombolas congregadas no Moquibom. O título, que é também seu refrão, traduziu o gestou de Dom Valdeci, que a seu modo nos dizia: “Maranhão sou eu!”. Amém!

Pé-de-serra no alto da Montanha Russa

Divulgação
Divulgação

 

Já louvei várias vezes, sempre que pude, e louvo sempre que posso, o que torno a fazer agora, a ocupação e resistência, por parte do Centro Cultural Mestre Amaral, de uma edificação em que funcionou um restaurante chique no Centro Histórico ludovicense, mais exatamente na Rua da Montanha Russa, nas imediações da Praça Pedro II, onde ficam localizadas as sedes dos poderes executivos estadual (Palácio dos Leões) e municipal (Palácio La Ravardiere), judiciário (Palácio Clóvis Bevilácqua) e eclesiástico (Igreja da Sé).

Sediar ali este importante centro cultural é uma das mais bem sucedidas e populares experiências de ocupação e reuso do espaço urbano em nossa Ilha capital. Oxalá outras iniciativas culturais tomem o mesmo rumo! A história nos ensina e prova que, mais que com prédios, a revitalização dos espaços públicos em geral, e dos centros históricos em particular, é feita com a circulação de pessoas. Quando a gente do lugar e de fora pode circular respirando arte temos uma experiência exitosa para mostrar aos poderes constituídos como é que se faz – para mim, o Mestre Amaral, como é simplesmente chamado o lugar, hoje, é isso. Só não vê quem não quer.

A agenda cotidiana do lugar inclui rodas e oficinas do Tambor de Crioula de Mestre Amaral, discotecagens, brechós, e muito mais. Basta colar no espaço, sobretudo aos fins de semana, mas não só. Não à toa o Centro Cultural foi incluído na programação Caia na Rede, da 9ª. Aldeia Sesc Guajajara de Artes, ano passado. A proposta da Caia na Rede era atrelar o evento realizado pelo Sesc/MA a iniciativas que já existiam em São Luís, com o fornecimento de infraestrutura, divulgação e pagamento de cachês – outras contempladas foram A vida é uma festa (Praia Grande) e Sebo no Chão (Cohatrac).

Como se não bastasse tudo isso, o Centro Cultural Mestre Amaral volta a surpreender e anuncia para esta sexta-feira (19), um arraial com um quê de inusitado. O Arraial do Amaral terá como principal atração um show do duo Criolina (Alê Muniz e Luciana Simões), que na onda de seu recém-lançado ep Latino-americano, atacam de forró-pé-de-serra. No show prestarão reverências a nomes fundamentais de sua formação musical – e de resto, da maioria dos artistas nordestinos –, como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João do Vale, entre outros.

A festa, que conta com o apoio da Rádio Casarão, contará ainda com as participações de Madian, Coletivo Gororoba e da dj Joana Golin. A produção promete: “o tambor também vai apanhar a noite inteira com a turma de Mestre Amaral”. O som está anunciado para começar às 21h. Os ingressos custam R$ 10,00 e podem ser adquiridos no local.

Júlia Emília lança livro com vivências do Teatrodança como parte das comemorações dos 30 anos do Grupo

Vivendo Teatrodança - Investigações de uma artista maranhense para crianças de qualquer idade. Capa. Reprodução
Vivendo Teatrodança – Investigações de uma artista maranhense para crianças de qualquer idade. Capa. Reprodução

 

A história do Grupo Teatrodança se confunde com a própria vida da artista – difícil enquadrá-la em apenas um ramo das artes – Júlia Emília, que o fundou em 1985 e o dirige desde então. Mas seu envolvimento com as artes começa bem antes.

Hoje (26), às 19h, no Centro de Pesquisa de História Natural e Arqueologia do Maranhão (Rua do Giz, 59, Praia Grande, próximo à Praça da Faustina), ela lança Vivendo Teatrodança – Investigações de uma artista maranhense para crianças de qualquer idade [2015, R$ 20,00 no lançamento], publicado através da seleção no edital de literatura de 2014 da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema), em que (re)conta parte dessa história. No lançamento Eline Cunha, Luciana Santos, Sandra Oka e Victor Vieira apresentarão intervenções originais sobre suas relações afetivas com o Grupo Teatrodança e temáticas da nova investigação em processo.

A própria Júlia Emília se apresenta, na orelha da obra: “Filha de família intelectualizada tive um pé na sapatilha clássica e outro nos terreiros das culturas populares maranhenses, sem populismo postiço”. Bem lhe traduz também um poema, não por acaso citado no livro, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht: “Eu era filho de pessoas que tinham posses./ Meus pais puseram um colarinho engomado ao redor de meu pescoço/ E me educaram no hábito de ser servido/ E me ensinaram a arte de dar ordens./ Mas, mais tarde, quando/ Olhei ao redor de mim,/ Não gostei das pessoas de minha classe/ Nem de dar ordens, muito menos de ser servido./ E abandonei as pessoas de minha classe/ Para viver ao lado dos humildes”.

Sobre ela, assim se refere o poeta Ferreira Gullar: “Júlia é uma artista muito autêntica, trabalhando no resgate de um tipo de aproximação da cultura popular de maneira muito sensível”. O cantor e compositor Zeca Baleiro endossa: “É uma artista muito intensa, muito verdadeira”. O segundo musicou os versos de cordel do primeiro e ambos assinaram a trilha de Bicho solto buriti bravo, uma das investigações abordadas em Vivendo Teatrodança – longe de soar pedante, é realmente difícil classificar o trabalho de Júlia Emília como espetáculo de dança ou espetáculo de teatro. Simplesmente os rótulos não lhes comportam.

No livro, a autora remonta brevemente os 30 anos de história do Grupo Teatrodança, antes passeando por sua trajetória artística, confessando influências – Angel e Klauss Viana, Teresa D’Aquino, Stanislavski e Grotowski, entre outros – e vivências – o Teatro Ventoforte, o Centro de Criatividade do Méier, além do Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão (Laborarte) e do Estúdio Pró-Dança, entre outros. A obra se completa com os textos das investigações O baile das lavandeiras e Meninos em terras impuras e aborda desde a fundamentação das peças, elencos, apresentações, dramaturgias e partituras. Na música se misturam nomes como Apolônio Melônio – do bumba meu boi da Floresta, atualmente internado em estado grave –, Carlinhos Veloz, Chico Maranhão, autos do pastor maranhense e do pastoril pernambucano e, entre muitas outras referências, as bandas de pop rock R.E.M. e Coldplay. Também soam pelas páginas de Júlia Emília e palcos frequentados pelo Teatrodança, também devidamente listados na obra, os tambores de mina e crioula, o lelê de São Simão, a dança de São Gonçalo, a poesia da escritora Maria Firmina dos Reis e a lenda da serpente (ou a serpente da lenda), para citar algumas de nossas melhores tradições.

Mas não é – ou ao menos não deveria ser – só ao “povo” do teatro e da dança que interessa a obra de Júlia Emília (e do Grupo Teatrodança): ao longo destes 30 anos e, especificamente nas vivências abordadas em Vivendo Teatrodança, estão colocadas, de forma mais ou menos sutil, preocupações políticas e ambientais – a terceira investigação, “Meninos em terras impuras, dentro da noção de corpo ambiental foi escrito em 2011, para denunciar a degradação a que a área metropolitana da Grande Ilha está submetida”.

Retornamos ao texto da orelha, em que Júlia Emília admite não ter “vergonha de nascer em terra espoliada, de expor meus exercícios de aculturação, de registrar dramaturgias que nem sei se serão publicadas exatamente por acreditar que o texto eterniza a cena”. O lançamento de Vivendo Teatrodança é parte das comemorações de 30 anos do Grupo homônimo, que continuam ao longo de todo 2015 (e sobre as quais este blogue voltará, em momentos oportunos). Os que conhecem os trabalhos e batalhas do Teatrodança e de sua fundadora-diretora lhes desejarão vidas longas. Aos que não, terão hoje mais uma oportunidade. Cabe a pergunta: estão esperando o quê?

Henrique Menezes em um passeio pelos terreiros do Brasil

[Vias de Fato nº. 58, de abril/2015]

Lançando seu primeiro disco solo, Passaporte, músico conversou com o Vias de Fato, por ocasião de sua mais recente passagem pela Ilha

Foto: ZR (2/2/2015)
Foto: ZR (2/2/2015)

 

Henrique Menezes veio à São Luís no começo do ano, para participar das festividades de Oxóssi e Iemanjá na Casa Fanti-Ashanti, da qual é primeiro Ogã Alabê Huntó – “maestro da percussão, chefe de batucada, diretor musical da casa”, como ele mesmo explicou. Trazia na bagagem seu primeiro disco solo, assinado com a Banda Bom Q Dói, intitulado Passaporte [independente, 2015, R$ 20,00 na Livraria Poeme-se, Banca do Dácio e Quitanda Rede Mandioca].

