Guerrilhas, novo livro de Flávio Reis

Este blogue dá em primeira mão. Antes, o prefácio:

OUTRA HISTÓRIA
Celso Borges*

Cada um luta com a arma que pode, com a arma que tem. A de Flávio Reis está na cabeça, no pensamento, na palavra. Afiada e lúcida, perpassa vários campos nesses 20 textos de Guerrilhas, em sua maioria publicada em jornais de São Luís nos últimos anos. Um pequeno livro que nos ajuda a pensar o Maranhão, a entender por que chegamos até aqui do jeito que chegamos. No cerne de cada questão abordada está a luta contra o modo de pensar da classe dominante, que impõe a sua história, ora idealizada, ora subjugando o pensamento discordante.

O livro abre com a polêmica sobre a fundação de São Luís. Cinco artigos desconstruindo o discurso oficial, que prefere idealizar a fundação da cidade pelos franceses, em lugar dos portugueses “bárbaros”. Um discurso que privilegia a filiação distinta de Daniel de La Touche, o fidalgo francês, Senhor de La Ravardière, em substituição a Jerônimo de Albuquerque, que nem português era, um mestiço do sertão. Analisando o debate em torno do nosso “mito fundador”, o autor afirma que a argumentação da maioria dos intelectuais e historiadores, sedimentada a partir do início do século 20, é resultado de uma visão narcísica que busca esconder uma história de violência e miséria em nome de um passado glorioso.

Guerrilhas ressuscita também assuntos fadados ao silêncio, como o momento obscuro da política maranhense, nos anos 20 do século passado. Com base no livro Neurose do Medo (Nascimento de Moraes, 1923), resgata uma história com direito a governador neurótico, juiz arruaceiro, assassinato e suicídio. Um verdadeiro circo de horrores, retrato da república em terra tupiniquim.

Quase 100 anos depois, mais um capítulo da barbárie política do Maranhão é revisto, agora sobre a troca de governadores do estado, decidida pelo TSE em 2009 (“O Nó-Cego da Política Maranhense”). Aqui ele aponta o dedo aos que sempre estão posando para a foto no baile dos vencedores. Mais adiante, no artigo em que saúda o primeiro aniversário do jornal Vias de Fato, (“Vias de Fato: um ano memorável”), retrata onde estamos metidos, imersos num jornalismo distante da comunidade, ressonando uma estrutura apodrecida.

Os primeiros nove textos de Guerrilhas são, portanto, uma radiografia de como a estrutura política dos últimos 100 anos nos obrigou a ler o Maranhão à sua maneira. Em seguida, o autor escreve sobre a violência urbana. E o Maranhão está ali também, como um “estado onde a moldura do poder oligárquico conseguiu atravessar o século sem grandes alterações, as polícias militar e civil sempre estiveram perpassadas por interesses políticos e prontas a se submeterem às vinganças privadas que passam ao largo do sistema judiciário.” (“Crime e Cinismo”).

Mais à frente, em artigo sobre “Litania da Vela”, poema de Arlete Nogueira da Cruz, toma por referência o filósofo Walter Benjamin e encara o poema como “ladainha do fim dos tempos modernos”. Poema do grotesco, prenúncio da nova barbárie, faz a descrição crua da miséria de uma velha na ‘cidade que se desfaz em salitre’. É a deixa para a retomada do primeiro assunto do livro. Como um boi triste e furioso, o autor continua ruminando o mito da fundação da cidade, tema que perpassa todo o livro. Nasce aí, talvez, o mais importante texto da coletânea: “A Saga do Monstro Souza”, sobre a obra de Bruno Azevêdo e Gabriel Girnos.

Nesta análise, consolida algo que me parece fundamental em Guerrilhas, um desejo de recontar a história numa busca obsessiva pela cidade real, não a de azulejinhos e boizinhos de butique, embalagem ideal para os turistas de pacote e o desenvolvimento de campanhas publicitárias, que alimentam a insossa cultura do elogio. Um Não à “Ó minha cidade, deixa-me viver…”, de Bandeira Tribuzi ou à Ilha Magnética de César Nascimento, mas um viva a São Luís de “Eh, Ponta D’areia, há muito tempo que eu não te vejo”, de Chico Maranhão. Flávio acompanha a trajetória do personagem principal, um cachorro-quente serial killer, inserindo colagens e notícias de jornais retiradas do próprio livro de Bruno e Gabriel.

A discussão sobre identidade reaparece através da música. O assunto trazido à tona é o debate sobre o que vem a ser realmente música popular maranhense, o termo MPM, ou a invenção dele. O texto é apenas a ponta de iceberg de um debate complexo e extenso. O autor sabe que esta “é uma questão complicada, que não comporta respostas fáceis”. Talvez tenha esquecido de destacar no bolo de influências de alguns compositores da tal MPM o reggae, que divide com o bumba-boi, o prato preferido desses artistas, de 1978 a 1998. Afinal, aquilo que se fez com o boi, tirando-o do terreiro para dentro dos estúdios (leia-se Papete e compositores do Bandeira de Aço), aconteceu também com o reggae, retirado dos salões para o sucesso das rádios (leia-se Beto Pereira, Mano Borges, César Nascimento, etc).

Da música para o cinema. Dos três artigos destaco “Marginal Sim, e por que não? Babaloo, Babilônia, Brasil”. Defesa enfática do cinema marginal, produzido no Brasil nos primeiros anos da década de 70, enaltecendo a postura dessa geração, que continuou com a câmera livre do cinema novo, mas sem as amarras deste: “de certa forma radicalizavam o mergulho no subdesenvolvimento preconizado anos antes por Gláuber Rocha, faziam a escancaração da barbárie sem a carapaça política e o sentido de missão”.

Os textos sobre cinema mostram uma opção clara pela radicalidade, com exceção da análise que faz sobre a filmografia do maranhense Frederico Machado, em que é mais ponderado. No olhar sobre “Nietzsche em Turim”, de Júlio Bressane, acompanha os passos-imagens do filósofo alemão enquanto a loucura toma sua alma. Um texto que vê o nascimento da loucura de um dos pensadores mais radicais do ocidente.

De Nietzsche para Lacan, Freud e companhia: recalque, desejo, angústia e pulsão. Dois artigos, dois peixes fora d’água, dois peixes dentro do mar da existência, o doloroso mundo da psicanálise. Talvez Flávio pudesse deixá-los de fora, mas como evitar a vida fora da arte?

*Celso Borges é autor de oito livros de poesia, entre eles “Pelo Avesso”, “Persona Non Grata”, “NRA”, “Música” e “Belle Époque”.

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Baixe agora!

2011 foi o ano em que conheci pessoalmente o desde antes e sempre admirado Flávio Reis. Entre as muitas lacunas em minha formação, uma delas certamente é não ter sido seu aluno. No entanto, tenho aprendido um bocado com seu convívio, nas reuniões do conselho editorial do jornal Vias de Fato, do qual “nosso mestre”, como o chamamos eu e Emílio Azevedo, é grande entusiasta.

Autor de Cenas Marginais (2005) e Grupos Políticos e Estrutura Oligárquica no Maranhão (2007), ambos editados às próprias custas s/a, o professor da UFMA agora bota na rua o bloco de Guerrilhas, “reunião de artigos escritos na última década, quase todos publicados na imprensa local, reeditados com pequenas correções”, cujo prefácio acima bem resume.

O livro “ainda não foi impresso, mas será” e o lançamento acontecerá em janeiro, detalhes o blogue dará em momento oportuno, antecipando que trata-se de uma publicação que envolve esforços do próprio Flávio Reis (às próprias custas s/a, ibidem), da editora Pitomba! e do jornal Vias de Fato, cujos selos comparecem à obra. Antes do lançamento os poucos mas fieis leitores deste blogue já podem baixar o pdf: Guerrilhas.

Cultura em 2011

Aos 45 do segundo tempo, às vésperas do fechamento da edição de dezembro do Vias de Fato (nº. 27, capa acima, ora nas melhores bancas da Ilha), inventei de fazer uma retrospectiva cultural. No último dia 12 encaminhei a uma pá de agentes culturais um e-mail com a seguinte pergunta: “Para o bem ou para o mal, no campo cultural, o que você destacaria numa retrospectiva particular do ano que se encerra?”.

Alguns responderam, outros não; outros ainda o fizeram depois do fechamento do jornal. O blogue traz abaixo um mix do que saiu na edição impressa do mensal com respostas que chegaram depois à caixa de e-mails do blogueiro (os depoimentos em itálico só aparecem acá).

RETROSPECTIVA CULTURAL

O jornal Vias de Fato traz aos leitores uma retrospectiva construída a muitas mãos – a coletividade uma característica da publicação. Veja o que diversos agentes culturais destacaram entre os acontecimentos do ano que se encerra

ZEMA RIBEIRO

Ano em que o mensal Vias de Fato completou dois de circulação ininterrupta – apesar de todas as dificuldades – e véspera do quarto centenário da capital maranhense – há controvérsias – 2011 foi marcado por diversos acontecimentos na área cultural.

Em vez de fazer uma retrospectiva certamente incompleta, resolvemos ouvir gente da área, que entende do assunto. Maranhenses ligados ao setor, residentes ou não aqui ou mesmo nem nascidos, mas com alguma ligação com o estado, destacaram o que de bom e ruim aconteceu no ano que se encerra.

“Para o bem ou para o mal, no campo cultural, o que você destacaria numa retrospectiva particular do ano que se encerra?” foi a pergunta feita pelo Vias de Fato. Leia abaixo as respostas.

O crítico Alberto Jr.: otimismo

“A primeira coisa que me vem à cabeça ao pensar em cultura neste ano de 2011 é a palavra ‘otimismo’, sobretudo em relação ao trabalho que muitos artistas vêm desenvolvendo de forma independente na busca de uma cena cultural cada vez mais urbana e ‘conectada’ com as experiências desenvolvidas em outros estados.

Um exemplo disso é o pessoal do gênero pop/rock, que, neste ano, conseguiu produzir shows e eventos fazendo circular pela ilha bandas alternativas com trabalho autoral e promovendo esse diálogo musical dentro dos circuitos nacionais de festivais de música independente. Cito aqui o Coletivo Velga, Garibaldo e o Resto do Mundo, Gallo Azzuu, Megazines, Nova Bossa, entre outros.

Beto Ehongue, Dicy Rocha, Tássia Campos, Milla Camões, Bruno Batista e Djalma Lúcio me fizeram bater muitas palmas em todos os projetos que estiveram envolvidos.

Algumas casas noturnas também me ofereceram bons encontros e boas experiências sonoras. Salve o Odeon Sabor e Arte que voltou com boas energias e a novidade regueira que é o Porto da Gabi. Experiências transcendentais.

No difícil campo das artes cênicas, a Pequena Companhia de Teatro, a Santa Ignorância Cia. de Teatro e o talento do dramaturgo Igor Nascimento não deixaram eu me acomodar na confortável resignação de fruir de espetáculos simples. Foram geniais!

Tivemos quatro festivais de cinema com programação de qualidade e algumas com caráter popular que me fizeram chorar com a vida e arte de grandes artistas e inclusive com alguns filmes que serviram bem mais do que ter pago qualquer valor para um analista ou psicólogo. Quando a ficção ajuda até a tua subjetividade.

Enfim, pelos exemplos que citei, percebe-se a pouca referência a instituições ou órgãos públicos como apoiadores desses projetos. O otimismo está aí: essa sensação de testemunhar experiências culturais contemporâneas que nos afastam de qualquer saudosismo ou nostalgia com outras décadas e colocam nossos sentidos para viver o presente, sem vícios, sem dependências e com a coragem de quem confia na autoestima de nossa produção cultural contemporânea.

E o próximo ano será bem melhor!”

Alberto Júnior, radialista e crítico musical

“O fato mais marcante foi a grande quantidade de shows em São Luís no início do ano. Foi uma verdadeira explosão de bons shows e shows inéditos ou quase inéditos em São Luís. Infelizmente o ano de 2011 não prosseguiu com a grande “leva” de shows, talvez por acanhamento de muitos produtores, mas os primeiros meses do ano foram realmente surpreendentes. Só para lembrar, tivemos apenas em abril, Pitty, Marcelo D2, Lobão, Richie Spice, Doro Pesch e outros. O primeiro semestre de 2011 também nos agraciou com shows de Jason Mraz, Adriana Calcanhotto, Marcelo Camelo, Blues Etílicos, Arnaldo Antunes e muitos outros. O segundo semestre também pode ser lembrado com shows do Teatro Mágico e os internacionais Blind Guardian e Flo Rida. Dezembro será fechado com chave de ouro com show de Paulinho Moska, em mais uma edição do Prêmio da Rádio Universidade. Com certeza esqueci de mencionar vários outros shows, mas todos esses shows provaram que São Luís pode sim receber grandes nomes da música brasileira e exportações da música pop”.

Andréa Barros, jornalista, ex-assessora de comunicação da Lima Dias Turismo, agência responsável pela vinda de muitos dos shows citados à capital maranhense

Ehongue lembra a dinheirama despejada no carnaval carioca em detrimento dos artistas que produzem no Maranhão

“Queria tanto estar agora escrevendo algo de bom sobre os rumos culturais de nossa cidade/estado em 2011, sério mesmo. Queria poder dizer que grandes eventos aconteceram e melhor ainda acreditar que o ano seguinte mostra uma luz clara no fim do túnel, mas não dá. Ficamos carentes de políticas culturais onde ainda prevalecem as decadentes e assistencialistas programações de São João e Carnaval.

Os milhões dedicados à escola de samba Beija Flor, a Praia Grande abandonada e outros milhões dispersados em uma árvore de natal são só algumas das aberrações que indicam que nossa terra anda completamente na contramão das necessidades. Isso tudo merece um DELETE.

