Henrique Menezes em um passeio pelos terreiros do Brasil

[Vias de Fato nº. 58, de abril/2015]

Lançando seu primeiro disco solo, Passaporte, músico conversou com o Vias de Fato, por ocasião de sua mais recente passagem pela Ilha

Foto: ZR (2/2/2015)
Foto: ZR (2/2/2015)

 

Henrique Menezes veio à São Luís no começo do ano, para participar das festividades de Oxóssi e Iemanjá na Casa Fanti-Ashanti, da qual é primeiro Ogã Alabê Huntó – “maestro da percussão, chefe de batucada, diretor musical da casa”, como ele mesmo explicou. Trazia na bagagem seu primeiro disco solo, assinado com a Banda Bom Q Dói, intitulado Passaporte [independente, 2015, R$ 20,00 na Livraria Poeme-se, Banca do Dácio e Quitanda Rede Mandioca].

É uma das três visitas anuais que faz à terra natal. “Quando eu venho ao Maranhão, eu venho mais para meus compromissos religiosos que profissionais”, diz ele, que aproveita para visitar a família e os amigos. As outras visitas acontecem num canjerê em setembro e no período das festividades de São Pedro (29 de junho), quando costuma ver o encontro dos bois na Igreja do padroeiro dos pescadores, na Madre Deus, e “não perder esse vínculo, recarregar minha bateria, minha essência, tocar um tambor na Madre Deus, aqui no [Tambor de Crioula de Mestre] Amaral, no boi de Maracanã, Santa Fé. Eu venho recarregar minha bateria para poder trabalhar em São Paulo”.

Em meio à alegria de rever parentes e amigos, foi surpreendido pela tristeza da notícia do falecimento de mestre Humberto de Maracanã (2 de novembro de 1939-19 de janeiro de 2015), líder do bumba meu boi e da comunidade que lhe emprestaram o sobrenome artístico, seu colega de Ponto BR, coletivo musical que reúne diversos mestres de cultura popular de Pernambuco e Maranhão.

No dia de Iemanjá, 2 de fevereiro, uma das festas de que ele participaria no terreiro liderado por Pai Euclides – de quem é sobrinho –, ele conversou com a reportagem na Quitanda Rede Mandioca.

Na conversa, ele relembra capítulos importantes de sua vida entre o Maranhão e São Paulo, passando pelos carimbos do Passaporte que dá título a seu disco, sua trajetória musical, o emprego inicial em uma fábrica de brinquedos, sua atuação como arte-educador e sua primeira escola musical, a Casa Fanti-Ashanti, cujas citações são recorrentes ao longo da entrevista.

Passaporte é teu primeiro disco solo? Primeiro disco solo. Outros que eu gravei foram registros do Cacuriá Pé no Terreiro, que eu sou o diretor, nós gravamos há 11 anos, uma perspectiva de grupo, que trabalha a dança, a música e a arte-educação, tudo junto, nesse contexto. Este é um trabalho mais musical, inspirado nos lugares onde fomos passando, os carimbos, cada um conta um pouco de cada lugar, a Casa Fanti-Ashanti, minha primeira escola de música, ouvindo os tambores todos os dias, desde a barriga de mamãe, no ferro [instrumento do tambor de mina], tocando sempre, e dos lugares em que eu fui passando, Rio de Janeiro, Recife, Maracatu Estrela Brilhante, em 2005 eles ganharam o carnaval com uma música que eu fiz para eles, deram uma medalha de honra ao mérito para mim, fizeram homenagem, sempre falam. Essa inspiração de fazer uma música para o Estrela Brilhante, eu fiz uma referência uma ciranda. Tinha um maracatu [no disco]. Esse projeto tinha muitas músicas, nasceu de um projeto, Noites do Maranhão, que eu tenho em São Paulo, todo mês tem uma noite do Maranhão num bairro diferente, já fizemos em praças, Sescs, várias casas de shows. Tinha esse projeto, a gente cantava diversas músicas minhas, de outros amigos maranhenses, de outros lugares também, mas 90% do repertório as músicas eram minhas e aí também tinha um maracatu. Como eles falaram que vão gravar nesse disco agora, eu falei “não vou queimar o cartucho deles”. Eu gravo em outro disco, a ideia é que esse seja só o primeiro [risos].

Já são quantos anos de carreira? Quanto você confere? Qual o marco inicial? Quando é que você percebe que vai trilhar os caminhos da música? Aqui no Maranhão eu já era envolvido com a música, participava de vários grupos, GDAM [Grupo de Dança Afro Malungos, sediado no Parque do Bom Menino], Abibimã, foram grupos afros aí, não fui fundador do CCN [Centro de Cultura Negra do Maranhão, sediado no Barés, João Paulo], mas fui um dos integrantes da época antiga do CCN, Akomabu, Silvia Black, Escrete [compositor], há muitos anos, antes de ir para São Paulo. Agora eu estou com 23 anos de São Paulo. Lá eu comecei a buscar uma coisa mais minha, desenvolver mais meu trabalho como compositor. Antes eu não cantava tanto, eu mais compunha. Cantava no Cupuaçu [grupo de bumba meu boi liderado pelo compositor Tião Carvalho, no Morro do Querosene, em São Paulo; ele participa de Passaporte na faixa Brasa em candeeiro/ Touro da beira do mar], aí eu resolvi botar a carreira como cantor também. Eu era mais compositor que intérprete. Aí resolvi fazer o primeiro show, inventei, um show diferenciado lá em São Paulo, misturava o reggae, o samba, ritmos do Maranhão. Surgiu a primeira banda, Os Caxienses, em homenagem a meu avô, que era chamado seu Caxias, ele veio de lá. Ele colocava quadrilha, a Quadrilha do Oeste, o Rei do Oriente. Em homenagem a ele eu dei esse nome. A gente trabalhava com os ritmos, principalmente o forró.

