recorro ao sempre mestre e gênio itamar assumpção para batizar este post. um texto meu atravessou o oceano. é…
conheci daniel cariello pessoalmente há uns anos, no rio de janeiro. apesar do contato pouco, trocávamos e-mails com certa freqüência. ele, atualmente morando em paris, edita uma revista chamada brazuca (cuja versão impressa é distribuída gratuitamente na frança) e convidou-me a participar da edição de março, especial turismo.
a idéia: uma rota de 10 mil quilômetros, de foz do iguaçu a manaus, passando por são luís do maranhão e outras cidades brasileiras.
a carga de trabalho e atribuições mil quase me deixam de fora: era dia de mandar o texto e eu queria/precisava de mais prazo. “mas não deixe de fazer, pois não temos plano b”, cariello me escreveu, meio preocupado. terminado este novo prazo, nada de texto pronto. ganhei mais 48h e um pouco de aporrinhação para a cabeça do editor depois, consegui.
e as fotos? aos 47 do segundo tempo a queridamiga micaela socorreu-me, mandando fotos feitas por ela e pelo marido, que ficaram uma beleza, ilustrando meu texto em francês (dado o tamanho, a edição de março da brazuca não é bilíngüe).
meu texto foi cortado, resumido. sem problemas. abaixo a versão original de “contradictions insulaires“, que mandei para a revista. como ficou, você vê no site da brazuca, onde é possível também baixar a versão pdf da revista.
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contradições ilhéus
por zema ribeiro [1]
“sobre os jardins da cidade/ urino pus. me extravio/ na rua da estrela, escorrego/ no beco do precipício./ me lavo no ribeirão./ mijo na fonte do bispo./ na rua do sol me cego,/ na rua da paz me revolto/ na do comércio me nego/ mas na das hortas floresço;/ na dos prazeres soluço/ na da palma me conheço/ na do alecrim me perfumo/ na da saúde adoeço/ na do desterro me encontro/ na da alegria me perco/ na rua do carmo berro/ na rua direita erro/ e na da aurora adormeço” [2]
como no poema de ferreira gullar, um de seus filhos ilustres, são luís do maranhão é uma cidade cheia de contradições. uma cidade que traz em si uma necessidade de reinvenção constante, principalmente por parte de seus filhos que conhecem “o estrangeiro”. caso de celso borges, em são paulo há 19 anos: “a são luís que eu deixei, não existe mais. eu pude inventar outra cidade, vivê-la de outra forma, de longe. redescobri muita coisa, nova poeticamente, da cidade nesses anos. sua geografia, a percepção da claridade, a beleza física, o vento, a chuva.” [3]
[o esvoaçar das saias das coreiras. foto: micaela neiva moreira]
outrora atenas brasileira, apelidos como ilha rebelde, ilha do amor e jamaica brasileira – há controvérsias – re-batizam a são luís do bumba-meu-boi e do tambor de crioula, manifestação cultural que ano passado foi tombada como patrimônio cultural imaterial brasileiro pelo instituto do patrimônio histórico e artístico nacional (iphan), e este ano estampará mais de 2 milhões de selos da empresa brasileira de correios e telégrafos. prestes a completar 400 anos, o debate que ora se descortina gira em torno da questão: são luís do maranhão: jamaica, atenas ou apenas brasileira?
[vista aérea da feira da praia grande. foto: gabriel jauregui]
multicolorida, são luís é terra de várias tribos: dos clubes de reggae ao clube do choro, da fauna de a vida é uma festa! aos “hippies de boutique” que passeiam em shoppings climatizados e nunca perceberam a delícia de um peixe frito ou um assado de panela na feira da praia grande. de bêbados varando madrugadas na praça joão lisboa, a mesma da igreja do carmo, cuja ponteira [4] sérgio habibe viu de longe, enquanto se afastava de barco, quiçá rumo à alcântara. da confusão do estacionamento do largo de são joão, onde josias sobrinho rasgou a calça do liceu maranhense ao driblar o bonde – ou despistar o trocador, dá no mesmo – e cair ralando o joelho numa parede [5]. da igreja do desterro onde chico maranhão gravou seu antológico lances de agora [6], profano e sacro em mesmo altar.
a ilha contraditória, que insiste, burra, em repetir à exaustão a pobreza de versos de forrós de plástico vindos de outros cantos, abriga ainda o bar do léo, reduto dos amantes de boa música. mecânica, que “não fazemos música ao vivo” e “é proibido dançar” são placas visíveis no emaranhado [7] de fotografias, objetos antigos e discos, muitos discos, que enfeitam aquele pedaço do hortomercado do vinhais. não é para menos: é invejável o acervo de leonildo peixoto, o léo do bar, para os íntimos.
pão maligno com miolo de rosas [8], a bela-feia são luís merece todo nosso amor-ódio. caminhar como um damião [9], por sobre paralelepípedos, ao lado de azulejos, cumprimentando-lhes, como quem chora-ri por nada. ser confundido com um louco, e do alto de sua lucidez, declamar versos como os de cesar teixeira, também tradutores de toda esta contradição: “as ladeiras sobem/ e descem/ como estreitas línguas/ de répteis/ engolindo bêbados/ e prostitutas/ na noite de luto/ sem lua.// sob os telhados/ de escamas/ as ladeiras se arrastam/ há séculos/ enxugando o suor/ da história/ como se menstruassem/ pedras.// embaixo/ o vômito das estrelas,/ em cima/ o cocô do bispo,/ mas tudo/ as ladeiras ponderam./ de manhã/ cospem pivetes.// descansam/ no largo do desterro/ e de joelhos/ entram na igreja,/ afinal,/ não é fácil ser ladeira/ sem pecar/ ao mesmo tempo.” [10]
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box (dicas)
bar e restaurante chico canhoto – consagrado como o mais novo espaço cultural da cidade, tem realizado, sempre aos sábados, animadas rodas com chorões da jovem e velha guardas da música instrumental maranhense, além de promover intercâmbios musicais com estados vizinhos. lá, também, é servida a melhor picanha da ilha. no residencial são domingos (cohama).
igreja do desterro – com uma torre só, a mais antiga igreja edificada em são luís. seu largo já serviu de palco para diversos projetos de música e teatro, a exemplo do hoje adormecido serenata dos amores. o desterro é um dos três bairros que compõem o centro histórico de são luís, entre praia grande e portinho.
a vida é uma festa! – idealizado pelo poeta zémaria medeiros, o movimento musical semanal acontece ininterruptamente desde maio de 2002, sempre às quintas-feiras. atualmente é realizado na cia. circense de teatro de bonecos (praia grande), depois de ter sido sediado no saudoso bar de seu adalberto. congrega uma fauna exótica e irreverente de poetas, músicos, atores, malabares, mímicos, dançarinos e outros. gratuito.
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notas
[1] zema ribeiro escreve no blogue http://zemaribeiro.blogspot.com. colabora também com o overmundo e cronópios, além de diversos jornais ludovicenses.
[2] gullar, ferreira. poema sujo. in: toda poesia. são paulo: civilização basileira, 1980.
[3] ribeiro, zema. entrevista. celso borges em vários mo(vi)mentos.
[4] a música “ponteira”, de sérgio habibe, traz versos como “vou ver de longe a ponteira/ da igreja do carmo”.
[5] depoimento do compositor josias sobrinho a zema ribeiro.
[6] o disco foi gravado na sacristia da igreja do desterro, em junho de 1978, por marcos pereira, que também registrou outros importantes nomes da música brasileira, a exemplo de cartola, canhoto da paraíba e arthur moreira lima.
[7] “emaranhado” é o título do mais recente disco de chico saldanha (2007).
[8] “pão maligno com miolo de rosas” é o título do penúltimo livro do poeta ludovicense nauro machado (2006).
[9] protagonista de “os tambores de são luís”, o clássico absoluto de josué montello; em mais de 400 páginas, damião percorre parte de são luís, a pé, em uma noite/madrugada para ver o nascimento do trineto.
[10] teixeira, cesar. patrimônio cultural profano. in: clesi. poesia de bolso. circuito de literatura. ipatinga (mg): clube de escritores de ipatinga, v. 2, 2003. disponível em http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/29/Pagina133.htm