Fora da esfera oficial aconteceram coisas boas, como por exemplo o Prêmio Nacional de Música recebido pela dupla Alê Muniz e Luciana Simões. Isso serve de inspiração para toda uma geração de músicos maranhenses que mesmo sem o apoio ou a lembrança dos órgãos que trabalham com cultura continuam teimando com talento e criatividade.

Em 2012 desejo a todos um ano mais sincero e promissor.”

“Beto Ehongue, compositor e produtor musical, homem à frente das bandas Negoka’apor e Canelas Preta

“Destacaríamos, em 2011, o Papoético como uma ideia que germinou e está criando raízes no panorama cultural da cidade. Apesar de ainda não ter a visibilidade necessária na mídia, está se expandindo entre as pessoas que pensam e se preocupam com a cultura em São Luís e no Maranhão. Como evento, São Luís, Outros 400 [temporada de nove shows apresentada pelo compositor Joãozinho Ribeiro e convidados no Novo Armazém] foi um acontecimento que reuniu a nata da música e da cultura maranhenses nos últimos meses do ano.

Também citaríamos o Café Literário, promovido no [Centro de Criatividade] Odylo Costa, filho, organizado pela professora Ceres Fernandes e, finalmente lembramos, para lamentar, o pouco caso que a Prefeitura de São Luís dedicou à Feira do Livro, um evento agregador e com grande potencial econômico, turístico e cultural, mas que está sendo continuamente esvaziado devido à miopia dos atuais administradores da cidade”.

Beto Nicácio, arte-educador, publicitário e quadrinhista, e Iramir Araújo, historiador, publicitário e quadrinhista, a Dupla Criação

Para Mesito, Feira do Livro foi decepcionante

“A decepcionante 5ª. Feira do Livro de São Luís (Felis). Para mim foi a maior decepção cultural nos últimos tempos”.

Bioque Mesito, poeta

Para o editor da Pitomba!: "De mal (...) quase tudo que tenha (...) alguma oficialidade"

“O Papoético é um lance massa! É o que vejo de mais interessante, por ser um lance coletivo e agregador, sem falar na pinga. De mal houve quase tudo que tenha as mãos de alguma oficialidade: tombamento do boi, feira do livro, essas coisas”.

Bruno Azevêdo, escritor, autor de Breganejo Blues e O Monstro Souza, editor da revista Pitomba! e, a partir deste número, colunista do Vias de Fato

“Na música eu destacaria a trajetória de sucesso de Cine Tropical, que deu o Prêmio da Música Brasileira ao Criolina. Na literatura, o lançamento de aliado involuntário, novo livro de poemas de Fernando Abreu”

Celso Borges, poeta e jornalista, parceiro da Alê Muniz e Luciana Simões em São Luís-Havana, faixa que levou o troféu de melhor música no Prêmio Universidade FM 2010

Prêmio do Criolina e livro de Fabreu foram os destaques para CB, aqui visto em uma de suas elogiadas performances

“Vamos logo para o bem.
Mesmo não sendo lá essas coisas, difícil não destacar no ano de 2011, no campo cultural e longe dos afagos oficiais, os lançamentos primorosos dos CDs de Bruno Batista e de Nosly, o amadurecimento  da dupla Criolina, a garra e a beleza das performances de Celso Borges, o Papoético do Paulão [o poeta e jornalista Paulo Melo Sousa], o Café Literário, o livro do Fernando Abreu, os Outros 400, projeto de Joãozinho [Ribeiro] etc . Saldo positivo.

De tristeza: a continuada  favelização da Praia Grande e a perda de D. Teté.”

Chico Saldanha, compositor, lançou Emaranhado em 2007 e, ao lado de Cesar Teixeira, Joãozinho Ribeiro e Josias Sobrinho, levou o troféu de melhor show do ano no prêmio Universidade FM 2011

Memória cinemetográfica

“Como a minha área de atuação é o cinema, acho que é importante destacar que em 2011 tivemos várias mostras e festivais. Isso é uma importante conquista para o público, que certamente teve acesso a produções destacadas no cenário nacional e no internacional.

Não podemos esquecer também esse maravilhoso trabalho do cineasta Murilo Santos de devolver às comunidades aquilo que a sua câmera registrou com o passar dos anos, tanto na forma de sessões como na de belos painéis fotográficos, além dos novos vídeos gerados nesses encontros.”

Francisco Colombo, cineasta e professor universitário, curador das mostras de Cinema Infantil e Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, realizadas em São Luís em 2011

Gildomar Marinho entra em estúdio em janeiro para gravar sucessor de Olho de Boi (2009) e Pedra de Cantaria (2010)

“O destaque é o próprio jornal, com sua linha editorial que se configura um contraponto à cultura vivenciada no Maranhão atualmente, eivada de vícios, paternalismos e extremamente violenta contra qualquer perspectiva de emancipação cultural. Vias vai às veias, às tripas, aos fatos. Um soco no estômago de uma elite autocrática. Um sopro de vida à verdadeira imprensa livre”.

Gildomar Marinho, compositor

Para Lena Machado, destaque foi o show de Cesar Teixeira

“O show Bandeira de Aço de Cesar Teixeira em julho, no Circo da Cidade. Ver o nosso querido poeta feliz e à vontade no palco, cantando clássicos, além de apresentar inéditas como Cubanita e Boi de Medonho foi maravilhoso. Tão bom que não canso de perguntar: e aí, Cesar, quando seremos presenteados com o segundo?!!”

Lena Machado, cantora

Descaso com artistas entre as lembranças de Milla Camões, que estreia em disco ano que vem

“O que me marcou de forma positiva foi o Lençóis Jazz e Blues Festival. Claro, houve a minha participação, mas muito mais pelo fato de São Luís ter entrado, definitivamente, na rota comercial deste tipo de música, no Brasil. Além de, por falar em rota, termos tido também, bons shows (apesar de, às vezes, a preços exorbitantes, por conta da falta de espaço adequado para as apresentações ou mesmo falta de compromisso dos contratantes), boas peças de teatro, enfim. Vi um suspiro de qualidade entrando nas veias da cidade e isso me deixa feliz. Dois fatos me deixam extremamente triste: a falta de responsabilidade e compromisso de donos de bares, casas noturnas e governantes com a música em geral (não pensem que calotes, prejuízos etc., acontecem só com uma fatia: inclua aí TODOS os estilos), e, embora redundante, a pergunta anual, que continua sem resposta: “Até quando?”; e a perda de figuras importantes de nossa cultura, a exemplo de Dona Teté. Seu cacuriá continuará vivo, por que existem pessoas dispostas a se comprometer com seu legado. Mas quantos mestres morreram, esquecidos em interiores deste Estado, quantas culturas, quantas danças estão entrando em extinção, por não haver interessados em repassar ao próximo seu conhecimento? Aulas de cultura popular, de arte em geral, nas escolas; a aprovação e inclusão definitivamente dessa Lei [que torna obrigatório o ensino de música nas escolas], seria de grande valia. E que 2012 nos traga felicidade, poesia, música e arte ao cubo!”

Milla Camões, cantora

Falecimentos de Carlos de Lima e Dona Teté entre os maus momentos lembrados por Moema

“Tivemos bons e maus momentos, alegres e tristes. Com certeza a morte de D. Teté e a do Sr. Carlos Lima foram nossas grandes perdas. Alegres foram os outros momentos, incluindo (para quem gosta): o carnaval, as festas juninas, as feiras, principalmente a de livros e a de artigos de vários paises. O lançamento do livro de Aymoré Alvim, meu irmão, foi um dos melhores momentos da nossa Academia. Lamentáveis os fatos que envolveram o Prof. Saraiva [acusado de racismo por estudantes da UFMA], manchando uma reputação construida com muito sacrifício, ao longo de muitos anos”

Moema de Castro Alvim, sebista, proprietária do Papiros do Egito

Papoético de Paulão entre os mais lembrados na retrospectiva

“Acompanhei pouco as agitações culturais este ano. Só estive mesmo ligado no Papoético, mas, acho que a revista Pitomba! fez a diferença. Fazer literatura, no Maranhão, hoje em dia, é ato de heroísmo e publicar é altruísmo puro. A Pitomba! deu uma importante contribuição, aliando agitação literária com um material de qualidade, gerando, inclusive, polêmica, o que serviu para oxigenar o cenário da cultura local”.

Paulo Melo Sousa, jornalista e poeta, coordenador do Papoético, tertúlia semanal realizada no Chico Discos (Rua 13 de Maio, Centro)

“Eu destacaria o filme A alegria, de Felipe Bragança e Marina Meliande, bem como a Trilogia Coração no Fogo, da qual o filme faz parte, pelas razões que já expus aqui. É um cinema que produz, com suas imagens oxigenadas, outras maneiras de ver. Munição pesada para a imaginação, o sonho e a coragem”.

Reuben da Cunha Rocha, jornalista e poeta

Ricarte Almeida Santos lembra bons momentos, apesar da ausência de política cultural, objeto de seu estudo no mestrado em Cultura e Sociedade (UFMA)

“Para o bem: o projeto Outros 400 [temporada capitaneada pelo compositor Joãozinho Ribeiro, no Novo Armazém]; o show Rosa Secular II [com Chico Saldanha, Joãozinho Ribeiro, Josias Sobrinho e convidados, Bar Daquele Jeito, 10/12]; o lançamento do cd Eu não sei sofrer em inglês, o segundo de Bruno Batista;  o show Bandeira de Aço, de Cesar Teixeira [Circo da Cidade, junho]; a Mostra de Cinema Infantil [Cine Praia Grande, 12 e 13/10]; o Festival Guarnicê de Cinema; as várias rodas de choro em vários locais da Ilha (de shoppings a botequins); o lançamento do cd A Canção de Cartola na voz de Léo Spirro. Para o mal: nem um passo dado no sentido de uma política cultural para o Maranhão; o governo de Roseana Sarney financiando o carnaval da Beija Flor carioca; a morte de Dona Teté; a cultura de eventos que ainda prevalece; e o abandono da Praia Grande”.

Ricarte Almeida Santos, sociólogo e radialista, apresentador do dominical Chorinhos & Chorões, às 9h, na Rádio Universidade FM (106,9MHz)

Urias critica parte da classe artística

“São Luís, 400.000 lamentos. Um povo é o reflexo de seu governo ou o governo é reflexo do seu povo? Estamos no ápice da mediocridade no nosso fazer cultural (talvez com exceção para as “brincadeiras” populares). Uma secretaria medíocre, cercada de nós, artistas ainda mais medíocres, que sempre pensamos que nosso trabalho é a maravilha. A miséria que vem nos cercando, sem dúvida, vai sendo refletida na qualidade de nossos produtinhos “inventados” e não criados com um debruçar sobre si mesmo para por em prática um processo que venha alterar e complementar a consciência de quem somos nós. Ouvi outro dia de um amigo “artista”: “Ah!, esse negócio de processo (!!!!), de treino e ensaio pesado me enche o saco. Agora tudo é processo! Eu quero mais é fazer!”. Acho que todos nós realmente temos o direito de fazer o que nos dá na telha e nos desejos, mas na minha liberdade de pensar, penso também que esse papo é de “artista” que não tem que batalhar para viver da arte que faz e tem casa, comida e roupa lavada, além de não dar a mínima pro seu crescimento pessoal, o que por si só justifica a busca de um processo de trabalho..”

Urias Oliveira, ator premiado internacionalmente, botando o dedo na ferida

Wilson Marques é outro que destaca o cinema em 2011

“Destaco o primeiro Festival Internacional de Cinema, da Lume, evento de alto nível que infelizmente foi pouquíssimo prestigiado pelo público de São Luís”.

Wilson Marques, escritor, lançou em 2011 A Lenda do Rei Sebastião e o Touro Encantado em Cordel

ZéMaria Medeiros destaca evento próprio e descaso com artistas pelo poder público

“Os 9,7 anos de A Vida é uma Festa, os lançamentos dos cds Onde tá o coro, de ZéMaria Medeiros & A Casca de Banana, e Arriba Saia, de Omar Cutrim, os falecimentos de Mundica e Dona Teté, os atrasos entre seis meses e um ano para pagamento de cachês de artistas, um absurdo!, o carnaval 400 anos da Beija Flor, ridículo!, o desprezo da produção musical do Maranhão pelos maranhenses, em valorização do axé, breganejo, pornoforró e tchans!”

ZéMaria Medeiros, poeta e músico, comanda há mais de nove anos o happening A Vida é uma Festa, que acontece semanalmente às quintas-feiras na Praia Grande

Nós lemos Vias de Fato

Nós lemos Vias de Fato

Fiz a fotosca acima durante este evento da SMDH. Ali, os votos de feliz natal da casa, que este blogue toma para si.

Discurso de Cesar Teixeira

[Por ocasião da entrega do Prêmio José Augusto Mochel, honraria concedida anualmente pelo Comitê Municipal do Partido Comunista do Brasil de São Luís a personalidades e instituições de destacada atuação na luta popular e democrática e na defesa dos direitos humanos. A solenidade aconteceu na noite de ontem (16), no Auditório Fernando Falcão, da Assembleia Legislativa]
Ladeado por Márcio Jerry, Joãozinho Ribeiro e sua filha Júlia Andresa, Cesar Teixeira é agraciado com Prêmio José Augusto Mochel, ontem

Caríssimos representantes do Comitê Municipal do PCdoB de São Luís e da Fundação Maurício Grabois, Exmo. Senhor deputado estadual Rubens Pereira Júnior. Quero a princípio agradecer pela indicação do meu nome ao Prêmio José Augusto Mochel de 2011. Na verdade é ele, o líder comunista falecido em março de 1988 – aqui representado pela sua esposa Elba Gomide Mochel – o legítimo homenageado, desde a instituição do Prêmio em 2007.