Isso já era São Paulo. Mais ou menos em que ano? Já era São Paulo. Os Caxienses, entre 1992 e 96.

Você participou de discos de outros artistas, como músico? Sim. Toquei com Rosa Reis [cantora], Tião [Carvalho], Josias [Sobrinho, compositor], nunca gravei, mas toquei com ele, sempre que ele vai à São Paulo, é difícil levar banda inteira, às vezes tocamos eu, Manoel Pacífico [percussionista maranhense radicado em São Paulo]. César Nascimento [cantor e compositor piauiense, radicado no Rio de Janeiro após longa temporada no Maranhão], que não é maranhense, mas é quase, sempre que vai à São Paulo eu faço parte da banda dele. Aí veio a ideia de começar a cantar, cantar minhas músicas mesmo. Eu montei um time, chamei os amigos, Cacau [Amaral, percussionista maranhense radicado no Rio de Janeiro], na época morava em São Paulo.

Você está naquele disco da banda Mafuá, de Tião? Eu gravei, gravei como percussão lá, Estrela miúda, de João do Vale [parceria com Luiz Vieira. Cantarola:] “Estrela miúda, que alumeia o mar”. Fiz os pandeirões junto com Cacau, Nazaré [José de Nazaré, percussionista maranhense].

Participou também do disco da Maria Preá [banda que tem a catarinense Laetícia Madsen como vocalista – ela participa de Passaporte na faixa Coreira de tambor]? É, gravei. [Cantarola:] “lá na mata sabiá cantou”, acho que Papete gravou essa música [no disco Berimbau e percussão], o Ponto do caboclo sete flechas e em outra faixa [Tambor de mina, de domínio público].

Quando você nasceu sua mãe já tinha envolvimento com a Casa Fanti-Ashanti? Desde criança. Tio Euclides fundou a casa acho que em 1950. Desde antes disso, ainda no Gapara, minha vó era uma curandeira, uma dona de terreiro também, dançava também. Tio Euclides foi criado pela minha vó, é neto de dona Romana, é filho de meu avô biológico, seu Caxias. Todos os filhos que eram do meu avô, mesmo não sendo da minha vó biológica, ela os considerava como filhos e eram aceitos na família como parentes. Esse envolvimento dele e mamãe, se criaram juntos, desde pequenos, sempre teve essa cantoria, meu avô tocava violão, meu tio Reinaldo, toca até hoje, mora na Cidade Operária. Quando foram para o Cruzeiro do Anil, Dindinha, que é minha tia, Zezé [Menezes], minha mãe, Graça [Reis], minha tia, foram com ele. Quando surgiu a Casa Fanti-Ashanti no Cruzeiro do Anil elas já faziam parte com ele desde a época do Gapara, o Terreiro do Egito. Ela sempre esteve dentro do terreiro, sempre tiveram contato com essa religiosidade, desde pequenos. E eu já me entendi na Casa Fanti-Ashanti, eu nasci dia 25 de junho [de 1971], minha mãe estava dançando um tambor de crioula quando a bolsa estourou.

Então você já nasceu no meio da roda? [Risos] Já nasci no meio da roda do tambor. A casa já tinha uns 20 e poucos anos, em uma festa de tambor, ela segurou, segurou, a bolsa estourou, depois, “leva, leva pra maternidade”. Eu fui criado dentro da Casa Fanti-Ashanti e no Bairro de Fátima, vivia entre esses dois universos, essas festas que meu avô promovia, quadrilha, festa de Reis, ladainha de Nossa Senhora Santana, ladainha de Santo Antonio. A música sempre esteve muito presente aqui pro lado do Bairro de Fátima, e no Cruzeiro do Anil a percussão, a música, com as doutrinas, os toques. Foram minhas primeiras formações. Quando eu me entendi, com cinco anos de idade, eu fiz minha primeira toada. Minha primeira toada de boi, eu era cantador do boi da casa, mas eu nem imaginava.

