Em suas 11 edições, já participei da Feira do Livro de São Luís (FeliS) em várias condições: comprador compulsivo de livros, repórter, compondo mesas de debates, ou como integrante de sua equipe de curadoria.
Hoje, pela primeira vez, participo como autor: integro o time de 33 vozes de São Luís em palavras [Aquarela Brasileira, 2017, 195 p.], organizado por Celso Borges e Wagner Merije, que será lançado hoje (17), às 19h, no Cine Praia Grande (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande).
Baita honra dividir o volume com, entre outros/as, Andréa Oliveira, Bruna Castelo Branco, Celso Borges, Eduardo Júlio, Ed Wilson Araújo, Félix Alberto Lima, Fernando Abreu, José Reinaldo Martins, Lissandra Leite, Marilda Mascarenhas, Otávio Rodrigues, Talita Guimarães e Wilson Marques, para citar apenas os/as colegas de profissão.
Ricardo Piglia quando recebeu o Prêmio Internacional de Novela “Rómulo Gallegos” 2011, em Caracas. Foto: Leo Ramirez/ Agência France-Press. Getty Images
Em 28 de janeiro de 1969, Rodolfo Walsh escreveu em seu diário: “Fantasio que a novela é o último avatar de minha personalidade burguesa, ao mesmo tempo que o próprio gênero é a última forma de relato burguês, em transição para outra etapa em que o documental recupera sua primazia. Mas nem estou seguro disso, que pode ser uma desculpa para meu momentâneo fracasso”.
O autor de Operação massacre – que pode ser considerada a primeira grande novela de não-ficção do século XX – não era capaz de assumir que a novela podia prescindir de ficção. Um dos grandes cronistas do século XX identificava a grande literatura com a ficção e não com a crônica, quer dizer, com aquilo que desejava escrever e não com aquilo que realmente escrevia. Sabemos por seu diário, outra forma supostamente menor de literatura. Outra forma também de não-ficção.
Quando Ricardo Piglia publica Uma proposta para o próximo milênio em 2011, um texto que depois reescreverá e que, por sua importância, integrará sua Antologia pessoal (2014), decide partir de Walsh e suas convicções documentais, para responder à pergunta: “como narrar o horror?”.
Detecta no prólogo à terceira edição de Operação massacre um movimento crucial. Walsh representa a si mesmo num bar de La Plata, “em que sempre vai falar de literatura e jogar xadrez e numa noite de 1956 se ouve um tiroteio”. Walsh sai e se refugia em casa mas escreve: “mas nem esqueço que, cego para os cegos, ouvi morrer um conscrito na rua e esse homem não disse “viva a pátria!” mas disse: não me deixem só, filhos da puta”.
Quer dizer, muda o foco da câmera, cede à palavra. Poe o outro no lugar de enunciação que um havia tido um momento antes. Então Piglia diz algo memorável: “a verdade tem a estrutura de uma ficção onde outro fala. É preciso fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar”.
A chave da ficção futura, portanto, se encontra numa novela de ficção. É estranho, porque Piglia não escrevia literatura documental. Não escrevia livros de história, embora fosse um potencial historiador. Não escrevia crônica. Ou escrevia?
Recordemos como começa sua primeira obra maior, Respiração artificial. O narrador, Emilio Renzi, havia publicado sua obra-prima, uma novela intitulada precisamente A prolixidade do real, construída a partir de várias versões de histórias familiares (uma novela que afortunadamente nunca leremos: parece que seu estilo lembra a Faulkner traduzido por Borges, “a uma versão mais ou menos paródica de Onetti”; imediatamente esgotada nas livrarias de Corrientes) e, de repente, recebe uma carta de um de seus protagonistas, seu tio Marcelo Maggi.
Escrevem-se. Vive separado, num povoado distante. “Ensino história argentina no Colégio Nacional e à noite vou jogar xadrez no Clube Social. Há um polaco que é um ás; costumava jogar com o príncipe Alekhine e com James Joyce em Zurique”, essa versão livre de Gombrowicz, chamado Tardewski, tem um sonho benjaminiano (“escrever um livro inteiramente feito de citações”), escreve artigos sobre xadrez num diário local e escreve um “caderno onde registra suas ideias”. Tudo isso se conta na carta inicial. A forma inicial. A resposta. Começa a novela.
A novela começa, portanto, com um deslocamento de gênero. Da ficção familiar à literatura epistolar. Mas, imediatamente, diz Renzi: “não tem sentido que reproduza todas essas cartas”. Há, portanto, um processo de edição. A novela é uma arquitetura de vozes deslocadas (Maggi, Tardewski, Enrique Ossorio, Hitler, Kafka, Arocena), a partir de um deslocamento inicial e prévio: de Ricardo Piglia a Emilio Renzi (já presente em seu primeiro livro de contos, A invasão).
Até 2015, consciente de que dois de seus grandes mestres são Godard e Duchamp, artistas do desvio, teríamos dito, no entanto, que o grande deslocamento pigliano se dá entre dois outros gêneros: a novela e o ensaio. A novela é, em seu caso, sem dúvida e começando por Respiração artificial, uma grande máquina de ensaiar. É a operação que faz Duchamp com a arte contemporânea: torna-se autoconsciente, crítica de arte, teoria artística; ou Godard com o cinema, primeiro [filmes] narrativos, cada vez mais ensaios filmados.
Mas nos anos 1950, 60 e 70, a novela – se me permitem a tola generalização –, condicionada pela política, havia dirigido o uso do ensaio para a defesa de uma tese. Quando se publica Respiração artificial em 1980, em plena ditadura argentina, se podia ler na contracapa: “tempos sombrios em que os homens parecem necessitar um ar artificial para poder sobreviver”. A alusão era clara mas indireta. A novela poderia ser lida em chave política. Mas também em chave estritamente literária.
Com esse desvio ou giro, com esse deslocamento, da novela familiar (burguesa) inexistente ou a novela política (da geração anterior) a uma novela que primeiro se detém especialmente na epistolaridade e depois na conversação poderia se dizer que Piglia prefigura (pré-formata) uma estratégia que será muito comum na literatura da virada do século XX para o XXI.
Com efeito, em Os emigrados (1992), de W. G. Sebald, em Os detetives selvagens (1998), de Roberto Bolaño, em A novela luminosa (2005), de Mario Levrero, em A morte me dá (2007), de Cristina Rivera Garza, ou em Verão (2009), de J. M. Coetzee, os autores recorrem à manipulação de materiais de extração não-literária, muitas vezes privada, como o diário ou a carta, quando não de natureza acadêmica (a tese) ou jornalística (a entrevista), para articular e dar forma às partes mais decisivas das estruturas de seus textos.
Se trata de materiais “ignóbeis” que dificilmente encontraríamos nos autores da geração anterior ou, ao menos em suas novelas canônicas (à exceção, talvez, de O jogo da amarelinha).
Até 2015, repito, acreditávamos que os grandes deslocamentos piglianos eram o seminal (de Ricardo Piglia a Emilio Renzi) e o de gênero (da novela ao ensaio, crítica e ficção); mesmo que soubéssemos que existiam os diários e inclusive que os tivéssemos lido (como em Formas breves) algum fragmento deles. Mas então foi publicado o primeiro volume de Os diários de Emilio Renzi: “Anos de formação” [será publicado agora no Brasil pela editora Todavia, conforme informou em sua conta no twitter o escritor e tradutor Joca Reiners Terron]; e em 2016 o segundo tomo, “Os anos felizes”; e agora “Um dia na vida”; e graças a essa obra-prima em três partes entendemos que abaixo de todas as suas novelas e todos os seus ensaios estava, decisiva, uma grande forma, um grande gênero, de não-ficção cotidiana.