É uma das três visitas anuais que faz à terra natal. “Quando eu venho ao Maranhão, eu venho mais para meus compromissos religiosos que profissionais”, diz ele, que aproveita para visitar a família e os amigos. As outras visitas acontecem num canjerê em setembro e no período das festividades de São Pedro (29 de junho), quando costuma ver o encontro dos bois na Igreja do padroeiro dos pescadores, na Madre Deus, e “não perder esse vínculo, recarregar minha bateria, minha essência, tocar um tambor na Madre Deus, aqui no [Tambor de Crioula de Mestre] Amaral, no boi de Maracanã, Santa Fé. Eu venho recarregar minha bateria para poder trabalhar em São Paulo”.

Em meio à alegria de rever parentes e amigos, foi surpreendido pela tristeza da notícia do falecimento de mestre Humberto de Maracanã (2 de novembro de 1939-19 de janeiro de 2015), líder do bumba meu boi e da comunidade que lhe emprestaram o sobrenome artístico, seu colega de Ponto BR, coletivo musical que reúne diversos mestres de cultura popular de Pernambuco e Maranhão.

No dia de Iemanjá, 2 de fevereiro, uma das festas de que ele participaria no terreiro liderado por Pai Euclides – de quem é sobrinho –, ele conversou com a reportagem na Quitanda Rede Mandioca.

Na conversa, ele relembra capítulos importantes de sua vida entre o Maranhão e São Paulo, passando pelos carimbos do Passaporte que dá título a seu disco, sua trajetória musical, o emprego inicial em uma fábrica de brinquedos, sua atuação como arte-educador e sua primeira escola musical, a Casa Fanti-Ashanti, cujas citações são recorrentes ao longo da entrevista.

Passaporte é teu primeiro disco solo? Primeiro disco solo. Outros que eu gravei foram registros do Cacuriá Pé no Terreiro, que eu sou o diretor, nós gravamos há 11 anos, uma perspectiva de grupo, que trabalha a dança, a música e a arte-educação, tudo junto, nesse contexto. Este é um trabalho mais musical, inspirado nos lugares onde fomos passando, os carimbos, cada um conta um pouco de cada lugar, a Casa Fanti-Ashanti, minha primeira escola de música, ouvindo os tambores todos os dias, desde a barriga de mamãe, no ferro [instrumento do tambor de mina], tocando sempre, e dos lugares em que eu fui passando, Rio de Janeiro, Recife, Maracatu Estrela Brilhante, em 2005 eles ganharam o carnaval com uma música que eu fiz para eles, deram uma medalha de honra ao mérito para mim, fizeram homenagem, sempre falam. Essa inspiração de fazer uma música para o Estrela Brilhante, eu fiz uma referência uma ciranda. Tinha um maracatu [no disco]. Esse projeto tinha muitas músicas, nasceu de um projeto, Noites do Maranhão, que eu tenho em São Paulo, todo mês tem uma noite do Maranhão num bairro diferente, já fizemos em praças, Sescs, várias casas de shows. Tinha esse projeto, a gente cantava diversas músicas minhas, de outros amigos maranhenses, de outros lugares também, mas 90% do repertório as músicas eram minhas e aí também tinha um maracatu. Como eles falaram que vão gravar nesse disco agora, eu falei “não vou queimar o cartucho deles”. Eu gravo em outro disco, a ideia é que esse seja só o primeiro [risos].

Já são quantos anos de carreira? Quanto você confere? Qual o marco inicial? Quando é que você percebe que vai trilhar os caminhos da música? Aqui no Maranhão eu já era envolvido com a música, participava de vários grupos, GDAM [Grupo de Dança Afro Malungos, sediado no Parque do Bom Menino], Abibimã, foram grupos afros aí, não fui fundador do CCN [Centro de Cultura Negra do Maranhão, sediado no Barés, João Paulo], mas fui um dos integrantes da época antiga do CCN, Akomabu, Silvia Black, Escrete [compositor], há muitos anos, antes de ir para São Paulo. Agora eu estou com 23 anos de São Paulo. Lá eu comecei a buscar uma coisa mais minha, desenvolver mais meu trabalho como compositor. Antes eu não cantava tanto, eu mais compunha. Cantava no Cupuaçu [grupo de bumba meu boi liderado pelo compositor Tião Carvalho, no Morro do Querosene, em São Paulo; ele participa de Passaporte na faixa Brasa em candeeiro/ Touro da beira do mar], aí eu resolvi botar a carreira como cantor também. Eu era mais compositor que intérprete. Aí resolvi fazer o primeiro show, inventei, um show diferenciado lá em São Paulo, misturava o reggae, o samba, ritmos do Maranhão. Surgiu a primeira banda, Os Caxienses, em homenagem a meu avô, que era chamado seu Caxias, ele veio de lá. Ele colocava quadrilha, a Quadrilha do Oeste, o Rei do Oriente. Em homenagem a ele eu dei esse nome. A gente trabalhava com os ritmos, principalmente o forró.

Isso já era São Paulo. Mais ou menos em que ano? Já era São Paulo. Os Caxienses, entre 1992 e 96.

Você participou de discos de outros artistas, como músico? Sim. Toquei com Rosa Reis [cantora], Tião [Carvalho], Josias [Sobrinho, compositor], nunca gravei, mas toquei com ele, sempre que ele vai à São Paulo, é difícil levar banda inteira, às vezes tocamos eu, Manoel Pacífico [percussionista maranhense radicado em São Paulo]. César Nascimento [cantor e compositor piauiense, radicado no Rio de Janeiro após longa temporada no Maranhão], que não é maranhense, mas é quase, sempre que vai à São Paulo eu faço parte da banda dele. Aí veio a ideia de começar a cantar, cantar minhas músicas mesmo. Eu montei um time, chamei os amigos, Cacau [Amaral, percussionista maranhense radicado no Rio de Janeiro], na época morava em São Paulo.

Você está naquele disco da banda Mafuá, de Tião? Eu gravei, gravei como percussão lá, Estrela miúda, de João do Vale [parceria com Luiz Vieira. Cantarola:] “Estrela miúda, que alumeia o mar”. Fiz os pandeirões junto com Cacau, Nazaré [José de Nazaré, percussionista maranhense].

Participou também do disco da Maria Preá [banda que tem a catarinense Laetícia Madsen como vocalista – ela participa de Passaporte na faixa Coreira de tambor]? É, gravei. [Cantarola:] “lá na mata sabiá cantou”, acho que Papete gravou essa música [no disco Berimbau e percussão], o Ponto do caboclo sete flechas e em outra faixa [Tambor de mina, de domínio público].

Quando você nasceu sua mãe já tinha envolvimento com a Casa Fanti-Ashanti? Desde criança. Tio Euclides fundou a casa acho que em 1950. Desde antes disso, ainda no Gapara, minha vó era uma curandeira, uma dona de terreiro também, dançava também. Tio Euclides foi criado pela minha vó, é neto de dona Romana, é filho de meu avô biológico, seu Caxias. Todos os filhos que eram do meu avô, mesmo não sendo da minha vó biológica, ela os considerava como filhos e eram aceitos na família como parentes. Esse envolvimento dele e mamãe, se criaram juntos, desde pequenos, sempre teve essa cantoria, meu avô tocava violão, meu tio Reinaldo, toca até hoje, mora na Cidade Operária. Quando foram para o Cruzeiro do Anil, Dindinha, que é minha tia, Zezé [Menezes], minha mãe, Graça [Reis], minha tia, foram com ele. Quando surgiu a Casa Fanti-Ashanti no Cruzeiro do Anil elas já faziam parte com ele desde a época do Gapara, o Terreiro do Egito. Ela sempre esteve dentro do terreiro, sempre tiveram contato com essa religiosidade, desde pequenos. E eu já me entendi na Casa Fanti-Ashanti, eu nasci dia 25 de junho [de 1971], minha mãe estava dançando um tambor de crioula quando a bolsa estourou.

Então você já nasceu no meio da roda? [Risos] Já nasci no meio da roda do tambor. A casa já tinha uns 20 e poucos anos, em uma festa de tambor, ela segurou, segurou, a bolsa estourou, depois, “leva, leva pra maternidade”. Eu fui criado dentro da Casa Fanti-Ashanti e no Bairro de Fátima, vivia entre esses dois universos, essas festas que meu avô promovia, quadrilha, festa de Reis, ladainha de Nossa Senhora Santana, ladainha de Santo Antonio. A música sempre esteve muito presente aqui pro lado do Bairro de Fátima, e no Cruzeiro do Anil a percussão, a música, com as doutrinas, os toques. Foram minhas primeiras formações. Quando eu me entendi, com cinco anos de idade, eu fiz minha primeira toada. Minha primeira toada de boi, eu era cantador do boi da casa, mas eu nem imaginava.

Que é aquele Boi de Encantado? É. Tem até num livro de Ferreti [Mundicarmo Ferreti, membro da Comissão Maranhense de Folclore], num dos livros, uma foto minha, pequenininho, com um buchinho, um buchinho de menininho maranhense comedor de farinha, eu com um maracá na mão. [Cantarola a toada:] “o meu nome é Henrique/ eu gosto de cantar boiada/ São João me prometeu/ o meu touro eu almoçar/ ê boi, ê boi, ê boi/ esse ano tu em primeiro lugar”. Foi a primeira toada, ele ouviu e disse: “é, canta essa toada aí no boi”, seu Corre Beira, entidade de tio Euclides, sempre foi o compositor das toadas do Boi de Encantado. Tem uma música de mamãe, Santo Antonio, São João, até A Barca [grupo musical de vigoroso trabalho de pesquisa e mapeamento musical no Brasil, com diversos discos produzidos e gravados] gravou, o Ponto BR também. [Cantarola:] “Santo Antonio me avisou/ São João vai chegar”. Na verdade, essa música da minha mãe foi antes dessa minha, ela compôs quando ela tinha uns 16, quando eu nasci já cantavam. Depois eu me desinteressei do boi, fui ficando mais velho, comecei a participar de outras brincadeiras, não queria mais boi de criança, queria os bois com os adultos, comecei a brincar no Boi de Pindaré, a sede era no Bairro de Fátima, na casa de seu Neuton, ali perto do ponto de ônibus, tocava pandeirão, comecei a me encantar com essa história do boi, de tocar pandeiro, tocar percussão. Aí quando vi Nivô tocar tambor a primeira vez, falei “nossa, o que é isso?” Saí de casa cedo pra ver tambor na rua Dagmar [Desterro], na praça do Mercado. Nivô era um negão, estivador, vozeirão. Aí que eu fui entender, na Casa Fanti-Ashanti tinha, mas eu nunca liguei, não pensava em tambor de crioula como música, pensei “nossa, isso aqui é o caminho”. Me encontrei, já peguei o meião, o crivador, com o tempo fui para o tambor grande. Quando eu já sabia tocar, fui para uma festa, entrei para tocar, ele ficou olhando, não reclamou de nada, aí pensei “eu tou apto para continuar”, fiquei fazendo parte do grupo da casa, depois Tambor de Taboca, é exatamente a mesma marcação, as mesmas frases do tambor de couro, só que tocado na taboca.

Foto: ZR (2/2/2015)
Foto: ZR (2/2/2015)

 

O que te levou para São Paulo? A curiosidade de conhecer a cidade, na verdade. Eu ia para São Paulo dois meses garantidos, final de novembro, dezembro e janeiro, e voltava para o carnaval. Eu iria para trabalhar numa fábrica de brinquedos. Minha tia Graça já morava em São Paulo uns oito anos antes de mim. Tinha um amigo dela que tinha uma fábrica de brinquedos e eles entregavam a cidade toda. Aí me arrumaram um trabalho daqueles temporários, final de ano, eu ia trabalhar de caminhão, fazer as entregas, conhecer a cidade, que era o que eu mais queria, só conhecia por fotos, levantava um dinheirinho e voltava para o carnaval. Só que quando chegou lá mudou toda a história. Eu cheguei, nem fui mais trabalhar com o caminhão, encontrei aquelas máquinas todas, me encantei, aquele barulho de máquina, aquele universo cibernético de cidade grande, “nossa, que coisa linda!”. Um dia eu me cheguei, o dono da fábrica estava viajando, montei um painel de ferramentas, ficavam todas jogadas, eu organizei na parede, o encarregado veio, [simula um diálogo] “quem fez isso?” O pessoal, “ah, foi o menino do Maranhão”, “chama ele aqui”, “foi você que fez isso aqui? Quem mandou?”, “ninguém mandou, eu tava aqui de bobeira”, vi as coisas lá, furei um madeirite na parede, pendurei martelo, chave de boca, tinha chave que eu nem conhecia. Ele: “rapaz, quer trabalhar comigo?”, “quero!”, adorei, ele viu meu esforço, me indicou fazer um curso, faziam capacitação para quem queria trabalhar nessa área, técnico, plástico, trabalhei três anos nessa fábrica, aí aconteceu um acidente, quase perdi minha mão [exibe as cicatrizes nos dedos], mexia na parte mecânica, eu me desgostei, perdi o encanto. Eu gostava, fazia brinquedos, sempre tive essa coisa com criança, trabalhava como monitor em Centro Comunitário. Aquele brinquedo chegaria na mão de alguma criança, em algum lugar, uma criança que não tinha muita grana, não eram brinquedos caros, botão, boliche, bola. Pra mim era uma satisfação saber que uma criança ia pegar aquele brinquedo. Depois que aconteceu isso eu me desencantei, pedi as contas, não queriam dar, arrumei confusão, até que uma gerente me mandou embora. “O que eu vou fazer da vida agora?” Eu já conhecia Tião, o Morro do Querosene, e conheci a Conceição Acioli, uma teatróloga pernambucana, diretora de teatro. Xavier Negreiros [percussionista e compositor maranhense] tocava com ela num espetáculo, aí ele teve um problema, veio embora para São Luís. E ela, “poxa, estou precisando de um percussionista para tocar”.

Você lembra qual era o espetáculo? Um espetáculo chamado Tomara que não chova, dela mesmo. Aí eu fiz parte da companhia dela, que na verdade, eram ela e Xavier, e eu o substituí. Nós ficamos com o espetáculo em turnê, e ela, “não vai mais trabalhar com nada não”, por que eu fazia vários bicos, você sabe que maranhense que se preza não gosta de ficar parado mesmo. Aí ela, “você tem que ser músico, tem que ser artista”, me deu a maior força, me apresentou para várias pessoas. Entre as pessoas a quem ela me apresentou estão o Zé Celso [Martinez Correa, dramaturgo], do Teatro Oficina, Auri Porto, ele também tinha um espetáculo paralelo ao Oficina, ele saiu há pouco, está com a própria companhia dele. Aí ele me chamou para fazer parte de um espetáculo chamado Bacantes.

Como músico? Como músico. Na verdade, eu mostrei a história do universo do tambor de crioula e eles viram aquilo no espetáculo, tinha uma cena em que tinha o tambor de crioula, o povo dançando. Disso o Zé me chamou para fazer parte do elenco, fiz alguns personagens, um sertanejo, contracenei com alguns atores, fazendo embolador, mas eu nunca quis ser ator, nunca tive essa coisa, esse domínio, interpretar, meu negócio era tocar. Eu fiquei mais ou menos um ano e meio no Oficina.

Isso já era que ano? Isso por volta de 1998, 99, mais ou menos. O da Conceição foi antes, 97, um ano antes, mais ou menos. Depois disso eu fiquei sendo músico oficial do grupo dela e começamos a montar vários espetáculos. Chamei a Graça, minha tia, que mora lá, nós fundamos a Companhia das Mães. Era um projeto dos músicos e cinco mães de alunos de escola pública, que fizeram parte como atrizes. Ela fez toda a capacitação dessas mães, que eram pessoas de comunidades bem carentes, nunca tinham acesso a essa coisa da arte. Com esse espetáculo nós ficamos quase uns 10 anos, até que a Conceição teve um ataque cardíaco e partiu [a atriz faleceu em 2005]. Paralelo a isso, tínhamos a Companhia Lampião no Céu, que encenava o espetáculo Lampião no Céu, com o Auri Porto. Esse espetáculo, nós éramos parceiros do Teatro Oficina, ensaiávamos lá e fazíamos o espetáculo em comunidades, era o projeto Arte na Rua, um projeto da Prefeitura, a gente fazia o espetáculo nas escolas, creches, centros educacionais. Isso me levou um tanto para essa parte de arte-educador. Hoje em dia em São Paulo eu trabalho muito dando aula, música, percussão. Uma das ongs é a Associação Pela Família, tem 56 anos de existência, é uma das mais antigas do Brasil. E voltando ao assunto do Lampião no Céu, o Teatro Oficina, quando eles montaram O Sertão, o Zé me chamou novamente, precisava fazer a história dum boi, dentro da história do Euclides [da Cunha, escritor], de Os Sertões [livro que inspirou o espetáculo de José Celso Martinez Correa], a primeira montagem, que foi A Terra [uma das partes do livro], tinha uma história que falava do bumba meu boi, e a história de Canudos também. São cinco partes, A Terra, O Homem I e O Homem II, A Luta I e A Luta II, são cinco espetáculos que ele extraiu do livro. Na íntegra, quando foi a primeira montagem, acho que eram quatro horas e meia, A Terra, O Homem I, três horas e meia, o espetáculo precisava de cinco dias para ser montado. Eu não sei nem como aquilo cabia na cabeça do Zé, de tanta informação, de tanto texto, de cada pessoa, de cada personagem. Mas enfim, o Zé é um homem muito sábio, muito organizado.

Voltando à música, você também participou dos dois discos do Grupo Cupuaçu. Eu sempre fiz parte, um grupo dedicado aos ritmos maranhenses. Eu estou nos dois, nesse último agora [Todo canto dança, de 2008] não só como músico, mas como compositor e como intérprete. Tem sete músicas minhas gravadas naquele cd, algumas eu interpreto, outras a Ana [Maria Carvalho, irmã de Tião Carvalho, cantora], tia Graça canta uma também. No outro, o primeiro, Toadas de bumba meu boi [1999], eu participei como cantor e como ritmista, percussionista. Em seguida vieram outros projetos, foi quando A Barca apareceu e nós fizemos a história dA Barca com o Baião de Princesas, da Casa Fanti-Ashanti. Entre essas brechas eu montei o segundo trabalho meu, que chamava Comigo Ninguém Pode, o nome da banda. Foi um laboratório, um pouco do que surgiu hoje no disco. Muitas das músicas que eu cantava com a Comigo Ninguém Pode, algumas delas eu coloquei aqui, tem algumas novas que eu fiz especificamente para o Passaporte, mas algumas eu já cantava com essa outra banda.

A Comigo Ninguém Pode chegou a gravar disco? Só o demo. Não fizemos lançamento, nem gravamos oficialmente. Tinha cinco músicas, a gente distribuía para fechar shows, chegamos a tocar para Prefeitura, Sesc, lá em São Paulo. Quando a gente separou, Cacau foi embora para o Rio de Janeiro, Ataliba foi embora para Bragança, Renatinho voltou para morar com a mãe em Santos, ficamos só eu e Téo [Menezes], meu primo, baterista, percussionista, já me acompanha há algum tempo. Aí resolvemos montar a Bom Q Dói. Aí veio o Ricardo [Perito], que toca violão e cavaco, o Cesinha [César Azevedo], toca percussão, Téo, eu, Maurício, o Mau, que é um baixista, por último o Gerson da Conceição [multi-instrumentista], para engrossar mais o caldo, toca guitarra, violão, às vezes faz o contrabaixo, por que o Mau também toca violão e contrabaixo, então eles invertem, um faz baixo, o outro, violão. Já faz quatro anos que a gente faz as Noites do Maranhão, só que a gente não faz mais muito em casas noturnas, a gente tem tocado menos, mas feito shows com mais qualidade de palco, estrutura, som. Aí veio a ideia de registrar esse cd. Tem o Bruno Buarque [baterista], que é o dono do estúdio, toca com a Céu [cantora], eu mostrei o repertório para ele, tinha feito uma pré-produção em casa, no meu computadorzinho mesmo, e ele “bicho, vamos gravar isso”. Fizemos uma parceria. Eu não tinha dinheiro, tentei editais, não consegui, juntamos alguns cachês da banda, um tanto de dinheiro meu que eu investi, aí encaramos fazer.

O financiamento do disco é todo do bolso? É, todo do bolso. E a parceria de amigos. É uma produção dependente, como eu digo: depende de um, depende de outro. É dependente [risos].

Sua fonte de renda hoje é música? Graças a Deus. Dando aula e tocando, ministrando oficinas. Eu trabalho não só com a música show, espetáculo, mas a música como aprendizado. Eu dou aula em três locais, em comunidades, lá no Francisco Morato, no Centro de Convivência Gracinha, são crianças de vulnerabilidade, baixa renda, que vivem em área de risco, da Favela Jaqueline, Taboão da Serra, são atendidas essas crianças.

Você mora onde, em São Paulo? Eu moro no Butantã, do ladinho do morro. Eu morava dentro do morro, mas foi ficando muito caro, aí eu consegui comprar um apartamentinho há três quadras do morro, na Praça Elis Regina, eu vou até começar uma história lá, a Festa de Terreiro. O terreiro eu vejo como tudo, o terreiro do quintal, o terreiro de mina, o terreiro onde as pessoas se encontram para brincar o boi, o terreiro onde se toca o tambor de crioula. Então, na verdade, a ideia é que tenha várias coisas, vamos fazer parcerias, criar um movimento cultural lá nessa praça.

E os selos nesse PassaporteCada selo desses representa uma música. A do Morro do Querosene representa a praça onde acontece a festa. A alfaia, de Pernambuco, representa o Maracatu Estrela Brilhante; é o grupo que canta minhas músicas, sempre exalta meu nome, eu faço parceria com eles, vou para lá, sou sempre muito bem recebido. Na Pavuna, onde tem os gêmeos, Rômulo e Ramon, tem o grupo Mariocas, também cantam músicas minhas, a gente tem essa parceria, eles vêm para São Paulo, eu vou para o Rio de Janeiro. A Lapa, foi o primeiro lugar em que eu me encontrei no Rio de Janeiro, foi onde eu encontrei minha filha quando ela tinha 13 anos de idade, eu descobri que tinha essa filha. O Cruzeiro do Anil é exatamente o símbolo da Casa Fanti-Ashanti, onde foi minha escola de música. A Madre Deus, um dos bois, boi de matraca, antes de ir para o Maracanã, tocar no Boi de Maracanã, tem uma história muito presente. Foi um bairro em que eu fiz muitos amigos, músicos, nem dá para citar nomes, que moram na Madre Deus, ou que já moraram. São Gonçalo, na verdade, vem de uma homenagem ao santo, tem no Rio de Janeiro, onde descobri o violão como instrumento, e aproveitando o São Gonçalo, tinha um baile de São Gonçalo lá em casa, depois que meu avô morreu acabou essa manifestação lá em casa. O baile de São Gonçalo foi o primeiro lugar onde eu comecei a tocar meu violão assim, descobrindo-o como instrumento. O Ribamar vem de uma música que eu comecei a fazer em [São José de] Ribamar, uma homenagem a Maria Grande, uma coreira da Casa Fanti-Ashanti, muito antiga, já faleceu também. Cada carimbo… a Vila Madalena foi onde a banda teve a primeira vitrine, assim em quantidade de público, um bairro boêmio onde a gente circulou, e ainda toca. Os selos têm esses significados.

A gente ouvindo o disco, percebe, no repertório, que essa tua passagem por diversos locais do Brasil não deixa de estar sempre impregnada de uma coisa de Maranhão. Você faz ciranda com um pé na mina, um coco com o pé no tambor de crioula, sempre misturando. Batuque de umbigada junto com o candomblé que sai da Casa Fanti-Ashanti. Na verdade esse passeio é para mostrar que o meu passaporte é maranhense. Por que me veio a ideia do passaporte? O passaporte é um documento, de autenticidade, você mostra de onde você veio, por onde passou, e te dá a liberdade de entrar. O que a gente quer? O que eu quero, que essa minha música, nossa, com a banda, mesmo que eu faça com outra banda, um artista nunca está sozinho, há sempre pessoas em volta. Com nosso passaporte a gente quer entrar. Onde? A gente quer entrar nas praças, nas rádios, nas televisões, nas casas das pessoas, na memória das pessoas. A ideia é de ser nosso documento de identidade artística. De onde vem? A identidade minha vem do Maranhão. Como eu sou a liderança do grupo, eu sou o produtor praticamente de tudo, sou eu que agencio, ainda não tem uma produção que diga “olha, você faz só o show e a gente corre atrás do resto”. Eu acho importante, o artista tem que passear por todos estes universos, saber como se conversa, com quem, buscar os apoios, por que ele fala da verdade dele. A gente não tem dinheiro, está buscando esse apoio, não tem assessoria de imprensa, queremos o apoio de parceiros, de amigos, que façam parte desse Passaporte, que faça parte dessa história, daqui pra frente. A ideia é essa. Do povo que está na banda, os que não são maranhenses, têm uma loucura pelo Maranhão. Quando eu mostrei essa ideia, todos eles abraçaram a causa. O Mau veio pra cá fazer show comigo, no período junino, enlouqueceu. É paulistano, mas tem uma loucura pelo Maranhão.

Você nunca foi atingido por aquele desespero, “vou voltar, que aqui não dá mais”? Já teve esse momento. Quando a Conceição faleceu foi um momento, a Companhia, nós prestamos serviço 10 anos pela Natura. Trabalhávamos de 15 em 15 dias pela Natura. Dois espetáculos pela manhã, dois espetáculos à tarde. Dali a 15 dias íamos para outra cidade, aquilo era uma estabilidade financeira, já garantia, eu dava poucas aulas, duas pela manhã, uma à tarde, uma vez por semana. Depois surgiu um grupo de dança, entrou a história do boi. Em São Paulo, quando tem alguma coisa de boi, tambor de crioula, as manifestações artísticas, ou chamam Tião ou chamam eu. Quando eles começaram esse projeto do Maranhão me chamaram para uma capacitação com as crianças, mas não era um emprego fixo. Em 2003 ou 2004 me efetivaram como funcionário para dar aulas a todas as turmas da instituição, atendendo crianças de oito a 16 anos. Aos 17 eles são encaminhados para outra instituição. O Gracinha trabalha com o horário inverso ao da escola, quem estuda de manhã participa de tarde e vice-versa. A música demorou a ser inserida, mas hoje em dia é o que tem o maior percentual de atividades na casa. A percussão hoje em dia faz parte da grade curricular.

Esses alunos que fazem música, qual o perfil? São crianças da periferia, crianças de baixa renda. A instituição, a Associação Pela Família, só trabalha com crianças que vivem em área de vulnerabilidade. A maior parte com envolvimento com drogas, crianças que foram abandonadas em abrigos. São atendidas por volta de 190 crianças, todo um trabalho pedagógico, a diretora tem uma cabeça muito aberta e os resultados estão para além do artístico, de comportamento, uns vão para outras áreas, mas muitos viram educadores.

À distância em São Paulo, como você faz para manter o vínculo com a Casa Fanti-Ashanti? Eu acendo minhas velinhas, minhas coisas, e por isso eu venho para cá, recarregar minha bateria, não só na música, mas principalmente minha bateria espiritual, vir ao terreiro, tocar para os orixás, cantar, fazer parte dos rituais. Essa é a principal energia que eu venho buscar. É como se fosse meu carregador de energia vital. Essa é minha busca. Se ficar muito tempo fora, você fica carente, mais fraco, voltando você vai recarregando esse ciclo. Meu sonho de consumo é equilibrar, seis meses aqui e seis meses lá, não direto, um aqui, dois lá, dois aqui, um lá. Se isso for possível através da música, vai ser minha realização como artista. Nunca sonhei em ser o mega-famoso de não poder parar nos botecos e tomar uma cerveja. É legal, bom ser reconhecido, mas não quero não ter a liberdade. Quero ser reconhecido, mas não precisa ser tanto [risos]. Quero continuar tendo a liberdade de brincar, tambor de crioula, bloco tradicional, ir para a Madre Deus, essa é a vantagem de não ser tão famoso. Eu quero estar no meio do povo, nasci do povo, sou povo, gosto de estar nessa folia. Você olha no olho das pessoas, se emociona ao ouvir uma toada.

O que significou para você integrar o Ponto BR e em especial ter dividido disco e palcos com tua mãe e com o saudoso Mestre Humberto de Maracanã? O Ponto BR foi um presente. A Renata [Amaral, contrabaixista e produtora] é uma pessoa muito talentosa, muito especial, muito sensível. Uma mulher de um olhar muito para o futuro, batalhadora, guerreira. Quando ela me chamou para a primeira montagem, foi por que exatamente ela sentia essa ligação entre o Maranhão e Pernambuco. A minha maior felicidade de estar dividindo, dividindo não, somando, com a minha mãe, primeiro ter a minha mãe como uma das grandes artistas do Maranhão, compositora, uma intérprete maravilhosa, canta lindamente bem, não é por que é minha mãe, mas eu me emociono ao ouvi-la cantar. Então, estar no palco, um momento que eu amo na minha vida, poder estar partilhando com ela, é uma satisfação impagável. Não dá para explicar. Eu sou tão fã, só ela estar junto já é um prazer, ela ser minha mãe, é um orgulho. Mestre Humberto, a oportunidade de poder trabalhar e tocar com ele, foi um dos meus mestres, eu tenho alguns que digo e assumo, Pai Euclides, Humberto, Dindinha, meu avô, minha vó, Nivô, Mestre Felipe. Eu sempre sonhei em ser mestre de tradição, nunca sonhei em ser músico. Essas pessoas sempre agregam pessoas, são sábias, são queridas, são pessoas especiais, é um dom. Sempre fui apaixonado por Humberto, cantando, compondo as músicas dele, eu canto até hoje, faço releituras. Tê-lo no palco, não só no palco, mas conviver, geralmente a gente dividia o quarto, a gente tinha um convívio, era como um pai para mim. Eu nunca tive muito contato com meu pai biológico, nós nos afastamos quando eu tinha oito, 10 anos de idade. Ter o prazer de estar junto de Humberto, ouvir as coisas que ele contava, as brincadeiras, a sabedoria, o jeito de falar da comunidade, do boi, dessa devoção, esse compromisso, abdicar de várias coisas para vivenciar isso, para ser o Mestre Humberto, aquilo era [uma recompensa] maior que meu cachê, maior que a repercussão que o Ponto BR trouxe para mim, poder viver com ele junto, mais próximos, saíamos, almoçávamos, ele contando das dificuldades, das realizações, dos sonhos, de uma instituição como o Maracanã, não só o boi, mas a comunidade, era um homem querido por toda a comunidade do Maracanã. Mesmo os evangélicos tinham um respeito por ele, pela sabedoria. Pai de muitos filhos, criador de muitas histórias. No começo, eu ficava, “nossa, eu não estou acreditando”, eu não acreditava, até me arrepio [mostra o braço arrepiado]. Saudade, né? Hoje em dia é saudade. Felizmente ou infelizmente eu estava aqui nessa passagem dele. Não tive tempo de mostrar o disco, mostrei algumas músicas, antes, tem um agradecimento para ele, por tudo. Sempre me ensinou, sempre foi um exemplo. Essa pessoa que ele é, e vai ser para sempre, é algo que eu vou sempre entender como a maior paga da minha vida, sempre me ajudando a crescer, eu vou na carona, [esses mestres] são pessoas iluminadas. No enterro dele eu fiz uma toada, mas nem consegui cantar. Mostrei para Ribinha [filho de Humberto].

Passaporte. Capa. Reprodução
Passaporte. Capa. Reprodução

FAIXA A FAIXA

Músico comenta as faixas de Passaporte, todas de sua autoria

Minha vaqueirada – Toada de bumba meu boi da Baixada, com arranjo um pouco mais moderno, tem saxofone, guitarra, violão. Uma leitura mais sofisticada, onde eu quis fazer uma homenagem a todos os bois da baixada, Santa Fé, Pindaré, Penalva, seu Apolônio. Representa o guarnicê, juntar para começar o show. É a toada que abre a nossa história.

Sensações – É um bloco tradicional, eu fiz inspirado no ritmo do bloco tradicional. Fala um pouco dessa história do carnaval maranhense. Retrata as sensações que eu sinto quando entro no mar. A lua é minha madrinha, o mar é meu padrinho. Desde criança eu fui dado como afilhado deles. As sensações que eu sinto quando entro no mar, liberdade. É um ritmo maravilhoso, pouco conhecido no Brasil, pela beleza, o próprio suingue da música, balançado dos contratempos, ritinta, agogô, cabaça, passeia um pouco por lembrar o carnaval maranhense e exaltar esse ritmo pouco explorado pela música dos compositores maranhenses.

Coreira de tambor – Foi a música que eu fiz para dona Maria Grande, exalta a beleza que o tambor de crioula tem, é um dos ritmos mais complexos do mundo. Onde eu passo fazendo oficina, até para músicos supercultos, se perdem nesse universo, de música diferente, que precisa ser mostrado. Essa poesia é inspirada na coreira, essa relação entre a coreira e o tocador, o tocador e o povo, a música e essa junção de gente em volta e a beleza que é a roda de tambor de crioula.

Coco de Ainé – É um pouco Pernambuco e um pouco maranhense. É para mostrar que o coco não é só pernambucano, não é só alagoano, não é só maranhense: o coco é do Brasil. Eu faço uma mistura desses dois ritmos, juntando Pernambuco com o Maranhão, e a beleza da brincadeira do coco, dançar, quebrar o coco, muita gente nem sabe, e falo dos cocos que existem, coco pirinã, coco de anajá, coco de embolada, exaltar um pouco da história dos brincantes do Brasil, os trabalhadores que utilizavam o coco para se divertir enquanto trabalhavam, um pouco de alegria na lida do trabalho braçal.

Estrela de Davi – É uma coisa do coração, uma homenagem que fiz para minha esposa, Natália. A história da lua, quando ela está só aquele sorriso, e tem aquela estrela embaixo, a lua nova e a estrela de Davi. Ela é a lua e eu sou a estrela, é um reflexo de nós dois.

Rio 3×4 – Foi a música que eu fiz em homenagem a minha filha, quando a encontrei. Demorei muito para descobri-la, rodei muito, passei por muitos lugares, Pavuna, Recreio, Iguaçu.

Brisa de mulher – Foi inspirada no reggae. É algo que sempre foi muito presente para mim, aqui no Maranhão. Sentia uma brisa, o cheiro de uma moça, mas exaltando o reggae, o regueiro que ia curtir reggae, Retiro Natal, Pop Som, Espaço Aberto, Toque de Amor [clubes de reggae em São Luís], exaltar um pouco do que eu vivenciei em termos de reggae.

São Jorge na Lua – Veio um pouco de minha influência mais pop, mais paulistana, eu comecei a descobrir esse ritmo, rock, mais moderno. É algo para mostrar que eu não sou apenas manifestação tradicional, mas eu também passeio por outros universos musicais.

Na roseira – Vem exatamente da minha primeira matriz, a Casa Fanti-Ashanti. Essa música eu fiz em homenagem a um caboclo da Casa Fanti-Ashanti, o Caboclo da Mata Linheiro, eu fiz essa doutrina do tambor de mina e coloquei a citação de um trecho da doutrina dele. [Cantarola:] “fala caboclo, caboclo guerreiro/ fala caboclo da Mata Linheiro”.

Caminho de pescador – É uma homenagem a minha mãe e minha avó, minha mãe Zezé e minha vó Iemanjá. Esse carinho que minha mãe tem, essa vivência, esse amor por essa entidade. Inspirado nisso eu fiz essa música para exaltar minha vó Iemanjá.

Por trás da serra – É uma homenagem a mestre Humberto de Maracanã. É uma toada de boi da ilha, sou praticamente só eu, toco todas as percussões, violão, e chamei o meu amigo Fabio Leão, que faz o violoncelo. É lembrando o universo de melodias, eu me inspiro no jeito dele compor, as melodias, a poesia. [Cantarola:] “Passarinho cantando na estrada/ anuncia o alvorecer”, ele é o passarinho dessa música.

Brasa em candeeiro/ Touro da beira do marBrasa em candeeiro vem para matar minha saudade dos bois de zabumba, o boi de seu Constâncio era praticamente no fundo de nossa casa, no Bairro de Fátima. Era umas três ruas depois, mas era como se estivesse lá dentro de casa, todo tempo aquela [imita com a boca o som da percussão do boi de zabumba]. É uma homenagem ao boi de seu Constâncio, de zabumba, lá do Bairro de Fátima. É um pot-pourri com Touro da beira do mar, que até Tião Carvalho faz uma participação nela.

Dança de criança/ Lua flor de canela – Cirandas em homenagem a Pernambuco, homenagem às crianças. A ciranda é um momento de juntar as mãos, eu utilizo muito quando fecho minhas oficinas, é hora de dar as mãos, fazer a roda, eu lembro de a gente criança em volta de uma mangueira, meu avô cantando, a gente girando. Ela junta, dá as mãos, fecha o ciclo.

Chorografia do Maranhão: Luiz Cláudio

[O Imparcial, 8 de junho de 2014]

Nascido no Pará e radicado no Maranhão desde 1981, o percussionista Luiz Cláudio é o 33º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

O paraense Luiz Cláudio Monteiro Farias participou de alguns processos revolucionários da música produzida no Maranhão. Nascido em 17 de março de 1964, o músico aportou na Ilha no início da década de 1980 para trabalhar como intérprete em um hotel e nunca mais voltou à terra natal – a não ser a passeio e, recentemente, para gravar o disco do trio Loopcínico, que mistura os tambores do Maranhão a bases eletrônicas.

Filho de Cláudio da Silva Farias e Maria de Nazaré Monteiro Farias, é casado com Susana Almeida Fernandes, que o acompanhou à entrevista que concedeu à série Chorografia do Maranhão na Quitanda Rede Mandioca. Eles têm três filhos: Luiz Cláudio Filho, Leonardo e Luana.

Em paralelo ao ofício musical, Luiz Cláudio hoje continua trabalhando como tradutor e intérprete – a camisa que usava quando conversamos trazia a expressão “drums”, que pode ser traduzida como “tambores”. Ele carregava um derbak, instrumento egípcio e lembrou do arrebatamento que foi ver e ouvir o Tambor de Crioula de Mestre Leonardo pela primeira vez, numa longínqua manhã de domingo de carnaval.

Um dos mais requisitados percussionistas destas plagas, Luiz Cláudio já tocou e gravou com inúmeros artistas e não esconde serem os ritmos da cultura popular do Maranhão sua principal escola – mesmo quando o assunto é tocar choro, o que foi fundamental para o meteórico Choro Pungado, outra formação importante que integrou.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

Quais as primeiras memórias musicais de tua infância? O que te tocou pela primeira vez? Foram as big bands americanas. Meu pai havia herdado do meu avô vários LPs. Meu avô trabalhava na Icome, uma empresa em Macapá, durante a segunda guerra mundial, ele trabalhava com código morse, numa base lá. Nessa interação com os aliados, era um ponto de abastecimento dos aviões americanos. Esses americanos começaram a trazer pra ele muitos LPs, aquela época de Glenn Miller [trombonista americano], Tommy Dorsey [trombonista e trompetista americano], isso foi herdado por meu pai, ele tocava isso na radiola em casa, a gente criança, e ele ficava dançando com a minha mãe o tempo todo, ouvindo aquilo. E a gente ouvindo aquela música boa. Claro, além daquilo a gente ouvia muita música brasileira, ele gosta muito de música brasileira. Dolores Duran, Maysa, Lupicínio Rodrigues, aí vai, Pixinguinha…

Com que idade você veio ao Maranhão? E o que te trouxe? Com 17 anos de idade. Eu vim trabalhar aqui como intérprete.

Já nessa idade? Já, já era formado em inglês, eu comecei muito cedo. Eu fui convidado pra ser o intérprete aqui, acho que o primeiro intérprete, na época era o [hotel] Quatro Rodas, hoje é o Pestana, passou por várias gestões. Um tio meu passou em casa, foi uma coisa do acaso. É o destino. Esse tio passou em casa numa noite, “olha, teu filho fala inglês, eu tou com um gerente amigo meu lá, indo morar em São Luís para ser gerente de um hotel, e precisa de um intérprete, que ele não fala português, tem que ter uma pessoa para treinar e cuidar da recepção. Teu filho não quer ir?”. Eu estava sentado na porta de casa, sem pretensão nenhuma, sem saber o que tinha no Maranhão, o que estava me esperando musicalmente, isso é uma coisa interessante, em um dia eu dei a resposta, em três dias eu estava morando aqui e nunca mais voltei.

Quando você chegou ao Maranhão, já tinha algum envolvimento com música ou isso apareceu aqui? Semiprofissionalmente, vamos dizer, aqui. Em Belém eu saía nas escolas de samba tocando tamborim, ainda naquela época de couro de gato, existiam fábricas famosas. Aqui é que eu tive o primeiro contato de tocar numa banda.

Você disse que não sabia o que te esperava em São Luís. O que era que te esperava em São Luís? A cultura popular, os tambores, que é minha principal escola.

Numa de tuas primeiras vindas ao Maranhão, na [praça] Deodoro, houve uma cena impactante. Exatamente. Havia um ônibus que eu tomava, o Calhau, que passava, passa até hoje, na frente do hotel, e deixa você no Centro da cidade. Me falaram, “olha, você quer conhecer o Centro? Você pega esse ônibus, você vai descer bem na Deodoro”. Eu tava de folga do hotel, fui embora. Era uma manhã de carnaval, época em que os tambores de crioula, naquela época iam muito às ruas tocar o carnaval. Nesse domingo eu desci na Deodoro e vi aquele tambor ecoando de longe, andei, fui chegando mais perto do som, era o Tambor de Mestre Leonardo. Aquilo foi um impacto, um raio, um clarão que abriu na minha cabeça. É isso aí que eu quero! Vou pesquisar, vou correr atrás. Em Belém o carimbó, as manifestações, os ritmos do Pará não aparecem, não estão tão presentes no contexto urbano, misturados com a cidade quanto aqui no Maranhão. Eu acho que aqui é mais que qualquer lugar do Brasil. [O impacto] foi uma coisa inexplicável, eu me aproximei, perguntei onde era a sede. Uma semana depois eu já estava lá frequentando para começar [a aprender a tocar].

Hoje você é um percussionista reconhecido não só aqui, mas nacionalmente. Quem você considera seus mestres? Quem te ensinou esse ofício da percussão? A minha formação musical não foi erudita, formal. Foi muito empírica, muito de ver, ouvir e depois levar para casa e fazer o dever de casa. Naquela época celular nem existia, a gente usava um gravador k7. Os mestres para mim foram Mestre Leonardo, do tambor de crioula, Mestre Felipe, também do tambor de crioula, e o Bibi, tocador chefe lá da Casa de Nagô, na Rua Cândido Ribeiro [Centro]. Eu os considero mestres por que eu não estudei música formalmente, então o que eu aprendi com esses ritmos me serve até hoje. Quando eu comecei a descobrir novos estilos musicais, como o choro, o jazz, que eu comecei a estudar música mesmo, esses ritmos daqui servem até hoje como a principal base, o principal alicerce. Neles você encontra todas as matrizes rítmicas africanas. Não só africanas, mas ibéricas, indígenas, você consegue absorver uma quantidade de informações rítmicas, tocando esses ritmos do Maranhão. O boi e o tambor, principalmente, eles têm uma polirritmia, é muito difícil. Quando você consegue entender a complexidade daquilo, tudo o que vem pela frente é fichinha, entendeu? Quando eu comecei a aprender outros estilos, eu pensava “eu já vi isso”. Tudo isso veio desses ritmos daqui, que são ancestrais, vieram da África, do Oriente Médio.

Quando é que você foi para São Paulo? Já tocava profissionalmente? Já. O primeiro grupo que eu participei foi o grupo Asa do Maranhão: Sérgio Brenha, Mano Borges, Chico Poeta, Celso Reis. Era uma movimentação muito forte, Rabo de Vaca, Terra e Chão, era um grupo da Universidade [Federal do Maranhão], Arlindo [Carvalho, percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 18 de agosto de 2013] fez parte. O Rabo de Vaca, que era uma escola, era Jeca [percussionista], Josias [Sobrinho, compositor], Zezé Alves [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013]. O Asa do Maranhão foi um dos últimos e eu comecei no Asa, no Colégio Marista, ali no Centro. Depois vieram César Nascimento, o primeiro artista com quem eu toquei aqui, Mano Borges. Eu fui para São Paulo no final da década de 1980.

Foi a música que te levou para lá? Foi.

Você tem uma carreira paralela de tradutor e intérprete com a de músico. Houve alguma fase em que você tenha vivido exclusivamente de música? Muito. Em São Paulo eu vivi quase inteiramente de música. Nas horas vagas é que eu trabalhava como tradutor e intérprete, mas eu priorizava a música.

Lá você participou de vários trabalhos, gravação de discos. Muitos. Eu tive a sorte de cair num berço musical da boa música de São Paulo. Nada contra, mas quase não toquei em bares, quase não toquei em bandas cover. Só trabalhei com os grandes compositores, tanto na música instrumental quanto na cantada.

Cite alguns nomes. Vamos lá! Eu comecei com a Ceumar [cantora e compositora mineira hoje radicada na Holanda], vocês conhecem Dindinha [primeiro disco de Ceumar, lançado em 1999, produzido por Zeca Baleiro], a Rita Ribeiro [cantora maranhense radicada em São Paulo, hoje Rita Beneditto], gravei nos dois primeiros cds dela, Juliana Amaral [cantora paulista], Chico Saraiva [violonista carioca], Grupo A Barca, Nelson Aires, pianista, é muita gente! Gerson Conrad [compositor, ex-Secos e Molhados], que acabou voltando para a arquitetura, e Zeca Baleiro! Além de tocar e gravar com toda essa galera boa, eu participei de muitas oficinas e workshops com músicos e manifestações do Oriente Médio. Foi aí que eu conheci e fiz oficinas de música árabe, africana, cubana. Aí eu comecei a ver o Maranhão lá dentro. A bagagem, o que eles tocavam, eu dizia, “olha, isso tem lá no Maranhão”, mas não de forma arrogante. Eu levava o pandeirão, fazia um Boi de Pindaré, as células são muito parecidas com música marroquina. Uma coisa que eu sempre gostei foi fazer essa, vamos chamar de fusão, palavra batida, esse diálogo entre estilos e instrumentos musicais, misturando outras linguagens com as daqui. Pra mim a música é universal, então você pode fazer no pandeirão outros ritmos que não os tradicionais daqui, pode tocar no pandeiro outras coisas além de samba. Daí que vieram vários arranjos para o Choro Pungado.

Por falar em Choro Pungado, além dele e do Asa, que outros grupos você integrou? O Quinteto Calibrado, o Choro Pungado, o grupo Asa do Maranhão, o Duo Sound, com Luiz Jr. [violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 4 de agosto de 2013], Som na Lata, Loopcínico, mais recente. Acho que foram estes.

E artistas com os quais você tocou? Ah, aqui em São Luís teve a Flávia Bittencourt [cantora], teve [os cantores e compositores] César Nascimento, Tutuca, Carlinhos Veloz, a gente fez uma excursão interessante pelo Projeto Pixinguinha [da Funarte]. Taí: eu toquei muito samba pelo Projeto Pixinguinha, na época eu encontrei [os sambistas] Luiz Carlos da Vila, Luizinho Sete Cordas e Moacyr Luz. Fizemos oito capitais do Nordeste, três dias em cada cidade. Toquei nos discos de Celso Borges [XXI, de 2000, e Música, de 2006]. Toquei no disco de Lena Machado [Samba de Minha Aldeia, de 2010], de Cesar Teixeira [Shopping Brazil, de 2004]. Cesar Teixeira e Josias Sobrinho pareciam, para mim, antes de conhecê-los pessoalmente, eram como deuses. Eu não sou daqui. Quando eu cheguei, eu morei na esquina de São João com Afogados, ao lado do Chico Discos, no mesmo prédio. Eu descia e parava na casa de Arlindo, que eu posso dizer que foi o meu primeiro grande influenciador na coisa da percussão moderna, me inspirou muito, a coisa do set, eu já falei isso pra ele, ele não acreditou [risos]. Ele me abriu a cabeça. Voltando a Cesar, de repente ele me chama para gravar, acho que é o único registro dele até agora, foi o maior presente da música maranhense, ter gravado nesse cd.

Quais os discos mais importantes nos quais você já tocou? Cesar Teixeira, Ceumar, Dindinha, Som na Lata, que é um projeto social, um cd muito bom, Loopcínico, pra mim é um marco, um divisor de águas, embora não compreendido, mas um dia a gente vai ser [gargalhadas]. Vô imbolá [de Zeca Baleiro] e Rubens Salles, foram dois cds que eu gravei, Liquid Gravity e Munderno, um gravado em São Paulo e o outro em Nova Iorque.

Vamos falar de choro. O que significou para você integrar o Choro Pungado e o Quinteto Calibrado? Aprendizado. O Quinteto Calibrado, os caras, a veia deles é muito forte, tradicionalistas, é importante beber na tradição. O moderno você pode vir com milhões de ideias novas, mas você não pode trabalhá-las sem entender como é feito originalmente. Essa é a base, em cima dessa base, que não pode ser mudada, alterada, você pode inserir outros elementos. Por isso é importante conhecer e tocar com os caras que entendem isso. Foi muito bom. Daí, amizade com Luiz Jr., Rui Mário [sanfoneiro, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 7 de julho de 2013], pensamos em criar um grupo diferente, de choro, respeitando as tradições, o original, mas dialogando com essa rítmica maranhense. Daí surgiu o Choro Pungado, que era um laboratório vivo de criação. Nós íamos lá para casa ensaiar, comer os quitutes que a Suzana fazia, acho que é por isso que os ensaios rendiam muito [risos]. Lá em casa eles fizeram duas músicas, uma foi Fim de tarde, do Robertinho Chinês [bandolinista e cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013], parece que o Nicolas Krassik [violinista francês radicado no Rio de Janeiro] gravou [Krassik tocou violino na faixa, no disco Made in Brazil, de Robertinho Chinês]. O Choro Pungado pra mim foi também um divisor de águas na minha cabeça, eu achava que choro tinha que ser tocado só daquela maneira, que é lindo, maravilhoso. Eu cheguei a assistir em São Paulo o [Conjunto] Época de Ouro, ainda com o pai do Paulinho da Viola [o violonista César Faria, falecido], e ele tocando junto. Quando eu vi isso foi uma coisa de louco! O Choro Pungado serviu também, pra mim acho que foi o maior legado dele, ele desencadeou interesse em alguns dos músicos por essa coisa de buscar o novo sem ter medo. Posso dizer, acho que ele vai concordar quando ler, o Rui Mário, ele já era um grande músico, mas abriu mais ainda a cabeça dele. quando nós trouxemos o Rui pro Choro Pungado, ele ainda tem a veia do baião, do forró da família, tradição. Eu lembro de ter apresentado pra ele dois caras: o Piazzolla [o falecido compositor e bandoneonista argentino Astor Piazzolla], colocamos Libertango no repertório, depois o Toninho Ferragutti [sanfoneiro], com quem eu já havia gravado e tocado em São Paulo, com Nelson Aires. Eu acho que isso foi uma alavanca para ele enveredar por essa coisa que ele faz hoje, que é misturar o jazz, um pouco de erudito, sem deixar de lado as raízes dele. O maior legado do Choro Pungado acho que é esse. Robertinho fez um cd logo depois aproveitando essas influências. João Neto [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 2 de fevereiro de 2014] já era um grande músico, hoje está melhor ainda.

Para você, o que é o choro? Eu acho que o choro é o retrato da nossa cultura popular brasileira, da música de massa, da música da rua, com esse tratamento mais sofisticado da música erudita, não vou dizer do jazz. Eu acho que os choros originais, os primeiros, não têm essa influência jazzística, tem mais essa influência erudita, clássica. É isso, essa união dessa influência barroca, da música clássica no Brasil, com nossas raízes africanas, principalmente, a síncope do samba, souberam fazer esse casamento muito bem.

Quem hoje no Brasil te chama a atenção? Que você ouve e para para escutar? [O grupo] Nó em Pingo d’Água, gosto do Hamilton de Holanda [bandolinista]. Dos atuais, que estão aí. Paulinho da Viola [cantor, compositor e instrumentista] tem um lado chorístico muito forte.

Voltando a antes do Choro Pungado e do Quinteto Calibrado: como foi que você caiu no choro? Você lembra de um marco? Lembro. Antes desses grupos, a gente fazia música de um modo mais espontâneo. Centro da cidade, acho que já existia a ponte, mas não existia o outro lado, não havia música, movimento. Eu lembro de sair da porta do Laborarte [o Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão], grupo que eu fiz parte, outra escola muito importante da minha vida, gestão Nelson Brito [dramaturgo, falecido], quando ele assumiu. Lá nós saíamos sete horas da noite, eu, Jorge do Rosário, na percussão. Era uma percussão de choro, pandeiro, atabaque de couro e madeira, um cavaco, era um sambista da antiga, usava uma boina, Bonifácio, e um sete cordas, irmão de Sávio Araújo, seu Nato [Araújo]. A gente saía tocando choro e samba, pelo prazer de tocar e ganhar algum trocado para tomar cachaça. Olha o nosso percurso: a gente saía do Laborarte, encostava no Rui [o Bar do Rui, vizinho ao Laborarte, na Rua Jansen Müller, no Centro de São Luís], tocava, passava o chapéu, era assim, uma maravilha! De lá a gente ia pro Hotel Central [na Praça Benedito Leite, Centro, hoje desativado], o chapéu rodava, a grana ia toda pra comida e bebida. Nessa peregrinação, a gente fazia uns três, quatro bares num fim de semana, numa sexta-feira. Minha escola começa aí. O Nato era nosso guarda costas, ele era fortão. De vez em quando tinha uma treta nesses bares e a gente botava “Nato, vai lá e resolve!”. Ele não levava desaforo pra casa.

Você se considera um chorão? Sim, me considero. Acho que todo músico brasileiro tem que se considerar chorão, por que é o estilo musical que conseguiu sintetizar em um só bom gosto e elegância, nos arranjos executados, além de uma percussão muito forte, que é a marca nossa. Com todo respeito ao baião, mas dos estilos brasileiros é o mais bem lapidado e acabado. É uma música muito detalhista. Eu gosto de ser chorão, mas ainda não sou chorão: se você absorver e conseguir, eu não consegui ainda, tocar aquilo com domínio total, você consegue tocar qualquer outra música. Muita gente não gosta, mas todo músico brasileiro deveria passar pelo choro. É uma escola maravilhosa.

Como você avalia o choro praticado hoje em São Luís? Muito bom, muito fértil. Acompanho pelos jornais, eu não saio muito à noite. A velha guarda, os tradicionais continuam aí, Tira-Teima, Pixinguinha, e tem vários grupos novos que eu ainda não tive oportunidade de assistir. Só o fato de ainda estarem criando grupos novos significa que a linguagem continua firme e forte. Duas faculdades de música, os músicos dentro dessas faculdades, alguns integrantes de grupos estudam nestas faculdades. Para a cena está faltando voltar o nosso Clube do Choro [Recebe].

Qual a importância daquele projeto? Foi decisivo. Não só pro choro, mas pra música instrumental como um todo. Lá você permitia que nós tocássemos o choro, o samba e trabalhos autorais. Acompanhamos o Criolina [os cantores e compositores Alê Muniz e Luciana Simões], Bruno Batista [cantor e compositor] e outros cantores que foram lá, com ou sem influência do choro. E grupos instrumentais que além do choro tocavam outros gêneros. Tinha aquele aspecto muito informal, o público frequentava, prestava atenção, e foi gravado, muita memória ali, muitos grupos tocaram, acabaram, outros se formaram a partir dali. Foi um marco que precisa voltar.

Eu queria que você comentasse rapidamente o Som na Lata e o Loopcínico, os discos, os processos. O Som na Lata foi, ainda é até hoje, a gente vive numa cidade muito injusta socialmente, uma inquietação a partir de meu dissabor em ver muitas crianças desocupadas, mas com ritmo, talentosíssimas. Daí eu comecei a fazer oficinas no GDAM [o Grupo de Dança Afro Malungos, sediado no Parque do Bom Menino], a convite do Adão [liderança do GDAM]. Esse trabalho começa com oficinas de educação ambiental, ética, disciplina, a gente passa esses conceitos para as crianças, depois entra na parte musical, muito forte, culminando com a formação de uma banda e o cd. Eu concluí todas essas fases e saiu aquele cd, nós fomos premiados pela Universidade FM, melhor hip hop, tinha essa categoria. Uma das músicas [Shopping Brazil] de Cesar Teixeira fala no som da lata, [cantarola:] “o quê que tem? Se eu como na lata?”. A música tinha tudo a ver e ele, com aquela cabeça maravilhosa, cedeu esse espaço [parte dos músicos do Som na Lata participou da gravação da faixa-título do disco Shopping Brazil]. O Som na Lata tem que voltar e nós vamos voltar em breve. O Loopcínico vem de outra inquietação: quando eu estava em São Paulo eu conheci a música eletrônica, entre os anos 1980, 90, tocava lá nos clubes, nas casas noturnas, fazia produção com alguns djs, como o Érico Teobaldo, que produziu um dos cds [PetShopMundoCão] do Zeca [Baleiro], mas não tinha conseguido ainda uma forma de trabalhar a música eletrônica que fosse completamente dominado pela música maranhense. Eu consegui com o Loopcínico, ali eu consegui dar voz aos tambores. O disco foi gravado em Belém, no estúdio Ná Music, mas com a linguagem maranhense. O disco foi indicado agora ao Prêmio da Música Brasileira 2014. Entre quase cinco mil cds nós ficamos na pré-seleção entre cento e poucos. Pra mim já foi um prêmio. Eu chamei Beto Ehongue [cantor, compositor e dj] e Lobo de Siribeira [cantor e compositor], foi a formação inicial. O Loopcínico era um sonho antigo como percussionista, instrumentista. A concepção dele é muito nova, não a base, a eletrônica já existe há muito tempo, mas a concepção desse cd, inserido no nosso contexto, ainda está sendo muito nova. Muita gente não percebeu que os tambores foram gravados ao vivo, eles não foram sampleados, há uma diferença. Muita gente ainda não conseguiu entender por que aqueles tambores estão ali misturados com as bases eletrônicas.

O Mestre Mandou no Mestre Amaral

Divulgação
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O Espaço Cultural Tambor de Crioula de Mestre Amaral tem se configurado num dos lugares pulsantes e interessantes da cidade, por diversos aspectos, dos quais destaco a reinvenção do espaço público, pela ocupação de um imóvel abandonado, no centro da cidade, com atividades culturais. São Luís precisa de mais Mestres Amarais.

Nesta sexta (8, a partir das 19h) e sábado (9, de 16h em diante) acontece o brechó O Mestre Mandou, ocasião em que armários e coleções de discos poderão ser renovados. Obviamente com trilha sonora: além da tradicional roda com o tambor de crioula do mestre que batiza o espaço, haverá apresentações do Maracatuque Upaon Açu e de Tiago Máci, acompanhado da dupla Ambos com Voz. A organização do evento intenta realizá-lo mensalmente.