Resistência é um título impactante: assim se chama o novo disco do Bumba Meu Boi de Leonardo, sotaque de zabumba, do bairro da Liberdade, como também é conhecido o grupo, um dos mais representativos e longevos – foi fundado em 1956 – da cultura popular do Maranhão.
O título pode ter várias leituras. A primeira é a própria manutenção do grupo do sotaque que tem origens no município de Guimarães – como também é conhecido o sotaque de zabumba –, após o falecimento de seu fundador, Leonardo Martins Santos, em 2004, aos 82 anos.
Mestre Leonardo. Foto: Márcio Vasconcelos
A segunda, a persistência em atravessar o atual momento político por que passa o país, em que o governo militar/izado elegeu artistas e produtores culturais como inimigos, com a extinção do Ministério da Cultura e a consequente diminuição dos recursos investidos na área – o Bumba Meu Boi de Leonardo é Ponto de Cultura desde 2010.
A terceira, o registro em si (após 12 anos sem um lançamento em disco): num tempo em que se alardeia a morte do cd físico, o grupo bota na rua seu quinto disco, produzido pelo percussionista paraense Luiz Cláudio, radicado no Maranhão desde o fim da década de 1970 – uma das razões de sua permanência foi a paixão despertada nele pelo grupo de Leonardo (que mantinha também um tambor de crioula), quando de sua chegada. O álbum físico vem embalado em belas fotografias de Márcio Vasconcelos, craque no registro de manifestações da cultura popular, Raileen Martins e João Maria Bezerra, e projeto gráfico de Ná Figueiredo. Cabe ressaltar que Resistência está disponível também em todas as plataformas digitais.
O Boi de Leonardo, pela qualidade, sempre despertou paixões, o que contribuiu para o engrandecimento do grupo, com raízes fincadas no bairro da Liberdade, muitas vezes estigmatizado como um bairro violento, mas um dos mais ricos e diversos culturalmente da ilha capital. O primeiro disco do grupo foi lançado em 1988, produzido pelo compositor Chico Maranhão.
Regina de Leonardo. Foto: divulgação
Ano passado a pesquisadora Marla Silveira, produtora executiva de Resistência, lançou Nas entranhas do bumba meu boi [Edufma, 2018], resultado de sua dissertação no mestrado em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão. A obra aborda as estratégias para botar o boi na rua e o protagonismo feminino na manifestação: Regina de Leonardo, filha do mestre fundador, assumiu o comando do grupo após o falecimento do pai.
“O Boi de Leonardo tem uma tradição representada simbolicamente, pelo nome de um importante mestre da cultura popular brasileira, Leonardo, e, ritualisticamente, assegurada por todos os seus integrantes, que por meio dos rituais e dos movimentos, fazem deste Boi uma manifestação cultural de resistência e fé”, aponta Marla em texto no encarte do disco.
A gravação captou uma apresentação ao vivo na sede do grupo. A parceria entre o estúdio Deu na Telha Audio Lab (do guitarrista João Simas e do baterista Thierry Castelo Branco), com a gravadora paraense Ná Music (onde o disco foi masterizado) e o selo Zabumba Records, inventado por Luiz Cláudio (que assina produção e direção artística de Resistência) para resgatar e registrar manifestações da cultura popular, garante aos ouvintes uma experiência próxima de estar em uma apresentação ao vivo do bumba meu boi.
As 16 faixas registram, na ordem, as etapas da apresentação do boi: começa com as ladainhas rezadas pelo senhor Raimundo Monteiro, passando pela “reunida, quando os batuqueiros se reúnem na fogueira para afinar o couro dos tambores”; o “guarnicê, quando o grupo se prepara para iniciar a dança”; o “lá vai, aviso aos espectadores (assistência) que o Boi vai começar a dançar”; o “chegou, quando é anunciada a presença do boi no cordão (roda/terreiro); a partir daí são cantadas várias toadas livres; depois canta-se urrou, quando se festeja a ressurreição do boi; e a última toada é a despedida, quando o boi encerra a apresentação”, como ensina o texto de Marla no encarte.
Bumba meu boi raiz, o de Leonardo registrou o trabalho com músicos da comunidade, sem recorrer a contratação de músicos de estúdio, garantindo autenticidade ao material. As zabumbas são tocadas por Natan, Bruno, Nenem e Luiz Cláudio; pandeirinhos por Benilton, Zé, Paulinho, Joca, Manguera, Luiz Cláudio e Coelho; maracás por Luiz Cláudio e vocais de Regina de Leonardo, Ana de Burgé, Lilia e Wanderley (não é comum mulheres em vocais de grupos de bumba meu boi).
