A “Divina Dádiva-Dívida” de Celsim (e João Camarero)

(OU: JORNALISTAS TAMBÉM SE EMOCIONAM)

Celsim (voz) e João Camarero (violão sete cordas). Foto: Pablo Saborido/Divulgação
Celsim (voz) e João Camarero (violão sete cordas). Foto: Pablo Saborido/Divulgação

Para quem perdeu ou quer verouvir de novo o Chorinhos e Chorões de domingo passado (18)

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, nos ensina Caetano Veloso. E entre as dores e as delícias de trabalhar com jornalismo, e particularmente jornalismo cultural, certas coisas me comovem – nem vou me desculpar caso soe piegas, seria o mesmo que pedir desculpas pela sinceridade.

Uma dessas emoções recentes foi ter entrevistado o ator, cantor e  compositor Celsim (que está mudando de nome artístico após 30 anos assinando como Celso Sim), no Chorinhos e Chorões, da Rádio Universidade FM de domingo passado (18), com operação de Marcos Martins – problemas técnicos tiraram a Rádio Timbira do ar naquela manhã, onde o programa atualmente também é transmitido, em cadeia; na ocasião, substituí, a pedido dele mesmo, que teve uma viagem a trabalho, Ricarte Almeida Santos, titular absoluto do programa, há mais de 30 anos, a quem agradeço a preferência e confiança de sempre.

Admiro e acompanho como posso a trajetória de Celsim desde o final da década de 1990, quando comprei um exemplar usado de “Pedra Bruta” (que tenho até hoje), disco de Jorge Mautner gravado na Áustria entre 1991 e 1992, ano em que foi lançado, que marcava a estreia de Celsim. De lá para cá, foram vários discos, cada qual com sua particularidade, sempre aliando sua voz, uma das mais belas que já ouvimos no Brasil, a repertórios impecáveis.

O mais recente, mote da presença de Celsim no dominical Chorinhos e Chorões, é “Divina Dádiva-Dívida” (Selo Circus, 2022), que ele divide com João Camarero (violão sete cordas), inspirado tributo a Elizeth Cardoso (1920-1990), álbum que começou a ser gestado durante a pandemia de covid-19.

Em pouco mais de uma hora de programa – sorry, Paulo Pellegrini –, Celsim falou sobre a mudança de nome artístico, as parcerias com Camarero e Arthur Nestrovski, as importâncias de Elizeth Cardoso e João Gilberto em sua formação, a paixão por Batatinha (a cujo repertório dedicou “O Amor Entrou Como Um Raio”, de 2017), entre outros, destacando a síntese por trás do conceito traduzido no título de seu mais novo álbum: divina é Elizeth e o Brasil é a dádiva-dívida, tudo isso cerzido por um amor ao Brasil, que, afinal de contas, nos une, força-motriz de seu fazer artístico e de meu fazer jornalístico.

Para quem perdeu (ou quer verouvir de novo) o programa, assista a seguir.

De bônus, uma playlist com o repertório que eu planejava tocar (algumas acabaram ficando de fora, dado o limite de tempo).

Outro bônus é o Radiola Timbira do mesmo domingo, que também abro lembrando a entrevista de mais cedo, tocando faixas de “O Herói das Estrelas e A Anja Astronauta” (Selo Sesc, 2022), que Celsim dedica ao repertório de Jorge Mautner.

Amabile, gentile, adorabile

Meu sol iluminado por outro. Retrato: ZR

Obviamente ela não é São Francisco de Assis, tampouco devota, mas destina especial atenção a plantas, cachorros e passarinhos, que cria soltos, vindo estes pousar e bicar em bebedouros que pendura nas janelas do apartamento – conversa com todos eles.

A que, com apreço especial pelo rock’n’roll desde a infância e juventude, em parte passadas na Itália, tem se descoberto igualmente apreciadora de música popular brasileira, com predileção pelo “Clube da esquina”, o disco que Milton Nascimento e Lô Borges lançaram juntos em 1972 – e especialmente pela canção “Um girassol da cor de seu cabelo” (Lô Borges/ Márcio Borges), disparada sua preferida no universo comumente envolvido pelo rótulo MPB –, e por Vanguart, discos que invariavelmente cata em meio à minha (hoje nossa) modesta coleção e bota para tocar por iniciativa própria.

A que, aqui e acolá, se pega cantarolando “quando cheguei, tudo, tudo, tudo estava virado/ apenas viram, me viram” e eu boto todo o “Acabou chorare” (não por acaso lançado no mesmo ano do “Clube da esquina”) para tocar, enquanto lembro que foi isso mesmo: “quando vi você me apaixonei”.

A que às vezes devora livros e HQs que me chegam antes mesmo de eu conseguir folheá-los. A perfeccionista que nunca consegue fazer uma única foto ou sempre acha que um vídeo pode ficar melhor – eu, geralmente sem paciência, quero sempre enviar o primeiro, por força de algum compromisso profissional.

Ano passado, no dia de seu aniversário, estávamos confinados, naquele que até então achávamos que seria o momento mais difícil da pandemia. Escritórios armados em casa, entre trabalho, testes de receitas e muitas fotos das experiências em grupos de família, “loucura, chiclete e som”.