Capa da edição em espanhol do terceiro volume dos diários de Emilio Renzi. Reprodução
Que Os diários de Emilio Renzi podem ser lidos como uma grande novela, como um grande ensaio e como um extraordinário diário nos permitiria afirmar que Piglia realiza neste grande livro uma autêntica triangulação literária. Mas dos 327 cadernos de Piglia só lemos uma parte.
No segundo tomo, por exemplo, faltam as viagens a Cuba e a China; e no terceiro são eliminadas, entre tantas viagens, as que fez a Venezuela (por ocasião, por exemplo, do prêmio Rómulo Gallegos) ou a Barcelona (surpreendentemente não se mencionam nem a Jorge Herralde nem a editora Anagrama).
Como as cartas de Respiração artificial, os diários estão editados. Com que critério? Com o de centrar-se naqueles espaços e tempos que já conhecíamos através da ficção. La Plata, Buenos Aires, os cenários e as histórias dos “contos morais” ou de Respiração artificial, A cidade ausente ou Dinheiro queimado. A publicação dos diários intervém nessa série de textos: gera um grande sentido a 50 anos de obra publicada. Um sentido que se pode estabelecer a partir da famosa teoria de Tese sobre o conto: com efeito, toda a obra de Piglia contava, simultaneamente, duas histórias. Na superfície, a novela e o ensaio desenvolviam um discurso sobre os modos de ler e escrever literatura; no subsolo, o diário consignava os modos de ler e escrever a vida.
Piglia disse em sua mais famosa forma breve que sempre há um momento de interseção ou de cruzamento entre a história 1 e a história 2. São os livros e os autores que aparecem tanto na superfície como no subsolo. E que todo conto conduz a alguma forma de epifania, de “iluminação profana”. Eu senti isso no momento em que entendi, depois de ler seus diários, que tudo aquilo que durante 50 anos nos havia parecido material lido, metaliteratura e metaficção havia sido, na realidade, sofrido, palpado, vivido.
Os diários desenham, de fato, a um sujeito que sofre a depressão e a tentação do suicídio, que abusa das drogas e pratica a poligamia, que odeia a figura do intelectual, esse traje ou essa máscara que não obstante é impossível não lhe por: finalmente, o diário, em que pese sua fidelidade aos fatos, é uma construção hipersubjetiva, bastante ficcional.
O que me admira – e ao mesmo tempo me assusta – é que é muito provável que tudo isto que digo já foi pensado (e mais: planejado) por Piglia. Ele era consciente do efeito que provocaria a edição de seus diários. Ele preparou todo este grande momento. Em muitos de seus textos poderia encontrar evidências de que minha leitura é, sobretudo, sua. Por exemplo, em O escritor como leitor fala dos diários de Gombrowicz e os define como seu “grande laboratório”: “o diário é isso, uma sorte de experimentação contínua com a experiência, com a forma, com a escrita”. Piglia vai mais longe e diz que talvez seja “sua obra maior”.
De algum modo, ler e interpretar Piglia – como ler Borges – é plagiar Piglia como leitor. Desde que li, assombrado, Formas breves e Respiração artificial há exatamente 15 anos, são inúmeras as vezes em que citei-o consciente e inconscientemente, revelando a fonte e roubando suas ideias e assumindo-as como minhas.
Por sorte, isto também ele pensou e formulou: “na literatura os roubos são como as lembranças”, escreveu em A ex-tradição: “nunca inteiramente deliberados, nunca demasiado inocentes. As relações de propriedade estão excluídas da linguagem: poder usar todas as palavras como se fossem nossas”.
A sessão de Antologia pessoal em que se encontram Uma proposta para o próximo milênio, O escritor como leitor e A ex-tradição se intitula, não podia ser diferente, O laboratório do escritor.
O conto fracassado, que encerra Anjo noturno: narrativas [Companhia das Letras, 2017, 176 p.; R$ 39,90; leia um trecho], novo livro de Sérgio Sant’Anna, é um exercício de três m: metalinguagem, maestria e modéstia. O carioca, um dos três maiores contistas brasileiros em atividade, perpassa elementos presentes em sua obra para escrever um conto acerca da dificuldade – ou mesmo incapacidade – em escrever um conto (daí o título da narrativa), cujo resultado é uma história justamente sobre isso, mas caminhando pela calçada oposta à da falta de assunto, tema de tantas crônicas neste país de cronistas.
Sérgio Sant’Anna é um autor que já fez o que quis ao longo da carreira, iniciada em 1969 com O sobrevivente. E, diante do reconhecimento, pode, não de agora, continuar fazendo o que quiser. Seus leitores agradecem, tanto entre os que o acompanham desde sempre quanto entre os que conquista a cada novo livro – e ao contrário de artistas de outras áreas, o escritor tem publicado com regularidade, vide os ótimos O homem-mulher (2014) e O conto zero e outras histórias (2016).
Se na história final Sant’Anna se vale de um mergulho em sua própria obra, ao longo das narrativas de Anjo noturno ele mergulha também em sua própria biografia, mesclando elementos reais à ficção em que, não à toa, é tido, merecidamente, como um grande mestre. Caso das magistrais Talk show, em que relata de modo irônico e hilariante, entre diante das câmeras e nos bastidores, a participação de um escritor em um programa televisivo de entrevistas, e A mãe, cujo protagonista costura memórias da infância ao lembrar-se da morte da genitora e de um passado que ela sempre quis esconder.
A rua e a casa é outra narrativa em que são evocadas as memórias da infância, inclusive o período em que o autor morou com a família em Londres. Nela e em Amigos afloram citações literárias, sem pedantismo ou erudição forçada. Outra obsessão de Sant’Anna são as artes plásticas, e o casal protagonista de Augusta, que abre o livro, é tragédia bem-humorada e erótica envolvendo um pintor.
Eis o último parágrafo do livro, sem o risco de spoiler: “O conto fracassado era a escrita do declínio de um autor em crise, equilibrando-se num fio estendido sobre a vala comum, mas às vezes ele se surpreendendo a admitir, numa espécie de exaltação: apego-me a este fracasso e nele me reconheço”.
Os leitores hão de convir: estendido sobre a vala comum o autor passeia e a corda certamente nem é tão bamba assim. Poucos são os autores que conseguem esta autoridade, esta superioridade, por que não dizer? Sant’Anna mergulha na própria obra, mas em vez de se repetir, oferece aos leitores algo completamente novo. Estes certamente desejarão ao autor: continue fracassando assim.
Último romance publicado pelo americano Kent Haruf (1943-2014), Nossas noites [Our souls at night, tradução de Sonia Moreira; Companhia das Letras, 2017, 159 p.; R$ 39,90; leia um trecho] é um pequeno manifesto em favor da liberdade e do amor, abordando temas como a solidão e a velhice com delicadeza e elegância.
Conta a saga de Addie Moore e Louis Waters, viúvos setentões que resolvem passar as noites juntos, conversando no escuro, como forma de vencer a solidão decorrente dos falecimentos de seus cônjuges e das mudanças dos filhos para longe do condado de Holt, a pacata e provinciana cidade em que vivem no Colorado.
Vivendo há décadas na mesma rua, o par de protagonistas não era exatamente o que se pode chamar de amigos, embora soubessem um bocado da vida um do outro. Não tardam boatos maldosos sobre seus encontros noturnos – apesar disso, seguem adiante com seu intento.
Esta é uma grande lição do ótimo livro de Kent Haruf: em efeito dominó, idade e experiência trazem maturidade, que traz coragem e o necessário pouco ou nada ligar para a opinião alheia quando se trata da própria felicidade. O que nada tem a ver com egoísmo.