Que é aquele Boi de Encantado? É. Tem até num livro de Ferreti [Mundicarmo Ferreti, membro da Comissão Maranhense de Folclore], num dos livros, uma foto minha, pequenininho, com um buchinho, um buchinho de menininho maranhense comedor de farinha, eu com um maracá na mão. [Cantarola a toada:] “o meu nome é Henrique/ eu gosto de cantar boiada/ São João me prometeu/ o meu touro eu almoçar/ ê boi, ê boi, ê boi/ esse ano tu em primeiro lugar”. Foi a primeira toada, ele ouviu e disse: “é, canta essa toada aí no boi”, seu Corre Beira, entidade de tio Euclides, sempre foi o compositor das toadas do Boi de Encantado. Tem uma música de mamãe, Santo Antonio, São João, até A Barca [grupo musical de vigoroso trabalho de pesquisa e mapeamento musical no Brasil, com diversos discos produzidos e gravados] gravou, o Ponto BR também. [Cantarola:] “Santo Antonio me avisou/ São João vai chegar”. Na verdade, essa música da minha mãe foi antes dessa minha, ela compôs quando ela tinha uns 16, quando eu nasci já cantavam. Depois eu me desinteressei do boi, fui ficando mais velho, comecei a participar de outras brincadeiras, não queria mais boi de criança, queria os bois com os adultos, comecei a brincar no Boi de Pindaré, a sede era no Bairro de Fátima, na casa de seu Neuton, ali perto do ponto de ônibus, tocava pandeirão, comecei a me encantar com essa história do boi, de tocar pandeiro, tocar percussão. Aí quando vi Nivô tocar tambor a primeira vez, falei “nossa, o que é isso?” Saí de casa cedo pra ver tambor na rua Dagmar [Desterro], na praça do Mercado. Nivô era um negão, estivador, vozeirão. Aí que eu fui entender, na Casa Fanti-Ashanti tinha, mas eu nunca liguei, não pensava em tambor de crioula como música, pensei “nossa, isso aqui é o caminho”. Me encontrei, já peguei o meião, o crivador, com o tempo fui para o tambor grande. Quando eu já sabia tocar, fui para uma festa, entrei para tocar, ele ficou olhando, não reclamou de nada, aí pensei “eu tou apto para continuar”, fiquei fazendo parte do grupo da casa, depois Tambor de Taboca, é exatamente a mesma marcação, as mesmas frases do tambor de couro, só que tocado na taboca.

Foto: ZR (2/2/2015)
Foto: ZR (2/2/2015)

 

O que te levou para São Paulo? A curiosidade de conhecer a cidade, na verdade. Eu ia para São Paulo dois meses garantidos, final de novembro, dezembro e janeiro, e voltava para o carnaval. Eu iria para trabalhar numa fábrica de brinquedos. Minha tia Graça já morava em São Paulo uns oito anos antes de mim. Tinha um amigo dela que tinha uma fábrica de brinquedos e eles entregavam a cidade toda. Aí me arrumaram um trabalho daqueles temporários, final de ano, eu ia trabalhar de caminhão, fazer as entregas, conhecer a cidade, que era o que eu mais queria, só conhecia por fotos, levantava um dinheirinho e voltava para o carnaval. Só que quando chegou lá mudou toda a história. Eu cheguei, nem fui mais trabalhar com o caminhão, encontrei aquelas máquinas todas, me encantei, aquele barulho de máquina, aquele universo cibernético de cidade grande, “nossa, que coisa linda!”. Um dia eu me cheguei, o dono da fábrica estava viajando, montei um painel de ferramentas, ficavam todas jogadas, eu organizei na parede, o encarregado veio, [simula um diálogo] “quem fez isso?” O pessoal, “ah, foi o menino do Maranhão”, “chama ele aqui”, “foi você que fez isso aqui? Quem mandou?”, “ninguém mandou, eu tava aqui de bobeira”, vi as coisas lá, furei um madeirite na parede, pendurei martelo, chave de boca, tinha chave que eu nem conhecia. Ele: “rapaz, quer trabalhar comigo?”, “quero!”, adorei, ele viu meu esforço, me indicou fazer um curso, faziam capacitação para quem queria trabalhar nessa área, técnico, plástico, trabalhei três anos nessa fábrica, aí aconteceu um acidente, quase perdi minha mão [exibe as cicatrizes nos dedos], mexia na parte mecânica, eu me desgostei, perdi o encanto. Eu gostava, fazia brinquedos, sempre tive essa coisa com criança, trabalhava como monitor em Centro Comunitário. Aquele brinquedo chegaria na mão de alguma criança, em algum lugar, uma criança que não tinha muita grana, não eram brinquedos caros, botão, boliche, bola. Pra mim era uma satisfação saber que uma criança ia pegar aquele brinquedo. Depois que aconteceu isso eu me desencantei, pedi as contas, não queriam dar, arrumei confusão, até que uma gerente me mandou embora. “O que eu vou fazer da vida agora?” Eu já conhecia Tião, o Morro do Querosene, e conheci a Conceição Acioli, uma teatróloga pernambucana, diretora de teatro. Xavier Negreiros [percussionista e compositor maranhense] tocava com ela num espetáculo, aí ele teve um problema, veio embora para São Luís. E ela, “poxa, estou precisando de um percussionista para tocar”.

Você lembra qual era o espetáculo? Um espetáculo chamado Tomara que não chova, dela mesmo. Aí eu fiz parte da companhia dela, que na verdade, eram ela e Xavier, e eu o substituí. Nós ficamos com o espetáculo em turnê, e ela, “não vai mais trabalhar com nada não”, por que eu fazia vários bicos, você sabe que maranhense que se preza não gosta de ficar parado mesmo. Aí ela, “você tem que ser músico, tem que ser artista”, me deu a maior força, me apresentou para várias pessoas. Entre as pessoas a quem ela me apresentou estão o Zé Celso [Martinez Correa, dramaturgo], do Teatro Oficina, Auri Porto, ele também tinha um espetáculo paralelo ao Oficina, ele saiu há pouco, está com a própria companhia dele. Aí ele me chamou para fazer parte de um espetáculo chamado Bacantes.

Como músico? Como músico. Na verdade, eu mostrei a história do universo do tambor de crioula e eles viram aquilo no espetáculo, tinha uma cena em que tinha o tambor de crioula, o povo dançando. Disso o Zé me chamou para fazer parte do elenco, fiz alguns personagens, um sertanejo, contracenei com alguns atores, fazendo embolador, mas eu nunca quis ser ator, nunca tive essa coisa, esse domínio, interpretar, meu negócio era tocar. Eu fiquei mais ou menos um ano e meio no Oficina.

Isso já era que ano? Isso por volta de 1998, 99, mais ou menos. O da Conceição foi antes, 97, um ano antes, mais ou menos. Depois disso eu fiquei sendo músico oficial do grupo dela e começamos a montar vários espetáculos. Chamei a Graça, minha tia, que mora lá, nós fundamos a Companhia das Mães. Era um projeto dos músicos e cinco mães de alunos de escola pública, que fizeram parte como atrizes. Ela fez toda a capacitação dessas mães, que eram pessoas de comunidades bem carentes, nunca tinham acesso a essa coisa da arte. Com esse espetáculo nós ficamos quase uns 10 anos, até que a Conceição teve um ataque cardíaco e partiu [a atriz faleceu em 2005]. Paralelo a isso, tínhamos a Companhia Lampião no Céu, que encenava o espetáculo Lampião no Céu, com o Auri Porto. Esse espetáculo, nós éramos parceiros do Teatro Oficina, ensaiávamos lá e fazíamos o espetáculo em comunidades, era o projeto Arte na Rua, um projeto da Prefeitura, a gente fazia o espetáculo nas escolas, creches, centros educacionais. Isso me levou um tanto para essa parte de arte-educador. Hoje em dia em São Paulo eu trabalho muito dando aula, música, percussão. Uma das ongs é a Associação Pela Família, tem 56 anos de existência, é uma das mais antigas do Brasil. E voltando ao assunto do Lampião no Céu, o Teatro Oficina, quando eles montaram O Sertão, o Zé me chamou novamente, precisava fazer a história dum boi, dentro da história do Euclides [da Cunha, escritor], de Os Sertões [livro que inspirou o espetáculo de José Celso Martinez Correa], a primeira montagem, que foi A Terra [uma das partes do livro], tinha uma história que falava do bumba meu boi, e a história de Canudos também. São cinco partes, A Terra, O Homem I e O Homem II, A Luta I e A Luta II, são cinco espetáculos que ele extraiu do livro. Na íntegra, quando foi a primeira montagem, acho que eram quatro horas e meia, A Terra, O Homem I, três horas e meia, o espetáculo precisava de cinco dias para ser montado. Eu não sei nem como aquilo cabia na cabeça do Zé, de tanta informação, de tanto texto, de cada pessoa, de cada personagem. Mas enfim, o Zé é um homem muito sábio, muito organizado.

Voltando à música, você também participou dos dois discos do Grupo Cupuaçu. Eu sempre fiz parte, um grupo dedicado aos ritmos maranhenses. Eu estou nos dois, nesse último agora [Todo canto dança, de 2008] não só como músico, mas como compositor e como intérprete. Tem sete músicas minhas gravadas naquele cd, algumas eu interpreto, outras a Ana [Maria Carvalho, irmã de Tião Carvalho, cantora], tia Graça canta uma também. No outro, o primeiro, Toadas de bumba meu boi [1999], eu participei como cantor e como ritmista, percussionista. Em seguida vieram outros projetos, foi quando A Barca apareceu e nós fizemos a história dA Barca com o Baião de Princesas, da Casa Fanti-Ashanti. Entre essas brechas eu montei o segundo trabalho meu, que chamava Comigo Ninguém Pode, o nome da banda. Foi um laboratório, um pouco do que surgiu hoje no disco. Muitas das músicas que eu cantava com a Comigo Ninguém Pode, algumas delas eu coloquei aqui, tem algumas novas que eu fiz especificamente para o Passaporte, mas algumas eu já cantava com essa outra banda.

A Comigo Ninguém Pode chegou a gravar disco? Só o demo. Não fizemos lançamento, nem gravamos oficialmente. Tinha cinco músicas, a gente distribuía para fechar shows, chegamos a tocar para Prefeitura, Sesc, lá em São Paulo. Quando a gente separou, Cacau foi embora para o Rio de Janeiro, Ataliba foi embora para Bragança, Renatinho voltou para morar com a mãe em Santos, ficamos só eu e Téo [Menezes], meu primo, baterista, percussionista, já me acompanha há algum tempo. Aí resolvemos montar a Bom Q Dói. Aí veio o Ricardo [Perito], que toca violão e cavaco, o Cesinha [César Azevedo], toca percussão, Téo, eu, Maurício, o Mau, que é um baixista, por último o Gerson da Conceição [multi-instrumentista], para engrossar mais o caldo, toca guitarra, violão, às vezes faz o contrabaixo, por que o Mau também toca violão e contrabaixo, então eles invertem, um faz baixo, o outro, violão. Já faz quatro anos que a gente faz as Noites do Maranhão, só que a gente não faz mais muito em casas noturnas, a gente tem tocado menos, mas feito shows com mais qualidade de palco, estrutura, som. Aí veio a ideia de registrar esse cd. Tem o Bruno Buarque [baterista], que é o dono do estúdio, toca com a Céu [cantora], eu mostrei o repertório para ele, tinha feito uma pré-produção em casa, no meu computadorzinho mesmo, e ele “bicho, vamos gravar isso”. Fizemos uma parceria. Eu não tinha dinheiro, tentei editais, não consegui, juntamos alguns cachês da banda, um tanto de dinheiro meu que eu investi, aí encaramos fazer.

O financiamento do disco é todo do bolso? É, todo do bolso. E a parceria de amigos. É uma produção dependente, como eu digo: depende de um, depende de outro. É dependente [risos].

Sua fonte de renda hoje é música? Graças a Deus. Dando aula e tocando, ministrando oficinas. Eu trabalho não só com a música show, espetáculo, mas a música como aprendizado. Eu dou aula em três locais, em comunidades, lá no Francisco Morato, no Centro de Convivência Gracinha, são crianças de vulnerabilidade, baixa renda, que vivem em área de risco, da Favela Jaqueline, Taboão da Serra, são atendidas essas crianças.

Você mora onde, em São Paulo? Eu moro no Butantã, do ladinho do morro. Eu morava dentro do morro, mas foi ficando muito caro, aí eu consegui comprar um apartamentinho há três quadras do morro, na Praça Elis Regina, eu vou até começar uma história lá, a Festa de Terreiro. O terreiro eu vejo como tudo, o terreiro do quintal, o terreiro de mina, o terreiro onde as pessoas se encontram para brincar o boi, o terreiro onde se toca o tambor de crioula. Então, na verdade, a ideia é que tenha várias coisas, vamos fazer parcerias, criar um movimento cultural lá nessa praça.

E os selos nesse PassaporteCada selo desses representa uma música. A do Morro do Querosene representa a praça onde acontece a festa. A alfaia, de Pernambuco, representa o Maracatu Estrela Brilhante; é o grupo que canta minhas músicas, sempre exalta meu nome, eu faço parceria com eles, vou para lá, sou sempre muito bem recebido. Na Pavuna, onde tem os gêmeos, Rômulo e Ramon, tem o grupo Mariocas, também cantam músicas minhas, a gente tem essa parceria, eles vêm para São Paulo, eu vou para o Rio de Janeiro. A Lapa, foi o primeiro lugar em que eu me encontrei no Rio de Janeiro, foi onde eu encontrei minha filha quando ela tinha 13 anos de idade, eu descobri que tinha essa filha. O Cruzeiro do Anil é exatamente o símbolo da Casa Fanti-Ashanti, onde foi minha escola de música. A Madre Deus, um dos bois, boi de matraca, antes de ir para o Maracanã, tocar no Boi de Maracanã, tem uma história muito presente. Foi um bairro em que eu fiz muitos amigos, músicos, nem dá para citar nomes, que moram na Madre Deus, ou que já moraram. São Gonçalo, na verdade, vem de uma homenagem ao santo, tem no Rio de Janeiro, onde descobri o violão como instrumento, e aproveitando o São Gonçalo, tinha um baile de São Gonçalo lá em casa, depois que meu avô morreu acabou essa manifestação lá em casa. O baile de São Gonçalo foi o primeiro lugar onde eu comecei a tocar meu violão assim, descobrindo-o como instrumento. O Ribamar vem de uma música que eu comecei a fazer em [São José de] Ribamar, uma homenagem a Maria Grande, uma coreira da Casa Fanti-Ashanti, muito antiga, já faleceu também. Cada carimbo… a Vila Madalena foi onde a banda teve a primeira vitrine, assim em quantidade de público, um bairro boêmio onde a gente circulou, e ainda toca. Os selos têm esses significados.

A gente ouvindo o disco, percebe, no repertório, que essa tua passagem por diversos locais do Brasil não deixa de estar sempre impregnada de uma coisa de Maranhão. Você faz ciranda com um pé na mina, um coco com o pé no tambor de crioula, sempre misturando. Batuque de umbigada junto com o candomblé que sai da Casa Fanti-Ashanti. Na verdade esse passeio é para mostrar que o meu passaporte é maranhense. Por que me veio a ideia do passaporte? O passaporte é um documento, de autenticidade, você mostra de onde você veio, por onde passou, e te dá a liberdade de entrar. O que a gente quer? O que eu quero, que essa minha música, nossa, com a banda, mesmo que eu faça com outra banda, um artista nunca está sozinho, há sempre pessoas em volta. Com nosso passaporte a gente quer entrar. Onde? A gente quer entrar nas praças, nas rádios, nas televisões, nas casas das pessoas, na memória das pessoas. A ideia é de ser nosso documento de identidade artística. De onde vem? A identidade minha vem do Maranhão. Como eu sou a liderança do grupo, eu sou o produtor praticamente de tudo, sou eu que agencio, ainda não tem uma produção que diga “olha, você faz só o show e a gente corre atrás do resto”. Eu acho importante, o artista tem que passear por todos estes universos, saber como se conversa, com quem, buscar os apoios, por que ele fala da verdade dele. A gente não tem dinheiro, está buscando esse apoio, não tem assessoria de imprensa, queremos o apoio de parceiros, de amigos, que façam parte desse Passaporte, que faça parte dessa história, daqui pra frente. A ideia é essa. Do povo que está na banda, os que não são maranhenses, têm uma loucura pelo Maranhão. Quando eu mostrei essa ideia, todos eles abraçaram a causa. O Mau veio pra cá fazer show comigo, no período junino, enlouqueceu. É paulistano, mas tem uma loucura pelo Maranhão.