Um ano depois, cá estamos nós, quase na mesma, talvez um pouco mais experientes, sem dúvidas mais conscientes das escolhas que fizemos e fazemos cotidianamente: das séries que maratonamos no streaming a questões menos prosaicas, o equilibrar-se no slackline das finanças.

Mas “o novo sempre vem” e eu espero que o “compositor de destinos” nos permita todos os aniversários juntos e a possibilidade de comemorações menos restritas.

Feliz vida, minha doce Guta!

This is true

Retrato: Zema Ribeiro
Retrato: Zema Ribeiro

Há alguns dias saímos em missões por shoppings e Rua Grande para fazer uns “mandados” da mãe dela, cumprindo rigorosamente o isolamento social imposto pela pandemia de covid-19.

Entramos em diversas lojas e, munidos das especificações, procurávamos roupas para a sogra, com a vida à distância, como requer o momento, facilitada pela comunicação via aplicativos de bate-papo.

Numa delas saquei o celular e fotografei o vestido colocado em frente ao corpo, por cima da roupa mesmo, espécie de meio-manequim vivo. Encaminhei a foto à sogra e comentei com a filha: tua cara tá ótima! Rimos.

Só depois me toquei que no vestido está escrito “isto é verdade” em inglês, mais uma dessas coincidências (Deus ou acaso, chamem/os como queiram/os) com que a vida tem nos presenteado desde que a vi pela primeira vez.

Minha modelo predileta surgiu assim para mim naquela tarde quente de domingo cuja história já devo ter contado muitas vezes para amigos íntimos e outras tantas aos poucos mas fiéis leitores. Aliviava o calor com uma cerveja gelada quando ela passou na calçada defronte o Botequim da Tralha, os paralelepípedos da Godofredo Viana transformados em passarela. Não era concurso de miss por que em meu coração ela é hors concours.

O faro detetivesco que de algum modo me deu o jornalismo se responsabilizou pelo resto: perguntar quem era, tão linda, e correr atrás e contar com um pouco de sorte. A vida é gangorra ou montanha russa, com seus altos e baixos – tê-la ao lado torna os obstáculos mais fáceis de transpor, apesar do sedentarismo mútuo, entre horas vendo séries, arrumando (e vendouvindo) livros e discos, cuidando de plantas, botando água para garantir a visita diária e colorida dos passarinhos com seu barulhinho bom, não necessariamente nessa ordem, nesse quase um ano.

Ambos tomamos café sem açúcar e o fim da xícara guarda a porção mais amarga, dada a proximidade com a borra. Esse texto, intencionalmente mais doce que guaraná Jesus, poderia aumentar as taxas de glicose dos leitores, ainda mais os ressacados numa manhã de sábado – como misteriosamente não está o autor.

Na falta de fecho adequado, aproveito para mostrar um poema que escrevi para ela há um tempo, que o parceiro Gildomar Marinho me deu a honra de musicar – está em seu novo disco, Estradar, a (quase) inédita Amor ateu (é a terceira música do vídeo, começa aos 6’17”; tentei programar, mas o youtube está me pregando alguma peça; peço que pulem aí manualmente, mas quem quiser ouvir as três, está valendo também).

Reencontro

Retrato: Guta Amabile
Retrato: Guta Amabile

És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho, nos ensinou um antigo compositor baiano, sobre o tempo.

Ontem ele veio me visitar, após meses nos falando apenas por videochamadas, imposição do isolamento social, por sua vez imposto pela pandemia da covid-19. Novos tempos, novos hábitos.

Distância não é sinônimo de ausência.

Mas as videochamadas não me permitiam perceber o quanto meu filho cresceu nesse tempo. Como está comprido, admirou-se a avó, que, no passeio ligeiro com ele, levei para visitar, ela também há tempos sem vê-lo pessoalmente.

Ele riu o trajeto inteiro, para minha surpresa – achei que fosse estranhar mais, diante da quebra da rotina. Em casa, da janela lateral do quarto de dormir, vimos a ponte e suas luzes com seu trânsito como se (já) estivéssemos em dias normais, vimos a árvore e as plantinhas; infelizmente não vimos os passarinhos, pois já era noite.

Brincamos um pouco com um Cebolinha “vintage”, um boneco que eu tenho desde que tinha mais ou menos a idade do menino, um boneco que você abaixa a aba do boné e ele muda as feições – são quatro, do alegre ao zangado. Como o menino, que da gargalhada mais gostosa, muda para o aborrecimento, a reivindicar os vídeos com as músicas que tanto aprecia.

Deu tempo de verouvir Vanguart, Beatles, Partimpim e os Muppets relendo o Queen – juro que a rima não foi intencional (mas as coisas se deram exatamente nessa ordem).

Saindo de casa apenas por extrema necessidade, vejo muita gente a descumprir as normas sanitárias de uso de máscaras ou distanciamento social – certamente gente que não perdeu nenhum parente ou não sentiu saudade de um filho.