Recheado de diálogos bem construídos, Nossas noites passa por conflitos familiares, memórias e momentos tristes e felizes, brigas e pequenos prazeres simples, como a própria vida. Em meio a tudo isso, visitas dos filhos do “casal”, o neto de Addie, camundongos e uma cadela.
As outras grandes lições são: nunca é tarde e tudo vale a pena. Refiro-me à própria vida, mas metaforicamente também a acompanhar o cotidiano dessas noites (e dias) plenos de beleza e poesia – o poeta que Louis quis ser na juventude traz referências à obra, sem arrogância ou exagero.
Filho da mesma terra que legou ao Brasil nomes como Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna e Wander Piroli, o mineiro Campos de Carvalho (1916-1998) é um dos mais delirantes autores de nossa literatura em todos os tempos.
Em boa hora – teria completado 100 anos em novembro passado – a editora Autêntica (não por acaso também de Minas Gerais) vem recolocando sua obra à disposição de leitores interessados. Alvíssaras!
A tiragem média de um livro de ficção de autores brasileiros orbita entre 2 mil e 3 mil exemplares, o que é muito pouco num país com mais de 5 mil municípios e 200 milhões de habitantes. Ou seja: em média, há menos de um leitor por cidade, isso se não considerarmos o encalhe, e sabemos que nem toda a tiragem de uma obra é vendida, ou ao menos não o é imediatamente.
Na contramão destes números e apesar das trombetas insistirem em anunciar a morte do livro de papel, nunca se publicou tanto (em papel) no Brasil. A pergunta, neste país de escritores, é: quem lê?
A obra de Campos de Carvalho é fascinante. Basta um parágrafo de A lua vem da ásia [2016, 174 p., originalmente publicado em 1956; R$ 47,00] ou Vaca de nariz sutil [2017, 94 p., originalmente publicado em 1961; R$ 44,90] para ser fisgado pelos narradores que enumeram suas peripécias num hotel (ou hospício), no primeiro, ou na guerra, no segundo.
Não à toa indagaram-lhe se era louco pelo conteúdo surrealista de seus livros, o que contribuiu para um progressivo desaparecimento e consequente esquecimento.
Esteta com domínio absoluto da linguagem – redundo? – Campos de Carvalho escreve beirando o nonsense, sem nunca perder o bom humor – o narrador de A lua vem da Ásia evoca o machadiano Simão Bacamarte – tornando cada página, antes cada frase, uma experiência memorável. Dá vontade de fotografar cada trecho e compartilhar nas redes sociais (o que muito fiz durante sua leitura).
A despeito do pequeno número de leitores, cria-se (ou rearticula-se) uma pequena confraria ao redor da obra de Campos de Carvalho. Os próximos volumes a serem lançados pela Autêntica são A chuva imóvel [1963] e O púcaro búlgaro [1964], o livro preferido do escritor. É torcer para que não torne ao ostracismo, agora póstumo, este autor tão necessário. Ainda mais num tempo em que o absurdo do noticiário é forte concorrente para a literatura de ficção.
Leia trechos:
A lua vem da Ásia. Reprodução
“O melhor lugar para se comer, quando não se tem onde comer, ainda é um bom velório – em casa de família modesta e decente.
Esta filosofia da fome levou-me ontem à noite, debaixo de chuva e tudo, a procurar pela cidade, de bairro em bairro, uma porta aberta por onde pudesse divisar algum defunto sobre uma mesa, já que todos os restaurantes me batiam com a porta na cara e os dois ou três transeuntes a quem pedi uma esmola nem sequer se dignaram a fitar-me no fundo dos olhos.
Depois de muito perambular, com o estômago às costas para pesar-me menos, acabei descobrindo um velório mais ou menos no estilo do que eu desejava, num canto de uma rua escura e sem bondes, onde as casas eram todas iguais e não traziam sequer um número para identificá-las. Se eu tivesse procurado, talvez houvesse encontrado mais adiante algo melhor e mais convidativo, mas confesso que a essa altura minhas pernas já não me aguentavam mais e tive que contentar-me com o que tinha pela frente”.
(A lua vem da Ásia, p. 126)
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Vaca de nariz sutil. Reprodução
“Minha lógica era perfeitamente lógica, e isso os desnorteava e a mim principalmente. Tinham me ensinado tanta e tanta coisa que eu me julgava um animal pensante, capaz de criar pensamentos para enfrentar esta ou qualquer vida, como um deus em miniatura, com alma imortal e tudo; de súbito fui virado pelo avesso, quem me virou não sei, o médico disse que fui eu mesmo, e as coisas mais simples se tornaram terrivelmente complexas, como viver por exemplo, ou dormir sobre o lado esquerdo, como havia feito desde sempre. Até copular, que era a minha distração predileta, tornou-se um problema sério, de quase impossível solução, e isso sem falar nas suas consequências mais remotas, que eu transferia aos fabricantes de preservativos ou de anjos, como fazia toda gente: o problema era saber como duas pessoas podiam fazer de conta que eram apenas uma, ou nenhuma, mesmo em se tratando de xifópagos, só porque se punham nuas uma sobre a outra, ou a outra sobre uma, com ou sem auxílio de vaselina. Tratava-se de um êxtase afinal de contas, e não de um êxtase metafísico ou religioso, mas de um êxtase segundo a carne, como o sonho ou o pesadelo, por isso mesmo incomunicável – e fazer dele partícipe, um estranho, era o mesmo que fazer alguém cúmplice de um nosso crime, nosso e de mais ninguém. O vício solitário passava a ser assim a virtude solitária, era-se hermafrodito por princípio e por fatalidade, o indivíduo tornava-se de fato indivíduo, nada de promiscuidade ou confusão. Foi a fase áurea do meu onanismo, bem diversa da que me impunha a trincheira ou a caserna, e cheguei mesmo a tentar uma espécie de ioga baseada estritamente na contemplação do falo e na sua, deste, autodidaxia, com implicações filosóficas do mais alto grau. Não fosse o avô ter-me descoberto um dia, qual um encantador de serpentes, com o pênis a um palmo da boca – mas isto é o fim do mundo! – é muito provável que a esta altura eu figurasse entre os dez maiores místicos do Ocidente, deste século pelo menos. O velho abriu a boca no mundo, veio um creio especialista em falos serpentinos, fui examinado dos pés à cabeça e da cabeça aos pés, houve o inefável conselho de família, decidiu-se pela minha extrema periculosidade. O Exército já sabia disso, tanto que me condecorou e me mandou para casa, mas um herói visto assim de frente e em pelo sempre impressiona muito mais: puseram-me de cama durante um mês, pés e mãos atados, com um enfermeiro encarregado de fazer-me urinar e apenas isso, como se se tratasse, o meu, de um sexo comum e irresponsável. Eu urinava, urinava, o cigarro no canto da boca, até que voltou o ferrabrás e ordenou: pode levantar-se. Eu ou o pênis?”
Aos 92 anos de idade, Rubem Fonseca permanece um dos mais monumentais escritores brasileiros em todos os tempos, posto a que para ser alçado bastaram seus três primeiros livros de contos, Os prisioneiros (1963), A coleira do cão (1965) e Lúcia McCartney (1967).
O mineiro, radicado no Rio de Janeiro desde os oito anos de idade, fez de tudo na vida e na literatura: foi office-boy, escriturário, revisor de jornal e comissário de polícia, de onde certamente retirou muita matéria-prima para seus contos; na literatura, escreveu ainda romances, novelas, ensaios, roteiros e fez traduções, além de ter sido adaptado ao cinema e televisão.
Em Calibre 22 [Nova Fronteira, 2017, 201 p.] reaparecem elementos já consagrados de sua prosa: violência, sexo, ironia, bom humor e enciclopedismo, além do personagem Mandrake, que protagoniza o conto que intitula e encerra a coletânea, em que o consagrado detetive investiga uma série de assassinatos, na mais longa narrativa do volume.