As toadas fazem um apanhado da trajetória do grupo, incluindo registros preciosos, resgatados de discos anteriores e remasterizados, das vozes do próprio Mestre Leonardo e Chico Coimbra, este na ufanista Terra de poetas, de sua autoria: “Por isso me sinto feliz/ vem gente de todo país/ pra olhar de perto/ o boi de São Luís/ olha, turista, o luxo desse guerreiro/ não paga nada pra ver/ nós temos o melhor folclore brasileiro”, diz a letra. Erros de concordância e prosódia entram na conta da licença poética e da autenticidade, tornando ainda mais verdadeiro o que ouvimos ali.
Regina de Leonardo faz um emocionante dueto com seu falecido pai em Chegou (Assistência que está na bancada): “o terreiro estava triste/ nesse momento se alegrou/ por que recebi uma mensagem/ lá de cima que Jesus mandou”, cantam.
Entre compositores e cantores também comparecem Zé Pretinho, autor de Chegou 2 (“São João já escreveu no livro/ que esse ano somos campeão”), e Carlinho Silva de Carutapera, autor de Mestre é mestre, comovente homenagem ao Boi de Leonardo, composta quando o batalhão completou 60 anos: “Mestre é mestre/ esse é o boi que Leonardo deixou/ infelizmente foi lá pro degrau de cima/ que Jesus Cristo levou”, diz a letra. E continua: “hoje ele brilha no bairro da Liberdade/ aonde é carinho e amor/ essa notícia se espalhou na ilha inteira/ dessa beleza que Regina cultivou”.
Mestre Zió. Foto: divulgação
Merece destaque ainda a presença, em composição e canto, de Mestre Zió (João Vieira), espécie de sucessor natural de Leonardo. Ele assina e canta em sete faixas do disco, incluindo a Despedida (Adeus), que se tornou hit por aqui quando Luiz Cláudio gravou-a em seu ep Encantarias [2017], com a participação especial de Zeca Baleiro. Ao final da faixa, um bônus instrumental demonstra a interessados a formação da polirritmia que marca o sotaque de zabumba.
Também é da lavra de Zió Batuque forte (Guarnecê), que bem traduzirá nos ouvintes a sensação de ter o Boi de Leonardo em casa, com o disco: “eu quero um batuque forte/ como o conjunto merece/ se é para ouvir de longe/ na hora que Liberdade guarnece”.
Serviço
O lançamento de Resistência acontece hoje, no primeiro ensaio aberto do grupo, na sede do Boi de Leonardo (Rua Alberto Oliveira, 150, Liberdade), com entrada franca, a partir das 22h.
Zé Renato e Cláudio Nucci foram direto ao assunto quando subiram juntos ao palco do Teatro Arthur Azevedo, ontem (2): abriram o show com Sapato velho, composição do segundo em parceria com Paulinho Tapajós. Era o início do desfile de um repertório diretamente ligado à memória afetiva do público presente, entre hits de rádio e temas de novela, além de reverências a compositores de sua predileção, passando por várias fases das carreiras de ambos, conhecidos desde o grupo Cantares, antes do Boca Livre, portanto há mais de 40 anos, uma retrospectiva sentimental para artistas e plateia.
Atravessando a cidade (Juca Filho), faixa de Pelo sim, pelo não, disco gravado pela dupla em 1985, traduz a delicadeza do reencontro, nesta turnê com que estes dois grandes artistas ora atravessam o país em Liberdade e movimento, canção que dá título ao show, a velha Bicicleta do Boca Livre, de Zé Renato, que ganhou letra de Nucci anos depois.
Acontecência (Cláudio Nucci) havia sido cantada por Zé Renato em seu show mais recente em São Luís, no Clube do Chico. “A gente tá muito feliz de estar aqui em São Luís, no palco do Arthur Azevedo. Zé Renato veio mais recentemente, eu fazia muito tempo. Obrigado!”, Cláudio Nucci fez as honras.
A hora e a vez (parceria da dupla com Ronaldo Bastos), tema da novela global Roque Santeiro, foi o número seguinte, que antecedeu Cá já, de Caetano Veloso, o primeiro entre os compositores a quem prestaram reverências para além do repertório autoral.
Anunciaram, em seguida, Gilberto Gil e Dominguinhos, antes de cantar Lamento sertanejo. Quando passaram a Ânima (Zé Renato e Milton Nascimento), imediatamente lembrei-me da história contada por Zé Renato naquele show no Clube do Chico: Chico Buarque ia colocar letra na melodia, mas quando Milton ouviu e disse que o faria, Zé Renato desconvidou o autor de A banda.
A dupla cantou Benefício (Zé Renato e Hamilton Vaz Pereira), que a Banda Zil, integrada por ambos mais Ricardo Silveira, Marcos Ariel, Zé Nogueira, Jurim Moreira e João Batista, lançará em dvd em breve (a faixa integra o repertório do único disco do grupo, de 1987).
Com Blackbird (Lennon e McCartney) tornaram a celebrar compositores de sua predileção, seguiram a esbanjar seus talentos em seus instrumentos, as vozes e os violões. Por falar em voz como instrumento, seguiram com Papo de passarim (Xico Chaves e Zé Renato), outra trilha de novela (Sinhá moça), que Zé Renato refez em seu disco em dueto com Renato Braz (2010), por ela intitulado.
De Bebedouro (2018), seu disco mais recente, Zé Renato pinçou Noite, uma das duas parcerias com Joyce Moreno registradas no álbum, num momento em que ficou solitário no palco. Ainda sozinho reverenciou a dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes em O amor em paz, depois de lembrar as três vezes em que encontrou profissionalmente o maestro soberano. “Profissionalmente foram poucas vezes, mas a gente se encontrava bastante, numa churrascaria que era o escritório dele”, revelou, para gargalhadas da plateia.
Depois foi a vez de Cláudio Nucci ficar sozinho. Cantou Rio de março, em cujo registro no disco Integridade (2018, todo dedicado à parceria dele com Felipe Cerquize) divide os vocais com Zélia Duncan. A letra é forte e atual, diante da barbárie vivida no Rio de Janeiro (sob Witzel, no Brasil sob Bolsonaro): “Rio de Janeiro/ Rio degenerou/ Rio regenera”, trocadilha um trecho da letra.
Para a companheira Dri Gonçalves – “ela está curtindo aí na plateia, cheguei numa idade em que já não posso viajar sozinho”, troçou – ofereceu Serenin, parceria do maranhense (nascido no Piauí) César Nascimento com o carioca Vicente Teles.
Com Zé Renato de volta ao palco, enquanto ajeitava os cabos do violão, Nucci contou uma história: “quando o Boca Livre surgiu, muita gente achava que a gente era mineiro. A gente ouviu muito essa turma e isso acabou se refletindo no nosso som, no repertório de nosso primeiro disco. Tanto é que quando as pessoas diziam que a gente era mineiro a gente não desmentia”, afirmou, fazendo o público rir.
“Eu sou capixaba e ele é paulista”, revelou Zé Renato. Nucci continuou: “eu quando ouço música no rádio, primeiro eu presto atenção na música, depois é que vou me ligar na letra. Essa que a gente vai fazer agora, no começo eu achava que era para uma mulher; depois percebi que “corpo pintado de branco e marrom” não fazia sentido e descobri que a música foi feita para uma cachorrinha que tinha morrido”. E cantaram Diana (Fernando Brant e Toninho Horta).
Toada (Na direção do dia) (parceria da dupla com Juca Filho) foi o momento de a plateia cantar junto, seguida de Pelo sim, pelo não (parceria de ambos com Juca Filho), outro tema com que a dupla compareceu ao repertório de Roque Santeiro. O fecho do roteiro ficou a cargo de Matança (Augusto Jatobá), do repertório de Xangai, noutra sutil mensagem política do show. A música versa sobre desmatamento, mas para além desse problema, no Brasil militarizado de 2019, soa atualíssima no verso “quem hoje é vivo corre perigo”.
Cláudio Nucci não chegou a deixar o palco e atendendo aos gritos de “mais um!” cantou sozinho Quero quero (parceria com Mauro Assumpção). O grand finale ficou a cargo de outro clássico do Boca Livre: Quem tem a viola (parceria de ambos com Juca Filho e Xico Chaves) fechou a apresentação com a plateia em êxtase, momentos que certamente ficarão na memória de cada presente.
Um bom público compareceu na noite do feriado de ontem (1º.) ao Teatro Arthur Azevedo para prestigiar o concerto de abertura do I Encontro Interinstitucional de Violões – cujas atividades já aconteciam desde a manhã, no Convento das Mercês. O espetáculo teve entrada franca.
Além de concertos, a programação inclui oficinas, workshops, masterclasses, palestras e curso de regência, numa realização da Orquestra de Violões da Uema-Emem, em parceria com instituições como a Universidade Estadual do Maranhão (Uema), Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo (Emem), Convento das Mercês, Teatro Arthur Azevedo, Escola de Música Municipal Maestro Nonato (de São José de Ribamar) e Orquestra Maranhense de Violões, além do apoio do Grand São Luís Hotel e do Restaurante Flor de Vinagreira.
O professor Roberto Fróes, que regeu a Orquestra de Violões da Uema-Emem, a segunda a se apresentar na noite de ontem, ressaltou a importância do encontro – São Luís não realizava um do tipo há pelo menos sete anos –, da valorização do instrumento e do destaque alcançado pelo violão na identidade musical nacional.
Os concertos – impossível falar no singular – de ontem foram oportunidades de ouvir um repertório quase sempre restrito às escolas de música ou para iniciados. O interesse do público presente demonstra que a plateia gosta do que é oferecido, para se jogar lenha na fogueira daquele velho debate sobre o porquê de a mídia insistir em oferecer apenas o que em tese é mais palatável.
Regida por Domingos Nélio Soares, a Orquestra Maranhense de Violões apresentou as seguintes peças: Camiño de Felanitx, Dança andaluza (ambas de Eythor Torlakson) e Em la playa (folclórica espanhola). Fechando sua apresentação foram de Bela mocidade (Francisco Naiva e Donato Alves), clássico do Bumba-meu-boi de Axixá, quando duas violonistas do grupo trocaram seus violões por ukulele e chocalho. O público cantarolou junto, numa demonstração de que erudito e popular podem ocupar o mesmo espaço. O grupo é formado por Alessandro Freitas, Kevin Wesley, Linda Yang, Mariana Morgana, Admary dos Santos, Carlos Felipe e Luana Gomes.
Na sequência foi a vez da Orquestra de Violões da Uema-Emem, formada por Tiago Fernandes, Uriel Ewerton, Davi Farias, João Marcos Costa, Gabriel Veras e Emanoel Gomes. Roberto Fróes, que cumpriu bem o ofício de mestre de cerimônias, com a dose certa de bom humor, dança enquanto rege, talvez a celebrar o sucesso do evento – merecida comemoração.
O grupo executou Brumas (da Suíte modal), de Paulo Porto Alegre, Schafe können sicher weiden, apresentada pelo regente pela tradução, As ovelhas podem pastar em segurança, de Johann Sebastian Bach, e três movimentos (dos seis da peça) de Variações sobre um tema de Brouwer: Tema, Dança e Final. O cubano Leo Brouwer é desde sempre uma das maiores referências contemporâneas em composição para violão e as peças executadas exploram diversas possibilidades do instrumento.
Bruno Cipriano solou uma máquina de escrever num dos momentos mais inusitados do concerto – dos concertos: A máquina de escrever, de Leo Wilczek. A plateia riu, em estado de graça. O grupo encerrou sua apresentação executando um arranjo inédito de João Pedro Borges para Boi da lua, de Cesar Teixeira, ao lado de Bela mocidade um dos maiores clássicos do período junino do Maranhão. Roberto Fróes contou uma curiosidade: integrava uma camerata com Domingos Nélio entre o fim da década de 1990 e início dos anos 2000, quando receberam o presente de Sinhô, à época seu professor, mas o grupo acabou antes e o arranjo permaneceu inédito até ontem.
As duas orquestras voltaram juntas ao palco, sob regência da professora Verónica Pascucci, “uma das responsáveis pela existência do curso de música da Ufma”, como destacou Fróes. Tendo por solista Davi Farias e contando com a participação especial de Joaquim Santos (contínuo), “uma referência nacional em se tratando de violão”, como também salientou Fróes, os grupos executaram o Concerto em D (RV 93), uma das peças mais conhecidas de Antonio Vivaldi.
“Uma vez minha mãe falou que ele era primo do meu avô. Mas eu nunca chequei isso, não lembro se essa é a informação certa [risos]. Mas vou perguntar pra ela”. É com essa imprecisão acerca de seu parentesco com o escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004) que começa minha conversa com Bia Sabino (27), cantora carioca que estreou no mercado fonográfico ano passado, com Ecos [independente, 2018], um dos discos mais verdadeiros da temporada – ao longo da entrevista ela me encaminharia uma mensagem de texto da mãe: “Oi, filha. De acordo com a tia Aparecida, ele era primo primeiro de pai. Temos parentes dele em Resplendor/MG”.
Sabino não é o único parente famoso da moça, mas ela não carece de parentes importantes à guisa de cartão de visitas. “Tem um moço da minha família que bem fez o Hino da Independência. Imagina se as pessoas esperassem que eu fizesse músicas parecidas com as dele”, diverte-se, referindo-se a Evaristo da Veiga (parente de seu bisavô) – Francisco Manoel da Silva, autor da melodia do Hino Nacional, fundou o Conservatório de Música do Rio de Janeiro, que precedeu a Escola de Música da UFRJ, era parente de sua bisavó, ela acrescentou após consulta a sua vó. “Os dois pais da minha vó, por parte de pai; a família da minha mãe tem raízes indígenas, eu tenho certeza que tinha uma galera da batucada lá, mas esses não estão nos livros de história [risos]”.
Sobre a sinceridade a que me referi, digo que percebo um desnudar-se, uma carga autobiográfica em seu trabalho. Ela concorda: “Acredito que isso aconteça mesmo, sabia? É o que faz a arte. Eu não entendo como alguém consegue cantar ou compor “vestido” [risos]”. Ela mesmo se corrige: “até entendo. Mas não me move”.
A cantora durante o show de lançamento de Ecos. Foto: Camila Neves
Bia Sabino já compõe há algum tempo, mas só agora, após um processo de crowdfunding, conseguiu botar seu bloco na rua – a campanha de financiamento coletivo bateu todas as metas. “Eu espero que o caminho seja longo mesmo, às vezes me sinto meio atrasada, tendo escolhido me jogar nesse caminho meio tardiamente, já que a música sempre esteve presente”, me revela a geóloga de formação, que ao longo da entrevista, realizada durante cerca de dois meses através de chat de rede social e aplicativo de mensagens, revelará ser várias: está concluindo uma pós-graduação em Naturopatia. “Parece que são coisas distintas, mas tudo reverbera nas minhas músicas”, revela-se.
A conversa com Bia Sabino transcorreu entre afazeres diários do repórter e da artista, entre aulas de pós-graduação, shows, viagens, feriados, apresentações circenses – é acrobata e professora de acrobacia – e tudo o mais que sua pluralidade lhe permite.
Pergunto-lhe se encara a música como profissão ou hobby. “É definitivamente uma profissão. E agora estou tentando encontrar os caminhos para viver essa realidade. Por que eu quero espalhar uma mensagem, sabe? Eu tenho algo a dizer”, diz. “Mas ao mesmo tempo eu tenho que tocar em barzinhos etc. para conseguir viver aqui”.
“Eu faço poemas desde MUITO pequena [grifo dela]. Minha mãe guardou umas coisas muito engraçadas disso. Aí quando eu tinha uns 10 anos eu percebi que eram músicas, na verdade”, puxa o fio das origens. “Acho que isso da idade é construção social, né? A gente vê vários artistas incríveis começando tão novinhos, fazendo sucesso aos 20 [gargalha]. Sei que sou super jovem, mas ao mesmo tempo fico querendo ter tomado essa decisão antes [risos]”.
A garota prodígio torna às origens: “Eu entrei pro coral do colégio aos cinco anos, o que é até uma história engraçada, por que não podiam babies como eu. Só que eu queria MUITO cantar [grifo dela]. E aí fui falar com a coordenadora, arrastando minha mãe… ela disse que se o diretor deixasse eu podia ir. Aí fui falar com a tia Rute, falei que me comportaria, que queria muito cantar… Então o limite antes era de 10 anos de idade, eu desci para cinco. Era meio precoce”.
E continua: “Fiz 11 anos de coral, mais ou menos. No meio disso comecei a aprender violão sozinha. Depois entrei no [curso de] violão clássico da [escola de música] Villa-Lobos”. Ela não chegou a se formar no instrumento, mas estudou durante um tempo. Digo que é uma história incrível e ela retruca: “tem que ouvir minha mãe contando essa história. É muito bom [risos]”.
Indago-lhe sua opinião sobre artistas mirins. “Eu era uma criança muito engraçada, ficava pensando na vida. Quando eu era pequena eu tinha uma certa pena desses artistas crianças, eu lembro do Molecada [grupo de pagode mirim], achava que eles não aproveitavam a infância. Eu não gostava da Sandy. Acho que ela tem uma voz incrível, mas não me move muito. Mas vou falar que adorava cantar Imortal [versão de Imortality, de Barry, Robin e Maurice Gibb] e A lenda [de Nando, Kiko, Ricardo Feghali] com a Sandy [e Júnior] por que podia gritar [risos]. E detestava Xuxa, achava muito infantil”.
“Eu tinha muitas composições, várias coisas que estavam meio engasgadas e eu queria colocar pro mundo justamente por considerar que demorei pra fazer isso. Sempre toquei minhas músicas para amigos, família, mas gravar seria outro nível de espalhar as mensagens que eu queria. Fui conversando com pessoas à minha volta, fiz algumas enquetes no instagram, botava alguns trechinhos, isso para a primeira parte do disco, as seis primeiras músicas; a segunda parte, as sete músicas a partir de Quem olha de fora, eu fiz todas num retiro, cada dia compus uma música e isso foi uma das forças-motrizes para eu lançar o disco, esse caminho que eu fiz por essas músicas, esse retiro de autoconhecimento, foi superimportante, e decidi que elas deveriam estar todas no disco”, revela sobre o repertório do álbum de estreia.
“Eu estava aprendendo a fazer leitura de aura, é uma técnica que se desenvolveu fora do Brasil, mas quem trouxe é uma moça que é uma das líderes lá de Piracanga [comunidade em Maraú/BA]. Eu fui por que estava muito perdida no sentido profissional, estava trabalhando direto na empresa, não tava fazendo o disco, não tava cantando tanto quanto eu gostaria, e sabia que esse não era meu propósito, que eu não tinha nascido para ficar atrás do computador [risos]. Eu sabia disso, mas me faltava uma força de dar esse passo, tomar essa decisão. Fui para esse retiro para entender esse processo, as autossabotagens que eu tava fazendo na minha vida. E tinha zero viés de fazer isso, de compor, eu tinha vindo de um período de seca musical bizarro. Eu compus Jabuticaba e depois que eu fiz Jabuticaba começou o processo de fazer a música tomar uma proporção bem maior do que tava tendo. Era um retiro sobre chacras, centros energéticos que representam setores da nossa vida, digamos. Cada dia do retiro você trabalhava um chacra. No primeiro dia já foi: “nossa, quero compor uma música sobre o que estou sentindo”. No segundo dia a mesma coisa e cada dia eu fui fazendo uma música. Foi incrível. No final eu apresentei, à capela, não tinha violão, eu estava fazendo as coisas e gravando minha voz no celular. Foi sensacional, eu senti que precisava gravar isso, estar lá com as pessoas me deu muita, muita força para fazer isso acontecer”, prossegue sobre o retiro.
Com sua trupe de circo Bia Sabino integra uma banda, em que ela desenvolve uma pesquisa a partir de se apresentar no ar cantando. “Cantando mesmo, não é playback”, faz questão de frisar. A banda se apresenta mensalmente, com o espetáculo Parangolé.
Sobre influências ela diz que acha que foram um “pouco doidas”. “Quando eu era pequena meus pais ouviam muito Michael Jackson, eu podia ficar o dia inteiro assistindo os vídeos e ele cantando, e eu adorava as coisas que meus pais ouviam, que era Bee Gees, Genesis, Queen, ouvia muita coisa assim. No Brasil eles gostavam mais dos rockzinhos, ouviam Legião Urbana, minha mãe adorava Ney Matogrosso, Roberto Carlos, apesar de que eu não peguei muito a referência do Roberto Carlos. Depois eu comecei, no colégio, por conta do coral, aula de música, comecei a conhecer por mim, eu tive várias fases. Comecei a gostar muito de punk rock, ia a saraus de bandas locais aqui no Rio e a galera fazia um som bem parecido com, sei lá, CPM22, depois comecei a conhecer o lado clássico da música de compositores mais antigos. Nisso eu já gostava muito de bossa e samba, apesar de que eu não me desenvolvi no violão nesses ritmos, mas peguei uma cadência. Aí comecei a ouvir muito Ed Motta, Tim Maia, essa parte meio soul, eu gosto muito de soul, MPB, Marisa Monte, e claro umas divas internacionais que eu sempre escutei, Aretha Franklin, Nina Simone, Joss Stone, mais velha agora já, Amy Winehouse, tem uma banda também que eu adoro, Morcheeba, o nome da moça que canta é Skye Edwards, adoro o jeito que ela canta. Foram muitos ritmos diferentes da MPB, reggae, rock, soul, blues, adoro blues e jazz. Elis, como que eu esqueci de falar da Elis Regina? Amo a Elis Regina desde bem mais nova, Novos Baianos. Cara, foi uma mistura bem doida, não sei se te respondi ou se deixei mais confuso [risos]”, desfia o rosário.
Comento que é um caldeirão vasto, muito interessante e despido de preconceitos, e ela manda uma mensagem de texto completando: “e eu fui econômica: Tom Jobim, Vinicius [de Moraes], Bob Marley, amo muito Bob Marley, Soja, Lauryn Hill, Cazuza. Música boa não tem endereço, né?”.
Ecos. Capa. Reprodução
“Acho que estou em um momento tentando amadurecer isso, todos esses amores da música, transmutar isso em uma unidade, que, em essência, acaba tendo muitas facetas. O que ainda é um retrato de mim, talvez, geóloga, circense, cantora e terapeuta”, arrisca-se, quando proponho-lhe o exercício de relacionar as referências ao resultado de Ecos. “Ou só Bia [risos]”.
“Acho que eu fiquei revoltada quando disseram que eu tinha que escolher uma carreira só pra ter sucesso. Mas também, o que é sucesso?”, provoca-se/nos.
Pergunto-lhe sobre referências em outros campos para além da música: literatura, cinema. “Não esperava por essa pergunta, sabia? Acho que é a primeira vez que eu entro nesse campo conversando com um jornalista [risos], gostei. Por que fez muito parte da minha vida. Eu tenho um negócio com histórias. Eu amo histórias. Se eu começo a ler uma história ou assistir um negócio que eu gosto muito, eu não consigo parar. Foi assim na minha adolescência, eu li muitos livros, tive a sorte de ter, no colégio a gente tinha a ciranda de livros, tinha muito livro legal, e ao mesmo tempo, eu lembro que uma vez, eu morei em muitos apartamentos, apartamentos alugados e tal. Num desses apartamentos o antigo morador era um editor da Globo, algo do tipo, e tinha um armário cheio de livros, nossa, eu li muito, muita Agatha Christie, Harry Potter [série de J. K. Rowling], amava, minha vó me dava muitos livros, A menina que roubava livros [de Markus Zusak], O caçador de pipas [de Khaled Hosseini], adorei o Dan Brown. Sempre li muito mas nunca fui muito específica de um autor, tem vários escritores que fizeram parte da minha vida. Eu gosto muito de livros de fantasia, tem muito isso de jornadas de autoconhecimento, eu gosto muito disso. Eu leio muito, gosto muito de ler, ultimamente tenho lido muito para a pós, medicina vibracional, umas coisas mais direcionadas. Tenho lido menos do que gostaria”.
Continua: “cinema é a mesma coisa, tenho certa compulsão por histórias. Acho que mal ou bem todo mundo começou com a Disney. Eu adoro desenho animado. Os desenhos animados sempre vão para esse lugar de passar uma mensagem positiva e eu me identifico muito com isso. Não sei, eu não sou muito cult do cinema, não sou essa pessoa que tem vários filmes alternativos na rota. Eu gosto muito de ficção, fantasia. O senhor dos anéis [de Peter Jackson, baseado na obra de J. R. R. Tolkien], eu adoro, gosto muito mesmo, mas é uma saga, fica meio nesse lugar, uma saga de autoconhecimento. Eu gosto muito de filmes que tiram um pouco a gente da realidade, que mostram esse mundo extraordinário, que na verdade é o que a gente vive só que não vê. Eu gosto dessas histórias que trazem, que te tiram dessa superfície que eu acho que muitas vezes a gente escolhe viver no nosso mundo. Eu adoro assistir filme, estou sempre buscando alguma coisa nova, tem dia que eu quero ver uma coisa boba, tem dia que eu tou com vontade de ver documentário sobre saúde, espiritualidade, ou sobre o tempo, eu gosto muito de documentários científicos, acho que muito por conta do background geológico, eu gosto de assistir coisas sobre física, tempo, física quântica, realidades alternativas, buracos de minhocas [risos]”.
A primeira vez que Bia Sabino saiu de casa foi quando foi morar na Austrália, onde passou um ano. Ao voltar, morou seis meses sozinha em Santa Tereza e há cerca de dois anos mora em Botafogo com o namorado. A viagem internacional, realizada por conta da faculdade, também tem a ver com seu disco de estreia.
“O disco tem uma música em inglês, foi uma música que eu fiz lá. Estar fora me fez ver quem eu era, já, quem eu realmente era. Quando a gente vive em algum lugar por muito tempo acaba se prendendo a rótulos. Eu era filha de alguém, amiga de alguém, cresci dessa tal maneira, e às vezes você muda e não consegue encontrar espaço para ser quem você é, justamente por que você se prende aos rótulos, você acaba pensando “poxa, se eu fizer tal coisa, se eu falar tal coisa, talvez eu não seja mais amiga dessa pessoa”, e a gente gosta de preservar nossas relações, mas muitas vezes isso acaba fazendo mal pra gente. Quando eu fui pra Austrália eu tive esse espaço, eu percebi que eu já tinha mudado muito, tive espaço de crescer, minha independência, ver o que eu realmente queria, o que a Bia queria pra vida, isso foi muito engrandecedor. Se você reparar a letra de Carry on é basicamente sobre isso, descobertas, ver o mundo com outros olhos, outra perspectiva e me ver com outra perspectiva. Ir para a Austrália definitivamente foi um turning point na minha vida, sem dúvida alguma”, revela.
“A ideia inicial seria algo bem cru, não ia ter tantos instrumentos, ia ser voz, violão e percussão”, remonta as primeiras ideias para Ecos. “Entramos com o baixo, eu e o Glaucus [Linx], meu produtor musical, que entrou nessa empreitada e também surgiu de maneira mágica na minha vida. Ele conhecia o Pedrinho, que foi o baixista, Pedro Leão, um superbaixista, toca com muita gente boa, tocou com O Rappa, e o PC [Andrade] da percussão, que foi também um amigo do Glaucus, no caso. Violão fui eu quem gravei, voz, eu e Glaucus produzimos alguns sons já gravados, tipo cuíca, a gente optou por usar os gravados, por que não tinha dinheiro para contratar tantos músicos. Demoramos a gravar por que cada hora era uma música nova, um problema, cheguei a perder seis pistas de voz, um amigo meu de tempos [Leonardo Elger] tocou violão em Jabuticaba, o Yann [Vathelet] tocou percussão, ele é francês, já não está mais no Brasil”.
Jair Bolsonaro já havia sido eleito mas ainda não havia sido empossado enquanto conversávamos, mas não deixamos de falar de política. “Política é um assunto polêmico. Toda essa crise política no Brasil não é nada que me surpreenda. Tem um tempo que eu vejo política da mesma maneira que eu passei a ver futebol, no sentido dos times. Eu não acredito mais que existam partidos diferentes, acho que tem pessoas que lutam por coisas diferentes, mas as crises políticas no Brasil não são novidade, e pra mim isso não tem especificamente a ver com um partido, mas com o tipo de sociedade que somos, como a gente escolhe viver. Tem até um documentário muito legal, Kymatica [de Ben Stewart], que é uma coisa meio doida, até, que basicamente ele fala que guerras acontecem, guerras terminam, políticos ascendem, decaem, partidos, por que como sociedade a gente nunca buscou curar o que precisa ser curado, a doença social, no sentido de que a gente valoriza coisas que não têm valor e desvaloriza coisas que têm valor, a gente se repete em ciclos, a roda do Samsara, o famoso karma, a gente repete os mesmos ciclos sociais como humanidade há milênios. Acho que tem muito a ver isso com o fato de eu ser geóloga. Quando você estuda geologia você perde um pouco essa individualidade, “ai, partido tal”, você acaba olhando o mundo com uma outra visão, de 4.6 bilhões de anos, e a terra como um super organismo e não a gente com nossa pequena mente. Eu vejo que o que está acontecendo é o reflexo da sociedade que a gente é, o que a gente valoriza como sociedade, dos valores que a gente busca. Eu fiquei muito chocada com essa última vitória da presidência, do Bolsonaro. Eu acreditava que como sociedade a gente estava valorizando outras coisas, valores humanos mesmo. Isso foi o que mais me chateou nas eleições, não foi partido tal ter ganhado ou partido tal ter perdido, mas entender que a mente social está num lugar que eu não esperava, de intolerância. Hoje em dia eu vejo a política dessa maneira, um reflexo do estágio de consciência da sociedade. É até o que eu quero, o que eu tento colocar nas minhas músicas, outro lugar, um olhar pra dentro. Não dá pra mudar o que tá fora sem mudar o que tá dentro. Durante muito tempo na minha vida eu me coloquei muito nesse lugar do tipo “ah, tá tudo errado no mundo, o que eu posso fazer?”, enquanto a gente tem as nossas pequenas corrupções diárias, sabe? Você é parte de tudo o que você não gosta que está acontecendo, politicamente, socialmente, ambientalmente. Onde você faz a sua parte para mudar isso? Aí eu comecei, em vez de ficar pirando com a política e as coisas que no momento estão fora de meu alcance, a mudar as minhas pequenas atitudes. Por exemplo, no que eu posso, hoje em dia, eu não minto pra nada, sou sincera comigo em primeiro lugar, por que quando você mente para o outro você está mentindo para si mesmo. Então, furar fila, tento não furar fila, andar no acostamento, coisas assim”.
Sobre a extinção do Ministério da Cultura, completa: “eu tou achando isso uma doideira. A gente já tem tão pouco incentivo cultural aqui no Brasil, musical, na cena do circo, a gente tem até umas iniciativas muito boas, mas tá tudo muito decadente, mas falta muito incentivo para que coisas novas surjam, espaço para a cultura, e mais uma vez isso tem muito a ver com a sociedade que somos”.
A divulgação do disco, revela, tem sido uma de suas maiores dificuldades. “Eu não sou muito boa nisso, até estou fazendo um curso agora, para ver se melhoro” – mais uma faceta de Bia Sabino. “Eu não sou boa em vender, eu não consigo me enxergar como um produto, mas todo mundo diz que tem que ser assim”, continua a cantora, que também assina o design de seu próprio site (e desenha as próprias tatuagens).
O show de lançamento de Ecos aconteceu em um espaço da Fundição Progresso e teve um público de cerca de 300 pessoas. Bia Sabino cantou, tocou e fez acrobacias. Durante a conversa ela anunciou novo clipe [Loba, que acabou saindo antes da publicação da entrevista]. Ela pretende circular pelo Brasil e atualmente estuda criar as condições para tanto.