5 de maio, dia dela

Familiares e amigos/as presentes ao parabéns virtual. Captura de tela. Reprodução
Familiares e amigos/as presentes ao parabéns virtual. Captura de tela. Reprodução

 

Um passarinho pousou e o outro ficou olhando, nem de perto nem de longe, mas certamente desconfiado. “Essa água é boa?”, perguntou o segundo. “É sim, pode confiar, pode vir”, respondeu o que já se esbaldava, matando a sede numa tarde “quente pra caralho”, como diria o poeta Celso Borges, sobre qualquer tarde em São Luís do Maranhão.

A história dos passarinhos, com o diálogo e a dramatização dos mesmos, quem me contou foi minha namorada, com quem tenho me alegrado ao ver os passarinhos pousando para beber a água – água que passarinho bebe, pura, sem qualquer adoçante, para o bem da saúde dos beija-flores e outros que têm aparecido – em uma flor de plástico que dependuramos na janela da sala, antes de a quarentena não mais nos permitir sair para comprar supérfluos.

Se o “papo de passarim” (evoé, Zé Renato e Xico Chaves!) foi real ou é invenção de sua imaginação fértil não sei dizer. Mas atesto a veracidade mesmo sem tê-lo ouvido – eu não estava na sala quando se deu e temos falhado sistematicamente na tentativa de fotografar algum passarinho bebendo água.

Compartilho esta história da intimidade da quarentena por que hoje é aniversário de Guta Amabile, companheira que me adoça a vida com esse tipo de delicadeza e o mel de seus olhos, que me fazem passarinho sempre embriagado de beber em sua flor.

Insisto em falar em quarentena não para dar um tom melancólico ao texto – do piegas, impossível escapar –, mas para dizer o quanto tem sido um período de aprendizado e ressignificação: escrevo esta espécie de declaração de amor em prosa enquanto asso um bolo de maçã no forno.

Em tempos de normalidade, muito provavelmente teríamos comprado um bolo num supermercado, panificadora ou coisa que o valha. Ou seja, a quarentena tem nos tornado uma espécie qualquer de artesãos nas mais diversas especialidades. Como li outro dia numa rede social: uma geração de chefs está surgindo. Certamente há gente pirando, sem saber lidar com a situação, como li, também outro dia, também numa rede social: vai ser good vibes assim no inferno! Como tudo na vida, cada um lida de uma maneira, da maneira que quer ou que pode.

Obviamente este 5 de maio não saiu como o planejado, mas o que saiu como tal neste 2020 cujo roteirista está caprichando nas surpresas? Lógico que eu adoraria, após nossos expedientes e a aula dela, passar para parabenizar pessoalmente minha sobrinha Mayara, que também aniversaria hoje e, na sequência, encontrar parentes e amigos num bar. Mas termos que nos virar em casa mesmo não significa que o natalício dela tenha sido cercado de menos amor e carinho.

Pela manhã, por exemplo, conseguimos reunir virtualmente alguns parentes e amigos, entre os que iriam ou não ao bar, por um motivo ou outro. Entre os “parabéns a você” e sinceras declarações de afeto, vi a emoção em seu sorriso e me emocionei como se fosse meu próprio aniversário – mas a este cronista, no rumo dos 40, basta um por ano.

“A vida é a arte do encontro”, viva Vinícius, que certamente ergueria o copo, saudando-nos com um brinde e desejando felicidades, após ouvir a história de como nos conhecemos, provavelmente contada conosco sentados às mesas na mesma calçada em que a vi pela primeira vez, quando noutra tarde quente de domingo, vi-a passar, como se desfilasse e transformasse a Godofredo Viana numa passarela, ela desde então miss universo de meu coração.

Foto: Zema Ribeiro
Foto: Zema Ribeiro

Obra do acaso, este deus que nos rege desde então, hoje um camaleão po(u)sou na árvore que contemplamos “da janela lateral do quarto de dormir” (Lô Borges e Fernando Brant). Se ainda não tivemos sucesso em fotografar as avezinhas, com o réptil a história foi diferente.

Em tempo: o dia ainda não acabou, mas hoje já ouvimos duas vezes o Clube da esquina (1972), o antológico encontro de Milton Nascimento, Lô Borges e toda a patota mineira que deu nome ao disco e ao “movimento”, que tem sua música predileta na história da música popular brasileira: Um girassol da cor do seu cabelo (Lô Borges e Márcio Borges).

Quarentena, amor e arte

Aquarela de Carolina Graça Mello fotografada por Zema Ribeiro
Aquarela de Carolina Graça Mello fotografada por Zema Ribeiro

“O valor de uma fotografia só o tempo dirá”, dizia o reclame de um foto, uma espécie de estúdio em cidades do interior onde a tecnologia da revelação ainda não havia chegado, em tempos pré-qualquer celular fotografa qualquer coisa e posta em qualquer rede social.

A frase, pintada na lateral da casa de Papai Rui (ou de alguma casa próxima à dele, caso me falhe a memória), foi minha primeira, digamos,lição de fotografia. Eu era um moleque a passeio por Carema, povoado de Santa Rita/MA, terra natal de mamãe. Só quase 30 anos depois viria a ser aluno de Francisco Colombo na disciplina da graduação em Jornalismo.

Gosto de fotografias não posadas. Captam, a meu ver, mais espontaneidade. Para o bem e para o mal. Para alegria ou tristeza dos retratados.

Um dia, num sarau de RicoChoro ComVida na Praça, no Desterro, o amigo Targino fez um clique que me/nos surpreendeu. Já havia sido fotografado por ele anteriormente e tecido elogios a seu talento, prontamente respondidos com a sincera modéstia de que as virtudes eram da máquina fotográfica (nunca são).

Targino fotografara a mim e a namorada num sorriso lateral cuja espontaneidade é garantida em parte pela falta de aviso. Estamos ambos, um olhando para o outro, cada qual a seu posto ou ângulo evocando a “vaca olhando cuia”, expressão com que tão poeticamente Elizeu Cardoso traduziu nossos olhares cúmplices, não necessariamente naquela ocasião.

Resumindo: adoramos aquela foto.

Corta para a pandemia de coronavírus que assola o mundo e nos confina em casa no presente ano da graça de 2020.

A jornalista Carolina Graça Mello, para sobreviver mentalmente saudável à quarentena, pintou um autorretrato em aquarela e postou numa rede social. Conhecia seu trabalho de ilustradora desde quando ela mesmo desenhava as imagens que acompanhavam textos postados em um blogue que ela alimentava há já nem lembro quantos anos, mas menos do que vocês imaginam e pensam em fazer piada com nossas idades. Lembro-me somente de serem textos de tom confessional, com pendor para a poesia, de que nós, adolescentes ou pouco mais que isso, não escapamos. Ao menos não na nossa época de adolescentes ou pouco mais que isso, quando a vida não se resumia a uma cara abaixada enfiada num visor de lcd.

Gostei da aquarelautorretrato e encomendei a minha. A nossa. Mandei dois retratos a ela, com a recomendação de que o presente para a namorada fosse surpresa para mim também.

Qual o retrato de Targino e o autorretrato de Carol, também gostamos bastante do retrato de nossos sorrisos em aquarela.

Dito isto, e com a preocupação de qualquer cidadão razoavelmente sensato, não posso me esquivar de tornar este texto uma espécie de panfleto sobre a importância do isolamento como forma de frear a propagação do vírus, ainda uma incógnita para a comunidade científica mundial. Parodio aquela frase lida na infância e afirmo, entre a dúvida e a esperança, mas sempre com amor: o valor de um sorriso só o tempo dirá.

Rebatismo

Foto: Morgana Amabile
“O amor na vida adulta devolveu-me à paixão da infância”. Foto: Morgana Amabile

 

Anos-luz de distância dos talentos de Nelson Rodrigues e Xico Sá, para citar dois craques da crônica ludopédica, arrisco-me no terreno para o qual sirvo sequer para gandula. E aqui me toma de assalto a primeira dúvida: esta seria mesmo uma crônica ludopédica? Ou de costumes? Ou sentimental, um poema em prosa, uma declaração de amor? Sabe Deus, que protege mesmo os que nEle não acreditam.

Ontem (3) fui ao Castelão assistir a partida na qual o Moto Club de São Luís sagrou-se vencedor, por três tentos a um, contra a equipe do Pinheiro Atlético Clube. O rubro-negro assumiu a liderança do campeonato maranhense. O time ilhéu abriu o placar aos oito minutos com Geovane e ampliou aos 36 com Ancelmo Jr.; com Leonardo, o PAC diminuiu, de pênalti, aos 41. No segundo tempo, Jadilson, também de pênalti, sacramentou a vitória do Papão do Norte, aos 27 minutos.

Desde a adolescência eu não ia a um estádio torcer pelo Moto Club, paixão de infância, influência de minha mãe. Um episódio lamentável me afastou: fui ver um jogo do rival, o Sampaio Correa, acompanhado de dois tios, eu em trajes neutros, eles uniformizados; ao passarmos por uma torcida motense, antes de acessarmos as arquibancadas, torcedores, apontando-nos os canos das bandeiras, marcharam em nossa direção, aos gritos de “uh, vai morrer!”. Podia ser apenas uma brincadeira, vai saber. Minha cabeça de adolescente sem parentes importantes e vindo do interior entendeu como a quase consumação de uma situação de violência nos estádios que vez por outra víamos (e vemos) no noticiário, infelizmente.

Segui acompanhando futebol e torcendo pelo êxito maranhense em campeonatos como o Brasileiro e a Copa do Brasil, esperando que aqui e acolá, Moto Club, Sampaio, Maranhão, Imperatriz ou qualquer outro que aparecesse, alçasse nosso estado a um patamar mais elevado, uma campanha destacada na Copa do Brasil, uma presença na série A do Brasileirão – de lá para cá ainda não aconteceu, mas tudo tem seu tempo, ela sempre me ensina.

Mas não há trauma que um amor não cure e o amor na vida adulta devolveu-me à paixão da infância: motense roxa, ela me fez voltar ao seio motense. Amor rubro-negro pintado pelo vermelho de seu batom com o café preto que tomamos no estádio (acreditem: ontem tomamos um cafezinho no Castelão, não é recurso literário para deixar a crônica mais interessante) antes da primeira cerveja, o fone de ouvido dividido, eu com o lado left, ela com o lado right, a acompanhar a transmissão da Rádio Timbira (onde este cronista apaixonado divide dois programas), em cujo intervalo, no tour pelas rodadas de outros campeonatos estaduais, Jauber Pereira mandou-nos um alô – inclusive à filha dela (também motense e uniformizada com a camisa que ela mesmo customizou) que, de férias na Ilha, fez nosso retrato.

O time do Moto não é bom; no máximo deu sorte nestas duas primeiras rodadas do campeonato, angariando duas vitórias, chegando a seis pontos e a líder. Ontem parecia traduzir em campo os versos de Belchior que eu estampava no peito, em vermelho e preto: “eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”. Um jogo torto, mas que venceu, e é isso o que importa, contradigo-me, logo eu, um eterno admirador da seleção brasileira de 1982.

Um casal feliz e/ou unido não necessariamente é formado por dois torcedores do mesmo time. Mas que isso facilita bastante é inegável, já que os dois sentem o mesmo naqueles ditos do padre: na alegria e na tristeza. Ganhando, comemora-se junto; perdendo, ninguém zomba da cara do outro (ou os dois zombam da cara um do outro). Mas disto só saberemos depois, já que após meu revival motense ainda não sabemos o que é perder.

Perdoem brincar com o clichê, ainda que soe piegas: sorte no jogo, sorte no amor.

Amor pop

Beijo estranho. Capa. Reprodução

 

Não faz muito tempo, amigos, namorados e crushes – antes de a expressão existir – trocavam fitas cassetes com o que mais gostavam em termos de música. Hoje trocam links do youtube em profusão, através do whatsapp. Saudosistas podem afirmar que não há charme nessa instantaneidade toda, que bom mesmo era esperar sabe-se lá quanto tempo pelo grito do carteiro no portão. Neste caso, pouco importa o meio, vale mais a mensagem: o mais importante é o verdadeiro amor, como diria o compositor em título que, escrito pelos muros, acabou virando hit de redes sociais.

Tema mais cantado em todos os tempos, em prosa, verso e música, o amor é a espinha dorsal de Beijo estranho [Deck, 2017], novo álbum do Vanguart, banda mato-grossense formada por Helio Flanders, Reginaldo Lincoln, David Dafré, Fernanda Kostchak e Julio Nganga. No disco a banda conta com o reforço de Loco Sosa (bateria), além de diversas participações especiais, entre as quais destacam-se Jorge Helder (contrabaixo) e Thiago França (Metá Metá, sax e flauta em Quando eu cheguei na cidade).

O amor é pop e esparrama-se por cada faixa de Beijo estranho, longe da pieguice. São baladas facilmente assobiáveis, radiofônicas. Todas as faixas são assinadas por Flanders e Lincoln, sozinhos ou em parceria.

“Meu coração queimou devagar/ senti uma vontade subindo do chão”, a faixa-título (Flanders) abre o disco. Em Todas as cores (Lincoln), aconselham: “não vá se converter acreditando em mágoa/ não vá ter medo de se apaixonar primeiro”. O clássico Folhas de relva é citado em Felicidades (Flanders/ Lincoln): “o inferno é bom/ e o teu céu um sangue roxo/ quente eu sinto a tua relva/ Whitmânicas visagens!/ Não tenho medo”. O medo de amar é o medo de ser livre, diria outro compositor.

E o meu peito mais aberto que o mar da Bahia (Flanders/ Lincoln) é um título que diz tudo. Como o amor, não carece de explicação. “Quando eu chego em casa e você não está/ penso em te procurar mesmo sabendo que vais voltar/ se um dia foi diferente/ é porque tudo era diferente/ o teu amor me pôs de pé”, diz a letra, em melodia solar, quente. Como o amor.

De Beijo estranho poderíamos seguir transcrevendo trechos de letras. Mas as que trouxemos até aqui bastam para dar uma ideia de sua abordagem romântica, apaixonante – quem não conhecia a banda logo se toca do tempo perdido.

Os tempos são líquidos, o amor não. O Vanguart durará mais que as mensagens trocadas no whatsapp – o efeito de sua música nos corações apaixonados também. A dica é: para quem quer reconquistar um antigo amor, conquistar um novo amor ou se declarar para o crush, use Vanguart sem moderação.

Para quem não está convencido, um último exemplo: “Ardo/ sou um trem desgovernado/ que parte/ faiscando as tuas estradas/ sem pausa/ te conheço mais a fundo/ com calma/ tua risada, minha paixão/ me bate, queima, aperta, cheira, marca/ eu preciso de você/ (algo me faz lembrar, algo me faz querer)”, diz a letra de Eu preciso de você (Flanders).

Se o antigo compositor baiano já dizia que “quem não gosta de samba/ bom sujeito não é” e Beijo estranho não te ajudar na conquista, é melhor desistir: não vale a pena quem não gosta de Vanguart.

*

Veja o clipe da faixa-título:

José Antonio,

Foto: ZR (20/11/2015)
Foto: ZR (20/11/2015)

há um mês você chegou, prematuro, apressado, se antecipando às previsões, feito um atacante que adivinha o pensamento do zagueiro e descobre o melhor flanco para eliminá-lo e marcar.

Desde então, em minha cabeça, rumino um texto​, ou algo que o valha,​ para te saudar. Incontáveis vezes abri o editor de texto, às vezes escrevia umas linhas​ num computador, ou no celular​, mas nada me agradava. Não sei se é alguma espécie de bloqueio ou se é só o fato de faltarem palavras para exprimir qualquer sentimento: elas são nada perto do que realmente importa e do que quero (e não consigo) dizer.​

Foi a maior emoção da minha vida. Está sendo. E ​sei que ​para sempre será.

Tenho muito a aprender contigo. A ser uma pessoa melhor, inclusive. “Filhos são professores dos pais” é mantra repetido sempre por minha sogra, quase o machadiano “a criança é o pai do homem”.

“A criança traz o pão embaixo do braço”, disse-me um amigo quando lhe pedi trabalho – poucos dias depois o trampo apareceu. Agradeci a ele e a você.

Entre noites mal dormidas e a correria cotidiana, os longos intervalos em que te olho, quieto, sorrindo pra lua, no berço, no carrinho ou em meus braços – até você abrir o berreiro anunciando a hora da próxima mamada, infalível relógio.

Tão ansioso quanto fiquei com a gravidez, confesso que agora estou por te ver logo correndo pela casa. Ainda não sei se vais gostar de meus livros e discos – embora desde sempre, eu te embale ouvindo (e te fazendo ouvir) choro – ou de comer ostras na praia. Torço para que sim. Mas se não, espero saber respeitar.

Um mês! ​Obrigado pelo aprendizado, “papa”! Obrigado pelo amor! Obrigado por tudo​! Obrigado por você!

Deus te abençoe!

Beijos do papai.

Boicotem quem boicota O Boticário!

 

Há quem pague caro e use tênis com o nome da coca-cola. Outros pagam centenas de reais em camisas oficiais do Flamengo, Barcelona ou Seleção Brasileira, para fazer propagandas de marcas de produtos de toda a sorte. Cada um/a, cada um/a, tou fora!

Em Eu, etiqueta, poema de Carlos Drummond de Andrade que li em alguma gramática do ensino fundamental, o poeta mineiro já se queixava do excesso de logomarcas a que estávamos submetidos. E era apenas o século XX.

Com um comercial exibido na tevê aberta, O Boticário causou a ira de homofóbicos e reacionários em geral. Os que defendem a cura gay e a família tradicional (seja lá o que isso for), que ainda falam em homossexualismo em vez de homossexualidade, mesmo a OMS já tendo, há tempos, retirado o primeiro de sua lista de doenças mentais.

O Boticário mostra algo real e os habitantes da babacolândia falam que “não têm preconceito”, “que têm amigos gays” e toda sorte de baboseiras típicas da intolerância. O pastor Silas Malafaia convocou boicote à empresa de cosméticos, à guisa de “pertencer a uma maioria” e de “preservar macho e fêmea”. Segundo o zoófilo, ops, evangélico, a campanha “é uma tentativa de querer ensinar crianças e jovens o homossexualismo” (sic), conforme notícia do Portal Terra.

As casas legislativas brasileiras estão dominadas por hordas de fundamentalistas. Nunca os vi criticar, por exemplo, a publicidade voltada ao público infantil, como forma de preservar nossas crianças. Certamente o lobby de seus financiadores de campanha pesa mais na hora de decidir a que pauta se apegar.

Em vez de se juntar a quem prega o ódio, este blogue lança a campanha que intitula este post: boicotem quem boicota O Boticário!

É fácil pregar o ódio em nome de Jesus. Difícil é amar o próximo, como o mesmo Cristo ensinou. Ainda mais se esse próximo não for tão próximo assim. Se for diferente então, o próximo está condenado.

Não escrevo para fazer propaganda do Boticário, afinal de contas, não sou pago para isso e, em grande medida, o dia dos namorados é mais uma data caça-níquel no calendário do consumo. Aos preconceituosos de plantão, recomendo outros poetas: “qualquer maneira de amor vale a pena”, “ame, seja como for”, desde que o amor esteja cheirosinho, usando Boticário ou outra marca qualquer – vale até o bom e velho sabão de andiroba, comprado a quilo na quitanda mais próxima. Como diria Márcio Greick, “o mais importante é o verdadeiro amor”.

*

Abre o post a antológica, sempre rodando em um k7 imaginário, best of particular, Largo do boticário, linda canção sobre linda paisagem carioca, de Milton Carlos, saudoso irmão de Isolda, ambos fornecedores de pérolas para o repertório de Roberto Carlos.

Vai Juliano, ser Gauche na vida

Quando Juliano Gauche lançou, com o Duo Zebedeu (os violonistas Fábio do Carmo e Julio Santos), Hoje não (2009), inteiramente dedicado à obra do também capixaba Sérgio Sampaio, impressionou-me certa dubiedade: o disco exalava o homenageado sem, no entanto, relegar Gauche à condição de mero cover (apesar da semelhança física). Havia ali respeito e devoção pela obra de Sampaio, mas uma voz personalíssima do intérprete.

Antes, ele já tinha sido vocalista da Solana. Depois Juliano Gauche, já morando em São Paulo, lançou um disco solo (2013) que levava apenas seu nome. Quase completamente autoral, o disco voltava a homenagear o ídolo em Sérgio Sampaio volta, de Tatá Aeroplano, cabeça do Cérebro Eletrônico, seu produtor.

Uma cópia de Juliano Gauche rodou muito entre lá em casa e o trânsito, sem que eu nunca tenha me arriscado a dizer nada sobre o ótimo disco. Este textinho tampouco é tentativa de fazer isso tardiamente. O original eu só consegui comprar recentemente, numa ida ao Recife. Festejei o achado, como convém a um homem de vícios antigos.

Hoje, a revista Tpm lançou o videoclipe de Cuspa, maltrate, ofenda, porrada de amor que abre Juliano Gauche, dedicada à sua esposa e produtora executiva Sil Ramalhete (que aparece no clipe). Embora a publicação tenha anunciado exclusividade, roubo-o de lá e penduro-o aqui.

Um bonito filme sobre o amor

Ao ver Praia do Futuro, novo longa de Karim Aïnouz, espectadores precisam enxergar além de rótulos

Rodado entre o Brasil e a Alemanha, Praia do Futuro [2014, drama, 90min.] não é um filme gay ou homossexual e erra quem tenta rotulá-lo. Como erram os que deixam a sala após a primeira cena de sexo entre Donato (Wagner Moura) e Konrad (o alemão Clemens Schick).

O filme é antes uma obra sobre o amor e seus encontros e despedidas. E sobre as rupturas que a vida – e o amor – exige.

Nem tudo está dado, de cara. O cinema de Karim Aïnouz exige do espectador. Talvez os que deixam a sala ao ver dois homens, másculos, se beijando, se pegando pra valer, não mereçam a grandeza de sua obra.

O roteiro é bom, a fotografia valoriza a paisagem e os personagens. Praia do Futuro é um filme bem feito, que força os espectadores a enxergar para além de rótulos. As cenas de sexo são merecedoras de atenção para além da polêmica: plasticamente aliam a “violência” e a “brutalidade” tipicamente masculinas e a “doçura” e a “delicadeza” tipicamente femininas. Mas dizer isso ainda não as traduz perfeitamente, já que estamos justamente falando em fugir de rótulos.

O diretor brasileiro radicado em Berlim é um provocador. Realiza um belo filme e põe em xeque a onda conservadora que toma de assalto o país através de figuras nefastas como os deputados Jair Bolsonaro e Marcos Feliciano, para ficarmos apenas nestes e nos reaças que repercutem suas vozes e têm as suas repercutidas, em retroalimentação danosa. Praia do Futuro não empunha bandeiras em prol de nada, não é panfletário, mas apresenta muitas questões, quem tiver bons olhos e ouvidos perceba.

Donato é um militar – ironia fina, lembremos do sucesso avassalador de Tropa de Elite 1 e 2, estrelados justamente por nosso protagonista – do Corpo de Bombeiros cearense, que dá expediente na praia fortalezense que batiza o filme. É homossexual, mas disso só saberemos depois. Após sua primeira perda como salva-vidas – não consegue resgatar o amigo motoqueiro de Konrad – entrega-se a uma paixão avassaladora, deixando para trás a família, o emprego, o Brasil.

Chega a Berlim para uma temporada, desiste de voltar. Arruma trabalho. E tempos depois é surpreendido pela chegada do irmão, para quem Donato é(ra) um herói – o Aquaman. Ayrton (Jesuíta Barbosa) parte para a Alemanha em busca de notícias e para levar uma: a da morte de sua mãe, há cerca de ano e meio.

Donato parte – mas eis outra coisa que o filme não diz, não diretamente – para se livrar da culpa (a primeira falha contabilizada), da opressão (quer ambiente mais opressor que o militar?) e em busca de um sonho, de um amor verdadeiro. Piegas? Não nas mãos de Karim Aïnouz, diretor de Madame Satã [2001] e O céu de Suely [2006], entre outros.

Em tempo: vi o filme domingo passado (25) à noite, no São Luís Shopping. Comprei o ingresso com cerca de uma hora de antecedência. Não rolaram perguntas sobre a minha vontade de ver o filme nem o carimbo de “avisado”, como supostamente ocorre em algumas salas, conforme fotografias e relatos viralizados em redes sociais. Vi gente levantar e ir embora após a primeira cena de sexo entre Donato e Konrad. Vi mais gente levantar e ir embora após outras cenas de sexo. Deixaram de prestigiar um ótimo filme de um cineasta que já conta ótimos serviços prestados à sétima arte nacional.

O lirismo de Paulo Mendes Campos revisitado

O amor acaba. Capa. Reprodução

O título O amor acaba [Companhia das Letras, 280 p., 2013] pode soar pessimista, mas ao leitor menos avisado, que não conhece o autor, ou dele não lembra, será quase certeza do contrário: amor à primeira leitura, o amor começa.

Um dos “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, como classificou o amigo Otto Lara Resende – um deles – sobre grupo completado por Hélio Pelegrino e Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos é desde sempre um dos maiores cronistas do Brasil.

Talvez dizer isso hoje soe fácil, a crônica, este brasileiríssimo gênero, caindo em desuso; mas não o era quando o mineiro ocupou redações cariocas, tempos de Antonio Maria, Rubem Braga, de Drummond e dos próprios colegas citados, para ficarmos em poucos – e grandes – exemplos.

As “crônicas líricas e existenciais” – o subtítulo – do volume (leia três textos, incluindo a crônica-título) revisitam um Paulo Mendes Campos entre o amor, o cotidiano, a boemia, o futebol, a poesia. Poesia, aqui, deixemos claro, tanto o escrever em verso responsável pela estreia literária do autor, quanto seu texto em prosa – as crônicas deste volume carregadas de… poesia!

Selecionadas por Flávio Pinheiro – que assina a apresentação do volume. Ivan Marques assina o posfácio –, as crônicas deste O amor acaba foram publicadas originalmente em jornais e revistas entre 1951 e 1990, a maioria em Manchete, mas também no Correio Paulistano, Diário Carioca e Jornal do Brasil, além dos livros Homenzinho na ventania (1962), Os bares morrem numa quarta-feira (1980) e Diário da Tarde (1981) – recentemente relançado pelo Instituto Moreira Sales, no formato pensado pelo autor, assunto para outra resenha. Como também merece outra resenha O mais estranho dos países – Crônicas e perfis (2013), também publicado pela Companhia das Letras.

Com sua leveza e lirismo, Paulo Mendes Campos permanece atual e sua leitura tem muito a nos ensinar, de estudantes do ensino fundamental – onde o conheci em livros de gramática e paradidáticos – a jornalistas, mas não só. A quem se interessa pela vida e pelo que de mais prosaico esta tem. Ou a quem precisa, vez por outra, dar um tempo no corre corre para observar o que realmente importa: o canto de um passarinho, o sorriso de uma criança, um boteco com os amigos, um beijo em quem se ama, uma crônica de Paulo Mendes Campos.

Como é que se diz eu te amo

[O Estado do Maranhão, Alternativo, ontem]

10 coisas que eu podia dizer no lugar de eu te amo, um disco sobre o amor que foge da pieguice

Kléber Albuquerque escreve e canta o amor sem soar cafona

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO

As 10 coisas que eu podia dizer no lugar de eu te amo [Sete Sóis, 2012] são, na verdade, 14, este o número de faixas do novo disco de Kléber Albuquerque, um de nossos mais interessantes compositores da atualidade.

O repertório, inteiramente autoral, é quase todo inédito – Kléber recria Tevê, parceria com Zeca Baleiro, gravada por ele em O coração do homem bomba, e Devoluto, parceria com Sérgio Natureza, homenagem a Celso Borges, gravada em Música, livro-disco do poeta, de que ambos participam – aqui o reencontro de Kléber e Baleiro, que canta nas duas regravações. Outros parceiros que comparecem são Sérgio Lima (Brincadeira de amor), Lúcia Santos (All Star e Terra do Nunca) e Gabriel de Almeida Prado (Sujeito objeto). Elaine Guimarães divide com ele os vocais em Vazante – momento sublime, de versos como “lágrima/ água com navalha/ migalha de mar/ mágoa é água parada”. Entre os músicos André Bedurê (contrabaixo), Michelle Abu (percussão), Ricardo Prado (teclados) e Rovilson Pascoal (guitarras).

É um disco sobre o amor, o que entrega o título e o colorido florido da chita (maranhense?) da capa – o próprio Kléber assina produção musical e projeto gráfico, este com Vivi Correa –, mas fugindo do piegas. “Essa tal de poesia/ é coisa que vicia/ e maltrata o coração/ faz rimar fel e folia/ faz amar quem não devia/ dá rasante na razão/ mas em comparação/ com outras profissões/ vê mais sol/ vê mais lá/ vê mais dó”, canta em Maquinário, sobre o próprio ofício.

Nem só de amor vive o artista, que brinca com gramáticos e dicionaristas em Sujeito objeto: “Ei, Pasquale/ por que o andar dessa menina/ sempre rouba palavras da minha boca?/ Ei, Aurélio/ por que o olhar dessa garota/ planta versos na minha cabeça oca?/ Michaelis/ então me diga o motivo/ de tantos adjetivos”. Quer dizer, é sobre o amor, sim. Tevê é sarro com a sociedade consumista: “comercial de xampu/ cerveja e celular/ mentiras para crer/ e credicard”. No fundo, é também sobre o amor, aquele amor-preguiçoso esparramado no sofá da sala.

São 15 anos de carreira, inaugurada em 1997 com 17.777.700. 10 coisas é o sexto disco de um dos compositores preferidos de nomes como Ceumar e Rubi, para ficarmos em duas das melhores vozes que já o interpretaram. São mais de 15 anos dedicados à música, que o amor ao ofício não começa no disco. A continuar nestas trilhas, o número de apaixonados por Kléber Albuquerque e sua obra só tende a aumentar.