Amizade e sentimento

Foto: Zema Ribeiro

 

Zé Renato e Cláudio Nucci foram direto ao assunto quando subiram juntos ao palco do Teatro Arthur Azevedo, ontem (2): abriram o show com Sapato velho, composição do segundo em parceria com Paulinho Tapajós. Era o início do desfile de um repertório diretamente ligado à memória afetiva do público presente, entre hits de rádio e temas de novela, além de reverências a compositores de sua predileção, passando por várias fases das carreiras de ambos, conhecidos desde o grupo Cantares, antes do Boca Livre, portanto há mais de 40 anos, uma retrospectiva sentimental para artistas e plateia.

Atravessando a cidade (Juca Filho), faixa de Pelo sim, pelo não, disco gravado pela dupla em 1985, traduz a delicadeza do reencontro, nesta turnê com que estes dois grandes artistas ora atravessam o país em Liberdade e movimento, canção que dá título ao show, a velha Bicicleta do Boca Livre, de Zé Renato, que ganhou letra de Nucci anos depois.

Acontecência (Cláudio Nucci) havia sido cantada por Zé Renato em seu show mais recente em São Luís, no Clube do Chico. “A gente tá muito feliz de estar aqui em São Luís, no palco do Arthur Azevedo. Zé Renato veio mais recentemente, eu fazia muito tempo. Obrigado!”, Cláudio Nucci fez as honras.

A hora e a vez (parceria da dupla com Ronaldo Bastos), tema da novela global Roque Santeiro, foi o número seguinte, que antecedeu Cá já, de Caetano Veloso, o primeiro entre os compositores a quem prestaram reverências para além do repertório autoral.

Anunciaram, em seguida, Gilberto Gil e Dominguinhos, antes de cantar Lamento sertanejo. Quando passaram a Ânima (Zé Renato e Milton Nascimento), imediatamente lembrei-me da história contada por Zé Renato naquele show no Clube do Chico: Chico Buarque ia colocar letra na melodia, mas quando Milton ouviu e disse que o faria, Zé Renato desconvidou o autor de A banda.

A dupla cantou Benefício (Zé Renato e Hamilton Vaz Pereira), que a Banda Zil, integrada por ambos mais Ricardo Silveira, Marcos Ariel, Zé Nogueira, Jurim Moreira e João Batista, lançará em dvd em breve (a faixa integra o repertório do único disco do grupo, de 1987).

Com Blackbird (Lennon e McCartney) tornaram a celebrar compositores de sua predileção, seguiram a esbanjar seus talentos em seus instrumentos, as vozes e os violões. Por falar em voz como instrumento, seguiram com Papo de passarim (Xico Chaves e Zé Renato), outra trilha de novela (Sinhá moça), que Zé Renato refez em seu disco em dueto com Renato Braz (2010), por ela intitulado.

De Bebedouro (2018), seu disco mais recente, Zé Renato pinçou Noite, uma das duas parcerias com Joyce Moreno registradas no álbum, num momento em que ficou solitário no palco. Ainda sozinho reverenciou a dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes em O amor em paz, depois de lembrar as três vezes em que encontrou profissionalmente o maestro soberano. “Profissionalmente foram poucas vezes, mas a gente se encontrava bastante, numa churrascaria que era o escritório dele”, revelou, para gargalhadas da plateia.

Depois foi a vez de Cláudio Nucci ficar sozinho. Cantou Rio de março, em cujo registro no disco Integridade (2018, todo dedicado à parceria dele com Felipe Cerquize) divide os vocais com Zélia Duncan. A letra é forte e atual, diante da barbárie vivida no Rio de Janeiro (sob Witzel, no Brasil sob Bolsonaro): “Rio de Janeiro/ Rio degenerou/ Rio regenera”, trocadilha um trecho da letra.

Para a companheira Dri Gonçalves – “ela está curtindo aí na plateia, cheguei numa idade em que já não posso viajar sozinho”, troçou – ofereceu Serenin, parceria do maranhense (nascido no Piauí) César Nascimento com o carioca Vicente Teles.

Com Zé Renato de volta ao palco, enquanto ajeitava os cabos do violão, Nucci contou uma história: “quando o Boca Livre surgiu, muita gente achava que a gente era mineiro. A gente ouviu muito essa turma e isso acabou se refletindo no nosso som, no repertório de nosso primeiro disco. Tanto é que quando as pessoas diziam que a gente era mineiro a gente não desmentia”, afirmou, fazendo o público rir.

“Eu sou capixaba e ele é paulista”, revelou Zé Renato. Nucci continuou: “eu quando ouço música no rádio, primeiro eu presto atenção na música, depois é que vou me ligar na letra. Essa que a gente vai fazer agora, no começo eu achava que era para uma mulher; depois percebi que “corpo pintado de branco e marrom” não fazia sentido e descobri que a música foi feita para uma cachorrinha que tinha morrido”. E cantaram Diana (Fernando Brant e Toninho Horta).

Toada (Na direção do dia) (parceria da dupla com Juca Filho) foi o momento de a plateia cantar junto, seguida de Pelo sim, pelo não (parceria de ambos com Juca Filho), outro tema com que a dupla compareceu ao repertório de Roque Santeiro. O fecho do roteiro ficou a cargo de Matança (Augusto Jatobá), do repertório de Xangai, noutra sutil mensagem política do show. A música versa sobre desmatamento, mas para além desse problema, no Brasil militarizado de 2019, soa atualíssima no verso “quem hoje é vivo corre perigo”.

Cláudio Nucci não chegou a deixar o palco e atendendo aos gritos de “mais um!” cantou sozinho Quero quero (parceria com Mauro Assumpção). O grand finale ficou a cargo de outro clássico do Boca Livre: Quem tem a viola (parceria de ambos com Juca Filho e Xico Chaves) fechou a apresentação com a plateia em êxtase, momentos que certamente ficarão na memória de cada presente.

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