Em Fantasmas, Fonseca tira onda com psicanalistas (depois se redime, mais ou menos, em Satiríase e impotência); em Um homem de princípios, um assassino começa a história afirmando: “Não gosto de matar barata, nem piolho, nem seres humanos. Não mato por ódio, ciúme, inveja, medo”, e termina: “Eu tenho os meus princípios, já disse. Não mato mulher, criança e anão. E sou honesto”.
O politicamente incorreto aparece aqui e ali, mas Rubem Fonseca não é seu apologista: ele apropria-se da realidade para fazer sua ficção, merecidamente uma das mais festejadas da literatura brasileira. Há contos em que o protagonista mata um homem que batia em sua esposa (Homem não pode bater em mulher) – “Ela sorriu para mim”, termina – e um homofóbico (O morcego, o mico e o velho que não era corcunda, partes I e II).
Em Outro anão, volta a tirar onda do próprio ofício, ao afirmar ironicamente, antenado com as novas tecnologias: “É mentira também o que você ouve no rádio, na televisão, lê no jornal, na revista, no zapzap, é tudo mentira”. Mas noutro conto o escritor afirma: “Sou do tempo em que as pessoas gostavam de ópera, de foder e de sanduíche de mortadela” (abrindo Ópera, foder e sanduíche de mortadela).
Rubem Fonseca domina plenamente a linguagem. Em Camisola e pijama, volta aos embates entre escritor e editor, outro tema caro à sua prosa. Em O presente de Natal uma mulher consulta-se com uma mãe de santo “formada” por Bita do Barão, em Codó, interior do Maranhão – novamente a realidade se cruza com a ficção em sua obra, em que diversos protagonistas, como ele, chamam-se “José” – personagem que intitulou o livro do autor, de 2011, mais ou menos autobiográfico –, também prenome de Mandrake, não a única autorreferência à sua vida e obra em Calibre 22.
Com três Jabuti na bagagem, dois APCA, um Casa de Las Américas, um ABL de Ficção, um Camões, um Juan Rulfo e um Machado de Assis, Rubem Fonseca não precisa(va) mais provar nada para ninguém, nem escreve para angariar outros prêmios. Mas os leitores deste escritor de grosso calibre são premiados a cada volume que nos faz chegar às mãos.
O novo livro de Wilson Marques já começa com um trocadilho: em Arte e manhas do jabuti [Autêntica, 2017, 47 p.] ele reescreve seis contos tendo o quelônio como protagonista, todos já recolhidos anteriormente pela tradição oral de diversas culturas.
O maranhense remonta ao trabalho de folcloristas importantes como Câmara Cascudo e Silvio Romero, centrando forças na cultura tenetehara, dos indígenas guajajara, habitantes da Amazônia maranhense.
Se antes de escrita a palavra (já) era dita, as “arte e manhas” do título podem ser lidas como “artimanhas”: o jabuti sempre vence, numa demonstração de que mais vale a paciência e a esperteza, que a força e a velocidade.
É um livro infantil, mas é impossível não pensarmos em metáforas políticas, no momento conturbado por que passa o Brasil. O jabuti é o povo, os governantes são seus adversários, raposas e tubarões cujo desejo é unicamente perpetuar-se no poder em busca da manutenção de privilégios (para si mesmos).
Não é um manual infantil da espécie “como se dar bem”, mas também leva a refletir que os mais fracos, os oprimidos (as minorias, para seguirmos na metáfora política) também merecem vez e voz.
“Jabuti trepado ou foi enchente ou foi mão de gente”, diz o dito popular, prisma por que também podemos observar o alçar de figuras nefastas a postos-chaves de nossa selva republicana.
Em seis contos, Wilson Marques passeia por histórias mais e menos conhecidas, como a festa no céu e a corrida do jabuti, aqui com um veado – na versão mais conhecida a aposta é com um coelho (ou lebre).
Este é um grande trunfo: com modificações aqui e acolá, o autor preserva a essência dos contos, acrescentando-lhes novos detalhes e personagens, isto é, dando seu toque pessoal a histórias seculares.
O livro é ilustrado por Taisa Borges e tem apresentação de Marco Haurélio, com quem Wilson Marques divide a autoria de Contos e lendas da terra do sol. Texto e imagem dialogam em mais um prazeroso exercício de atrair a gurizada para o hoje tão menosprezado prazer de ler, missão que o autor assumiu para si já há algum tempo, através de Touchê, seu personagem mais famoso, com que agora, tem percorrido municípios do interior, com uma caravana literária e teatral.
Arte e manhas do jabuti tem apoio cultural do Sesc e é publicado pela mineira Autêntica, dois selos de qualidade que atestam a da obra de Wilson Marques que ora temos em mãos. O primeiro, responsável pelo recente lançamento de João, o menino cantador, biografia-mirim de João do Vale (1934-1996) escrita pela jornalista Andréa Oliveira; a segunda, pela recolocação do monumental Campos de Carvalho (1916-1998) em circulação.
Em tempo, não esqueçamos que jabuti é o bicho que dá nome a um dos mais importantes prêmios literários do Brasil.
Serviço
Wilson Marques autografa Arte e manhas do jabuti hoje, a partir das 18h, na livraria Leitura (São Luís Shopping), com apresentação do grupo Xama Teatro.
Exposição aborda o Josué Montello jornalista. Foto: Joseane Souza
Entrei ontem por acaso na Casa de Cultura Josué Montello (Rua das Hortas, 327, Centro), que não frequentava desde minha passagem pela assessoria de comunicação da então secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma), no governo Jackson Lago (2007-9).
Chamo de acaso o fato de ter ido lá com outro propósito, não especificamente para ver a exposição inaugurada ontem, dedicada ao Montello jornalista. Fui conduzido pela diretora da Casa, Joseane Souza, que me apresentou um vasto universo, formado por recortes de jornais e revistas com os quais o maranhense colaborou, além de livros reunindo sua produção jornalística, sobretudo crônicas. Um novo volume, reunindo crônicas inéditas no formato, está sendo preparado para o centenário do autor.
Do juvenil A Mocidade, jornal que reunia estudantes do Liceu Maranhense e do Centro Caixeiral e teve Montello como redator-chefe, a revistas como Manchete, Fatos & Fotos, O Cruzeiro e o Jornal do Brasil, até livros como Janela de Mirante, Fachada de azulejos e Areia do tempo, este último reunindo textos do imortal sobre a cultura francesa.
Romancista bastante conhecido por livros como Os tambores de São Luís, Cais da sagração, Um beiral para os bem-te-vis e Noite sobre Alcântara, entre inúmeros outros, Josué Montello, nascido em São Luís em 21 de agosto de 1917, foi vários e esta exposição abarca uma de suas facetas. Também por ocasião de seu centenário, o jornalista e professor universitário Ed Wilson Araújo prepara uma exposição baseada em Cais da sagração.
Em seguida, guiado por Wanda França, fiz uma visita ao museu anexo à Casa de Cultura Josué Montello, que reproduz parte do apartamento em que ele se hospedava quando visitava São Luís – mudou-se para o Rio de Janeiro ainda jovem, vindo a falecer ali, em 15 de março de 2006 – e abriga objetos pessoais. Entre inúmeros diplomas, certificados, medalhas e bibelôs, me chamaram bastante a atenção um troféu Juca Pato, que reproduz o personagem de Belmonte – prêmio literário concedido pela União Brasileira de Escritores (UBE), com apoio do jornal Folha de S. Paulo –, e um relógio de parede brinde do sebo Papiros do Egito, da saudosa Moema Alvim.
Ganhei quase duas horas entre uma visita e outra, entre uma conversa e outra, entre uma aula e outra. Sim, no fim das contas, é disso que se trata: Joseane e Wanda dão aulas gratuitas a quem esteja disposto a aprender. Entrei por acaso, repito, portanto não estava armado de apetrechos jornalísticos – gravador, bloco, caneta, máquina fotográfica: levava apenas o celular no bolso e nem este quis sacar para não interromper (a foto que ilustra este post é de Joseane, pedi depois por whatsapp). Seus olhos brilham ao falar do velho Montello – com quem conviveram.
Conversamos um bocado, sobre um monte de coisa. Depois do papo, percebi que é insignificante o que conheço de Montello. Que o mundo dele é universo vasto a ser desvendado – para além dos livros. Wanda me contou de suas aventuras em sebos por São Paulo, à cata de edições que não figuravam no acervo da CCJM. Descobriu por exemplo um Os tambores de São Luís de capa verde, da José Olympio – o homem-editora tema de uma das reportagens de Montello que vi expostas – “igualzinha a uma que temos aqui, só muda a cor”. Trouxe e incorporou ao acervo.
Ela me antecipou também a ideia de um concurso de redação para estudantes da rede pública estadual. Torço para que aconteça. Estudantes universitários que porventura conversem com elas teriam um bocado de temas menos insossos para escreverem suas monografias, dissertações, teses, para além dos cursos de Jornalismo e Letras.
Por exemplo, a geografia de Montello, a geografia em Montello, as transformações por que passou São Luís entre as páginas de seus livros e o que vemos hoje – para melhor ou pior os estudos dirão.
Da sacada do antigo apartamento do escritor, Wanda me contava histórias de um pé de abricó que caiu no dia dum aniversário de Montello, já após seu falecimento. Olhei para cima e vi um bem-te-vi num fio elétrico. Apontei, evocando o título de seu romance, ao que ela me revelou: “todo dia cinco horas da tarde um casal pousa aqui no beiral e fica cantando”.
Arrepiei-me e pude entender-lhes o brilho nos olhos: é o encanto com a magia de Montello. Despedi-me agradecendo e prometi voltar mais vezes, o que farei e recomendo. A exposição Arquivo pessoal de Josué Montello: trajetória e contribuições como jornalista literário fica em cartaz até 30 de junho, mas a CCJM pode ser visitada em qualquer época em dias úteis, das 13 às 19h.
O autor cercado por atrizes da Xama Teatro e estudantes de uma escola pública em Santa Inês/MA. Foto: Sheury Neves
Com a Caravana Passeios pela História e Cultura do Maranhão o escritor Wilson Marques está circulando diversas cidades maranhenses, acompanhado da trupe da Xama Teatro e de Touchê, seu personagem infantil que angaria leitores por onde passa.
Na última quinta-feira (1º.), foi a vez de Pedreiras, terra de João do Vale, já biografado pelo autor – e recentemente tema de biografia-mirim lançada recentemente pela jornalista Andrea Oliveira. O município encerrou a primeira etapa do projeto, que, com patrocínio da Companhia Energética do Maranhão (Cemar), através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão, já passou, além de Pedreiras, por Imperatriz, Açailândia, Timon, Caxias, Pinheiro, Viana e Santa Inês.
O kit Touchê. Reprodução
“Para quem escreve, o contato com seu público é quase tão importante quanto publicar livros. É bom para o pequeno leitor, que ao final desmistifica a ideia de que o escritor é uma figura distante, inacessível. E, para o autor, uma oportunidade de se retroalimentar, se energizar”, comenta o escritor. Em suas viagens, os lançamentos têm sido realizados em escolas públicas ou espaços culturais, com distribuição dos kits de Touchê, com seis livros, ilustrados por Kirlley Veloso: Touchê em a invasão francesa e a fundação de São Luís, Touchê em uma aventura pela “Cidade dos Azulejos”, Touchê em a revolta de Beckman e nos tempos de Pombal, Touchê em uma aventura em noite de São João, Touchê em o mistério da serpente e Touchê em Balaiada, a revolta.
Indago se estreitar este convívio com os pequenos leitores é uma tentativa de virar o jogo: livros perdem cada vez mais espaço na disputa de preferência com tablets e celulares, entre outros. “Com relação aos eletrônicos, acho que o mal uso deles pode ser bastante daninho principalmente para mentes em construção. Por outro lado, acredito que não devemos demonizá-los, ou criar cabos de guerra tendo de um lado livros e do outro tablets, etc. Acho sim que podemos tirar partido deles a fim de difundir cada vez mais os bons conteúdos, pois ao final é isso que realmente importa”, opina.
A rota de Wilson, Touchê e do Xama Teatro, que faz apresentações baseadas nos enredos das obras, após um descanso, será retomada em agosto, quando visita São José de Ribamar (dia 2), Paço do Lumiar (14) e São Luís (23), encerrando o passeio.
“Em todas as cidades em que passamos a receptividade superou minhas expectativas, tanto por parte de alunos como professoras, diretoras e gestores de educação municipais. Isso tem sido muito legal porque demonstra que existe em todos um interesse, uma necessidade inata por arte, por histórias, por teatro, por livros. Por outro lado, revela um aspecto que me entristece um pouco: o fato de a Caravana despertar ainda mais interesse na medida em que muitas escolas se encontram em estado de carência no que diz respeito à oferta desse tipo de ação. De qualquer maneira o projeto tem ajudado a reacender essa chama, e isso a gente pode constatar pelo entusiasmo e alegria com que somos recebidos”, comenta.
Jornalista de formação, Wilson Marques, além de João do Vale, já biografou o violonista João Pedro Borges. Seu personagem de maior sucesso, no entanto, é mesmo Touchê, através do qual ele aborda aspectos da história e da cultura do Maranhão. Pergunto se o incomoda o fato de a faceta infantil de sua obra ser mais conhecida que o trabalho, digamos, adulto.
“Nunca tinha pensado nisso e acho que vou continuar sem me preocupar com esse aspecto do meu trabalho. Mesmo porque esse raciocínio pode levar à ideia de que um tipo de fazer literário é mais nobre que o outro. Tipo, escrever para adultos é mais nobre do que escrever para crianças. E não me parece que seja assim. Uma coisa, entanto, posso afirmar: pra mim, escrever para crianças é muito mais divertido do que escrever para adultos. E, no final das contas, o que vale é a gente se divertir”, finaliza.
O voto popular deu a João do Vale o merecido título de maranhense do século XX. O cantor e compositor, um dos mais importantes do Brasil em todos os tempos, é tido como um dos pilares da música nordestina, ao lado de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Marinês – que gravaram suas músicas.
Cantador de coisas simples, imortalizou em suas composições sua terra e sua gente. Minha história, comovente autobiografia musical, é um ótimo exemplo.
João do Vale – Mais coragem do que homem [Edufma, 1998], biografia escrita pela jornalista Andréa Oliveira, há muito está esgotada. Não é disputada a tapas e a peso de ouro em sebos simplesmente por que não se encontra.
Ela conviveu com o ídolo durante seus últimos anos. Após o sucesso no sul maravilha, João do Vale retornou para sua Pedreiras natal, no interior do Maranhão, para reencontrar a vida simples que tanto o inspirou, o pé no barro do chão, o dominó com os amigos na esquina, o Lago da Onça e a Rua da Golada, Mané, Pedro e Romão, imortalizados em clássicos como Pé do lajeiro, Pisa na fulô e a já citada Minha história.
João – O menino cantador. Capa. Reprodução
Apaixonada pela vida a obra de João do Vale, Andréa Oliveira volta a seu personagem no infantil João – O menino cantador [Pitomba!, 2017, 36 p.], em que busca contar para crianças a/s história/s do artista, valorizando sua infância.
“Era uma vez”, começa o livro, evocando a clássica abertura dos contos de fadas. O livro nasceu do desejo de Andréa Oliveira, autora ainda de Nome aos bois – tragédia e comédia no bumba meu boi do Maranhão (2003), de contar a história de João do Vale aos filhos, à época ainda crianças – entre a ideia e a publicação foram sete anos.
A autora mescla a precisão jornalística e seu compromisso com a veracidade dos fatos ao universo fabular. Garante às crianças, como ela declarou em entrevistas, os direitos à verdade e à fantasia, no que o próprio João do Vale foi um craque.
Em meio à narrativa de Andréa Oliveira, trechos de músicas de João do Vale (não há quem não se pegue cantando ao ler) e ilustrações do artista plástico Fernando Mendonça, cuja simplicidade certamente despertará o interesse das crianças em produzir suas próprias ilustrações, “completando” as originais do livro – o projeto gráfico é do cantor e designer Claudio Lima. Literatura, música e artes plásticas redescobrindo, para as novas gerações, a importância do autor de Estrela miúda e Na asa do vento.
A narrativa é linear, acompanhando João do Vale desde sua infância até o falecimento, passando por sua ida ao Rio de Janeiro, de carona em caminhões, o trabalho na construção civil, as primeiras gravações, o sucesso, a resistência à ditadura militar – do que o clássico Carcará é metáfora exemplar.
Mas engana-se quem pensa que a história tem final triste: a autora atesta, com razão, que João do Vale permanece vivo, prova disso é sua obra, até hoje cantada e assobiada por muitos, e este livro, cuja beleza e delicadeza reavivam a memória do artista – este realmente merece ser chamado de “popular” – e, além de comover os que já lhe conhecem, certamente despertará o interesse dos que porventura ainda não.
Num tempo em que em geral crianças interessam-se mais por celulares e tablets que por livros, João – O menino cantador tem também uma difícil tarefa de conquistar novos leitores. Que, curiosos, poderão voltar aos eletrônicos para descobrir João do Vale através do youtube e de outros aplicativos.
Serviço
A noite de autógrafos de João – O menino cantador, de Andréa Oliveira, acontece nesta quinta-feira (1º. de junho), às 18h30, na Sala de Exposições do Condomínio Fecomércio – Sesc/Senac (Av. dos Holandeses, Calhau). Haverá pocket show com Ivandro Coelho interpretando repertório de João do Vale. Publicado pela editora Pitomba!, o livro tem apoio do Sesc/MA
Começa a envelhecer a mulher mais bela do mundo. Capa. Reprodução
Não deve ser fácil a vida de ficcionistas na república da delação premiada. É difícil concorrer com o enredo que se descortina no Brasil, sobretudo desde há pouco mais de um ano.
No texto de apresentação de Começa a envelhecer a mulher mais bela do mundo [Edições Dubolsinho, 2017, 176 p.], novo livro de Sebastião Nunes, o jornalista e poeta Fabrício Marques aponta Joaquim Silvério dos Reis como o patrono da delação premiada. Não à toa o traidor é personagem de um dos contos do livro: Quando Tiradentes arrancou um dente a Joaquim Silvério e o que aconteceu depois. O autor classifica os textos como crônicas, mas já que, como diria Mário de Andrade, “conto é tudo a que chamamos conto”, opto por esta classificação.
Os textos do volume são todos dedicados a encontros improváveis, a maioria absoluta fruto da fértil imaginação do escritor mineiro, um dos mais originais de nossas letras. Foram originalmente publicados em 2015 no jornal online GGN – ele continua colaborando periodicamente com o portal, quem sabe em breve não pinta um volume dois?
Escritor, editor e artista gráfico, Sebastião Nunes é responsável por tudo no volume, desde a invenção dos encontros, passando pela diagramação e ilustração das histórias, reunidas em volume da editora Dubolsinho, brava e resistente como o autor, um dos cotistas-fundadores de uma experiência fundamental para a (boa) literatura brasileira.
O escritor já desferiu petardos certeiros contra nossas ridículas publicidade e classe média, em livros tão fundamentais quanto pouco conhecidos: Somos todos assassinos e Decálogo da classe média.
Sebastião Nunes coloca seu arsenal a serviço das ideias que quer transmitir. Suas personagens são pinçadas de diversos campos artísticos, de literatura a música, passando por pintura, cinema e dança, além de mitologia, política e crime, áreas que mais do que nunca andam se atritando. Sua erudição – conhece a fundo diversos episódios da história do Brasil e do mundo – não aparece de forma gratuita nem torna enfadonhas suas narrativas, prestando-se a garantir-lhes verossimilhança.
A grande maioria das histórias é hilariante, com o sorriso do leitor penetrando na imaginação do escritor diante da (im)probabilidade de esta ou aquela cena ter mesmo acontecido. Por vezes nos pegamos pensando no quão reais são determinados diálogos. Ou poderiam ser.
Em O jantar de José Olympio em homenagem a Guimarães Rosa, o famoso editor, ao erguer uma taça para brindar, busca provocar uma intriga entre Clarice Lispector e Rachel de Queiroz, presentes ao evento. Em Machado de Assis recebe, na ABL, o poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage, este não fala em poesia, mas conta uma piada de brasileiro que faz rir confrades da Academia e leitores de Começa a envelhecer a mulher mais bonita do mundo.
Poucos são os momentos trágicos do livro, como em Machado de Assis colhe versos no túmulo de Carolina, O poeta Carlos Drummond de Andrade se despede da filha morta, Debaixo do pijama azul, uma camisa do Fluminense respingada de vômito, que acompanha os últimos dias de vida dos escritores maranhenses Coelho Neto e Humberto de Campos, e “Em que logar irás passar a infancia, tragicamente anonymo, a feder?!…”, em que o poeta Augusto dos Anjos lamenta a perda do filho.
O “rir pra não chorar”, o “seria trágico se não fosse cômico” da realidade atual também comparece à prosa elegante de Sebastião Nunes. Na seara política, Pedro Malasartes decide ser prefeito, com todas as regalias e vantagens da função, e JK, Chateaubriand e Zé Maria Alckmin divagam sobre a construção de Brasília.
Talvez seja fácil ser ficcionista no Brasil, onde abunda matéria-prima. O problema é que nem todo ficcionista se chama Sebastião Nunes (ou Nuvens).
O professor de literatura Ivan Cavalcanti Proença causou polêmica ao ecoar recentemente racismo, machismo e classicismo acadêmico em um evento em homenagem a escritora mineira Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de despejo: diário de uma favelada. Para ele, a principal obra da ex-favelada e ex-catadora não é literatura – o livro está na lista de leituras obrigatórias para o vestibular da Unicamp. O professor foi rebatido pelos poetas Ramon Mello e Elisa Lucinda, que saíram em defesa da escritora e de seu legado, já reconhecido por nomes como Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector – que esteve na noite de autógrafos de seu livro de estreia, em 1960.
“A menina Bitita, mineira de Sacramento, arrombou a porta estreita e branca da elitista literatura brasileira ao tornar-se Carolina Maria de Jesus (1914-1977), escritora de Quarto de despejo: diário de uma favelada. O livro, quando lançado em agosto de 1960 em sucessivas edições, alcançou a marca de 100 mil exemplares vendidos em poucos meses, superando em vendas naquele ano, Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado, e foi publicado em 40 países e 14 línguas”. Assim a professora Sirlene Barbosa inicia o artigo que serve de posfácio a Carolina [Veneta, 2016, 128 p.; R$ 39,90], graphic novel biográfica da escritora, com pesquisa e argumento dela e roteiro e desenhos de João Pinheiro.
Ele já havia dedicado graphic novels a biografias de escritores antes: Kerouac [Devir, 2011] e Burroughs [2015, Veneta]. Uma característica de seu trabalho é seu traço versátil adaptar-se às realidades de seus personagens reais: o preto e branco de Carolina parece imitar carvão ao dar o tom certo à miséria humana vivida pela escritora e seus vizinhos de favela do Canindé – onde hoje está localizado o estádio da Portuguesa de Desportos.
Carolina Maria de Jesus foi personagem complexa e por vezes contraditória. Enfrentou preconceitos os mais diversos: por ser negra, pobre, mulher. Aliás, passados 40 anos de sua morte, continua enfrentando, como demonstra o episódio envolvendo o professor. Sirlene Barbosa e João Pinheiro mergulham profundamente na tragédia humana que lhe cerca, mostrando a realidade nua e crua e por vezes cruel. Muitas vezes a escritora foi vítima de preconceito entre seus iguais, isto é, os vizinhos de barracos no Canindé.
A narrativa de Carolina é bastante apoiada em Quarto de despejo: diário de uma favelada, que teve a primeira edição publicada por iniciativa do jornalista Audálio Dantas, que descobriu a escritora meio que por acaso ao cobrir uma pauta para a então Folha da Noite: Carolina ameaçava tornar seus vizinhos personagens do livro que estava escrevendo, reagindo à antipatia deles, para quem ela não passava de uma pobre solteirona metida e fedorenta – às vezes faltava dinheiro para comprar sabão e não foram poucas as vezes em que passou fome junto com os filhos.
“Não são ratos, não são abutres…”, “… são gente”, dizem os quadrinhos a certa altura, apresentando a paisagem violenta por todos os ângulos: desagregação familiar, violência contra a mulher, abuso de álcool e a disputa entre humanos e animais por comida, evocando o poema O bicho (1947), de Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/ na imundície do pátio/ catando comida entre os detritos/ (…)/ o bicho, meu Deus, era um homem”.
Carolina passeia pela vida e obra da escritora que lhe batiza, certamente ajudando a jogar luzes sobre aquela e angariar novos leitores para esta, que segue sendo apontada como influência: Quarto de despejo: diário de uma favelada foi o primeiro livro lido pela também escritora, negra e mineira Conceição Evaristo, que estará na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) este ano e atualmente é tema de uma Ocupação no Itaú Cultural.
A pátria em sandálias da humildade. Capa. Reprodução
Xico Sá é o nosso melhor cronista esportivo desde Nelson Rodrigues – seu padrinho espiritual, ao lado de Edgar Alan Poe, que empresta nome ao agourento corvo com que seca adversários e graúdos.
As linhas entre a literatura e o jornalismo em seu fazer cotidiano são tão tênues que dão nisso: A pátria em sandálias da humildade [Realejo Edições, 2016, 228 p.; R$ 33,60], cujo título obviamente refere-se ao vexame brasileiro em casa, na última Copa do Mundo, os 7×1 da derrota para os alemães.
O livro é uma coletânea de sua produção nos últimos pouco mais de 10 anos, com textos publicados na Folha de S. Paulo e El País, um sobre – pasmem! – uma vitória do Íbis (na extinta revista 10), além de um inédito, incluindo missivas ao jogador-pensador-doutor Sócrates, seu saudoso colega de Cartão Verde, programa da TV Cultura cuja bancada integraram juntos.
Os textos de Xico Sá sobre o ludopédio não se encerram nas quatro linhas e é aí que ele triunfa, como se fosse aquele jogador que além de jogar bonito ainda marca os golaços de uma vitória por goleada.
Para Xico Sá, futebol é sociologia, através do qual tenta explicar e entender o Brasil, é também filosofia e psicanálise de botequim. Ele esbanja categorias ao citar filmes, livros e canções, ao comentar política. Nunca soa pedante, nada soa excessivo neste livro que agradará até mesmo quem não gosta de futebol.
Os textos sobrevivem ao prazo de validade do jornal impresso e ao embrulhar peixes do dia seguinte. Ao relermos, revivemos dramas, na vitória e na derrota. Com a categoria habitual do cronista, que escreve como se, qual Sócrates, desse um passe de calcanhar, deixando o leitor na cara do gol.
Seu consultório sentimental também está aberto ao longo das páginas, seja em cartas abertas que endereça a craques como Neymar, Adriano, Ronaldo e o próprio Sócrates, seja ao tratar do futebol em âmbito conjugal.
A coletânea A pátria em sandálias da humildade acompanha o período de três Copas do Mundo, incluindo o vexame do Mineirão. Xico humaniza a tragédia. Aliás, não é só esta elite futebolística que interessa ao cronista, muito pelo contrário: num livro bom por inteiro, os melhores textos são justamente sobre times e campeonatos menos nobres, a série D, a Lampions League, onde os fracos não têm vez.
“A noite de 10 de novembro de 2016, depois de um 3×0 contra a Argentina de Messi, vai ficar marcada no calendário freudiano do torcedor brasileiro como o dia em que ele jogou fora a tarja preta de um luto que parecia sem fim. Dois anos e quatro meses depois do tragicômico 7×1, neste mesmo Mineirão, mesmo o mais chic dos playbas e a mais grã-phyna das neymarzetes saíram do estádio mascando o torresmo da superação”, anota no inédito Rumo à estação Finlândia, camarada Tite, acertadamente otimista, sobre a já garantida vaga para a Copa na Rússia ano que vem.
Que venham ainda muitas Copas, séries A, B, C e D, estaduais, amistosos e peladas em várzeas. A pátria em sandálias da humildade é um gol de letra, mais uma prova de que Xico Sá é um craque, longe de pendurar as chuteiras.
Rita Lee: uma autobiografia [Globo, 2016, 294 p., R$ 44,90] não era a primeira incursão da ex-Mutantes e ex-Tutti-Fruti no mundo literário – a mais recente, Storynhas [Companhia das Letras, 2013, 96 p., R$ 39,90], ilustrada por Laerte, trazia pequenas histórias expandidas do sucesso que fazia no twitter. É bem escrita, apesar do miguxês típico das redes sociais, aqui a autora inventando novas palavras, acolá chamando todo mundo de fofo ou fofa, quase uma Hebe Camargo – outra que recebe o adjetivo ao longo da narrativa de capítulos curtos.
É inegável a importância e o pioneirismo de Rita Lee, 70 anos em 2017, para a afirmação feminina, extrapolando inclusive os limites do ambiente machista do rock – e de resto, da música brasileira de modo geral, ainda que vivamos em um país de cantoras. “O clube do Bolinha afirmava que para fazer rock “precisava ter culhão”, eu queria provar a mim mesma que rock também se fazia com útero, ovários e sem sotaque feminista clichê”, diz.
O livro segue uma ordem cronológica, da infância à aposentadoria – Rita Lee não grava ou lança disco novo desde Reza [2012] – e tem sacadas bem humoradas, sobretudo na parte inicial, dedicada ao casarão em que vivia com os pais e as irmãs.
A cantora e compositora não poupa sequer a si mesma e narra, nunca perdendo o bom humor, desde o estupro com uma chave de fenda que lhe tirou a virgindade a problemas com drogas, lícitas ou não, um aborto, passando por cirurgias das cordas vocais e hemorroidas, censura durante a ditadura militar, entre tantas aventuras glamourosas ou não, mais ou menos típicas do universo dos famosos, incluindo o casamento com Roberto de Carvalho, cujo namoro teve por cupido Ney Matogrosso, de cuja banda ele então fazia parte, e os dias que passou grávida na prisão – com direito a estardalhaço midiático, à época.
Os bichos de estimação (incluindo cobras e jaguatiricas) que teve ao longo da vida ganham destaque nas páginas da autobiografia de Rita Lee, que confessa ser a defesa dos animais a única bandeira que empunhou na vida.
“Numa autobiografia que se preze, contar o côtè podrêra de próprio punho é coisa de quem, como eu, não se importa de perder o que resta de sua pouca reputação. Se eu quisesse babação de ovo, bastava contratar um ghost-writer para escrever uma “autorizada””, afirma. Só se autocensura ao citar um episódio ocorrido em Aracaju, quando o texto do livro vem tarjado (portanto ilegível) ao longo de duas páginas.
Senhora de si, por vezes soa arrogante ou pretensiosa, mesmo quando quer posar de modesta, quando critica este/a ou aquele/a disco ou música de sua autoria. Noutras, deselegante e ressentida, sobretudo ao lembrar os tempos vividos com os irmãos Arnaldo Baptista – seu ex-marido – e Sérgio Dias, companheiros de Mutantes.
“Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela”, justifica-se, apontando os dedos para críticos e jornalistas como Carlos Calado, autor de A divina comédia dos Mutantes [Editora 34, 1995, 358 p., R$ 64,00].
A autobiografia de Rita Lee perpassa toda sua discografia, desde O’Seis pré-Mutantes, até o derradeiro solo, com opiniões da cantora sobre tudo – é bastante dura ao falar de Tecnicolor, gravado pelos Mutantes em Paris em 1970, e só lançado no Brasil em 2000, outra oportunidade em que alfineta Sérgio Dias, segundo ela o responsável pelo lançamento tardio do álbum renegado. Para ela, ele é um dos que não aceitam que aqueles bons tempos não voltam mais graças aos deuses da música, para quem lançamentos do tipo, e revivals como os shows no Barbican Theatre, em Londres, em 2006 (que viraram cd e dvd), em que Os Mutantes tiveram Zélia Duncan nos vocais, servem apenas para os velhinhos pagarem os geriatras.
Rita Lee: uma autobiografia é um livro gostoso de ler, que traz detalhes de bastidores de importantes períodos para a música brasileira, de pouco antes da Tropicália, passando pelo boom do rock nacional. Bem podia ser um pouco menos azedo, ou talvez a intenção seja mesmo essa, já que a polêmica em geral vende mais, podendo, portanto, significar mais grana para o geriatra. Uma coisa certamente não se pode dizer: que Santa Rita de Sampa – excomungada pela Igreja Católica – não tenha envelhecido com dignidade.
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Veja o clipe de Reza (Rita Lee/ Roberto de Carvalho), que dá nome a seu último disco:
Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus acompanha a trajetória da cantora, ex-empregada doméstica, descoberta por Hermínio Bello de Carvalho, produtor de quase todos os seus discos, aos mais de 60 anos
Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus. Capa. Reprodução
Nada acontece por acaso e o encontro de Clementina de Jesus com o poeta, compositor e produtor Hermínio Bello de Carvalho transformou a então empregada doméstica em cantora popular. Transformar é modo de dizer: Quelé nasceu artista, porém ouvir seu canto único era privilégio de gente próxima, inclusive quem não valorizava seu trabalho, exceto o de cozinhar, lavar e passar.
Caso de sua patroa, que sempre debochava quando ouvia Clementina cantando entre os afazeres, e tampouco aceitou o pedido de demissão quando, estimulada pelo sucesso da estreia e confiante no produtor que passaria a chamar de filho, resolveu dedicar-se integralmente à carreira artística. Nem com Clementina deixando sua filha no posto que outrora ocupava.
Nada acontece por acaso e o encontro de Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz na faculdade de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo deu neste quarteto, que em vez de tocar rock, escreve biografia. De partideira: Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus [Civilização Brasileira, 2017, 364 p., R$ 49,90] esmiúça competentemente vida e obra desta cantora única.
A biografia tem início justamente no encontro entre Clementina e Hermínio. Ele a havia visto pela primeira vez em 1963, durante os festejos de Nossa Senhora da Glória, santa de sua devoção. A timidez do poeta adiou o encontro, que se daria no ano seguinte, na Taberna da Glória, que dá nome a Taberna da Glória: mil vidas entre os heróis da música brasileira [Saraiva, 2015, 208 p.; R$ 49,90], em que Hermínio conta, ao longo de mais de 20 deliciosos textos selecionados por Ruy Castro, seu convívio com diversas personalidades da MPB, muitos produzidos por ele em shows e discos.
Clementina de Jesus estrearia em um palco em 1964, no espetáculo O menestrel, produzido por Hermínio, acompanhada de músicos como o lendário César Faria – futuro integrante do Conjunto Época de Ouro, de Jacob do Bandolim, e pai de Paulinho da Viola –, além do maranhense Turíbio Santos, que se tornaria um dos violonistas mais importantes do mundo.
A consagração definitiva não tardaria. Veio com o espetáculo Rosa de ouro, no ano seguinte, com produção e roteiro de Hermínio Bello de Carvalho – que assinaria a produção da quase totalidade de seus discos –, passando pelo repertório de diversos bambas, em que Clementina de Jesus era acompanhada pelo grupo Os Cinco Crioulos: Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Nelson Sargento, Elton Medeiros e Paulinho da Viola. Não à toa o filho, como ela tratava Hermínio, declarou: “fico com a chamada suprema glória de havê-la descoberto. Ela é minha melhor obra, melhor que meus sambas e poemas”.
Clementina com Cartola e Dona Zica, em desfile da Banda de Ipanema. Foto: Alberto Ferreira
Quelé, a voz da cor tem unidade, sendo impossível distinguir qual dos quatro autores escreveu o quê, passando por glórias e perrengues da filha mais ilustre de Valença/RJ. Lembra suas incursões no universo do samba ainda nas décadas de 1920 e 30, quando conheceu figuras como Noel Rosa, Araci de Almeida, Cartola e Carlos Cachaça – com este último gravaria um de seus discos mais importantes: Clementina de Jesus – Convidado especial: Carlos Cachaça, de 1976.
O livro relembra a agenda insana de compromissos para uma senhora cantora (literalmente!) descoberta e projetada quando já contava mais de 60 anos de idade, entre apresentações, gravações de discos e participações em projetos de amigos, o casamento feliz com Albino Pé Grande, o sonho da casa própria, a vida simples e modesta de quem a fama nunca subiu à cabeça, viagens internacionais, sua importância para o resgate e a preservação de ritmos ancestrais do samba, de forte vínculo com a mãe África, o convívio com diversos artistas-devotos: Dona Ivone Lara, Martinho da Vila, Clara Nunes, Beth Carvalho, Carlinhos Vergueiro, Cristina Buarque, Alceu Valença e Milton Nascimento, entre outros.
Como muitos artistas no Brasil, Clementina de Jesus é menos conhecida e valorizada do que deveria. Darcy Ribeiro era secretário de Cultura do Rio de Janeiro em 1983, quando organizou uma homenagem a cantora no Teatro Municipal, então meca da música erudita, e percebeu o preconceito vigente, quando muitos tentaram impedir a apresentação de um espetáculo de samba protagonizado por negros. “Daqui a 100, 200 anos, os discos de Clementina continuarão vivos. Mas é agora que ela deve ser homenageada”, afirmou o antropólogo.
Clementina de Jesus é nome fundamental para a afirmação da cultura negra no Brasil, tendo sido quem melhor cantou os elos entre o país e a África ancestral. Publicado no ano em que se completam 30 anos de seu falecimento, Quelé, a voz da cor é uma contribuição indispensável para a preservação de sua memória e de toda a força e grandeza que representa para a cultura nacional.
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Veja Na linha do mar (Paulinho da Viola), com Clementina de Jesus: