A segunda obra-prima de Ricardo Piglia

POR JORGE CARRIÓN
TRADUÇÃO: ZEMA RIBEIRO

Ricardo Piglia quando recebeu o Prêmio Internacional de Novela “Rómulo Gallegos” 2011, em Caracas. Foto: Leo Ramirez/ Agência France-Press. Getty Images

Em 28 de janeiro de 1969, Rodolfo Walsh escreveu em seu diário: “Fantasio que a novela é o último avatar de minha personalidade burguesa, ao mesmo tempo que o próprio gênero é a última forma de relato burguês, em transição para outra etapa em que o documental recupera sua primazia. Mas nem estou seguro disso, que pode ser uma desculpa para meu momentâneo fracasso”.

O autor de Operação massacre – que pode ser considerada a primeira grande novela de não-ficção do século XX – não era capaz de assumir que a novela podia prescindir de ficção. Um dos grandes cronistas do século XX identificava a grande literatura com a ficção e não com a crônica, quer dizer, com aquilo que desejava escrever e não com aquilo que realmente escrevia. Sabemos por seu diário, outra forma supostamente menor de literatura. Outra forma também de não-ficção.

Quando Ricardo Piglia publica Uma proposta para o próximo milênio em 2011, um texto que depois reescreverá e que, por sua importância, integrará sua Antologia pessoal (2014), decide partir de Walsh e suas convicções documentais, para responder à pergunta: “como narrar o horror?”.

Detecta no prólogo à terceira edição de Operação massacre um movimento crucial. Walsh representa a si mesmo num bar de La Plata, “em que sempre vai falar de literatura e jogar xadrez e numa noite de 1956 se ouve um tiroteio”. Walsh sai e se refugia em casa mas escreve: “mas nem esqueço que, cego para os cegos, ouvi morrer um conscrito na rua e esse homem não disse “viva a pátria!” mas disse: não me deixem só, filhos da puta”.

Quer dizer, muda o foco da câmera, cede à palavra. Poe o outro no lugar de enunciação que um havia tido um momento antes. Então Piglia diz algo memorável: “a verdade tem a estrutura de uma ficção onde outro fala. É preciso fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar”.

A chave da ficção futura, portanto, se encontra numa novela de ficção. É estranho, porque Piglia não escrevia literatura documental. Não escrevia livros de história, embora fosse um potencial historiador. Não escrevia crônica. Ou escrevia?

Recordemos como começa sua primeira obra maior, Respiração artificial. O narrador, Emilio Renzi, havia publicado sua obra-prima, uma novela intitulada precisamente A prolixidade do real, construída a partir de várias versões de histórias familiares (uma novela que afortunadamente nunca leremos: parece que seu estilo lembra a Faulkner traduzido por Borges, “a uma versão mais ou menos paródica de Onetti”; imediatamente esgotada nas livrarias de Corrientes) e, de repente, recebe uma carta de um de seus protagonistas, seu tio Marcelo Maggi.

Escrevem-se. Vive separado, num povoado distante. “Ensino história argentina no Colégio Nacional e à noite vou jogar xadrez no Clube Social. Há um polaco que é um ás; costumava jogar com o príncipe Alekhine e com James Joyce em Zurique”, essa versão livre de Gombrowicz, chamado Tardewski, tem um sonho benjaminiano (“escrever um livro inteiramente feito de citações”), escreve artigos sobre xadrez num diário local e escreve um “caderno onde registra suas ideias”. Tudo isso se conta na carta inicial. A forma inicial. A resposta. Começa a novela.

A novela começa, portanto, com um deslocamento de gênero. Da ficção familiar à literatura epistolar. Mas, imediatamente, diz Renzi: “não tem sentido que reproduza todas essas cartas”. Há, portanto, um processo de edição. A novela é uma arquitetura de vozes deslocadas (Maggi, Tardewski, Enrique Ossorio, Hitler, Kafka, Arocena), a partir de um deslocamento inicial e prévio: de Ricardo Piglia a Emilio Renzi (já presente em seu primeiro livro de contos, A invasão).

Até 2015, consciente de que dois de seus grandes mestres são Godard e Duchamp, artistas do desvio, teríamos dito, no entanto, que o grande deslocamento pigliano se dá entre dois outros gêneros: a novela e o ensaio. A novela é, em seu caso, sem dúvida e começando por Respiração artificial, uma grande máquina de ensaiar. É a operação que faz Duchamp com a arte contemporânea: torna-se autoconsciente, crítica de arte, teoria artística; ou Godard com o cinema, primeiro [filmes] narrativos, cada vez mais ensaios filmados.

Mas nos anos 1950, 60 e 70, a novela – se me permitem a tola generalização –, condicionada pela política, havia dirigido o uso do ensaio para a defesa de uma tese. Quando se publica Respiração artificial em 1980, em plena ditadura argentina, se podia ler na contracapa: “tempos sombrios em que os homens parecem necessitar um ar artificial para poder sobreviver”. A alusão era clara mas indireta. A novela poderia ser lida em chave política. Mas também em chave estritamente literária.

Com esse desvio ou giro, com esse deslocamento, da novela familiar (burguesa) inexistente ou a novela política (da geração anterior) a uma novela que primeiro se detém especialmente na epistolaridade e depois na conversação poderia se dizer que Piglia prefigura (pré-formata) uma estratégia que será muito comum na literatura da virada do século XX para o XXI.

Com efeito, em Os emigrados (1992), de W. G. Sebald, em Os detetives selvagens (1998), de Roberto Bolaño, em A novela luminosa (2005), de Mario Levrero, em A morte me dá (2007), de Cristina Rivera Garza, ou em Verão (2009), de J. M. Coetzee, os autores recorrem à manipulação de materiais de extração não-literária, muitas vezes privada, como o diário ou a carta, quando não de natureza acadêmica (a tese) ou jornalística (a entrevista), para articular e dar forma às partes mais decisivas das estruturas de seus textos.

Se trata de materiais “ignóbeis” que dificilmente encontraríamos nos autores da geração anterior ou, ao menos em suas novelas canônicas (à exceção, talvez, de O jogo da amarelinha).

Até 2015, repito, acreditávamos que os grandes deslocamentos piglianos eram o seminal (de Ricardo Piglia a Emilio Renzi) e o de gênero (da novela ao ensaio, crítica e ficção); mesmo que soubéssemos que existiam os diários e inclusive que os tivéssemos lido (como em Formas breves) algum fragmento deles. Mas então foi publicado o primeiro volume de Os diários de Emilio Renzi: “Anos de formação” [será publicado agora no Brasil pela editora Todavia, conforme informou em sua conta no twitter o escritor e tradutor Joca Reiners Terron]; e em 2016 o segundo tomo, “Os anos felizes”; e agora “Um dia na vida”; e graças a essa obra-prima em três partes entendemos que abaixo de todas as suas novelas e todos os seus ensaios estava, decisiva, uma grande forma, um grande gênero, de não-ficção cotidiana.

Capa da edição em espanhol do terceiro volume dos diários de Emilio Renzi. Reprodução

Que Os diários de Emilio Renzi podem ser lidos como uma grande novela, como um grande ensaio e como um extraordinário diário nos permitiria afirmar que Piglia realiza neste grande livro uma autêntica triangulação literária. Mas dos 327 cadernos de Piglia só lemos uma parte.

No segundo tomo, por exemplo, faltam as viagens a Cuba e a China; e no terceiro são eliminadas, entre tantas viagens, as que fez a Venezuela (por ocasião, por exemplo, do prêmio Rómulo Gallegos) ou a Barcelona (surpreendentemente não se mencionam nem a Jorge Herralde nem a editora Anagrama).

Como as cartas de Respiração artificial, os diários estão editados. Com que critério? Com o de centrar-se naqueles espaços e tempos que já conhecíamos através da ficção. La Plata, Buenos Aires, os cenários e as histórias dos “contos morais” ou de Respiração artificial, A cidade ausente ou Dinheiro queimado. A publicação dos diários intervém nessa série de textos: gera um grande sentido a 50 anos de obra publicada. Um sentido que se pode estabelecer a partir da famosa teoria de Tese sobre o conto: com efeito, toda a obra de Piglia contava, simultaneamente, duas histórias. Na superfície, a novela e o ensaio desenvolviam um discurso sobre os modos de ler e escrever literatura; no subsolo, o diário consignava os modos de ler e escrever a vida.

Piglia disse em sua mais famosa forma breve que sempre há um momento de interseção ou de cruzamento entre a história 1 e a história 2. São os livros e os autores que aparecem tanto na superfície como no subsolo. E que todo conto conduz a alguma forma de epifania, de “iluminação profana”. Eu senti isso no momento em que entendi,             depois de ler seus diários, que tudo aquilo que durante 50 anos nos havia parecido material lido, metaliteratura e metaficção havia sido, na realidade, sofrido, palpado, vivido.

Os diários desenham, de fato, a um sujeito que sofre a depressão e a tentação do suicídio, que abusa das drogas e pratica a poligamia, que odeia a figura do intelectual, esse traje ou essa máscara que não obstante é impossível não lhe por: finalmente, o diário, em que pese sua fidelidade aos fatos, é uma construção hipersubjetiva, bastante ficcional.

O que me admira – e ao mesmo tempo me assusta – é que é muito provável que tudo isto que digo já foi pensado (e mais: planejado) por Piglia. Ele era consciente do efeito que provocaria a edição de seus diários. Ele preparou todo este grande momento. Em muitos de seus textos poderia encontrar evidências de que minha leitura é, sobretudo, sua. Por exemplo, em O escritor como leitor fala dos diários de Gombrowicz e os define como seu “grande laboratório”: “o diário é isso, uma sorte de experimentação contínua com a experiência, com a forma, com a escrita”. Piglia vai mais longe e diz que talvez seja “sua obra maior”.

De algum modo, ler e interpretar Piglia – como ler Borges – é plagiar Piglia como leitor. Desde que li, assombrado, Formas breves e Respiração artificial há exatamente 15 anos, são inúmeras as vezes em que citei-o consciente e inconscientemente, revelando a fonte e roubando suas ideias e assumindo-as como minhas.

Por sorte, isto também ele pensou e formulou: “na literatura os roubos são como as lembranças”, escreveu em A ex-tradição: “nunca inteiramente deliberados, nunca demasiado inocentes. As relações de propriedade estão excluídas da linguagem: poder usar todas as palavras como se fossem nossas”.

A sessão de Antologia pessoal em que se encontram Uma proposta para o próximo milênio, O escritor como leitor e A ex-tradição se intitula, não podia ser diferente, O laboratório do escritor.

[publicado originalmente na versão em espanhol do New York Times]

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