Não sei se mereço a premiação. Conheço pessoas de maior importância que eu no cenário dos direitos humanos no Maranhão, contudo ainda invisíveis, talvez porque sejam feitos de alma, não assinam ponto e não cumprem expedientes. Estão sempre disponíveis e sua luta é permanente. Mas não poderia deixar de participar desta cerimônia, nem recusar o convite de um partido que fez e faz história em favor do socialismo neste País de tanta injustiça social e tanta corrupção.

Muitas das lutas do PCdoB foram marcadas pela dor das perdas, mas significaram um avanço para a construção de uma ética política negada ontem pelo regime militar, e hoje pelas oligarquias que tomaram conta do Brasil. Mas o que os inimigos da liberdade não sabiam, é que com o sangue derramado por aqueles que tombaram também se fabricam tijolos, com os quais vão se erguendo os novos pilares da cidadania.

"No Maranhão estão aí milhares de camponeses banidos de suas terras, trabalhadores escravizados por fazendeiros sanguinários, quilombolas e índios sendo massacrados por grileiros" (Charge originalmente publicada no jornal Vias de Fato nº. 9, junho de 2010)

A democracia no Brasil ainda não mostrou sua verdadeira cara. Continua sendo uma máscara para a miséria do povo. No Maranhão estão aí milhares de camponeses banidos de suas terras, trabalhadores escravizados por fazendeiros sanguinários, quilombolas e índios sendo massacrados por grileiros. A natureza aos poucos vai sendo devorada pela ganância das empresas do lucro fácil e seus arautos.

Mas não vou aqui rezar missa para vigário. Todos aqui conhecem bem a realidade do nosso Estado e sabem quem são os culpados. Seria redundância citar a família Sarney. Por isso, não só entidades civis, movimentos sociais, igreja, sindicatos, devem estar atentos. Os ocupantes dos palácios, do congresso, das câmaras e das assembleias legislativas são igualmente responsáveis pela defesa dos direitos humanos e da constituição brasileira. A história certamente rejeitará os omissos e os corruptos.

Sem mais, me despeço, desejando a todos muita sorte no ano que se aproxima, e que não se deixem enganar pelo Halloween dos 400 anos de São Luís.

Quero finalmente agradecer aos anfitriões Márcio Jerry e Elba Mochel, dos quais recebi atenção integral, e de modo especial à minha mãe, Mundica Teixeira, já falecida, a minha companheira Irinete e a minha filha Júlia Andresa pelo apoio e carinho com que fui e tenho sido premiado todos os dias, na tristeza e na alegria. Muito obrigado, e vamos em frente!

Feliz Pitomba! nova!

Bobos da corte maranhense refestelam-se no carnaval carioca: o povo paga a conta

Ontem encaminhei ao Vias de Fato a página de cultura da edição deste mês, que chegará às bancas junto com o terceiro número da revista Pitomba!: o lançamento desta está marcado para esta sexta (16), às 19h, no Bar do Porto, aberto ao público (a revista custa R$ 5,00).

O que fiz para o jornal “que não foge da raia”: uma retrospectiva cultural. Diversas personalidades da cultura do Maranhão responderam à pergunta “para o bem ou para o mal, no campo cultural, o que você destacaria numa retrospectiva particular do ano que se encerra?”

O resultado você poderá conferir na edição impressa do Vias de Fato (aqueles que foram questionados por e-mail e responderam após o fechamento da edição terão suas respostas publicadas cá no blogue, junto das dos que responderam a tempo) e talvez você estranhe eu tanto falar do jornal quando o post deseja outra coisa.

O lance é o seguinte: entre as boas lembranças de alguns agentes culturais está o nascimento, a consolidação da revista Pitomba! Houve mesmo quem lembrasse da polêmica, de que tomou parte este blogue, envolvendo a publicação e o leitor-livreiro José Lorêdo, cujo texto que remonta à inquisição, acabou indo parar nas páginas do número 3 da de-vez-em-quandal editada por Bruno Azevêdo, Celso Borges e Reuben da Cunha Rocha. Dúvida que não quer calar: venderá a livraria Resistência Cultural este número da Pitomba!?

Abre este post poster encartado no caroço da revista, publicado com exclusividade neste blogue, retratando personalidades como a cantora Alcione, o secretário de saúde Ricardo Murad, o de cultura Luiz Bulcão, a governadora Roseana Sarney, o “sempre ridículo” Pergentino Holanda (cf. Flávio Reis) e outros “poderosos”, baba-ovos e quetais. Os maranhenses na festa carioca da Beija-Flor, paga com dinheiro dos que não serão convidados para esta festa podre. O derramamento de dinheiro público para bancar o carnaval alheio, de samba-enredo fruto de ensandecimento coletivo, foi outro fato lembrado na retrospectiva cultural do Vias de Fato, “para o mal”.

Apesar da turma ilustrada por Joka, 2011 fecha com saldo positivo, as sobrevivências de Pitomba! e Vias de Fato, sem o apoio de quaisquer verbas governamentais, provas incontestes disso, exceto, é claro, em se tratando das contas bancárias dos editores das publicações.

Abaixo, detalhes sobre o lançamento do novo número da Pitomba! e os nomes de quem está nesta edição.

Balanço da Mostra

Produtor local da 6ª. Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, o cineasta Francisco Colombo analisa a realização da etapa ludovicense do maior evento do gênero no continente

POR ZEMA RIBEIRO

A cantilena de que São Luís padece de falta de espaços para a fruição de cinema de qualidade parece perder o sentido, em parte, se observarmos a quantidade de festivais que a capital maranhense tem recebido nos últimos tempos: Festival Lume, Maranhão na Tela, Guarnicê, Mostra de Cinema Infantil e, mais recentemente, a 6ª. Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, encerrada domingo passado (6 de novembro). Em parte, frise-se: fora um ou outro cineclube, o Cine Praia Grande ainda é a única sala a exibir produções fora do circuito comercial, o que o torna palco natural e privilegiado para eventos do porte, não fossem os problemas que veremos a seguir.

Realização da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR) com produção da Cinemateca Brasileira e patrocínio da Petrobras, através da Lei Rouanet, a Mostra chegou pela segunda vez à São Luís, trazendo 47 filmes – 46 de dez países da América do Sul, mais Morango e chocolate, coprodução de Cuba e México – em 25 sessões, durante sete dias, tendo início em 31 de outubro.

Pela segunda vez entrevistado pelo Vias de Fato – a primeira há um ano, em novembro passado, sobre a quinta edição da Mostra –, o cineasta Francisco Colombo, produtor local, concedeu, via msn messenger, a entrevista a seguir.

ENTREVISTA: FRANCISCO COLOMBO

Vias de FatoQual o seu balanço após a realização da etapa São Luís da 6ª. Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul?
Francisco Colombo – Acho que deu tudo certo apesar de algumas variáveis que não estavam sob controle, digamos, da produção: a sequência de feriados – interpretada de modo diferenciado pelos poderes executivos estadual e municipal, judiciário e Ministério Público. Isso influiu na mobilização de públicos e na disponibilização, por exemplo, de transporte para entidades ou grupos. No Odylo Costa, filho, a Mostra era a única coisa que funcionava em alguns dias. Além disso, o ar-condicionado do cinema estava muito ruim. Quando vamos ao cinema queremos conforto, queremos nos desligar um pouco do mundo. E fica difícil no calor.

É a segunda vez que a Mostra chega à São Luís. Qual o comparativo entre as duas edições recebidas pela capital maranhense? Houve uma pequena, mínima, queda de público. Mas como disse anteriormente, isso se deveu às variáveis mencionadas. Vi muita gente diferente nessa edição da Mostra. Acho que conseguimos cativar mais gente. A cobertura da imprensa também foi muito boa. A expectativa gerada para a abertura, por parte dessa cobertura toda, em particular da televisiva, foi excelente.

A grande concorrência gerada pela sessão de abertura tem também a ver, ainda que minimamente, com a distribuição dos kits-brindes da Mostra. A sessão de O céu sem eternidade [sexta-feira, 4/11, 19h], no entanto, superou, a de abertura [segunda-feira, 31/10, 19h]. O filme foi rodado em Alcântara/MA e trata do embate dos quilombolas com a base espacial. Você recebeu isso com surpresa ou esperava? A distribuição de kits é uma ferramenta importante na promoção da Mostra. Ao contrário de muita gente que questiona sobre o interesse em parcela significativa do público na ida à Mostra, pra mim tudo é positivo. Imagino que, mesmo que alguns queiram apenas o kit, ainda assim terão contato com os filmes da Mostra e, é claro, serão tocados, ainda que minimamente, pela questão dos Direitos Humanos. Quanto à sessão de O céu sem eternidade, havia sim a expectativa por um público numeroso. Não dava pra imaginar é que superaria ao da abertura.

Ainda é cedo ou já é possível falar em perspectivas para a 7ª. Mostra? A produção local continuará em tuas mãos? O Cine Praia Grande continuará sendo o palco? Aprendemos muita coisa nessas duas edições da Mostra em São Luís. Creio não ser cedo pra falar na próxima. Acho que continuo com a produção, que alia certo conhecimento de cinema, de produção e um trânsito junto à imprensa, ao poder público, à iniciativa privada, às instituições e aos movimentos sociais. Quanto ao Cine Praia Grande, apesar da boa vontade de Frederico Machado e da Lume Filmes, não sei se será possível mantermos a Mostra por lá. Acho que é preciso um lugar um pouco maior, porque assim as pessoas se sentirão, inclusive, mais seguras para arriscar prestigiar a sessão de abertura ou a de exemplos como O céu sem eternidade, e que agregue conforto, boa localização e acessibilidade. Acho que a Mostra tem potencial pra crescer e isso estará, irremediavelmente, associado ao local de realização.

A programação da 6ª. Mostra trouxe 46 filmes de 10 países, incluindo o clássico Morango e Chocolate, coprodução de Cuba e México. Não se faz, por exemplo, entre os filmes brasileiros, uma divisão por estado. O céu sem eternidade foi rodado aqui, com colaboração de gente daqui, mas não é um filme “maranhense”. Cabe perguntar: a que se deve a não participação de produções maranhenses? Existe uma convocatória nacional para a Mostra. Isso equivale a uma abertura de seleção, como em qualquer outro festival. Infelizmente, apesar de eu ter repassado a alguns realizadores, e mesmo de algum jornal ter publicado nota sobre essa convocatória, não houve inscrições de obras maranhenses. Na verdade tenho a impressão de que os realizadores locais, com algumas exceções (pouquíssimas mesmo), fazem filmes ou vídeos para serem vistos apenas em um ou outro festival maranhense. Além da convocatória, há também um trabalho de curadoria, realizado pelo Francisco César Filho, o Chiquinho, lá em São Paulo. O céu sem eternidade, de fato, foi rodado no Maranhão, tendo sido dirigido por Eliane Café, mas não é uma produção maranhense.

Outro problema encontrado pela produção local foi com as constantes quedas de energia no Centro Histórico, sobretudo no último dia da Mostra, quando as sessões chegaram a ter um atraso de até uma hora e meia. Aliado ao abandono do Centro Histórico e a questões estruturais, como falta de transporte e segurança pública, isso certamente também ajudou a diminuir o público. A Mostra é uma realização de um órgão público, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que envolve vários outros parceiros, públicos e privados. Falta sintonia por parte dos poderes públicos locais para um maior sucesso da Mostra? A falta de energia é um problema, a meu ver, inaceitável. Não falo isso apenas por causa da Mostra. Ali é o Centro Histórico. Apesar do número de turistas ser reduzido, a Praia Grande é também frequentada por maranhenses que querem, simplesmente, dar uma volta, passear. Como se não bastasse a falta de segurança, o acúmulo de lixo, o mau odor, o abandono generalizado… falta também energia. É demais mesmo! Houve uma articulação e parcerias para a Mostra, mas não creio que tenha faltado sintonia. Acho apenas que a Secretaria de Estado da Cultura podia ter um tipo de envolvimento um pouco maior. A nossa equipe tratava de captar público pra Mostra e eu me perguntava: por que a Secma não se preocupa em captar público pros equipamentos do estado?

A questão dos direitos humanos está em voga atualmente, sobretudo com relação à temática do Direito à Memória e à Verdade, assunto abordado em diversos filmes da 6ª. Mostra. O que você tem a dizer sobre o assunto? A história do Brasil é muito mal contada. Particularmente, temos um grande problema com o período da ditadura militar que começou em 1964 e da qual o atual presidente do Senado foi colaborador contumaz. Aqui não se buscou responsabilizar os culpados pelas torturas, pelos assassinatos, pelos desaparecimentos… Creio que o cinema ajude um pouco a preencher essa lacuna. Veja que, quando me refiro à história brasileira, não falo apenas no período ditatorial. Outro exemplo: quem sabe alguma coisa sobre a Balaiada? Uma das maiores revoltas populares da América Latina e talvez do mundo! As pessoas que estão no poder não querem que saibamos de história! Talvez tenham medo de que aprendamos com os exemplos e, portanto, preferem nos manter na ignorância.

Em a Mostra, em São Luís, deixando o Cine Praia Grande, certamente irá para uma sala maior. No entanto, cidades maiores, como Brasília e Rio de Janeiro, atualmente, realizam suas etapas da Mostra em salas menores que o Cine Praia Grande. Qual a tua opinião sobre isso? Às vezes é difícil conseguir um bom espaço. Não sei se é essa a questão. Mas acredito que aqui, onde as violações de direitos humanos são extremas, quero alcançar o maior número possível de pessoas. E isso é, de fato, uma posição pessoal.

[Vias de Fato, novembro/2011]

Dois anos do Vias de Fato: um jornal necessário

Antes de mais nada: necessário, sim. Um jornal cujas “multinacionais” que o apoiam – Cáritas Brasileira Regional Maranhão, Chico Discos, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, Poeme-se – não interferem no conteúdo; cujo departamento comercial não se sobrepõe à redação; em que o compromisso com a verdade e a paixão pelo ofício – com seus ossos e “a dor e a delícia de ser o que é” – estão acima de quaisquer etc. Um jornal de esquerda, elogiado e criticado por esquerda, centro e direita, não necessariamente nessa ordem, a depender da edição, do assunto, da matéria…

Ainda lembro o primeiro panfleto do Vias de Fato: um boneco gorducho e baixinho gritava, nas mãos um exemplar do jornal que ainda ia sair. Dois anos se passaram. Mais de dois, na verdade, que as coisas naquele jornal mensal não são assim tão certinhas: o aniversário de dois anos é comemorado quando a criança já conta 25 meses, caminhando para 26.

Antes disso, lembro do cortejo de catirinas famintas em uma peça de teatro de rua, O batizado do boi de taipa, salvo engano era esse o nome, catirinas e boi e músicos e interessados em geral, artistas e espectadores misturavam-se, percorrendo a Praia Grande – numa época em que o bairro ainda não havia caído no estado de total abandono e putrefação a que ora se encontra relegado.

Lembro também a feijoada em comemoração ao primeiro aniversário do jornal, uma tarde descontraída na beira da praia: aquele dia era aniversário de Jonas Borges, que recentemente defendeu sua monografia e venceu uma doce aposta que tinha comigo.

Recentemente os editores Cesar Teixeira e Emílio Azevedo e os coordenadores Alice Pires e Altemar Moraes resolveram “acabar” com o expediente do jornal: havia se chegado à conclusão de que ali ninguém dá expediente. É verdade! Não há redação fixa, mas as coisas funcionam.

Tem sido um prazer muito grande e é uma honra enorme integrar essa família – sei lá há quantas edições venho colaborando com as páginas de cultura. Outra alegria são as reuniões do “conselho”: este blogueiro, Emílio Azevedo e Flávio Reis, desde sempre um entusiasta do mensal que “não foge da raia”.

Hoje (9), logo mais às 18h30min, no Auditório Che Guevara do Sindicato dos Bancários (Rua do Sol, 413/417, Centro), acontece o debate “Mídia alternativa, sociedade civil e luta social”, marcando o segundo aniversário do Vias de Fato.

Participam o jornalista Igor Felippe Santos, editor do site do MST e integrante do Centro de Estudos Barão de Itararé e da Rede de Comunicadores pela Reforma Agrária, o professor Flávio Reis, do curso de Ciências Sociais da UFMA, autor dos livros Cenas marginaisGrupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão, além do inédito Guerrilhas (a sair em breve com os selos Pitomba! e Vias de Fato), e a jornalista, socióloga e professora Helciane Araújo, da UEMA, autora do livro Memória, mediação e campesinato: as representações de uma liderança sobre as lutas camponesas na pré-Amazônia maranhense.

Como anuncia o panfleto: “o evento faz parte da comemoração pelos dois anos de fundação do jornal Vias de Fato. A entrada é franca. Ao final do debate teremos música, cachaça e camarão seco”.

Em meio à avacalhação geral

o jornal Vias de Fato completou dois anos. Para marcar a passagem realiza dia 9 (quarta que vem) o interessantíssimo e imperdível debate abaixo:

Antes da MPM

FLÁVIO REIS*

[Vias de Fato, setembro/2011]

Há alguns anos, um conhecido texto de Ricarte Almeida Santos, intitulado De Zeca Baleiro a Bruno Batista… ainda bem que “eu não ouvi todos os discos”, falava da inadequação do termo MPM (música popular maranhense) para se referir à música produzida aqui nos anos 70, 80 e 90. Saudava o disco de estreia de Bruno Batista [o homônimo Bruno Batista, 2004], cuja diversidade de influências o colocava fora da camisa de força da música baseada nos ritmos locais. Na sua crítica à adoção de um rótulo que “reduzia a produção musical do Maranhão a uma receita de sucesso, como se tentou”, não só utilizou os exemplos de Zeca Baleiro e Rita Ribeiro, então recém-incorporados ao cast da MPB, como finalizou dizendo que (e aí a radicalidade da negação) “isso já faziam seu Antônio Vieira, Josias Sobrinho, Chico Maranhão, Joãozinho Ribeiro, Cristóvão Alô Brasil, Cesar Teixeira, Seu Bibi, Dilú e tantos outros que por aqui produziram a verdadeira Música Brasileira”. O texto reportava-se a outro artigo, escrito pelo jornalista Hamilton Oliveira, cujo título era bem direto: Adeus ‘MPM’! Salve o Compositor Popular Brasileiro, onde afirmava que “o rótulo criado por certos artistas, produtores e comunicadores para vender a nossa música só contribuiu para esconder a sua verdadeira natureza”.

Comentando as observações de Ricarte e Hamilton, o compositor Chico Maranhão publicou um importante artigo, MPM em Discussão (O Estado do Maranhão, 18/07/2004), em que tenta delinear o que seria afinal a MPM. Uma das figuras de proa do movimento gestado nos anos 70 de aproveitamento de ritmos e temas para “a construção e a afirmação de uma canção maranhense moderna”, parece identificar seus pontos distintivos nos “textos cantados” e na “pulsação boeira”. Ele localiza como os experimentos em curso, que tiveram no Laborarte um espaço catalisador, estavam ligados à afirmação de uma identidade cultural e a música popular seria para isto um “veículo significativo, embora naquela época, inconsciente”. Por outro lado, a condição periférica “em relação aos centros produtores da MPB… é um fato preponderante na nossa produção, portanto a adoção da sigla MPM, que aqui não estou defendendo, mas apenas discutindo, se não mais tem razão de ser teve seu momento de importância quando aglutinadora de idéias, contribuindo na consciência de uma poesia musical comprometida com a realidade maranhense”. Assim como Ricarte concluía seu artigo com o elogio de um cd que estaria além do rótulo, Chico Maranhão termina, de maneira inversa, afirmando que Shopping Brazil, de Cesar Teixeira, e Alecrim Cheiroso, de Rosa Reis, duas produções do Laborarte, seriam autênticas expressões da “música popular maranhense”. O que faltaria? O velho sonho: uma gravadora e disposição das rádios para rodar os discos (“o ‘jabá’ deve sair da alma maranhense”).

O tema é intrigante, pois se chegarmos, por exemplo, no Recife ou no Rio de Janeiro e falarmos em MPM, provavelmente ninguém saberá do que se trata (talvez nem mesmo muitos de nós). O termo deve ter aparecido em meados dos anos 80, não se sabe ao certo, mas na década de 70 não se falava nisso. Naquele tempo, o lance ainda estava sendo gestado, os elementos da estética tomando forma. O rótulo apareceu quando se tentou vender a coisa, depois do marco que foi o disco Bandeira de Aço, mas aí já não era tanto a pesquisa, a experimentação e o talento que davam o tom, mas certo esvaziamento estético, os teclados de estúdio, a ânsia do “sucesso”, a pasteurização. De qualquer maneira, em 82 a expressão começa a ser desenhada num “I Festival de Verão da Música Maranhense”, uma parceria da Mirante FM e a TV Ribamar, do grupo Vieira da Silva. Essa é uma questão complicada, que não comporta respostas fáceis. Afinal, chegou a se constituir algo distinto na música produzida aqui (leia-se São Luís) que justificasse um rótulo ostensivo cuja grafia busca mesmo uma simetria com a expressão “música popular brasileira”? Como essa transformação na música se articula com outros campos artísticos e, principalmente, com as alterações na discussão sobre a identidade maranhense que então se iniciavam?

O Maranhão sempre cultivou uma diferença dentro do nordeste em termos da natureza e da cultura e ao mesmo tempo nunca se identificou com o norte. As representações elaboradas pelos intelectuais locais primeiro buscaram num passado idealizado o que nos distinguiria. De forma lenta a partir dos anos 70 até estourar nas duas últimas décadas, essa diferença foi se fixando na exaltação da cultura popular. Continuávamos a nos sentir descendentes dos “atenienses” do século XIX (a cidade dos poetas), a fazer referência a uma mítica “fundação francesa”, ter orgulho dos casarões (a cidade dos azulejos) – apesar de no dia-a-dia eles continuarem despencando – no entanto, cada vez mais o orgulho foi passando para algo antes quase escondido, as manifestações culturais populares como o bumba meu boi e o tambor de crioula. A questão da gestação de uma música, na verdade de uma arte com traços distintivos regionais, pois a tentativa era de articulação entre várias manifestações, deve ser tratada dentro do arco longo que envolve as modificações estéticas ocorridas na canção brasileira moderna, os ventos liberadores da contracultura e a rotação nos debates em torno da cultura popular e da identidade.

É possível indicar que o aproveitamento de motivos populares para a formação de um cancioneiro popular se desenvolveu lentamente desde os anos 30 no mundo da boemia e ao abrigo das festas populares, chegando ao rádio em programas ao vivo. Existia uma “velha guarda” de compositores e músicos populares, criadores de choros, sambas, xotes, baiões, inspirados na realidade maranhense (Antônio Vieira, Lopes Bogéa, Agostinho Reis, Cristóvão Alô Brasil, entre outros cronistas da cidade, da vida nos bairros). Um nome que surgiu na década de 50, saiu ainda moleque e fez carreira transformando-se em referência nacional foi João do Vale. De maneira geral, a questão se resume em que as temáticas tratadas eram daqui, mas os ritmos e danças populares ainda não haviam influenciado as formas musicais, o que pode ser observado no I Festival de Música Popular Brasileira no Maranhão, realizado em 1971. Com exceção de Boqueirão e Toada Antiga, as composições não fazem utilização de ritmos locais. O próprio nome do festival deixa claro que ainda não havia essa ideia de uma música maranhense, com elementos distintivos no cenário nacional. A música de maior sucesso junto ao público foi uma canção melosa cujo título dizia tudo, Louvação a São Luís, do poeta Bandeira Tribuzzi. Estavam presentes, entretanto, nomes que seriam fundamentais nas elaborações estéticas que marcariam a década, como Sérgio Habibe, concorrendo com a belíssima Fuga e Anti-Fuga, Giordano Mochel, com Boqueirão, que se tornaria um clássico do moderno cancioneiro maranhense e Ubiratan Souza, o grande arranjador daquela sonoridade com “pulsação boeira” de que falou Chico Maranhão.

Na década de 70, um pequeno vulcão irrompeu em São Luís num casarão localizado à rua Jansen Müller, o Laboratório de Expressões Artísticas (Laborarte). Fruto da junção de movimentações que já se produziam no campo do teatro, com a experiência do Teatro de Férias do Maranhão (Tefema), organizado por Tácito Borralho, da dança, com o grupo Chamató de danças populares de Regina Teles, e da poesia, com o grupo Antroponáutica, de que faziam parte Valdelino Cécio e Luiz Augusto Cassas, ao qual se juntaram a música, com Sérgio Habibe e Cesar Teixeira, logo também Josias Sobrinho, Ronald Pinheiro, Zezé [Alves], a fotografia e o cinema com Murilo Santos. Unia todas essas figuras o interesse na pesquisa das manifestações da cultura popular, geralmente ainda vistas sob a ótica do “folclore”, para servir de substrato a uma arte moderna, engajada e identitária. Como disse Tácito, principal mentor e, de resto, o melhor analista do processo, o Laborarte era “na sua formulação e urdidura, um grupo, mas na sua proposta básica e fundamental, o desencadeador de um movimento estético-político”. Esses jovens criativos e cheios de idealismo iniciaram uma estética de reelaboração dos ritmos e danças e exploração do imaginário das manifestações pesquisadas em lugarejos da ilha de São Luís ou no interior do estado. Alteraram o teatro que se fazia aqui nos anos 70, sob a direção de Tácito, com peças como João Paneiro e O Cavaleiro do Destino, em parceria com Josias, misturando atores e bonecos gigantes, cenários e figurinos utilizando materiais e cores presentes nas comunidades, com linguagem e ritmos das próprias manifestações culturais em foco e mobilizando largamente o rico universo de lendas do Maranhão, tratando de temáticas engajadas como a discussão dos efeitos da implantação da Alcoa para várias comunidades que estavam sendo desalojadas, ou seja, tudo acompanhado de um trabalho de educação popular e conscientização política, como se dizia então. Após a saída de Tácito, além da continuidade desse teatro de pesquisa, agora sob a direção de Nélson Brito, o Laborarte teria papel importante na valorização de danças antigas (tambor de crioula) e na propagação de danças novas (cacuriá).

No campo da música, a influência foi mais localizada no tempo, quando lá estavam Cesar, Sérgio, Josias, até meados dos 70, mas decisiva na elaboração dos traços do que seria posteriormente chamado de MPM. Esses são autores de clássicos reconhecidos como Bandeira de Aço, Boi da Lua, Flor do Mal, Eulália, Cavalo Cansado, Ponteira, Engenho de Flores, Dente de Ouro, Catirina e tantos outros. Formaram o substrato que daria origem a Bandeira de Aço, disco gravado por Papete para o selo de Marcus Pereira em 1978, uma espécie de marco inicial e ao mesmo tempo principal da mistura que se operava criando uma canção com sotaque perfeitamente discernível, no sentido preciso de poder ser identificado como algo desta região, de pandeirão, tambor, matraca, da mesma forma que o maracatu, por exemplo, marcaria anos depois de maneira igualmente indiscutível a música produzida pelo movimento do manguebeat no Recife. O experimento inspirava-se nos ritmos, na riqueza melódica, no traço poético presente em nossas manifestações populares. Sérgio Habibe, em informação verbal colhida por Tácito, relata que “naquela época fazia um tipo de música, Cesar Teixeira fazia outro e Josias Sobrinho, um outro. E que foi só começarem a trocar idéias para chegarem facilmente a um consenso: os ritmos do bumba-boi, do tambor de crioula etc. Foi só trabalhar nisso e começou a aparecer um perfil de música maranhense. Dois anos depois, quando os três tomaram consciência da coisa, já tinham provocado uma reviravolta em São Luís”.

Entretanto, a questão da gestação dessa música tem pontas igualmente importantes para fora, que se cruzam com o Laborarte. Uma delas é a figura crucial de Chico Maranhão. Descendente de família tradicional dos tempos do Império, os Viveiros, mas já sem as posses de outrora, estudava arquitetura na USP no final dos anos 60 e estava completamente enfronhado nas modificações da canção operadas nos festivais, tendo obtido mesmo algum sucesso com o frevo Gabriela no Festival da Record de 1967, defendida pelo MPB4. Em 1974 gravou o disco Maranhão, nome pelo qual era conhecido, pelo selo Marcus Pereira. Estão lá além de Gabriela, músicas importantes como Cirano, onde mostrava todo o seu potencial de letrista; Cabocla, um samba dialogado, espécie de resposta a Carolina, de Chico Buarque, e Lindonéia, de Caetano, na verdade superior a ambas; Deixa Pra Lá, outro samba simples, mas envolvente com a letra levada num canto quase falado e Bonita Como Um Cavalo, um de seus clássicos. A rigor esse trabalho se localiza no meio das transformações da canção, na métrica, no linguajar, que estavam sendo operadas pelos Chicos e Caetanos da nascente MPB, pois esta designação, é bom frisar, se consagra a partir desse período. De volta a São Luís, em busca dos ritmos do tambor, dos bois, da Ponta da Areia, entra em relação com o pessoal do Laborarte e lança em 1978 o fundamental Lances de Agora, novamente para o selo de Marcus Pereira, gravado na sacristia da igreja do Desterro, com o Regional Tira-Teima, onde despontavam Ubiratan [Souza], [Chico] Saldanha, Paulo [Trabulsi, então com apenas 17 anos], [Antonio] Vieira [único já falecido entre os músicos de Lances de Agora], Arlindo [Carvalho], e mais a presença de outros nomes, entre eles, Sérgio Habibe tocando flauta e Rodrigo engrossando o naipe de percussionistas. Aqui as músicas possuem maior influência dos ritmos regionais, mesmo que o leque seja variado, incluindo samba-choro, frevo, marcha, canção, toadas. Dois anos depois lançaria Fonte Nova, que ainda traz boas músicas desta fase, como a faixa-título, Veludo, Viver e a impressionante A Vida de Seu Raimundo, uma história de sequestro, tortura e assassinato, contada em detalhes, inclusive com o cinismo das versões oficiais, as notícias, os boatos, enfim, todo o enredo daqueles tempos da ditadura. É o traço do “texto cantado” levado aqui ao paroxismo, próximo mesmo à experiência dos repentistas, brincando com as palavras com maestria. Maranhão organizou o tambor de crioula Turma do Chiquinho, que manteve longo tempo e durante a década de 90 retomou as gravações, mas com trabalhos desiguais e sem o mesmo vigor, destacando-se, no entanto, outro momento memorável na “Ópera Boi” O Sonho de Catirina.

Dois nomes também importantes que corriam por fora da experiência do Laborarte eram [Giordano] Mochel e Ubiratan Souza.  O primeiro, nascido na região da Baixada, de onde retira muita influência da poética e das melodias chorosas do sotaque de orquestra, é autor de pérolas como Boqueirão, São Bento Velho de Bacurituba, Biana. Cedo se estabeleceu no Rio de Janeiro e somente em 93 gravou o disco Boqueirão, reunindo algumas de suas melhores composições e chegando a levar o prêmio Sharp na categoria “revelação regional”. O segundo é formado em enfermagem, mas antes de tudo compositor, ótimo músico autodidata e exímio arranjador. Foi responsável pelos arranjos de Lances de Agora, sempre atento às nuanças das letras de Chico Maranhão, do belo show Pitrais de Mochel, realizado no final da década de 70 no Teatro Arthur Azevedo e, posteriormente, quando da gravação do primeiro disco de Josias [Sobrinho, Engenho de Flores] ou do já citado de Mochel, é quem responde pelas faixas que possuem o arranjo mais próximo da sonoridade “boeira” que se conseguia por aqui.  Um arranjador sempre variado, um banjo ali, um clarinete acolá, um detalhe de percussão, um coro bem colocado, isso tudo num acabamento cuidadoso bem típico de Ubiratan, outro que também se estabeleceria em São Paulo a partir do início dos anos 80 e lançou vários discos. Esta é uma questão importante porque uma das tragédias da chamada MPM é que raramente conseguiram no estúdio o impacto da sonoridade acústica das apresentações.

Depois que deixou o Laborarte, César mergulhou na Madre Deus, bairro cheio de compositores, velhos tocadores de choro e samba, blocos de carnaval, brincadeiras locais e muita cachaça, fez shows, sempre mais raramente que todos os outros, participou de festivais, onde emplacou sucessos como Oração Latina, mas só gravaria um trabalho mais de duas décadas depois, o ótimo cd Shopping Brazil. Sérgio [Habibe] foi para os EUA, depois transitou pelo Rio de Janeiro, fez shows pelo projeto Pixinguinha em cidades do país e volta e meia estava de novo aqui, onde se fixou de vez, lançando alguns discos a partir do final dos anos 80. Em 2008 gravou Correnteza, ao vivo no estúdio, um bom apanhado de suas melhores canções, contando com outro grande arranjador, Hilton Assunção, fazendo o retorno à sonoridade acústica na qual essas músicas rendem melhor, depois de discos com certa roupagem pop. Lá estão Eulália, Jardins e Quintais, Do Jeito que o Diabo Gosta, Cavalo Cansado, Panaquatira e outras conhecidas, fechando com Olho D’Água, uma bela e sombria denúncia da destruição ambiental de uma praia que sempre lhe foi tão cara. Josias formou o quase lendário Rabo de Vaca, com Beto Pereira, Zezé [Alves], Tião [Carvalho], [Manoel] Pacífico, Erivaldo [Gomes], depois também, Jeca, Mauro [Travincas], Ronald [Pinheiro] e Omar [Cutrim]. Criado para acompanhar um espetáculo teatral, tornaria-se um grupo forte, inesquecível, que se apresentava nas praças, em auditórios, igrejas e associações de bairro ou onde fosse. Era uma verdadeira caravana apta a absorver quem chegasse e o clima de mistura, liberdade e simplicidade daquela música contagiava os poucos que se aventuravam a segui-los. O grupo se desfez em 82, depois de cinco anos de atividades e shows memoráveis como Dente de Ouro, Nesse Mato tem Cachorro e Vida Bagaço, apesar da precariedade constante e às vezes até da inexistência do sistema de som. Alguns foram para São Paulo, Josias e Beto [Pereira] partiram para a carreira solo aqui mesmo. Josias gravaria o primeiro disco apenas em 87, em São Paulo, com a presença de ex-companheiros do Rabo de Vaca, sem a mesma energia, mas ainda com bom resultado em várias faixas, desfilando belezas como Terra de Noel, Coragem das Matracas, Vale do Pindaré, Olhos D’água. O segundo disco, quase todo com o recurso de programações, e o terceiro são bem inferiores, algumas boas músicas ficaram prejudicadas, mas ainda é possível destacar Boi de Pireli e Nas Águas. Conseguiria uma qualidade melhor de arranjo e gravação num cd [Dente de Ouro] produzido por Papete em 2005, onde volta aos sucessos conhecidos, relembra outras composições do tempo do Rabo de Vaca (Três Potes, Rosa Maria) e junta com sucessos mais recentes, como O Biltre.

Na verdade, os três compositores fundamentais oriundos do Laborarte se tornaram aos poucos conhecidos dos maranhenses com o lançamento do disco Bandeira de Aço, do percursionista Papete, em 1978, todo com composições desses novos nomes da música local. O disco estourou, a população passou a cantar os sucessos principalmente no período junino, a se identificar naqueles versos e ritmos. Músico já rodado, apesar de ainda jovem, Papete reuniu um time de ótimos instrumentistas e conseguiu extrair um som equilibrado dos pandeirões e matracas. Apesar dos conhecidos erros nas harmonias e nas letras de algumas músicas, uma seleção de resto muito feliz, Bandeira de Aço firmou-se como um marco desta estética que estava sendo perseguida desde o início da década. A voz fraca de Papete ficou ótima, com um acento lamentoso. Ninguém cantou melhor Boi da Lua e Catirina, por exemplo, para ficar nestas. Um disco histórico.

A situação parecia promissora no final dos anos 70. Dois discos fortes, Lances de Agora e Bandeira de Aço, shows utilizando o espaço de teatros, do Arthur Azevedo (na gestão de Arlete Nogueira, porque depois o sempre ridículo Pergentino Holanda, num ataque de “francesismo ateniense”, tentou se livrar da moçada proibindo camisetas e chinelos…), passando pelo Viriato Correa (Escola Técnica), Jarbas Passarinho (Ufma) ou o pequeno teatro do Museu Histórico, de praças, como a Deodoro ou parques, como o do Bom Menino, mas também bairros da periferia, Anjo da Guarda, Liberdade, Anil e até algumas cidades próximas do interior. O público em potencial parecia existir e não só entre jovens universitários de classe média. As rádios ainda resistiam, mas, no início da década a Rádio Universidade e a Mirante se diziam dispostas a “tocar música maranhense”, como lembrou Chico Maranhão no artigo citado. Para completar, o discurso que abria o campo de representações sobre a identidade maranhense no sentido de incorporar um conceito de popular se aprofundaria cada vez mais a partir daí, como indicando uma vitória da luta para ver e ouvir nossas próprias manifestações empreendida no âmbito do Laborarte. Onde, então, a coisa degringolou e o projeto ficou a meio caminho, foi se tornando aguado?

"Com a exceção de Cesar Teixeira, quase todos estavam lá"

Para indicar logo problemas no âmbito do mercado fonográfico, os dois discos tinham saído dos esforços de Marcus Pereira, mas ele faliu e terminou de maneira trágica, cometendo suicídio depois de ter lançado mais de cem títulos, muitos de importância crucial para o mapeamento da diversidade musical brasileira. As rádios locais, por seu lado, roeram a corda, pois achavam que a “música maranhense” caía bem somente no período junino. Sem muita perspectiva profissional, vários músicos tomaram o rumo do eixo São Paulo e Rio. Em 1980 houve um projeto coletivo com compositores locais, financiado pelo órgão de cultura do estado com apoio da Funarte, uma coletânea intitulada Pedra de Cantaria, disco gravado em Belém, com direção musical de Valdelino Cécio e arranjos de Ubiratan Souza. Alguns desentendimentos parecem ter cercado a execução do projeto, mas, com a exceção de Cesar Teixeira, quase todos estavam lá, Chico [Maranhão], Sérgio [Habibe], Josias [Sobrinho] e o pessoal do Rabo de Vaca, [Giordano] Mochel, Hilton [Assunção], Ubiratan [Souza] e [Zé Pereira] Godão, uma figura que seria cada vez mais importante nas articulações entre cultura popular, mídia e mercado. Cinco anos depois, com patrocínio da Mirante FM, que comemorava seus quatro anos de existência, foi lançado Arrebentação da Ilha, outra coletânea, cuja música de abertura, Quadrilha, é uma criação coletiva (Chico, Josias, Sérgio, Ronald e Godão). Aqui o processo toma uma feição mais definida, estão lá muitos dos antigos que participaram do projeto anterior com a presença de uma nova geração (Gerude, Tutuca, Jorge Thadeu e outros).  No geral, a tônica dos antigos foi uma dificuldade para gravar e, quando o fizeram, muitas vezes o resultado ficou aquém da intensidade ouvida na década de 70. Os nomes que continuavam aparecendo (César Nascimento, Carlinhos Veloz, Alê Muniz, Mano Borges etc.) não tiveram a mesma preocupação com a pesquisa, não eram também tão talentosos e logo buscaram se diferenciar da geração anterior no que diz respeito à utilização dos ritmos regionais, estabelecendo uma descontinuidade. Ou seja, a cena tinha se esvaziado, era outra coisa, rodava agora em torno do rádio e do disco e no meio artístico muitos ambicionavam o estrelato a todo custo, ainda que fosse apenas um pequeno estrelato local. Tentava-se uma entrada desastrada, porque submissa até a ingenuidade, no âmbito da indústria cultural, com gravações em condições inadequadas, o compadrio e outros interesses influindo decisivamente na oferta das poucas fontes de financiamento, passando muitas vezes pelos favores de Fernando Sarney, através da Cemar e da Mirante. Em suma, não chegou a se configurar propriamente um mercado, gerando uma antítese mal sucedida da tônica radical da década anterior, que havia chegado quase à negação total de mercado e mídia.

Todos estes problemas, é bom frisar, não são posteriores e sim ocorrem de forma mais ou menos simultânea ao próprio aparecimento do termo em questão MPM. O eixo central não era mais aprofundar a pesquisa da diversidade cultural e revolver a identidade através da música, mas apresentar e vender o que aparecia como novidade. O desastre começou pela própria designação que, antes de especificar, parecia mesmo restringir o alcance da música, circunscrevendo seu mercado potencial, piorado pelo já mencionado fato de seus divulgadores locais estabelecerem uma nova restrição ao relacioná-la às festas juninas. Visto retrospectivamente era uma autêntica vitória de Pirro, quase no mesmo passo saímos de uma situação aparentemente promissora para um esvaziamento precoce, o que parece indicar os limites em que a experiência toda se gestava, mas para perceber o quadro é preciso recuar e ampliar o foco.

As transformações que o Maranhão conheceu a partir do final dos anos 60 na esteira dos processos econômicos acelerados com o golpe militar configuraram uma “modernização oligárquica”, como tem acentuado o historiador Wagner Cabral. A antiga São Luís da Praia Grande e do Desterro, da velha trilha do Caminho Grande, fechava o seu longo ciclo e daria lugar à rápida expansão a partir do São Francisco e Calhau, de um lado, e através da criação de bairros populares no interior da Ilha, por outro. A economia não era mais controlada pelas antigas firmas comerciais e muitas de suas famílias entraram em processo de declínio financeiro. Os novos horizontes econômicos apontavam para os grandes projetos de interesse do governo federal, como a exportação do minério vindo de Carajás, o estabelecimento da Alcoa, o estímulo à formação do agronegócio no sul do estado e o início da preocupação com o turismo, enquanto mercadoria e enquanto renovação de laços de identidade, através da exaltação da natureza e do patrimônio arquitetônico. Num quadro de alterações lentas, mas de rápida expansão demográfica e êxodo rural intenso, a preservação de aspectos essenciais da dominação oligárquica veio acompanhada de modificações nos símbolos legitimadores da identidade, um embate em que o predomínio do culto dos expoentes da Atenas Brasileira e a própria instituição responsável por ele, a Academia Maranhense de Letras, entram num refluxo, cedendo lugar a novos atores. Numa palavra, trata-se do processo ainda em curso da aproximação entre a cultura ateniense e a cultura popular, com o predomínio agora dos símbolos desta última enquanto eixo ordenador do debate sobre identidade, um processo longo em que as agências estatais criadas a partir da década de 70, as secretarias e seus tentáculos nas fundações e conselhos foram paulatinamente definindo uma institucionalização da cultura que veio para o centro da cena nos últimos governos.

Entretanto, na década de 70, ponto chave da transição, o impulso mais interessante não vinha das agências governamentais, por mais que nestas estivessem folcloristas importantes como Domingos Vieira Filho, Américo Azevedo, Rosa Mochel e Zelinda Lima, para citar alguns, mas sim do encontro entre a onda contracultural com suas formas de mobilização através do grupo como comunidade alternativa, a disposição de setores escolarizados de classe media de produzir arte com base em olhares cruzados de vários campos sobre manifestações da cultura popular, expressando em termos locais os ventos da época e aproximando nossa experiência estética das transformações que sacudiram a cultura brasileira no final da década de 60 e, por fim, a existência de redutos criativos, como o circuito Madre Deus/São Pantaleão, cujas trocas são antigas, e outros que surgiam, como o Anjo da Guarda. Nas palavras de Cesar Teixeira, em antológica entrevista [em seis partes, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui] dos três compositores e ex-integrantes do Laborarte a Itevaldo Jr., era “buscar as raízes para uma afirmação da arte enquanto representação de uma cidadania inexistente” (O Estado do Maranhão, dez/98). Nesse momento, o Laborarte significou uma fenda e uma proposta mais avançada no campo estético e político, na medida em que implicava numa série de atritos de valores e comportamentos em uma sociedade bastante provinciana, sem falar nas perseguições da polícia e da censura. Mas isso era apenas um dos lados do processo que envolvia outros e mais poderosos interesses e seria redirecionado a partir da década de 80, com a entrada dos meios de comunicação, notadamente a organização da Mirante, veículo que terminaria estabelecendo a linguagem de teor turístico e mercadológico, vazia de tensões, predominante até hoje nesse processo de rotação dos signos da identidade. 

Como ficamos então? Entre o ponto onde estávamos na discussão sobre cultura e identidade nos anos 60 e o que vigoraria principalmente a partir dos anos 90, encontra-se um momento ímpar na década de 70 e início da seguinte, tempo de indefinições e possibilidades que frutificaram das margens para propor novas representações artísticas no teatro, na dança, na música, na poesia, nas artes plásticas, na fotografia, no estímulo às filmagens, como se verificou no rápido boom do Super-8. A movimentação que existia era além do Laborarte. No entanto, o chão estava dado pelos “parceiros indesejáveis” dos governos, do mundo das comunicações e da publicidade, dos pesquisadores universitários, das agências de turismo, dos interesses empresariais. No fundo, as trocas e experiências artísticas ficariam em segundo plano em nome de uma profissionalização capenga que arrastou a todos, artistas e brincantes, submetendo-os através de expedientes de padronização ao tempo que estimulou vaidades, ressentimentos e incompreensões sobre o significado desse momento onde repousa o enigma (ou será o logro?) da MPM, que parece existir quando ainda não é nomeada e se torna uma incômoda indagação logo que é batizada. A defasagem indica que algo ficou incompleto, sentimento estranho de presença/ausência que não passou despercebido a Chico Maranhão, quando rememorava os efeitos da inexistência de uma crítica que refletisse sobre aquela produção musical no momento em que ela estava ocorrendo e arrematou dizendo que o motivo para isto era simples: “não se cria uma crítica (literomusical) sobre um movimento sem que ele primeiro exista de fato e tenha bases reais para reflexão”.

No esquema artesanal em que operava, aquele núcleo de artistas nunca se ocupou com as questões do mercado e da mídia e não soube ou não pode criar um caminho que atasse o jorro criativo coletivo aos imperativos da expansão através da utilização dos meios de comunicação. Os episódios quase anedóticos que cercam a realização do disco Bandeira de Aço e o imbróglio posterior envolvendo Papete e os compositores são uma sucessão de mal-entendidos ilustrativos das dificuldades daquela geração com a questão do mercado. Em seguida, a aproximação com as agências governamentais ou com o mecenato privado foi feita na maioria das vezes segundo os esquemas de patronagem comuns de uma ordem oligárquica, onde o patrocínio não difere do favor. Quem não topou ficou no ostracismo ou caiu fora, quem topou terminou participando de uma patética diluição. Tudo isso corroeu muito da reflexão crítica que estava presente nos trabalhos da década de 70. No decorrer dos anos não teríamos nem movimento nem crítica cultural, apenas um slogan gerado mais por motivações de mídia, dos órgãos de cultura e de um punhado de individualidades tentando sobreviver disputando espaço num mercado ainda bem acanhado, quase reduzido a arraiais de shopping e similares, em íntima relação com os representantes da oligarquia local. Uma caricatura sem nenhum viço de algo que surgiu de forma criativa e contestadora, apesar das referências autoelogiosas tão comuns sobre a riqueza da nossa música.

Mesmo um reduto rico em tradições como a Madre Deus perdeu muito do seu potencial, as novas manifestações que ali surgiram a partir de meados dos anos 80 foram com o tempo sendo moldadas segundo interesses turísticos, em conluio e bastante submissas à estratégia governamental de mercantilização da cultura. E a Turma do Quinto terminaria na avenida cantando “embala eu mamãe Kiola, embala eu”, no ridículo samba enredo de 2004, O Quinto é Minha Lei: O Meu Enredo é José Sarney (nome de luta, exemplo e trabalho, segundo a letra de Bulcão, o eterno secretário estadual de cultura). Precisa dizer mais? Longe já iam os tempos de enredos irreverentes como Ali Babão e o Sete Ladrão (1986): “Abre-te Sésamo/ abre o envelope/ pois na hora que se junta/ se prepara mais um golpe”. O processo havia se completado, a cultura institucionalizada virou o local da estetização mercantil das manifestações populares e não mais o da experimentação estética elaborada a partir de sua riqueza e diversidade. De arma crítica, a música que continuou a se apresentar como maranhense voltou-se quase sempre para a louvação e a repetição, seguindo as regras predominantes do discurso publicitário. Virou “Som do Mará” e muitos passaram mesmo a propagar os valores de uma “maranhensidade”, com indisfarçável acento bairrista, em guinada conservadora que não tinha mais nada a ver com as propostas renovadoras dos anos 70.

O nascimento da moderna MPB nos debates da década de 60 resultou de uma aproximação com o universo da cultura popular e em rediscussão do problema da identidade, numa articulação decisiva com a televisão e com a reorganização de todo o mercado da música, criando um rótulo que funcionava como “senha de identificação político-cultural”, na feliz expressão de Carlos Sandroni, mas cuja pretensão era agregativa. Tal função se desgastou e no final dos anos 80 a sigla passaria a designar vagamente um segmento do mercado na enorme variedade da música brasileira. É nessa onda, quando a ênfase se deslocava para a redefinição dos nichos de mercado que a nossa sigla aparece, como em outros momentos, através de uma identificação frágil que busca marcar mais a distinção que a diferença, com a desastrada apropriação mercadológica e oficialesca de um movimento estético interrompido, cujos melhores frutos já haviam sido colhidos. Só para terminar jogando uma última lenha na fogueira, Shopping Brazil, o esperado cd de Cesar Teixeira lançado em 2004 e com promessa de reedição para este ano, mastigou isso tudo e saiu lá na frente, mesmo quando revisita clássicos do que seria posteriormente chamado de MPM. É um Maranhão colocado no miolo do furacão, misturado com o Brasil, ou até mesmo a apresentação fundamental do Brasil como um grande Maranhão, e não separado para consumo no armazém das diferenças culturais. É música popular brasileira contemporânea sim, feita aqui e da melhor qualidade, como é o caso também do sofisticado Emaranhado, lançado em 2008 por Chico Saldanha e da simplicidade delicada de Eu Não Sei Sofrer em Inglês, o recente trabalho de Bruno Batista.

Agradeço as informações, dicas e comentários de Celso, Cesar, Reuben, Ricarte e Zema. Tudo gente boa, tudo gente doida. Este artigo é dedicado a dois antigos parceiros nas andanças e descobertas da cena musical maranhense no final dos anos 70, Demétrius Almeida da Silva (em memória) e Augusto Anceles Lima.

*FLÁVIO REIS é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA, autor de Cenas Marginais (ed. do autor, 2005), Grupos Políticos e Estrutura Oligárquica no Maranhão (ed. do autor, 2007) e Guerrilhas (coletânea de artigos fechada por este Antes da MPM a ser publicada ainda em 2011).

Ficção e realidade em corda bamba sobre o oceano

Em março do ano passado o escritor Luís Cardoso esteve no Brasil para lançar o romance Requiem para o navegador solitário [Língua Geral, Coleção Ponta de Lança, 303 p.], seu primeiro livro publicado no Brasil – de 2007, aportou por aqui em 2009. Noites de autógrafos no Rio de Janeiro e em São Paulo com aquele que é considerado o mais importante escritor de Timor Leste – país-ilha onde também se fala o português –, cujas obras já foram traduzidas para o alemão, francês e inglês, entre outras.

Prosa de alta voltagem poética, personagens fortes marcam as páginas do Requiem: a própria ilha natal de Cardoso e a doce e inocente Catirina, que cresce com seus dramas, como o povo timorense querendo apenas recuperar o que é seu.

Aproveitando a passagem do escritor pelo Brasil, Zema Ribeiro entrevistou-o, ainda em março de 2010, por e-mail. Talvez os mistérios dos mares das páginas de Cardoso possam explicar o porquê de a entrevista ter permanecido inédita por mais de ano e meio. Vias de Fato recupera-a e presenteia seus leitores (optamos por manter a grafia com que o autor respondeu ao e-mail com o bloco de perguntas enviado).

Cardoso esteve no Brasil ano passado. "Requiem para o navegador solitário" é seu primeiro título publicado aqui
ENTREVISTA: LUIS CARDOSO
POR ZEMA RIBEIRO

Vias de Fato – Para começar, gostaria que você falasse de sua infância. Nasceu em Timor Leste, mudou-se para Portugal com que idade? Com quantos anos a literatura entra na tua vida, seja como leitor e/ou escritor? Luís Cardoso – Nasci em Timor-Leste, no dia 8 de Dezembro de 1958, numa localidade chamada Cailaco. O meu pai era enfermeiro e tinha que se deslocar de uma localidade para outra, pelo que pude contactar com vários idiomas e vários povos no território que hoje se chama Timor-Leste. Mas, o local com que mais me afeiçoei foi a ilha de Ataúro. Para onde as autoridades mandavam os presos políticos. Assim o fizeram os portugueses, os japoneses e os indonésios durante as ocupações. Em 1975 fui para Portugal para continuar os estudos. Uma vez terminado o liceu ingressei no curso de medicina. Contudo, esta opção não se revelou a mais acertada: consigo aguentar melhor as minhas dores do que as dores de outros. Desta forma, depois de um ano a estudar medicina optei pela Silvicultura. A invasão de Timor pela Indonésia deu-se na altura em que estava em Portugal. Comecei a fazer parte da Resistência Timorense e mais tarde da sua Frente Diplomática. A literatura entrou muito tarde na minha vida. Só quando cheguei a Portugal tive oportunidade de ler as obras literárias de vários escritores portugueses e estrangeiros. Mas a escrita aconteceu muito cedo, desde os tempos da escola primária, quando tinha que fazer as minhas redacções e as de um colega, filho de um desterrado português que tinha uma padaria. Normalmente fazia duas versões do mesmo tema, uma para ele e outra para mim, e recebia como recompensa um pão com manteiga. Um bem apenas acessível aos endinheirados. Posso dizer que foi a escrita que, pela primeira vez, me deu a ganhar o pão.

Quais as suas principais referências literárias, livros a que você sempre volta para novas leituras? Infelizmente não pude ler os livros dos grandes mestres da literatura na altura em que toda a gente o fazia. Simplesmente porque não chegavam a Timor. As autoridades coloniais portuguesas não o permitiam. Na infância o único livro que me deram a ler foi a Bíblia. Releio muitas vezes.

Você é tido como o primeiro romancista de Timor, última colônia portuguesa a deixar essa condição. Você citaria algum outro escritor timorense de destaque? Cito o poeta Borja Costa, a quem eu chamo de Pablo Neruda timorense. Foi morto pelos indonésios no dia da invasão em 7 de dezembro de 1975. Também faço referência a um outro poeta desconhecido que se chama Jorge Lautém.

Como é morar em Portugal e ter sido um dos ativos militantes pró-independência do Timor? Morar em Portugal foi uma opção. Libertada a Pátria, libertei-me da Pátria. Sou um homem livre, sem que contudo tenha abdicado da minha identidade timorense. Timor hoje é um país independente, onde há democracia e os cidadãos são livres de escolherem o que pretendem fazer das suas vidas. Alguns dos meus colegas dos anos da Resistência elegeram a política como actividade principal das suas vidas. Eu escolhi a literatura e viver fora do meu país foi uma opção, como a de muitos brasileiros que vivem na Europa, nos Estados Unidos ou na África. Ser cidadão de um país não quer dizer que se tenha de viver amarrado a um território.

Como ocorreram as negociações para o lançamento de seu livro no Brasil, pela Língua Geral? É o primeiro livro publicado no Brasil. O contacto foi feito pelo meu colega e amigo José Eduardo Agualusa [romancista e contista angolano, contemporâneo de Cardoso, autor de Estação das chuvas e As mulheres do meu pai, entre outros].

Há no romance certa tendência ao poético, seja na construção dos parágrafos, por vezes deixando, no bom sentido, confuso o leitor, se a fala é a continuação da fala de determinado personagem ou da narradora, seja nos nomes dados aos gatos e mesmo no imaginário de navegantes que permeia o enredo. Você escreve poesia? Não, não escrevo poesia. Mas gosto e adoro poesia. Leio mais poesia que romances. Os meus escritores preferidos são mais poetas que romancistas. Cito os portugueses António Lobo Antunes, que embora escrevendo prosa é um grande poeta, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Cinatti, os timorenses Borja Costa e Jorge Lautém, os brasileiros Manuel Bandeira e Drummond de Andrade.

Quanto há no livro de ficção e de realidade? Há personagens reais que povoaram sua infância e adolescência? Em Timor a ficção e a realidade confundem-se. Muitos desses personagens povoaram a minha infância. Navegadores solitários, aventureiros, presos políticos, antropólogos que um dia aportaram em Timor. Mas também outros seres fantásticos que povoam o fabuloso imaginário timorense.

Você já visitava o Brasil, vez por outra, e agora volta como escritor, para lançar um livro. Que novas impressões leva do país? O Brasil é tão grande e tão pujante que se renova com uma velocidade estonteante. Para o conhecer é preciso ter tempo. Das outras vezes que estive no Brasil também não tive oportunidade para o conhecer bem, uma vez que a minha prioridade era tentar convencer o Itamaraty que a independência de Timor não era uma utopia, fora dos parâmetros do pragmatismo económico.

Em Requiem, cada gato, além de um nome, substantivo, recebe um adjetivo. Que adjetivo definiria melhor Luis Cardoso? Talvez amigo. Deve ser por isso que adoro ouvir a Canção da América do Milton Nascimento.

[Vias de Fato, agosto/2011]

Clipping

Dando um sinal de vida, duas materinhas que andei publicando por aí, estes dias.

Com Emílio Azevedo entrevistei Ricarte Almeida Santos (visto acima em clique deste que vos bafeja) para o Vias de Fato de agosto. Íntegra da entrevista aqui.

E para o Jornal Pequeno escrevi sobre as reivindicações de parte da população luziense por uma estrada de 62 km, que conduz os moradores do povoado Campo Grande à sede e vice-versa. A matéria saiu domingo (4) no JP, também com fotos minhas (acima, cruzes sinalizam mortes ocorridas em acidentes no citado percurso). Versão pré-edição aqui.

As aventuras do Criolina

 [Textinho nosso no Vias de Fato de julho, ora nas bancas]

Duo maranhense teve Cine Tropical considerado melhor álbum na 22ª. edição do Prêmio da Música Brasileira

ZEMA RIBEIRO

Nem mesmo eles acreditavam, conforme confessou um Alê Muniz já de troféu na mão num programa de tevê local. Um casal do Maranhão papar prêmio assim, deixando Reginaldo Rossi e Roupa Nova para trás? Este repórter mesmo chegou a publicar um texto pessimista na internet, antes do resultado. Parecia impossível. Mas não era.

O Criolina (foto) voltou com o título de “melhor álbum” na bagagem, na 22ª. edição do Prêmio da Música Brasileira. Incautos invejosos faziam beicinho e afirmavam categoricamente nunca ter ouvido falar nesse prêmio. Ou diziam que se tratava de um premiozinho inventado pela Vale em mais uma de suas iniciativas de “responsabilidade social” e “compromisso com a cultura” e coisa e tal.

Não, meu caros, trata-se do mesmo outrora chamado Prêmio Sharp de Música ou ainda Prêmio Tim de Música, muda o nome conforme mudam os patrocinadores. Outros maranhenses já o ganharam em outras edições – e mesmo nesta, com Alcione levando a estatueta de melhor cantora de samba – e ainda me parece injusto o Criolina ter perdido o outro troféu a que concorria: melhor dupla, vencido por Zezé di Camargo e Luciano, tendo ainda Victor e Léo na concorrência.

Cine Tropical, a obra laureada, é um disco bonito. Musical e plasticamente. Realizado com apoio do Projeto Pixinguinha, da Funarte/MinC, aprovado em edital público. Cada faixa, um filme cujas imagens nossas mentes inventam (e reinventam), “cinema auditivo”, como já havia cravado Wado, alagoano nascido em Santa Catarina, ao batizar disco seu nos anos zero zero. Cada faixa um gênero e uma sinopse.

Como o “documentário” São Luís-Havana – que já havia saído vitoriosa como melhor música no Prêmio Universidade FM do ano passado, parceria de Alê Muniz, Luciana Simões e Celso Borges, com o poeta participando da faixa. A sinopse: “Traça um paralelo entre São Luís e Havana, a relação física e cultural entre as duas cidades. Investiga o fato de uma suposta rádio do Caribe ter invadido a frequência do litoral do Maranhão há 30 anos”, uma das lendas – reais ou fictícias – que tentam explicar o fato da capital maranhense ter se tornado a Jamaica Brasileira.

Um pedaço da letra, já bem conhecida de vocês do rádio: “São Luís-Havana, Chiquita Bacana, lá na bodeguita/ Tiquira catuaba, yo te quiero catita/ melodia cubana se vê/ nos becos e nas veredas, malecón e las quebradas/ nas matracas e tambores, nos lelês e suas cores”.

Outra sinopse anunciou o show recém-apresentado dentro do projeto Quinta Esticada, na Let it Beer (antiga Boate Flamingo): “um homem, uma mulher e uma guitarra numa aventura eletrizante em busca do Prêmio da Música Brasileira”, berrava a arte distribuída por e-mail ao fã-clube.

O “casal mais charmoso da música brasileira” provou ser possível fazer música de qualidade mesclando elementos do que se convencionou chamar world music e das culturas populares do Maranhão, hibridizando as coisas, de fato, em vez de construir pequenos monstros para encalhe nos laboratórios de criação e produção.

O Criolina é nosso tardio reprocessamento de tropicália e manguebeat, sem nenhum demérito temporal.

Grande parte de Cine Tropical foi gravada em São Luís, onde “o melhor acontecimento da música do Maranhão nos últimos 20 anos”, nas palavras de Zeca Baleiro, escolheu para morar, contrariando a “ditadura” do eixo Rio-São Paulo.

Como sua música, com um pé no Maranhão outro no mundo, o Criolina está em turnê pelo país. Passarão por Fortaleza, Crato, Salvador, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Haja “ronco do motor do Maverick”, tanta estrada a percorrer. Ainda bem que “nós capota mas não breca” (subtítulo de Nó ni pingo d’água): “Nós tá na boca do povo/ diz que nós é osso duro/ nós aguenta chumbo grosso/ olha nós aí de novo”.

O “Vento nordeste” de Terezinha de Jesus

[Texto emocionado e emocionante publicado na edição de junho/2011 do jornal Vias de Fato]

Pelas manchetes você percebe que o texto do professor não é o único bom motivo para ler o Vias de Fato do mês passado, o deste mês quase nas ruas

LUIS INÁCIO OLIVEIRA*

Sem a música a vida seria um erro, disse uma vez, com toda razão, o pensador Friedrich Nietzsche.

Hoje posso ver que a formação do meu ouvido vem de longe, das terras da infância – meu pai gostava dos baiões de Luiz Gonzaga, uma tia-avó escutava coisas mais eruditas e um tio boêmio, fã do violão de Dilermando Reis, fazia longas serestas no quintal da sua casa. Foi como um ouvinte ainda adolescente que ouvi certa vez a canção Vento nordeste, de Sueli Costa com letra do poeta Abel Silva, na voz agreste da Terezinha de Jesus e aquela voz nova pra mim, com seu belo timbre e seu tom meio doído, com um leve sotaque e um frescor de menina, lembrando a voz da Gal Costa nos seus inícios, me chamou imediatamente a atenção. Nos idos anos 1980, ainda tínhamos em São Luís alguns bons programas de rádio! Algum tempo depois descobri numa loja de São Luís, na época das lojas de vinis, o álbum da Terezinha de Jesus intitulado, justamente, de Vento nordeste e este se tornou então um dos discos que me acompanharam durante certo tempo da adolescência, formando também o meu ouvido na canção popular brasileira, com suas riquezas melódicas e sua bela tradição poética. Acho que uma coisa que precisa ainda ser melhor estudada é essa tradição poética que se refugiou na música popular brasileira, desde Noel Rosa, passando por Vinícius de Moraes, até chegar a Chico Buarque, Caetano Veloso, Torquato Neto, José Carlos Capinam, Waly Salomão, Cacaso e muitos outros poetas da nossa canção popular.

Quando retornei do meu mestrado há alguns anos, vi que não conseguiria mais manter meus vinis no clima quente e úmido da ilha de São Luís e me desfiz de praticamente todos, que se dispersaram por aí pelos sebos; acho que o da Terezinha já havia sumido bem antes dessa última diáspora… Foi assim que, depois da diáspora final, comecei a garimpar na internet algumas gravações que haviam se tornado parte da minha “memória musical afetiva”, vamos denominar assim, algumas das quais sequer chegaram a ser lançadas em cd. Os discos lançados pela Terezinha fazem parte, por assim dizer, dessa memória obscura e esquecida da canção popular brasileira que não se encontra registrada em cd. Pelo que sei, só uma coletânea da Terezinha foi lançada em formato digital, já há muito fora de catálogo. Isso nos faz pensar naquilo que a compositora e letrista Ana Terra, num artigo justamente sobre a cantora, chamou de sequestro da memória da música popular brasileira. Parece que a internet tem ajudado a implodir esse controle pelo esquecimento que as gravadoras ainda exercem sobre a memória fonográfica.

Nessas minhas buscas pela internet, me dei conta de que, por algum motivo, a cantora Terezinha de Jesus havia sido praticamente varrida do mapa da recente história da música popular brasileira. Havia poucas informações internáuticas disponíveis sobre ela, as mais completas no verbete dedicado à cantora no Dicionário Cravo Albin e algumas noticiando uma melancólica interrupção da carreira e uma volta à terra natal que poderia até lembrar um baião triste de João do Vale. Fiquei então curioso em saber por onde andava a Terezinha de Jesus, o que havia acontecido com essa cantora que fez um relativo sucesso no finzinho dos anos 70 e início dos 80 e depois desapareceu completamente do cenário musical, aliás, como muitos de sua geração. Não custa lembrar aqui a efervescência política, cultural e musical da época, quando já se forçava a abertura política, depois de anos de ditadura militar, e quando muitas energias reprimidas, inclusive as artísticas, vinham à tona.

Nesse pouco material disponível na internet sobre a cantora, obtive, como já disse, a informação de que ela havia retornado à Natal/RN no início dos anos 90, fez ainda alguns shows e não chegou mais a gravar. Na mesma época, em rápido mas poético contato com a compositora mineiro-carioca Sueli Costa, de quem Terezinha gravou algumas canções, em belos registros, tive a confirmação de que a cantora potiguar havia realmente retornado à capital potiguar e vivia hoje lá, numa espécie de discreto silêncio, já retirada da vida de shows e discos. Lembrei então de outra canção da Sueli Costa, com letra do mesmo Abel Silva: “O que é uma vida de artista/ no mercado comum da vida humana?/ um projeto de sonho inocente…/ não se esqueça de mim essa semana!”

Em agosto passado, em viagem a Natal, resolvi procurar a cantora e o compositor potiguar Mirabô Dantas, a quem Terezinha é muito ligada e de quem gravou várias canções. As minhas buscas em jornais e órgãos oficiais de cultura poderiam, por si só, render uma história, talvez com lances detetivescos. Lembro que um jovem historiador da Casa de Câmara Cascudo, um rapaz estudioso da história e da cultura do Rio Grande do Norte, não conhecia a cantora. O taxista que me levou à casa dela ficou curioso com o meu insistente interesse por aquela cantora hoje esquecida e de quem, ele próprio, tinha apenas uma vaga lembrança. Mas deixemos de lado as histórias paralelas de minhas perambulações por Natal.

Findas as buscas, tive a oportunidade de conversar com Mirabô, um compositor importante, da mesma geração de Terezinha, e, como ela, também pouco conhecido fora de seu estado e do círculo de alguns ouvintes mais entusiasmados com a música popular brasileira e nordestina. O Mirabô, que tem várias composições com o poeta baiano Capinam, lançou um livro, há alguns anos, em que procurou contar a história musical e cultural da geração dele e da Terezinha. Mirabô chegou a ser presidente do Sindicato dos Músicos, no Rio de Janeiro dos anos 70, em plena ditadura militar e quando havia uma movimentação política com importância entre os músicos, pelo que ele me contou. Acho que a geração do Mirabô e da Terezinha é uma geração de órfãos da utopia musical dos anos 70. Ele me contou também a história de vida da Terezinha, que daria um romance musical, com alguma coisa da história de algumas cantoras do jazz norte-americano. Mas essa também já é outra história.

Fui eu mesmo conversar com a Terezinha de Jesus, na sua pequena casa de porta, janela e varanda, no bairro de Areia Preta, em Natal. É claro que a Terezinha que encontrei não era mais a jovem e bela mulher da capa dos seus discos, mas uma senhora de seus sessenta anos, já com as marcas de uma vida que nem sempre foi fácil. Conversamos uma tarde, com a presença da sua irmã Odaires, que foi casada com Mirabô, e com o barulho do mar por perto. Hoje a Terezinha é companheira do poeta Falves Silva, também potiguar. Eu disse a ela, na oportunidade, que tinha a intenção de escrever um artigo, uma resenha, alguma coisa sobre o Vento nordeste e ela apenas sorriu e se dispôs a falar de sua história, desde a infância no interior do RN, na cidade de Florânia e depois estudante em Natal, onde o pai trabalhava com a seleção de fios de algodão, trabalho delicado como o de um artista.

O Rio Grande do Norte teve o seu ciclo algodoeiro, como ela mesma me informou. Tinha a lembrança de cantar com as irmãs, mas era tímida e jamais supunha que se tornaria cantora profissional um dia. Confessou-me que subiu ao palco para cantar pela primeira vez um pouco forçada e quando se deu conta já era cantora. Como universitária em Natal, teve uma rápida militância política, mas logo percebeu que tudo havia se tornado perigoso naqueles tempos de acirramento da ditadura já instalada. Terezinha, no entanto, já se enfronhara com músicos e artistas que queriam experimentar caminhos novos no início dos anos 70, apesar do clima pesado da ditadura – uma agitação cultural que, me parece, pipocou no Rio e em São Paulo, com as guitarras dos tropicalistas, os parangolés de Hélio Oiticica, as experiências do Teatro Oficina, mas também em Belo Horizonte, Salvador, Recife, São Luís e por outros cantos. Era também o momento do desbunde, do hippismo, da psicodelia, da difusão do rock e, paradoxalmente, na América do Sul, ditaduras militares recrudesciam. No Brasil, essa tensão entre mudanças culturais e sufoco político.

Já no começo dos anos 70, Terezinha, que ainda não era Terezinha de Jesus, se despede de Natal e se manda para o Rio de Janeiro. Na verdade, uma nova leva de nordestinos repetia esse antigo êxodo. Os chamados centros culturais do Rio e de São Paulo foram então tomados não só pelos baianos, antigos e novos, mas também pelos cearenses, pernambucanos, paraibanos, alagoanos, potiguares. Traziam um sotaque diferente, um baião que já convivia com o rock. Reviravam a tradição poética e musical nordestina, cantorias, cordeis, aboios, galopes, feira de Caruaru, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. Violas de 12 cordas, zabumbas, triângulos e sanfonas se misturavam a guitarras elétricas. Terezinha guarda muito da memória musical desses anos 70 no Rio de Janeiro, me contou muitas histórias. Chegou a conhecer Lupicínio Rodrigues já no final da vida dele, assim como Nelson Cavaquinho, que era um boêmio contumaz. Lembrou de um show antológico de Elizeth Cardoso acompanhada por Jacob do Bandolim e o Época de Ouro – depois registrado em disco, mas hoje também fora de catálogo. Foi também amiga muito próxima do maranhense João do Vale, de quem achavam, inclusive, que era namorada. Ou uma delas. Contou ainda que descobriu numa churrascaria o músico maranhense Zé Américo, que tocou na banda que a acompanhava e depois foi músico de Elba Ramalho. “Pra mim não havia essa história de eu ser a solista e, por isso, ser mais importante que os outros músicos. Trabalhávamos todos juntos, todos tinham ali a mesma importância”, disse. Seria esse o clima de muitas das experiências criativas dos anos 70. Lembro imediatamente do poeta-músico Cacaso: todos fazendo coletivamente um mesmo poemão!

Assim, Terezinha foi desfiando pra mim, como se também selecionasse fios de algodão, histórias daquele momento musical, daquela geração de nordestinos pós-tropicalistas (ou trans-tropicalistas) que invadiram o cenário da música popular naqueles anos – Ednardo, Fagner, Zé Ramalho, Alceu Valença, Moraes Moreira, Geraldo Azevedo, Cátia de França e a lista poderia se alongar bastante.  Lembrou do show importante que ela fez no Parque Lage, no Rio de Janeiro, final dos anos 70, e que antecedeu o lançamento de seu primeiro disco, justamente o Vento nordeste. Me falou da sua convivência com João do Vale, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Sueli Costa, Fagner, Moraes Moreira, Mirabô… Falamos da forte poesia que impregnava a música popular da época, da convivência que teve com alguns desses poetas ligados à música popular, Capinam, Abel Silva, Cacaso… Comentei que quando escutei de novo o seu primeiro disco, já passados tantos anos depois daquela minha primeira audição adolescente, o que aconteceu foi uma bela redescoberta. Ela me respondeu que essas surpresas sempre podem acontecer e me deu um exemplo poético: a surpresa que teve quando releu A hora e a vez de Augusto Matraga. De repente, já tínhamos entrado por outra vereda e ficamos ali falando do sertão de Guimarães Rosa…

Terezinha de Jesus gravou seis discos na sua carreira. Acho o primeiro deles, Vento nordeste, um disco primoroso. O segundo, Caso de amor, é também um belo disco, com algumas belas gravações, apesar de um arranjo meio cafona para um samba do Elton Medeiros. Depois ela gravou dois discos com o Sivuca, com sotaque mais nordestino, com forrós, xotes, xaxados, baiões, frevos. Neles, sente-se o entrosamento musical dos dois, a ligação com as raízes poéticas e musicais da canção nordestina, embora aqui e ali haja também algum deslize, algum resvalo para um piegas desnecessário. O seu último disco não conheço, é o menos conhecido, mas sei que nele ela gravou Luiz Melodia. É um disco com uma linguagem mais pop, segundo suas palavras, e isso parece ter sido imposição da gravadora.

No nosso papo, ela falou dessas pressões da gravadora para que fizesse coisas mais facilmente vendáveis, para que se enquadrasse numa espécie de fôrma da ‘cantora nordestina’. Contou que foi chamada por um executivo da sua gravadora e este sugeriu que ela gravasse coisas mais alegres, pois o seu disco Caso de amor tinha saído um disco meio triste e com poucas chances de venda. Ela, então, lhe respondeu que o disco não era um amontoado de canções, que ela havia construído o disco como uma pequena obra que tinha uma feição, uma unidade, um desenho autoral e não conseguiria sair trocando por canções mais alegrinhas e frevos vendáveis; se quisessem que ela o gravasse daquele jeito, ela o gravaria; caso contrário, gravaria outro disco, com outro repertório igualmente pesquisado, ou então não gravaria disco algum.

Nesse depoimento, senti que havia ali uma liberdade artística rara, que opunha ao sistema no qual havia se metido uma espécie de resistência delicada, quase singela na sua impotente potência. Não é de se estranhar que a Terezinha não tenha conseguido se adequar direito a esse sistema de formatação e de produção do êxito que a indústria do disco, à época todo-poderosa, impunha aos artistas. Minha impressão é que a jovem Terezinha era uma menina cigana que gostava da boêmia e queria ficar ali cantando as canções que a tocavam naquele agitado Rio de Janeiro do fim dos anos 70. Contou-me, por exemplo, que ouviu o samba-choro Curare, de Bororó, e achou lindo aquilo, com a mudança de registro e de ritmo que o samba adquire na segunda parte. Comentou com Paulinho da Viola e ele lhe mostrou a gravação original do Orlando Silva. Ela estudou o samba e o incorporou ao seu repertório. Curare foi gravado em Vento nordeste.

Quanto a esse Vento Nordeste, considero um dos belos discos dos anos 70, um disco com simplicidade, delicadeza, poesia, com arranjos bonitos, bem cuidados, ainda com aquele som acústico dos anos 70, com cordas, violões, flauta, acordeom, piano acústico e com a voz agreste de Terezinha, que remete aos ventos marinhos de Natal, aos agrestes do Seridó, às frutas do sertão, mangaba, caju, siriguela, umbu. Ela gravou nesse disco tanto compositores novos à época, como Sueli Costa, Fagner, Moraes Moreira, os compositores do grupo Boca Livre, na época Cantares, e o próprio Mirabô, quanto compositores da tradição da canção popular brasileira, como Bororó, Lupicínio e Luiz Bandeira. A gravação da canção Vento nordeste, de Sueli e do poeta Abel Silva, é muito bela, cheia de delicadeza poética – “Viaja o vento nordeste, cavalo de meu segredo”. A Sueli Costa me confidenciou, no nosso breve contato, que acha a melhor gravação dessa sua composição! O mesmo se pode dizer da gravação de Cigano, de Raimundo Fagner, e de Não posso crer, de Mirabô, com letra do poeta Capinam, espécie de samba-canção com distorções da guitarra de Robertinho do Recife no final. A gravação de outro samba-canção, Aves daninhas, dessa vez de Lupicínio, é pra mim antológica, com o acordeom choroso de Dominguinhos. Sem falar no samba do Bororó…Aos clássicos de Bororó e de Lupicínio fazem contraponto o debochado samba de gafieira Fogo-fátuo, de Moraes Moreira com letra do poeta carioca Chacal, e a melancólica canção Foi-se o tempo, dos cearenses Petrúcio Maia e Fausto Nilo. E no disco há também uma gravação saborosa do choro amaxixado Coração Imprudente, de Paulinho da Viola e Capinam, a Terezinha cantando num dueto com o próprio Paulinho da Viola e o maranhense Zé Américo ao piano. Na direção do dia é uma toada ao modo mineiro, dos compositores Juca Filho, Zé Renato e Cláudio Nucci; na gravação, Terezinha é acompanhada pelos músicos do grupo Cantares, que depois viraria Boca Livre e gravaria a mesma toada num disco independente famoso.  O Vento nordeste se encerra com dois baiões-forrós ingênuos, um de Luiz Bandeira e o outro de João Silva, um compositor menos conhecido da época do Luiz Gonzaga – essas gravações trazem no vento sons longínquos do interior do Brasil e portam algo de desconcertantemente antiquado, sonoridades que remetem às feiras nordestinas, às cantorias, às ladainhas, aos forrós tocados nos rádios das casas do sertão. Pelo menos é assim que eu as ouço, com essas ressonâncias levemente arcaicas.

Os músicos que tocam no disco são todos muito bons: Dominguinhos, Tutty Moreno, Robertinho de Recife, o flautista Copinha; os arranjos são muito bem cuidados. Mas tudo tem frescor e simplicidade. A própria Terezinha me confessou, na nossa conversa, que, como cantora, sempre prezou pela simplicidade. Mas a simplicidade desse seu Vento nordeste é uma simplicidade cheia de pequenas sofisticações e delicadezas, simplicidade difícil de ser alcançada, a simplicidade de uma Nara Leão, de um Agustín Barrios, de um poeta como Manuel Bandeira, de um pintor como Guignard. Talvez com o exagero daquela minha memória musical afetiva, considero o disco uma pequena pedra preciosa deixada ao esquecimento e, por isso, fico querendo resgatá-lo do silêncio.

Readquiri o vinil em Natal. Voltei com ele a uma coleção de vinis. O Vento nordeste foi o primeiro dessa nova coleção e vejo como as capas dos antigos discos podiam ser pequenas obras de arte. A capa do disco da Terezinha é singela, mas evoca o enigma do vento nordeste viajando nas dunas de Natal. Sobre a imagem das areias com os rastros do vento há uma foto da Terezinha com jeito e brincos de cigana. Um encarte acompanha o vinil com a mesma foto e indicação detalhada de todos os músicos. Na contracapa, ainda sobre a imagem das dunas, há a lista das canções com os compositores e os créditos do disco, mas, sobretudo, há dois textos de apresentação emocionados, textos escritos por dois poetas próximos de Terezinha, o baiano Capinam e o carioca Abel Silva. O texto de Capinam é, na verdade, quase um poema dedicado à cantora.

Por fim, não posso deixar de dizer que esse texto se originou de uma carta que enderecei ao Ricarte Almeida Santos, propondo a ele que dedicasse um Chorinhos e chorões à Terezinha de Jesus. O programa aconteceu no segundo semestre de 2010 e rolaram as gravações mais chorísticas da Terezinha, com a minha presença e a do jornalista Zema Ribeiro. Este texto é uma versão desdobrada daquela carta.

*LUIS INÁCIO OLIVEIRA é professor do Departamento de Filosofia da UFMA