Você nunca foi atingido por aquele desespero, “vou voltar, que aqui não dá mais”? Já teve esse momento. Quando a Conceição faleceu foi um momento, a Companhia, nós prestamos serviço 10 anos pela Natura. Trabalhávamos de 15 em 15 dias pela Natura. Dois espetáculos pela manhã, dois espetáculos à tarde. Dali a 15 dias íamos para outra cidade, aquilo era uma estabilidade financeira, já garantia, eu dava poucas aulas, duas pela manhã, uma à tarde, uma vez por semana. Depois surgiu um grupo de dança, entrou a história do boi. Em São Paulo, quando tem alguma coisa de boi, tambor de crioula, as manifestações artísticas, ou chamam Tião ou chamam eu. Quando eles começaram esse projeto do Maranhão me chamaram para uma capacitação com as crianças, mas não era um emprego fixo. Em 2003 ou 2004 me efetivaram como funcionário para dar aulas a todas as turmas da instituição, atendendo crianças de oito a 16 anos. Aos 17 eles são encaminhados para outra instituição. O Gracinha trabalha com o horário inverso ao da escola, quem estuda de manhã participa de tarde e vice-versa. A música demorou a ser inserida, mas hoje em dia é o que tem o maior percentual de atividades na casa. A percussão hoje em dia faz parte da grade curricular.

Esses alunos que fazem música, qual o perfil? São crianças da periferia, crianças de baixa renda. A instituição, a Associação Pela Família, só trabalha com crianças que vivem em área de vulnerabilidade. A maior parte com envolvimento com drogas, crianças que foram abandonadas em abrigos. São atendidas por volta de 190 crianças, todo um trabalho pedagógico, a diretora tem uma cabeça muito aberta e os resultados estão para além do artístico, de comportamento, uns vão para outras áreas, mas muitos viram educadores.

À distância em São Paulo, como você faz para manter o vínculo com a Casa Fanti-Ashanti? Eu acendo minhas velinhas, minhas coisas, e por isso eu venho para cá, recarregar minha bateria, não só na música, mas principalmente minha bateria espiritual, vir ao terreiro, tocar para os orixás, cantar, fazer parte dos rituais. Essa é a principal energia que eu venho buscar. É como se fosse meu carregador de energia vital. Essa é minha busca. Se ficar muito tempo fora, você fica carente, mais fraco, voltando você vai recarregando esse ciclo. Meu sonho de consumo é equilibrar, seis meses aqui e seis meses lá, não direto, um aqui, dois lá, dois aqui, um lá. Se isso for possível através da música, vai ser minha realização como artista. Nunca sonhei em ser o mega-famoso de não poder parar nos botecos e tomar uma cerveja. É legal, bom ser reconhecido, mas não quero não ter a liberdade. Quero ser reconhecido, mas não precisa ser tanto [risos]. Quero continuar tendo a liberdade de brincar, tambor de crioula, bloco tradicional, ir para a Madre Deus, essa é a vantagem de não ser tão famoso. Eu quero estar no meio do povo, nasci do povo, sou povo, gosto de estar nessa folia. Você olha no olho das pessoas, se emociona ao ouvir uma toada.

O que significou para você integrar o Ponto BR e em especial ter dividido disco e palcos com tua mãe e com o saudoso Mestre Humberto de Maracanã? O Ponto BR foi um presente. A Renata [Amaral, contrabaixista e produtora] é uma pessoa muito talentosa, muito especial, muito sensível. Uma mulher de um olhar muito para o futuro, batalhadora, guerreira. Quando ela me chamou para a primeira montagem, foi por que exatamente ela sentia essa ligação entre o Maranhão e Pernambuco. A minha maior felicidade de estar dividindo, dividindo não, somando, com a minha mãe, primeiro ter a minha mãe como uma das grandes artistas do Maranhão, compositora, uma intérprete maravilhosa, canta lindamente bem, não é por que é minha mãe, mas eu me emociono ao ouvi-la cantar. Então, estar no palco, um momento que eu amo na minha vida, poder estar partilhando com ela, é uma satisfação impagável. Não dá para explicar. Eu sou tão fã, só ela estar junto já é um prazer, ela ser minha mãe, é um orgulho. Mestre Humberto, a oportunidade de poder trabalhar e tocar com ele, foi um dos meus mestres, eu tenho alguns que digo e assumo, Pai Euclides, Humberto, Dindinha, meu avô, minha vó, Nivô, Mestre Felipe. Eu sempre sonhei em ser mestre de tradição, nunca sonhei em ser músico. Essas pessoas sempre agregam pessoas, são sábias, são queridas, são pessoas especiais, é um dom. Sempre fui apaixonado por Humberto, cantando, compondo as músicas dele, eu canto até hoje, faço releituras. Tê-lo no palco, não só no palco, mas conviver, geralmente a gente dividia o quarto, a gente tinha um convívio, era como um pai para mim. Eu nunca tive muito contato com meu pai biológico, nós nos afastamos quando eu tinha oito, 10 anos de idade. Ter o prazer de estar junto de Humberto, ouvir as coisas que ele contava, as brincadeiras, a sabedoria, o jeito de falar da comunidade, do boi, dessa devoção, esse compromisso, abdicar de várias coisas para vivenciar isso, para ser o Mestre Humberto, aquilo era [uma recompensa] maior que meu cachê, maior que a repercussão que o Ponto BR trouxe para mim, poder viver com ele junto, mais próximos, saíamos, almoçávamos, ele contando das dificuldades, das realizações, dos sonhos, de uma instituição como o Maracanã, não só o boi, mas a comunidade, era um homem querido por toda a comunidade do Maracanã. Mesmo os evangélicos tinham um respeito por ele, pela sabedoria. Pai de muitos filhos, criador de muitas histórias. No começo, eu ficava, “nossa, eu não estou acreditando”, eu não acreditava, até me arrepio [mostra o braço arrepiado]. Saudade, né? Hoje em dia é saudade. Felizmente ou infelizmente eu estava aqui nessa passagem dele. Não tive tempo de mostrar o disco, mostrei algumas músicas, antes, tem um agradecimento para ele, por tudo. Sempre me ensinou, sempre foi um exemplo. Essa pessoa que ele é, e vai ser para sempre, é algo que eu vou sempre entender como a maior paga da minha vida, sempre me ajudando a crescer, eu vou na carona, [esses mestres] são pessoas iluminadas. No enterro dele eu fiz uma toada, mas nem consegui cantar. Mostrei para Ribinha [filho de Humberto].

Passaporte. Capa. Reprodução
Passaporte. Capa. Reprodução

FAIXA A FAIXA

Músico comenta as faixas de Passaporte, todas de sua autoria

Minha vaqueirada – Toada de bumba meu boi da Baixada, com arranjo um pouco mais moderno, tem saxofone, guitarra, violão. Uma leitura mais sofisticada, onde eu quis fazer uma homenagem a todos os bois da baixada, Santa Fé, Pindaré, Penalva, seu Apolônio. Representa o guarnicê, juntar para começar o show. É a toada que abre a nossa história.

Sensações – É um bloco tradicional, eu fiz inspirado no ritmo do bloco tradicional. Fala um pouco dessa história do carnaval maranhense. Retrata as sensações que eu sinto quando entro no mar. A lua é minha madrinha, o mar é meu padrinho. Desde criança eu fui dado como afilhado deles. As sensações que eu sinto quando entro no mar, liberdade. É um ritmo maravilhoso, pouco conhecido no Brasil, pela beleza, o próprio suingue da música, balançado dos contratempos, ritinta, agogô, cabaça, passeia um pouco por lembrar o carnaval maranhense e exaltar esse ritmo pouco explorado pela música dos compositores maranhenses.

Coreira de tambor – Foi a música que eu fiz para dona Maria Grande, exalta a beleza que o tambor de crioula tem, é um dos ritmos mais complexos do mundo. Onde eu passo fazendo oficina, até para músicos supercultos, se perdem nesse universo, de música diferente, que precisa ser mostrado. Essa poesia é inspirada na coreira, essa relação entre a coreira e o tocador, o tocador e o povo, a música e essa junção de gente em volta e a beleza que é a roda de tambor de crioula.

Coco de Ainé – É um pouco Pernambuco e um pouco maranhense. É para mostrar que o coco não é só pernambucano, não é só alagoano, não é só maranhense: o coco é do Brasil. Eu faço uma mistura desses dois ritmos, juntando Pernambuco com o Maranhão, e a beleza da brincadeira do coco, dançar, quebrar o coco, muita gente nem sabe, e falo dos cocos que existem, coco pirinã, coco de anajá, coco de embolada, exaltar um pouco da história dos brincantes do Brasil, os trabalhadores que utilizavam o coco para se divertir enquanto trabalhavam, um pouco de alegria na lida do trabalho braçal.

Estrela de Davi – É uma coisa do coração, uma homenagem que fiz para minha esposa, Natália. A história da lua, quando ela está só aquele sorriso, e tem aquela estrela embaixo, a lua nova e a estrela de Davi. Ela é a lua e eu sou a estrela, é um reflexo de nós dois.

Rio 3×4 – Foi a música que eu fiz em homenagem a minha filha, quando a encontrei. Demorei muito para descobri-la, rodei muito, passei por muitos lugares, Pavuna, Recreio, Iguaçu.

Brisa de mulher – Foi inspirada no reggae. É algo que sempre foi muito presente para mim, aqui no Maranhão. Sentia uma brisa, o cheiro de uma moça, mas exaltando o reggae, o regueiro que ia curtir reggae, Retiro Natal, Pop Som, Espaço Aberto, Toque de Amor [clubes de reggae em São Luís], exaltar um pouco do que eu vivenciei em termos de reggae.

São Jorge na Lua – Veio um pouco de minha influência mais pop, mais paulistana, eu comecei a descobrir esse ritmo, rock, mais moderno. É algo para mostrar que eu não sou apenas manifestação tradicional, mas eu também passeio por outros universos musicais.

Na roseira – Vem exatamente da minha primeira matriz, a Casa Fanti-Ashanti. Essa música eu fiz em homenagem a um caboclo da Casa Fanti-Ashanti, o Caboclo da Mata Linheiro, eu fiz essa doutrina do tambor de mina e coloquei a citação de um trecho da doutrina dele. [Cantarola:] “fala caboclo, caboclo guerreiro/ fala caboclo da Mata Linheiro”.

Caminho de pescador – É uma homenagem a minha mãe e minha avó, minha mãe Zezé e minha vó Iemanjá. Esse carinho que minha mãe tem, essa vivência, esse amor por essa entidade. Inspirado nisso eu fiz essa música para exaltar minha vó Iemanjá.

Por trás da serra – É uma homenagem a mestre Humberto de Maracanã. É uma toada de boi da ilha, sou praticamente só eu, toco todas as percussões, violão, e chamei o meu amigo Fabio Leão, que faz o violoncelo. É lembrando o universo de melodias, eu me inspiro no jeito dele compor, as melodias, a poesia. [Cantarola:] “Passarinho cantando na estrada/ anuncia o alvorecer”, ele é o passarinho dessa música.

Brasa em candeeiro/ Touro da beira do marBrasa em candeeiro vem para matar minha saudade dos bois de zabumba, o boi de seu Constâncio era praticamente no fundo de nossa casa, no Bairro de Fátima. Era umas três ruas depois, mas era como se estivesse lá dentro de casa, todo tempo aquela [imita com a boca o som da percussão do boi de zabumba]. É uma homenagem ao boi de seu Constâncio, de zabumba, lá do Bairro de Fátima. É um pot-pourri com Touro da beira do mar, que até Tião Carvalho faz uma participação nela.

Dança de criança/ Lua flor de canela – Cirandas em homenagem a Pernambuco, homenagem às crianças. A ciranda é um momento de juntar as mãos, eu utilizo muito quando fecho minhas oficinas, é hora de dar as mãos, fazer a roda, eu lembro de a gente criança em volta de uma mangueira, meu avô cantando, a gente girando. Ela junta, dá as mãos, fecha o ciclo.

Lembranças das feiras livres

Dias de feira. Capa. Reprodução

Ex-feirante, dj e cozinheiro, Julio Bernardo, filho de feirante, nos brinda com uma minuciosa radiografia do ambiente das feiras livres, guiado por sua prodigiosa memória, em Dias de feira [Companhia das Letras, 2014, 189 p.; leia um trecho].

Da infância e adolescência passadas em feiras livres, o autor repassa biografias de feiras e feirantes, temperadas por saudosismo, ranzinzice, algum glamour e certa preocupação. Cada ingrediente é justificado.

É um livro recheado de saudades de um tempo que não volta mais, entre histórias hilariantes e trágicas. Mesmo sem perder o bom humor, até para contar as segundas, há críticas a fast foods, a comida super-higiênica – ao menos na aparência – de grandes cadeias de supermercado, à playboyzada consumidora de comida sem graça e, por extensão, ao capitalismo em si, já que na boa e velha feira livre mais valia a lei do fio do bigode. Daí o glamour: algumas situações – calotes, roubos e outros delitos –, eram resolvidos na base da violência, o que o autor aplaude. A preocupação dialoga com o saudosismo e reside no que nos reserva o futuro: o avanço das grandes redes e sua produção em escala industrial acabando com pequenos comércios e seus atendimentos personalizados, o preparo de alimentos mais saudáveis e caseiros, de acordo com as preferências do freguês enquanto sujeito singular.

Dias de feira é engraçado, dedicado aos pais do autor, e nele é reconstruído o ambiente das feiras livres, de sua montagem à hora da xepa, passando por feirantes e fregueses, relações estabelecidas, velhos truques para aumentar as vendas ou, às vezes, lesar donas de casa, embora a honestidade dos feirantes seja sempre exaltada por Julio Bernardo.

O bar é um caso à parte, com dados impressionantes sobre o alcoolismo dos comerciantes – ele não poupa sequer os pais, o que torna seu relato ainda mais verídico e, portanto, próximo do ambiente das feiras, prato principal destas memórias, apesar de o livro ser classificado como ficção na ficha catalográfica.

Apesar da vasta galeria de personagens e histórias, o livro não tem qualquer pretensão sociológica, antropológica ou coisa que o valha. No fiel da balança pesam as lembranças bem humoradas do autor em seus não poucos dias por detrás da banca.

Arte como arma: Chico César peita os reis do agronegócio

Para vocês, que emitem montes de dióxido,
Para vocês, que têm um gênio neurastênico,
Pobre tem mais é que comer com agrotóxico,
Povo tem mais é que comer, se tem transgênico.
É o que acha, é o que disse um certo dia
Miss Motosserrainha do Desmatamento.
Já o que acho é que vocês é que deviam
Diariamente só comer seu “alimento”.
Vocês se elegem e legislam, feito cínicos,
Em causa própria ou de empresa coligada:
O frigo, a múlti de transgene e agentes químicos,
Que bancam cada deputado da bancada.
Té comunista cai no lobby antiecológico
Do ruralista cujo clã é um grande clube.
Inclui até quem é racista e homofóbico.
Vocês abafam mas tá tudo no YouTube.

Trecho de Reis do agronegócio, parceria de Chico César (música) e Carlos Rennó (letra). Uma porrada de arrepiar!  Vejam e ouçam a obra-prima completa: