Com debate na UFMA Flávio Reis lança hoje “Crise da Democracia – Dois Ensaios”

“Crise da Democracia – Dois Ensaios”. Capa. Reprodução

Um dos mais brilhantes pensadores nascidos no Maranhão, o professor Flávio Reis lança hoje (14), às 17h30, no Auditório Ribamar Caldeira (Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão), a edição impressa do livro “Crise da Democracia – Dois Ensaios”, disponibilizado em junho para download gratuito no site da Editora Passagens.

A obra “é fruto de uma pesquisa realizada no âmbito do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA”, ao qual Reis é vinculado, “junto com a professora Arleth Borges, sobre A Crise Atual da Democracia. O projeto, vinculado ao GAL (Grupo de Estudos em Democracia, Estados e Territorialidades na América Latina), foi basicamente uma tentativa de compreender, à luz da literatura mais recente no campo da ciência política, o quadro que se colocou na década de avanço da extrema direita no mundo, com um discurso antidemocrático, antiglobalização, repleto de componentes racistas e voltados para o combate da diversidade cultural, de gênero, de crenças religiosas”, como afirma o autor na Introdução.

Os dois ensaios a que se refere o subtítulo da obra são “Regressão Democrática e Teoria Política” e “O Brasil na Encruzilhada: Visões da Crise Política”. Um debate com o autor, a colega de departamento Arleth Borges, o jornalista Emílio Azevedo (Agência Tambor) e o professor Wagner Cabral (do Departamento de História da UFMA) marcará o lançamento.

serrote ajuda a pensar o bolsonarismo

Serrote. Capa. Reprodução
Serrote. Capa. Reprodução

Notícia nem tão quente para alguns, mas com certeza interessante para os/as que valem a pena: a revista serrote, do Instituto Moreira Salles, publicou uma edição especial quarentena, com download gratuito em seu site.

Escrevo em meio à leitura, chamando a atenção especialmente para dois ensaios do volume: “O líder fascista como encarnação da verdade”, de Federico Finchelstein (professor de história na New School for Social Research, em Nova York, autor de Do fascismo ao populismo na história e A Brief History of Fascist Lies); e “Homo bolsonarus“, de Renato Lessa (professor de filosofia política da PUC-Rio, investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e pesquisador visitante do Centre Roland Mousnier, da Lettres Sorbonne Université (antiga Paris IV) em 2020-2021. Publicou recentemente O cético e o rabino: breve filosofia sobre a preguiça, a crença e o tempo (LeYa, 2019).). Ambos, a seu modo, didáticos e bem-humorados.

Destaco trechos de um e outro, respectivamente:

Uma das lições centrais da história do fascismo é que a mentira leva à violência política extrema. Hoje a mentira voltou ao poder. Esta é, agora mais do que nunca, uma lição-chave da história do fascismo. Se quisermos compreender o nosso problemático presente, temos que prestar atenção na história dos ideólogos fascistas e no modo e no motivo pelo qual sua retórica levou ao Holocausto, à guerra e à destruição. Precisamos que a história nos lembre como foi possível haver tanta violência e racismo num período tão curto de tempo. Como os nazistas e outros fascistas chegaram ao poder e assassinaram milhões de pessoas? Espalhando mentiras ideológicas. Numa proporção significativa, o poder político fascista surgiu da cooptação da verdade e da disseminação generalizada da mentira.

Hoje assistimos à emergência de uma onda de líderes populistas de direita em todo o mundo. E, como no caso dos líderes fascistas do passado, grande parte do seu poder político provém da impugnação da realidade, da defesa do mito, da raiva e da paranoia – e da promoção da mentira.

Um eixo central dessa história, que parece se repetir em países como os Estados Unidos e o Brasil, é a ideia de um líder que se considera a encarnação da verdade e, com suas mentiras, enfraquece a democracia e chega até a estimular a expansão da covid-19. Essa crença tem consequências letais e nos ajuda a entender melhor a situação do Brasil. Isto é, a partir da análise das mentiras do fascismo no passado podemos entender melhor nosso estranho presente. O passado e o presente apresentam odiosas convergências na forma como o poder nega a realidade e como essas negações acabam transformando-a, provocando e até mesmo ampliando desastres. Os fascistas fantasiaram novas realidades e depois transformaram a verdadeira. Seus sucessores, como Donald Trump e Jair Messias Bolsonaro, querem fazer a mesma coisa.

&

O Homo Bolsonarus é, também, um fundamentalista do caso concreto. Embora possa abrigar alucinações paranoides – aliás, quem não? –, como animal ativo, orienta-se pelos inimigos e alvos a abater. No combate, dado o horror à mediação, as abstrações não são bem-vindas. A bem da verdade, as duas modalidades de horror alimentam-se reciprocamente, já que mediações são materializações de abstrações. Daí a dificuldade em compreender como instituições desprovidas de poder material – cortes constitucionais, por exemplo – podem sobrepor-se a mandatários populares e à força das armas. Isso é virtualmente inconcebível aos olhos do HB. Creio mesmo tratar-se de um limite cognitivo a ele inerente.

(…)

O HB quer fechar o STF e o Congresso, empastelar a imprensa, ocupar militarmente o Poder Executivo e criminalizar os adversários políticos. Tudo isso em nome da liberdade. Antes de julgá-los inconsistentes, importa indagar pelo que tomam a liberdade. Um indício: o HB ama pescar em águas proibidas, odeia pagar impostos e obrigações trabalhistas, deseja dar curso livre e inculpado a seus preconceitos e às ações que eles autorizam e, por vezes, exigem andar sem máscaras em plena pandemia e usufruir do direito de se contaminar com o coronavírus. A liberdade natural, desejada pelo HB, exige a desativação das instituições e normas que garantem toda e qualquer liberdade política e civil. Embora represente-se como uma rocha impermeável, o HB é, no fundo, muito confuso. A tal índole libertária é o complemento comportamental – ou momento subjetivo – do desvínculo entre vida social e estrutura normativa da esfera pública.

É preciso ter muito cuidado. O homo bolsonarus, embora sujeito à ironia e ao humor corrosivo, é hospedeiro da violência. Temo que tenha necessidade imperiosa de exercê-la, como condição de integridade existencial. A reinvenção da democracia entre nós, se e quando vier, não poderá evitar a difícil tarefa de neutralizar as possibilidades de expansão e reprodução do homo bolsonarus. Julgo, no entanto, que em alguma medida ele permanecerá entre nós, como contribuição indelével do consulado corrente da extrema direita ao longo passivo das iniquidades brasileiras. Para tal semeadura, há húmus mais do que suficiente.

*

Para baixar a revista, clique na capa.

Em tempo: o terceiro concurso de ensaios da serrote segue com inscrições abertas até 1º/9; serão selecionados três textos, com prêmios entre R$ 4 mil e 10 mil. Saiba mais no regulamento.

O silêncio do boi e a voz do poeta

Boi. Capa. Reprodução
Boi. Capa. Reprodução

O jornalista e poeta Celso Borges é autor de pelo menos um clássico da música popular produzida no Maranhão, sobretudo no período junino. Muitos cantam e assobiam, mas poucos se ligam que ele é parceiro de Zeca Baleiro e do saudoso percussionista argentino Ramiro Musotto em A serpente (Outra lenda), de versos como “eu quero ver/ quero ver a serpente acordar/ pra nunca mais a cidade dormir”, gravada por Baleiro em seu álbum Pet shop mundo cão (2002).

Seus poemas-toadas, registrados nas páginas de seus livros, ou gravados por vozes como a de Cláudio Lima (Boi tarja preta, parceria com Alê Muniz, gravada em Rosa dos ventos, de 2017), vez por outra trazem ácidas críticas ao sistema político ou mesmo à degeneração de grupos de bumba meu boi, que veem a originalidade diluída, transformando-se em “boizinhos de butique” para “turistas de pacote”, conversa pra boi dormir pra inglês ver.

Se A serpente (Outra lenda) não figura na coletânea Boi (Editora Passagens, 2020, 56 p.; disponível para download gratuito no site da editora, bem como todos os títulos por ela editados) não faltam bons motivos para baixar o volume e lê-lo. A obra integra a coleção “Livrinho também é livro”, coordenada por ele e a editora Isis Rost, que já publicou os títulos Rua morta, de Luís Inácio Oliveira, e O declínio da narrativa, dela, todos em 2020, todos durante o período de isolamento social imposto pela pandemia de covid-19.

Em Boi, Celso Borges revê poemas e letras de música que têm o bumba meu boi como mote, escritos por ele ao longo dos últimos 25 anos, “tempos depois do compositor Giordano Mochel me dizer que o nosso coração pulsava no ritmo do boi. Eu já sentia isso naquela época, mas a certeza dessa verdade cresceu mais e mais nos anos seguintes”, anota o autor em “O silêncio do boi não é do boi”, à guisa de prefácio. Ele abre o texto: “Não ouvimos as toadas, matracas e zabumbas dos bois do Maranhão em 2020. Esta é a primeira vez na história, desde quando o boi se apresenta em quintais, terreiros, largos ou arraiais da cidade, que ouvimos apenas o silêncio ensurdecedor de nossa representação mítica mais potente. Este livrinho nasce dessa não voz, ou da poesia dessa voz na memória, ou do afeto que vislumbro a partir da falta do boi e suas zoadas essenciais”.

Com projeto gráfico e diagramação de Isis Rost, Boi é também uma coleção de representações do bumba meu boi, entre pinturas e fotografias, de nomes que vão de Pablo Picasso a Cícero Dias e Ribamar Rocha, passando pela xilogravura de J. Borges, entre outros. A capa apresenta o detalhe de uma pintura de Ciro Falcão sobre o São João do Maranhão.

[texto originalmente publicado no JP Turismo, Jornal Pequeno, de hoje (19)]

Artistas da rua

A medicina bate à porta

TENHO TANTA RAIVA DE TELEFONE que costumo atender com um rosnado.

— Blanc?

— Infelizmente.

— É o Baiano, meu nego. Mas se você vai escrever sobre isso, não esquece de registrar que meu nome é Wilson Flora, senão o pessoal lá na minha terra não acredita.

— Tá.

— Eu queria fazer uma rápida consulta médica, por telefone mesmo. É o seguinte:…

— Baiano, você sabe que eu detesto esse troço. Parei de clinicar na década de 70. Logo, o máximo que sou, hoje em dia, é uma espécie de palpiteiro com curso superior, que, no meu caso específico, foi bastante inferior.

— Mas é coisa simples. Andei bebendo demais e o médico me pediu tanto exame que eu comecei a passar mal só de ler a relação.

— Hum… Que tipo de exame?

— Glicídios, lipídios, adílios, otacílios…

— Você já bebeu hoje?

— Pra tomar coragem de ligar pra você. Eu tenho horror dessas conversas sobre doença.

— Eu também, Baiano. Parei por causa disso.

— Mas é diferente, Blanc. Você viveu durante anos essa dura realidade, eu diria mesmo heroica, nas condições em que se faz medicina em nosso país, e teve um papel preponderante, ainda que por pouco tempo…

— Higiênico.

— Hein?

— O papel. Você tá tentando me vender outro carro? Se essa conversa acabar com a descrição de um modelo 88 de caminhonete, uma joia, que apareceu na agência, em perfeito estado, um milagre etc., na próxima vez que a gente se encontrar, eu vou armado.

— Não, nada disso! Poxa, Blanc, até parece que eu, em minha honrada profissão, me comporto feito um escroto qualquer.

— Errou só por um pequeno detalhe: um escroto qualquer vende carro com um mínimo de consideração pela vítima. Você, não. Você é Medalha de Ouro em todas as modalidades de escrotidão, 4 x 100, com ou sem vara, em distância, em altura… Você apronta sacanagem até em jogo de peteca.

— Compreendo seu mau humor. O Vasco ainda não convenceu, o Edmundo é uma incógnita, e você…

— Isso não tem nada que ver com o Vasco.

— Tenho um favor pra te pedir. O cara que está monitorando meu quadro (gostou dessa?), quer… bem… sejamos diretos: um exame de próstata, e eu me recuso a permitir que um desconhecido me dede. Escolhi você.

— Quer que seja no Canecão, com show de mulatas, noite de autógrafos etc.?

— Só te peço que pense no meu caso com carinho. Bom, tenho que sair. Vou a uma dessas casas de instrumentos musicais.

— ???

— O médico disse que vou fazer uma verdadeira bateria de exames. Tô indo comprar um surdo e um apito. O laboratório que se exploda, mas minha bateria sem surdo e sem apito, nem pensar.

*

Aldir 70. Capa. Reprodução
Aldir 70. Capa. Reprodução

Crônica do imenso Aldir Blanc, que deixou o Brasil mais triste, sem graça e menos inteligente no último dia 4 de maio. A Mórula Editorial, que publicou cinco livros do compositor e cronista em 2016, por ocasião de seu aniversário de 70 anos, disponibilizou, gratuitamente, o e-book Aldir 70, reunindo algumas crônicas daqueles volumes. Acesse o site da editora para baixar.

Um despretensioso panorama

Penúltima página. Capa. Reprodução
Penúltima página. Capa. Reprodução

“Lendo esta série de entrevistas do Vias de Fato, com personagens já tão familiares (Gildomar Marinho, Bruno Azevêdo, Celso Borges, Ricarte Almeida), noto que o amálgama comum a todos eles e a todas as interlocuções é na verdade a ponte cultural que interliga tudo: a curiosidade insaciável de Zema Ribeiro.

Do choro à literatura, do teatro ao boi, da arqueologia cultural à agitação geracional, dos cancionistas aos samurais da edição independente, esgrimindo doses precisas de rigor e senso dionisíaco, os textos nos levam ao bar e à academia, ao terreiro e aos velhos cinemas Éden e Roxy, aos becos e às festas de reggae.

Principalmente, as entrevistas remontam um cenário cultural e social que se mostra imprescindível para compreender a parabolicamará que move o Maranhão, sua antena particular de compreensão do universo pelo filtro da poesia, da linguagem. As políticas da perseverança e da honestidade intelectual permeiam tudo, da compreensão profunda de Ricarte (“As pessoas vivem e morrem à míngua”) à visão cósmica de Celso Borges, leitor de coisas intangíveis, como a revista Coyote.

Haicais e boutades escorrem desses saborosos textos. “Eu não conserto versos por conveniência”, decreta Gildomar Marinho. É uma complexa teia de análise, mas, por um motivo de puro mistério, não é possível, na leitura dos textos, dissociar política de música, literatura de combate, visionarismo de consciência.

Leia e seja mais um destrambelhado conosco.”

*

No dia de meu aniversário, o site da Editora Passagens, da amiga-editora Isis Rost, disponibilizou o texto acima, a orelha de Jotabê Medeiros (CartaCapital, Farofafá) para Penúltima página: Cultura no Vias de Fato, que reúne 14 entrevistas e seis textos que publiquei entre 2009 e 2016, período em que colaborei com o jornal mensal Vias de Fato, um despretensioso panorama cultural do período, não restrito ao Maranhão. O prefácio do livro é de Flávio Reis.

De algum modo, o livro é uma forma de celebrar os 10 anos que o Vias de Fato teria completado ano passado e é publicado com apoio cultural da Equatorial Energia e um punhado de amigos que se dispôs a colaborar, a fazer a ideia ir pro papel. O livro já está disponível para download e o volume impresso chega em breve, cujo lançamento este blogue cabotinamente anunciará. Aguardem! Enquanto isso, baixem o e-book!

O lugar (acentuadamente pop) de Bruno Batista

Bagaça. Capa. Reprodução
Bagaça. Capa. Reprodução

 

A ilha, faixa que encerra Bagaça [2016, disponível para download no site do artista], quarto disco de Bruno Batista, é uma das mais bonitas declarações de amor a São Luís jamais escritas. O artista foge de clichês ao citar lendas e o cotidiano da cidade. “As barbas de Nauro saem pra passear” e “Montserrat Caballé não entendeu quase nada” estão entre os versos que trazem nativos e turistas que um dia pisaram suas ruas de paralelepípedos.

Nenhum homem é uma ilha e somente em seu quarto disco Bruno Batista abre seu leque de parceiros: Dandara, Demetrius Lulo e Paulo Monarco em Caixa preta, Alê Muniz e Luciana Simões (o casal Criolina) em Pra ver se ela gosta, e Zeca Baleiro em Nigrinha.

Bagaça é seu trabalho mais desbragadamente pop. Nas 11 faixas do álbum é possível perceber a bagagem de influências que moldou o cantor e compositor ao longo destes 12 anos de carreira, se contarmos a partir de sua estreia no mercado fonográfico, com o homônimo Bruno Batista [2004].

Maranhense nascido em Pernambuco, com férias da infância passadas no Piauí, hoje radicado em São Paulo após temporada no Rio de Janeiro, esta geografia afetiva se traduz musicalmente em Batalhão de rosas, toada de bumba meu boi rockificada que lembra a “areia branca” tema do caroço de Tutoia de Dona Elza, de saudosa memória. A faixa batizará o terceiro disco da cantora Lena Machado, a ser lançado este ano. A romântica Caixa preta evoca o Caetano político de Podres poderes.

O tambor de crioula ganha acento pop em Pra ver se ela gosta e Nigrinha tem ares caribenhos, de “amor sincero” em “novela das nove”, em diálogo com o “cinemúsica” de Blockbuster, a sétima arte uma das paixões confessas de Bruno Batista, que em álbuns anteriores já prestou homenagens a Quentin Tarantino [Tarantino, meu amor, de Eu não sei sofrer em inglês] e Michel Gondry [em Rosa dos ventos, de ].

Cerca-se dos mais requisitados instrumentistas da chamada “nova MPB” – rótulo que, como quase todo rótulo, não dá conta da turma – alguns dos quais com quem já tinha trabalhado em discos anteriores: Rovilson Pascoal (guitarra), produtor de Bagaça, Gustavo Ruiz (guitarra), Meno del Picchia (contrabaixo), Felipe Roseno (percussão), Ricardo Prado (contrabaixo e rhodes) e Guilherme Kastrup (bateria e percussão) compõem o núcleo, em disco que conta ainda com participações especiais de Swami Jr. (violão sete cordas no bolero Você não vai me esquecer assim), André Bedurê (vocais em Você não vai me esquecer assim e Guardiã), Marcelo Jeneci (piano em Turmalina) e Felipe Cordeiro (guitarra em Nigrinha).

“O teu lugar, o teu lugar/ é o meu”, derrama-se em Turmalina, feita para sua esposa. Na faixa divide os vocais com Dandara, que compareceu em boa parte de , seu disco anterior. O lugar de Bruno Batista é nos ouvidos de fãs cativos desde a estreia – ali já havia se firmado como um dos mais talentosos artistas de sua geração – e cada vez mais outros, conquistados álbum após álbum.

Confira o videoclipe de Nigrinha (Bruno Batista e Zeca Baleiro):

Serviço

Bruno Batista lança Bagaça em show gratuito hoje (10), às 20h, no Mandamentos Hall. O espetáculo conta com abertura da Pédeginja, discotecagens de Franklin e Pedro Sobrinho e participações especiais de Criolina e Flávia Bittencourt.

O transe criativo de Tatá Aeroplano

Step psicodélico. Capa. Reprodução

Tatá Aeroplano não para. Ou, para não perder o trocadilho com seu nome artístico, Tatá Aeroplano não pousa: no máximo faz escalas. Entre um disco e outro. Entre uma ideia e outra. Artista outrora à frente de bandas como Jumbo Elektro e Cérebro Eletrônico, hoje ele se divide entre a sua própria carreira solo e a de seu alter ego Frito Sampler – ele anuncia para breve o sucessor de Aladins Bakunins.

Ontem (27), Tatá Aeroplano disponibilizou em diversas redes seu terceiro álbum solo: Step psicodélico [Voador Discos, 2016]. É seu disco mais plural, ao menos do ponto de vista do leque de parceiros: Peri Pane (Todos os homens da terra), Dustan Gallas (na faixa-título), Flávio Lima (Outono à toa), Gustavo Galo (Luz no fim da tela), Luiz Gayoto (Aventureiros), Juli Manzi (Eu Inezito) e Julia Valiengo (Copo de pedra e a faixa-título), voz onipresente no disco, ela que assina ainda as fotografias do encarte e o projeto gráfico do trabalho.

Metade do disco estava pronta em um dia – um dia inspirado, em que ele compôs ainda outras quatro faixas, que acabaram ficando de fora, mas que serão lançadas um dia. Além dos citados parceiros, Tatá Aeroplano cercou-se de nomes requisitados da nova cena: Junior Boca (guitarra), Bruno Buarque (bateria e percussão) e Dustan Gallas (baixo e teclado) fazem a base, num disco que tem ainda participações especiais do poeta arrudA, Bárbara Eugênia e Ciça Góes.

Sobre o lançamento, Homem de vícios antigos conversou com Tatá Aeroplano.

O múltiplo Tatá Aeroplano em clique de Julia Valiengo
O múltiplo Tatá Aeroplano em clique de Julia Valiengo

Seus trabalhos são marcados por canções que são, de algum modo, retratos do cotidiano. A música me parece uma coisa orgânica em você. A impressão que se tem é que Tatá Aeroplano está o tempo todo pensando em e fazendo música. É correto pensar assim?
Isso veio comigo desde pequeno. Compus a primeira canção, letra e melodia, com seis anos de idade. Nos últimos tempos, acho que com a idade, abrindo a mente e o corpo para coisas novas, eu tenho vivido epifanias musicais, entro numa espécie de transe criativo incorporativo, as letras e melodias chegam e eu escrevo. Metade desse novo álbum surgiu assim. Lembro que o Peri Pane me mostrou a letra de Todos os homens da terra numa madrugada em que estávamos participando do disco Frou Frou da Bárbara [Eugênia]. Ele me mostrou a letra e a melodia me veio na hora, eu tinha recém chegado da minha turnê em Portugal e estava com a música dos artistas Sergio Godinho e Fausto na cabeça. O Peri gravou eu cantando e no dia seguinte logo cedinho me enviou a música com ele tocando e cantando. Entrei nesse estado de transe criativo, o Gustavo Galo tinha me enviado uma letra por e-mail, abri o computador e fui nela e assim nasceu Luz no fim da tela. Nesse mesmo dia peguei o violão e compus, na sequência, Dois lamentos, Step psicodélico e Passando o chapéu na noite purpurina. Em menos de 24 horas metade do disco nasceu. Eu tenho que agradecer a generosidade do cosmos comigo, viu?

Quais as principais influências de Tatá Aeroplano no geral e, particularmente neste Step psicodélico?
Eu sou apaixonado por música de todos os tipos. Eu gosto de escutar e conhecer coisas novas. Então, no ano passado, quando fui pra Portugal, trouxe comigo os primeiros álbuns do compositor e cantor Sergio Godinho, intitulados Pré-histórias e Sobreviventes, e também dois discos clássicos do músico e compositor Fausto, Por esse rio acima e O despertar dos alquimistas. Me apaixonei por eles, é a mesma sensação que eu sempre tive desde criança e adolescente descobrindo músicas novas. Eu coloco esses discos pra rolar e meu corpo e minha mente são tomados por uma sensação indescritível de prazer. Então eles foram grandes influências no meu estado de espírito no ano passado, assim como The Kinks, nos últimos três anos. Eu vou escutando tudo que vem de novo e me faz um bem danado, pirei com o disco da Alice Caymmi, com o disco da Ava [Rocha], acompanhei as gravações do amigo Juliano Gauche e seu belíssimo disco Nas estâncias de Dzyan, Hélio Flanders [vocalista do Vanguart] com seu disco solo, Trupe Chá de Boldo veio com o álbum Presente, com canções alto astral, dançantes. Isso tudo vai virando dentro da minha cachola e acabou reverberando no Step psicodélico. Gravando esse disco, pensando nas referências gerais, de todos os tempos, eu acho que eu sou um ser humano em constante estado de psicodelia, eu realmente estou imerso dentro dessa sonoridade, me faz tão bem escutar discos assim. A canção Por esse rio acima, do Fausto, tem uma psicodelia fabulosa ali que não é a psicodelia sessentista, mas como os instrumentos estão lá, as vozes, o violão. Sei lá, eu amo isso mesmo.

Step psicodélico é coalhado de referências: Gal Costa, Lanny Gordin, Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias, Roberto Villar, Arnaldo Baptista. Como foi o processo de feitura do disco, desde a composição até a escolha do repertório?
Pois é, como eu disse, cinco canções nasceram em menos de 24 horas. Aliás, nesse dia eu ainda compus mais quatro que ficaram de fora, mas que, com certeza, lançarei num futuro breve. As referências de Outono à toa, minha parceria com o incrível amigo, compositor e pássaro da Boemia, Flavio Lima, ser afestanista e retrofuturista. Em 2007 ele colou em casa e me mostrou uma canção instrumental, eu cantei uma letra e melodia inteira nessa base instrumental… e ele foi embora. Alguns meses depois ele me liga e diz que a nossa música tinha ficado muito legal. Quando ele me enviou a gravação, estava tudo ali… a letra de Outono à toa foi composta automaticamente e conta uma história do menino que grava os discos da Gal Costa pra menina que ele gosta e eles vão ver um show do Lanny Gordin e depois vão ver um filme do François Truffaut… O último metrô e Atirem no pianista são filmes dele. Então, essa letra é um apanhado de coisas que eu tinha vivido de fato. E nesse exato momento escuto Velvet Underground, e Sunday morning e o primeiro álbum deles como um todo, me tocam profundamente até hoje. Em Luz no fim da tela, minha parceria com outro canário psicodélico, o mister Gustavo Galo, aí aparece o Ozualdo Candeias, a quem eu dediquei o Na loucura & na lucidez [2014, seu segundo disco solo] e o mestre Sganzerla, referência total eterna. Essa música que eu fiz com o Galo, a gente terminou mesmo, a letra e tudo, em dezembro do ano passado, nos encontramos em casa, tomando birita e proseando… e a letra fala que no fim nós somos curvas, não tem jeito, somos inquietos e quem anda torto não tem conserto… Aí eu chego finalmente em Roberto Villar, que aparece em Eu Inezito, parceria com meu amigo príncipe, o mister Juli Manzi. Eu amo os dois discos que o Roberto Villar gravou e tem dias que eu coloco esses discos e fico cantando e dançando sozinho aqui no apartamento e daí me lembro do meu pai, quando ele tomava umas a mais ele me ligava e ficava me mostrando pelo telefone as músicas que ele estava escutando em estado de epifania. Isso é muito bom!

Este terceiro disco de carreira traz um leque mais amplo de parceiros, um disco solo menos, digamos, solitário. Como se deu essa mudança?
É um disco de parcerias e de amizade, de confidentes da música. Conviver e gravar com Dustan Gallas, Junior Boca e Bruno Buarque me levou ao novo momento na minha vida e pude finalmente voar do jeito que eu sempre quis, porque eles são amigos que viajam juntos, a gente cria juntos os arranjos, é tudo coletivo e tudo parceria. E nesse disco a Julia Valiengo esteve presente total, cantamos juntos boa parte das canções e meus amigos de copo e de estrada estiveram juntos com a gente nessa festa: Peri Pane, Flávio Lima, Gustavo Galo, Juli Manzi, Bárbara Eugênia, Lenis Rino, arrudA e Ciça Goes.

Tatá Aeroplano solo, Frito Sampler, Jumbo Elektro, Cérebro Eletrônico, um requisitado dj na noite e um instrumentista bastante frequente em discos de amigos. Como é encarar e se dividir entre todas estas personas?
Confesso que isso tudo me deixa às vezes totalmente fora da casinha. Fico meio louco, mas com o passar do tempo fui acostumando a lidar com todas essas personas. Me inspiro no Fernando Pessoa e seus heterônimos. O ciclo do Jumbo Elektro foi muito intenso e bacana e acabou no Frito Sampler, assim como o ciclo com o Cérebro Eletrônico acabou também, não vamos mais lançar discos nem fazer shows. Com a chegada do Frito e meus trabalhos autorais, ficou humanamente inviável levar tantas bandas ao mesmo tempo, porque, apesar de ser maluco das ideias, eu vivo profissionalmente da música que eu faço, então foquei total no Frito Sampler, que é uma viagem incrível e me dá um prazer maravilhoso, e também nos meus discos autorais… Ah, o [segundo] disco do Frito está quase pronto e lanço ele em alguns meses… É muita coisa, e eu amo mesmo essa diversidade.

A banda que te acompanha neste Step psicodélico também é bastante concorrida, todo mundo toca com vários outros artistas, entre discos e shows. Como foi conciliar as agendas e o processo de gravação?
A gente sempre combina um período do ano onde nossas agendas estão mais tranquilas, que é no fim do ano… ou como foi o Step psicodélico, gravado em janeiro e início de fevereiro. A gente pega uma semana e vive o disco dia e noite. Isso é uma coisa muito boa, cada vez mais os discos demoram menos pra ficar prontos!

A faixa-título ecos de marcha e clima carnavalescos, com direito a “batom vermelho na boca dos meninos”, uma celebração à psicodelia, como entrega o título. A realidade brasileira, com seu momento político, ao contrário, parece não haver o que comemorar. Como você tem acompanhado os diversos retrocessos perpetrados neste campo?
Acompanho esse retrocesso com muito pesar e receio, mas tenho muita esperança na arte libertária. A música que eu crio, sinto que uma parte dela é libertária e exalta o estado de espírito conectado a isso. Agora vivemos um momento crucial em entender melhor isso tudo. Eu estive algumas vezes na Ocupação da Funarte em São Paulo, fiz uma apresentação com o Galo, o Gauche e o Peri, e tem muita gente mobilizada para combater esse tipo de político e política arcaica, opressora. As ocupações são incríveis nesse sentido. Sim, eu passo batom vermelho às vezes e às vezes saio na rua de peruca rosa pela cidade. É minha maneira de fazer política, não tenho o dom de escrever sobre política. Em Step psicodélico eu falo das casas noturnas de São Paulo, algumas foram lacradas como o Puxadinho, a própria “Nossa Casa” sofreu com isso, por conta de uma especulação imobiliária sem escrúpulo nenhum. Os caras não querem saber, eles querem fazer mais dinheiro, custe o que custar. E por isso eu canto: batom vermelho na boca dos meninos… Serralheria, Francisca, ciclovias… Eu quero mais! Ciclovias é o futuro total! Eu sou um andarilho do meu tempo, não tenho carro e nunca terei um, me conectei com a natureza, com existências que estão por aqui antes da gente, tudo isso me faz refletir e apontar para coisas novas. Estou terminando de ler A queda do céu do Davi Kopenawa [e Bruce Albert, Companhia das Letras, 2015; leia um trecho], eu recomendo que todos leiam esse livro o mais rápido possível: é um evangelho atual sobre como a gente não tem noção nenhuma do que anda fazendo por aqui. Eu sei que o momento é terrível, o que eu sei fazer desde pequeno é música, nunca pensei em fazer música para um mercado, e acho que a música nesse sentido, quando é feita dessa maneira livre, ela é um lance que entra dentro da gente e nos dá muita força pra lutar contra esses caras que chegaram no poder da maneira que chegaram.

Julia Valengo aparece em nove das 10 faixas, dividindo os vocais com você, repetindo experiências de Bruno Batista, em , com Dandara, e Marcelo Jeneci, em De graça, com Laura Lavieri, para citar nomes de sua geração. É uma tendência?
Pois é, eu a Julia nos amarramos na Banda do Mar, o disco do [Marcelo] Camelo com a Malu [Magalhães], escutamos bastante. Eu sempre pirei com o disco do John [Lennon] com a Yoko [Ono], o Double fantasy e eu a Julia já tínhamos feito um disco nesses moldes, o Aladins Bakunins do Frito Sampler. A gente já dividia uns vocais bem loucos e cantamos junto praticamente no disco inteiro. Foi natural, a gente tem um show que são dois erês, voz e violão. Lá cantamos Aventureiros, Cadente e tal… então levamos isso pro disco, buscamos umas vozes bem diferentes e nossas vozes combinam, timbram, às vezes não dá pra saber que é quem, vozes psicodélicas, que eu gosto tanto! A Julia foi uma presença incrível em Step, gravou comigo pacas, criou e assinou todo o projeto gráfico do disco. Fez as fotos, pensou locação e tudo mais.

O lançamento virtual de Step psicodélico aconteceu sexta-feira (27), em diversas plataformas virtuais, e o disco físico estará disponível a partir de semana que vem. Já há shows de lançamento agendados? E qual a perspectiva de apresentações no Nordeste, particularmente em São Luís do Maranhão?
Tenho muita vontade de tocar por aí, vamos tentar articular algo para São Luís em breve! O show de lançamento em breve vai pintar, estamos fechando os primeiros shows! O disco já está disponível para download no meu site e também está à venda no meu site.

*

Ouça Step psicodélico no youtube:

O pop que (infelizmente) não toca no rádio

Lamina. Capa. Reprodução
Lamina. Capa. Reprodução

Assis Medeiros assina simplesmente Assis neste Lamina [independente, 2016, disponível para download no site do artista], sem acento mesmo, seu novo disco, sucessor de petardos como Burrodecarga [2007] e o duplo Baiãozinho nuar [2010].

Pernambucano criado na Paraíba, hoje radicado em Brasília após temporada no Maranhão, Assis faz música pop(ular) brasileira. Da boa! Embora não seja popular, é pop, como atesta a sonoridade destas 14 faixas, que não o prendem a rótulos – pena que a qualidade delas seja inversamente proporcional ao que as rádios brasileiras costumam tocar, com raras e honrosas exceções.

Sua obra é pessoal, seu timbre, particular: ele compõe para si mesmo, canta e toca violão, guitarra, teclado e ukelele. Assina todas as faixas do disco, quase sempre sozinho – as exceções são Aviso (parceria com o poeta Celso Borges) e Sombra seca (com Fernando Rodrigues e Marco Guedes).

Assis não é panfletário, mas é impossível não relacionar certas letras com o turbulento momento político de hoje no Brasil. Caso de Eu vou dizer: “só tem canalha nessa ala de pedestre/ só tem migalha para gente que merece/ eu vou dizer vou avisar/ não se engane/ com o clima do lugar/ esse Brasil é muito grande e apertado/ pra mim e pra você…”

Ou de Um pouco de sol, adornada pela bela voz de Flora Lago (que canta também em Agora e Sombra seca): “a gente vê o semblante/ da cidade ardida/ sob o teto imenso/ a gente quer paz/ e um pouco de sol/ de mais um dia nesse cenário/ de mais um dia áspero”.

Noutra seara destaca-se ainda Tudo é pop, em que questiona: “por que é que hoje/ tudo tem que ser pop?/ sacos de hits/ sucessos instantâneos de butique/ solos de vocal brejeiro/ o caralho de asa que canta no chuveiro/ o grito que encobre o punk sertanejo/ a misoginia do funk que engole a pista/ a alegria hype gay dos eletronistas/ levante o rabo daí e dance/ dance para ficar leve solto serelepe/ e não arrede o pé desse salão/ balance a bundinha na minha/ e assim vai ficando atoladinha”, pérola irônica cuja letra na íntegra fiz questão de transcrever.

A faixa-título, que encerra o disco, soa autobiográfica, retrato de um artista aos mais de 40: “parece que nada dá certo/ parece que não há remédio/ num dia tô branco/ no outro amarelo/ no fundo do fundo do poço/ no poço sem fundo do tédio/ num dia sem verbo e insano/ num rumo quase deserto”, diz a letra, que fala ainda em dores de amores e nas costas, calos de sangue, hérnias de mola, enjoo, inflamação e irritação, irmã de O pulso, hit dos Titãs.

Sem trocadilhos, é um disco pulsante, alto astral, solar – para voltarmos a versos de Um pouco de sol: “a gente quer paz/ e um pouco de sol/ pra cauterizar a dor”. Um disco dançante e quente, como no rock abolerado Fogo: “um lero um bolero de raiz/ (…)/ e o amor pegando fogo na sala”.

Utilidade pública: discografia da gravadora Marcus Pereira disponível no youtube

Num dia triste para a música, com as notícias dos falecimentos de George Martin e Naná Vasconcelos, uma notícia alvissareira me alcança por um e-mail do poeta Reuben da Cunha Rocha: toda a discografia lançada pela gravadora Marcus Pereira está disponível para audição no youtube (e download via torrent).

A gravadora lançou mais de 100 discos entre 1967 e o início da década de 1980. O primeiro, Onze sambas e uma capoeira, reunia, em 12 faixas, os irmãos Chico e Cristina Buarque e Adauto Santos interpretando a obra de Paulo Vanzolini. Uma das raridades desta gravadora em que, afinal de contas, tudo é raridade, é a estreia fonográfica conjunta de Chico Maranhão e Renato Teixeira, o terceiro disco brinde distribuído pela agência de publicidade de Marcus Pereira a seus clientes por ocasião das festas de fim de ano. Logo ele abandonaria a publicidade, dedicando-se exclusivamente à gravadora, passando a realizar talvez o mais importante mapeamento musical brasileiro da história. Algumas dezenas de discos e pouco mais de uma década depois, acossado por dívidas, Marcus Pereira se suicidaria.

Foi ele o responsável pelo lançamento de algumas pérolas do cancioneiro nacional: Abel Ferreira, Altamiro Carrilho, Arthur Moreira Lima, Banda de Pífanos de Caruaru, Canhoto da Paraíba, Carlos Poyares, Cartola, Celso Machado, Chico Buarque, Dércio Marques, Dilermando Reis, Donga, Doroty Marques, Elomar, Luperce Miranda, Marcus Vinicius, Paulo Bellinati (do Pau Brasil), Paulo Vanzolini, Quinteto Armorial, Quinteto Villa-Lobos e Sérgio Ricardo, entre outros, tiveram álbuns lançados pela Discos Marcus Pereira.

Lances de agora. Capa. Reprodução
Lances de agora. Capa. Reprodução

Os maranhenses Irene Portela, Papete e Chico Maranhão lançaram discos pelo selo. A codoense lançou Rumo Norte em 1979, entre repertório autoral e regravações de João do Vale; no ano anterior o visionário Marcus Pereira lançou Bandeira de aço e Lances de agora, ambos citados entre os 12 discos mais lembrados da música do Maranhão, em enquete do jornal Vias de Fato.

Rumo Norte. Capa. Reprodução
Rumo Norte. Capa. Reprodução

Por lá Papete lançaria ainda Água de coco, Berimbau e percussão e Voz dos arvoredos; Chico Maranhão, além do disco brinde dividido com Renato Teixeira e de Lances de agora, lançaria ainda Maranhão (comumente conhecido como Gabriela, por seu frevo-título), e Fonte nova.

O acervo da gravadora Marcus Pereira está com a Universal Music (que adquiriu a EMI), que não tem interesse comercial em relançar este precioso catálogo, ao menos não com a urgência necessária. “Grande parte da música brasileira está simplesmente se perdendo por não haver interesse comercial”, declarou-me o jornalista Eduardo Magossi, que aborda a história da gravadora em sua tese de mestrado. Ele foi o responsável pelo relançamento dos quatro discos da série História das Escolas de Samba, dedicados à Mangueira, Portela, Império Serrano e Salgueiro e anuncia novidades para 2016, sem adiantar que títulos serão relançados.

Bandeira de aço. Capa. Reprodução
Bandeira de aço. Capa. Reprodução

De um lado burocratas preocupados apenas com lucros de grandes companhias, de outro lado o poder público despreocupado com este imenso patrimônio cultural. Enquanto isso, viva a iniciativa do anônimo que decidiu disponibilizar esta valiosa coleção, de audição obrigatória para qualquer interessado em música brasileira.

[Update: Recomendando-me este texto de sua autoria o jornalista Eduardo Magossi alertou-me de uma incorreção no texto, aqui corrigido às 14h13; o primeiro disco lançado por Marcus Pereira foi Onze sambas e uma capoeira, e não a estreia fonográfica conjunta de Chico Maranhão e Renato Teixeira]

Vai ter peitinhos! E muito mais!

França, Marçal e Dinucci, o Metá Metá. Foto: divulgação
França, Marçal e Dinucci, o Metá Metá. Foto: divulgação

 

A programação completa ainda não está fechada, mas o Sesc/MA já anunciou os shows de abertura e encerramento da programação da 10ª. Aldeia Sesc Guajajara de Artes, que acontece entre os próximos dias 25 de novembro e 3 de dezembro, em diversos espaços em São Luís e Raposa (este blogue voltará ao assunto em momento oportuno).

O show de abertura será do Metá Metá, formado por Thiago França (saxofone), Kiko Dinucci (guitarra, violão e voz) e Juçara Marçal (voz). É um dos mais interessantes grupos brasileiros em atividade, com um caldeirão sonoro em constante ebulição, onde cabe de tudo. Atualmente o trio prepara o terceiro disco e em maio passado liberou um EP de aperitivo para download.

O encerramento fica por conta do show Selvática, em que Karina Buhr lança seu terceiro disco – a pernambucana nascida na Bahia esteve em São Luís em outubro, quando participou da Feira do Livro. O álbum foi financiado por crowdfunding e pode ser baixado no site da artista. A ex-Comadre Florzinha é uma das mais autênticas artistas brasileiras: plural, é compositora, atriz, cantora, escritora, desenhista, feminista, enfim, uma mulher de atitude.

Encarnado. Capa. Reprodução
Encarnado. Capa. Reprodução

Uma curiosidade é que tanto Karina Buhr quanto Juçara Marçal sofreram censura por terem estampado peitos nas capas de seus mais recentes discos – no caso da integrante do Metá Metá o álbum solo Encarnado (2014, disponível para download no site de Juçara).

Selvática. Capa. Reprodução
Selvática. Capa. Reprodução

Enquanto a capa de Selvática (2015) estampa foto da cantora com os seios à mostra e foi censurada pelo facebook, a de Encarnado traz uma mulher com o rosto coberto por um véu vermelho e os mamilos expostos. O iTunes recusou-se a disponibilizar o álbum, sugerindo à cantora modificar a capa – desenhada por Dinucci – para veiculá-lo na plataforma. Obviamente Juçara Marçal se recusou.

Os episódios envolvendo as artistas, a rede social e a plataforma refletem os tempos sombrios em que vivemos, em que avança uma onda neoconservadora, infelizmente não apenas no Brasil. Ainda bem que ainda podemos contar – e ver e ouvir – com artistas “de peito”. Literalmente!

Confiram Karina Buhr em Eu sou um monstro (Karina Buhr):

Confiram Metá Metá em Trovoa (Maurício Pereira):

Clipes (e discos) novos de Lucas Santtana e André Prando

Dois clipes novos chegaram às paradas deste blogue.

Lucas Santtana foi à Europa lançar o novo Sobre noites e dias (ouça aqui) e aproveitou a passagem por Paris e Amsterdam para gravar o clipe de Diary of a bike (ou Diário de uma bicicleta), com participação especial – cantando e pedalando – do rapper francês Féfé. O clipe – dirigido por David Pacheco e Gabriel Froment – tem também cenas gravadas em São Paulo.

 

O capixaba André Prando lança disco novo, Estranho sutil, mês que vem. Com auxílio de João Sampaio, filho único do conterrâneo Sérgio, ele gravou a inédita Última esperança, que versa sobre o incêndio que devorou – e matou centenas de pessoas – o Edifício Joelma, em São Paulo, em 1972. Ele já liberou o clipe da música do compositor, falecido em 1994, aos 47 do primeiro tempo.

 

Para ouvir e baixar Vão, disco anterior de André Prando, acesse o site do artista. A partir do dia 1º. de abril Estranho sutil também estará disponível para download. (Com informações da assessoria de Lucas Santtana e do site Kultme).

O paraíso sonoro de Russo Passapusso

Paraíso da miragem. Capa. Reprodução
Paraíso da miragem. Capa. Reprodução

 

Russo Passapusso e Curumin foram apresentados um ao outro por BNegão. O primeiro participou do terceiro disco do segundo, Arrocha, lançado em 2012, justamente a primeira vez que ouvi (falar d)o primeiro.

Este ano foi a vez de Curumin retribuir a simpatia musical: o baterista de Arnaldo Antunes toca (teclado, bateria, percussão, programação, violão) e produz (com o guitarrista Lucas Martins e o baixista Zé Nigro) Paraíso da miragem, estreia solo de Passapusso, baiano de Feira de Santana à frente de experiências como o BaianaSystem. O título é verso de Paraquedas, faixa que abre o disco (veja clipe ao final do post).

Qual Curumin, Passapusso é um verdadeiro liquidificador de influências, reprocessando-as e dando aos ouvintes um disco de sonoridade original, fazendo ao mesmo tempo música para pensar e dançar.

Paraíso da miragem passeia entre rock, rap, afoxé, samba e eletrônico, com letras entre a azaração da pista e o engajamento. Anjo está na primeira categoria: “me deu vontade de calar tua boca/ me deu vontade de rasgar tua roupa/ me deu vontade de te chamar de louca/ mas a vontade é muita e a coragem é pouca/ me deu vontade de fazer mandinga/ promessa pra você, mulher/ mas é que todo dia um anjo cai do céu”, provoca a letra. Sangue do Brasil, na segunda: “O sangue do Brasil vai pelo chão/ subiu o morro, prestou socorro/ mais um do povo morreu tão novo/ botou escuta, filho da puta/ do outro lado um deputado/ descarado, nem se esconde/ se acha santo feito um monge/ e o meu sangue aqui no morro”, revela, trágico e dançante.

MC Passapusso assina todas as faixas do disco, Areia, parceria com Tatiana Lírio, em que pontua o refinado violão sete cordas de Rodrigo Soares, e Autodidata, com BNegão e Fael Primeiro, que fecha o disco.

Outros nomes interessantes que comparecem ao encarte do disco – disponível para download gratuito ou compra do vinil no site do artista – são Marcelo Jeneci (teclados), Edgar Scandurra (guitarra em Remédio), Anelis Assumpção (voz em Sem sol), Edy Trombone, Thalma de Freitas (voz em Sapato), Hugo Hori (sax em Sapato), Tiquinho (trombone em Sapato) e BNegão (voz em Autodidata), entre outros.

Com Paraíso da miragem Russo Passapusso consagra-se em definitivo como um dos nomes merecedores de atenção da, vá lá, nova música popular brasileira.

A primeira visita de Danilo Caymmi à Ilha

[Íntegra da entrevista publicada quarta-feira passada, 20, no Alternativo, O Estado do Maranhão]

Danilo Caymmi conversou sobre memória, o centenário do pai, Dorival Caymmi, download, biografias, festivais, Ecad, e é claro, música

O artista durante a entrevista no hall do hotel. Foto: Zema Ribeiro
O artista durante a entrevista no hall do hotel. Foto: Zema Ribeiro

 

O cantor e compositor Danilo Caymmi esteve em São Luís no fim da semana passada. Veio para um show no Ponta do Bonfim – Música e Por do Sol. Realização de um grupo de amigos apreciadores de boa música, o projeto já trouxe à Ilha, noutras edições, nomes como Paulinho Pedra Azul e Renato Braz.

O filho de Dorival, cuja obra foi celebrada no show, estava cansado – vinha de participar do Festival Sesc de Inverno, em Petrópolis/RJ, mas não se negou a nos conceder uma entrevista, um dia antes de sua apresentação, num dos cartões postais que admirou em São Luís.

Acompanhado do produtor Miguel Bacelar, Danilo trajava camisa preta, calção e tênis no fim da tarde da sexta-feira (8). Conversamos num sofá na recepção do Premier Hotel, onde estavam hospedados. Antes da conversa, em que esbanjou simpatia, sacou o celular e, já sentado, fotografou a tarde. Revelou-me ter conta no instagram: “Eu gosto de fotografar. Me divirto na estrada. Aqui tem um céu lindo”, elogiou.

Seu show no projeto Ponta do Bonfim foi precedido das apresentações de Alberto Trabulsi, que ofereceu um repertório de clássicos da música brasileira, acompanhado de Reuber Rocha (guitarra) e Guilherme Raposo (teclado), e Bruno Batista, que acompanhado de Luiz Jr. (violão de sete cordas, guitarra e banjo), mesclou músicas de seus dois mais recentes discos a inéditas, contando com a participação especial de Claudio Lima – chegaram a anunciar para setembro nova edição do show Hein?, em que os dois dividem o palco.

Entre canto e flauta (emprestada de Zezé Alves), Danilo Caymmi, acompanhado ao violão por André Siqueira, passeou por clássicos de sua autoria, de seu pai e músicas de Tom Jobim. Não faltaram Andança [Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós], Casaco marrom [Danilo Caymmi, Guarabyra e Renato Corrêa], O bem e o mal [Danilo Caymmi e Dudu Falcão], O que é o amor [Danilo Caymmi e Dudu Falcão] – as duas, temas da minissérie Riacho Doce, baseada na obra de José Lins do Rego –, Marcha dos pescadores [Dorival Caymmi], Você já foi à Bahia? [Dorival Caymmi], Maracangalha [Dorival Caymmi], Vamos falar de Tereza [Danilo e Dorival Caymmi] – tema da minissérie Tereza Batista Cansada de Guerra, baseada na obra de Jorge Amado –, Samba da minha terra [Dorival Caymmi], Marina [Dorival Caymmi], Eu sei que vou te amar [Tom Jobim e Vinicius de Moraes], entre inúmeros outros clássicos, cantados pelo público a plenos pulmões, com direito a aplausos de pé e insistentes pedidos de “mais um”.

Do pai, de quem herdou o bom humor, contou ainda histórias engraçadas, certamente já consagradas nos anedotários baiano e da música popular brasileira. O sol já havia se posto quando ele deixou o palco, reafirmando o prazer em estar em São Luís pela primeira vez e a vontade de voltar.

Com o violonista André Siqueira, durante o show na Ponta do Bonfim. Foto: Doriana Camello
Com o violonista André Siqueira, durante o show na Ponta do Bonfim. Foto: Doriana Camello

 

Você já conhecia São Luís? Não. É a primeira vez que estou aqui. Trabalho desde os anos 1970 viajando, vamos ser bem específicos, 1973, depois de muitos projetos Pixinguinha, a única capital do Brasil que eu não conhecia era aqui, São Luís, o estado também. É a primeira vez que eu venho. Estou caprichando mesmo para fazer um show superlegal por que estou devendo muitos anos. É muito especial, estou encantado, não conhecia o Centro Histórico, mas sei da fama, dos Lençóis também. Estou fascinado. Eu me divirto muito com fotografia durante essas excursões, fotografei muitas coisas agora no trajeto do aeroporto para cá.

Como é que pintou o convite? Foi surpresa? Demorou muito a aceitar? Não, eu aceitei de primeira. O Miguel [Bacelar, produtor] recebeu o convite, aceitamos logo. Eles [a produção do projeto Ponta do Bonfim – Música e Por do Sol] já haviam feito um evento aqui com um amigo comum, o Renato Braz, grande cantor, amigo de meu irmão Dori [Caymmi]. Quando eu soube, “poxa, é a oportunidade bacana de conhecer”. Pra mim tá sendo meio show e turismo também.

Duas expectativas: qual a sua para o show de amanhã e o que o público pode esperar de você? A minha expectativa para amanhã é fazer o melhor possível. O público pode esperar isso. Como eu nunca estive aqui, é uma vontade de, como se tivesse muito tempo perdido, resgatar. Vou mudar um pouco o repertório. Vou cantar meus sucessos, Andança, Casaco Marrom, as músicas de Riacho Doce, até um arranjo especial para uma bem específica dessa trilha, O que é o amor, minha com Dudu Falcão, um arranjo do André Siqueira, que está comigo, que é um grande músico, e canções de Caymmi também. Nós estamos fazendo shows, eu Dori e Nana [Caymmi], pelo Brasil, vamos fazer dia 16 agora no HSBC em São Paulo. Estou muito feliz em estar aqui. Estou cansado, é lógico, estava na Serra, trabalhando no Rio, 10 graus de temperatura, chego aqui essa exuberância do calor, um almoço maravilhoso, uma pescada maravilhosa, estou encantado, realmente encantado. Sempre tem Caymmi, Jobim, músicas minhas, basicamente isso, com tratamento novo, embora eu não fique muito centrado nos discos que eu gravei.

Como outros grandes nomes da música do Brasil, entre os quais destaco os Chicos Buarque e Maranhão, você também chegou a cursar arquitetura. Isso! Como Tom Jobim também.

Alguma semelhança entre os ofícios? Compor é arquitetar? Tem. Por exemplo, algumas músicas do Riacho Doce são muito curtas, pequenas, e muito densas. Isso também é uma influência direta da arquitetura, da casa mínima, da simplicidade condensada. Sala, quarto, cozinha e banheiro, ali está tudo o que você precisa sem muitos arabescos, a ideia é essa. As canções são muito diretas, elas já entram dizendo a que vem. Como exemplos eu posso dizer O bem e o mal, minha com Dudu Falcão, O que é o amor também. São canções com uma síntese muito forte, é uma coisa proposital que tem a ver com a estrutura da arquitetura.

Teu pai chegou a ficar indeciso entre a pintura e a música. A arquitetura, ou algum outro ofício, tentou te desencaminhar da música? Sim. A Marinha. Tem um parceiro de meu pai, ele tem poucos parceiros, Hugo Lima era oficial da Marinha. Quando eu tinha uns 10 anos, 11 anos ele me levou para o Rio, nós fomos fazer um passeio, arsenal de Marinha, eu conheci aqueles barcos todos, Marinha de guerra, eu fiquei fascinado, quase eu entrei para a Marinha quando eu tinha uns 16 anos, a Escola Naval.

O que significou para você tocar no Som Imaginário, e pouco depois ter integrado a banda de Tom Jobim? Além, é claro, do fato de ter nascido em uma das famílias mais musicais do Brasil? Foi muito importante. No caso do Matança do porco [terceiro e último disco do grupo Som Imaginário, de 1973], arranjos do Wagner Tiso [compositor e pianista], na verdade a gente nem dava muita importância para o disco naquele momento, era uma fase muito fértil, muito criativa, praticamente a gente dominava a Odeon, músicos novos, numa faixa de 20 a 25 anos, todo o pessoal do Clube da Esquina, músicos cariocas como Robertinho, Luiz Alves. Por acaso a gente se cruzava muito da Odeon, a gente ia fazendo outras coisas, gravando, e Wagner Tiso me chamou para tocar essa flauta. Eu estava tocando muito, em vários discos importantes da MPB. Esse foi um ano muito fértil, saíram discos muito importantes em 1973. Depois, o Tom também tem uma importância enorme: ele me descobriu como cantor. Até então eu cantava com a voz mal colocada. Já era compositor, já tinha ganhado festivais com Andança e Casaco Marrom, e o Tom me disse, quando eu entrei pra Banda Nova, “canta, essas músicas assim”, ele dizia, “por que eu tenho a voz assim abafada ao alho” [risos], aí eu peguei solos, olha só que responsabilidade, Samba do avião [Tom Jobim] e A felicidade [Tom Jobim e Vinicius de Moraes]. A gente cantou no mundo inteiro meus solos dentro do show dele. Eu tive que me preparar para o canto com a professora Heloisa Madeira, que era prima dele, aí fui descobrir a minha voz mesmo, depois foi embora, gravei o primeiro disco de sucesso, pelas mãos do Mariozinho Rocha, na Globo.

Qual o tamanho da responsabilidade, qual o peso de ser um Caymmi? Estou vendo isso muito na minha filha [a cantora Alice Caymmi]. No começo de carreira cobram muito, como estão cobrando dela. Parece que estou vendo a minha própria vida passando, por que ela, os tios são Dori e Nana, o avô Dorival Caymmi, ela com 24 anos. É o mesmo processo. Tem uma hora que as pessoas começam a destacar, o próprio público tira do contexto, diz assim, “pô, eu gosto é do Danilo, eu gosto muito da Nana, gosto do Dori”, e se vai juntando esses pedaços para uma personalidade musical, com a ajuda do público, naturalmente.

Qual o significado deste 2014, o centenário de Caymmi, a importância de celebrar a obra dele? Nós [a família] começamos desde o ano passado a trabalhar efetivamente no centenário. Temos vários produtos. Por partes, vamos começar pelo livro: tem a biografia [Dorival Caymmi – Acontece que ele é baiano], da minha sobrinha Stella, filha da Nana, que também tem textos de João Ubaldo [escritor baiano recém-falecido], talvez tenha sido o último texto grande de João Ubaldo, do Caetano Veloso, do professor Júlio Diniz da PUC, e da própria Stella, um livro maravilhoso. Tem quatro discos em andamento, o disco [Caymmi] que a família gravou pela Som Livre ano passado, que ganhou prêmio especial de música popular [no Prêmio da Música Brasileira], tem o disco [Dorival Caymmi – Centenário] a ser lançado, de produção de meu irmão e Mario Adnet [violonista], com participação do Chico Buarque, Caetano, Gil, eu, Nana e Dori, e o próprio Mario Adnet, um disco meu [sem título definido] já com outra conotação, produtores da cena contemporânea, Domenico Lancelotti e Bruno di Lullo, a ideia do disco é o seguinte: eu quero saber como eles olham Dorival Caymmi, eu estou somente como cantor e flautista.

Os arranjos são deles? Tudo deles. Repertório, a escolha do repertório, tudo. Shows, tem o Mar de Algodão, um show meu, do Francis [Hime, compositor e pianista] e da Olivia [Hime, cantora], com orquestra, tem formato para grande orquestra e também reduzido, direção do Flávio Marinho. Tem os shows, eu, Nana e Dori, que a gente vai fazer em São Paulo agora, e Salvador. Tem o [show] Dorivália, da Alice Caymmi, que já é uma coisa mais jovem, mas bem consistente, uma visão da obra, puramente dela. Agora estou fechando um balé também. E tenho também um trabalho com Claudio Nucci [cantor e compositor]. Uma exposição [Caymmi 100 anos] que está em São Paulo agora, patrocinada pelos Correios, com curadoria da Stella Caymmi, que deve seguir para Brasília em setembro. E eu tenho uma ideia também de transformar uma redução dessa exposição, estou buscando patrocínios, para que se possa passar essa exposição, com pocket show meu e do Claudio, por exemplo, aqui em São Luís, uma espécie de Semana Caymmi. A ideia é uma itinerância, e também as atividades de pensamento. É muito importante explicar Caymmi para professores, para que depois o professor transmita para os alunos, uma parte mais educacional para formação de massa crítica. A gente acabou de fazer isso no Festival de Inverno. Fomos eu, o professor Julio Diniz, Stella e um músico. A gente fala das coisas, da obra de Caymmi, das curiosidades, do que as pessoas não sabem, em determinado momento a gente ilustra isso musicalmente, o público pergunta. Isso deve acompanhar minha ideia, por exemplo, vem aqui, se faz uma Semana Caymmi em São Luís, vem a exposição, o show, essa atividade de pensamento é a menina dos olhos, pelo ponto de vista da memória. Estamos fazendo isso também para que sirva também de exemplo para outros centenários que virão, já se tem certo know how do que é preciso fazer. Você viu, por exemplo, o centenário de Vinicius [de Moraes] passou batido, a família entregou para uma firma só, o que é um risco muito grande. Eu mesmo estou negociando tudo separado.

A intermediação dos parentes pode ser um fator facilitador, por conta da preocupação com a preservação da memória, não apenas uma empresa querendo ganhar dinheiro. Absolutamente. Essas atividades de pensamento os cachês são irrisórios, pelo tempo e pelo sacrifício, mas a importância é enorme. Você ter um professor tão abalizado como o Julio, a Stella, que entende profundamente da obra, eu, ilustrando musicalmente e falando o que sei do convívio, com um bom músico, isso é bacana, é um lado de educação. Particularmente acho que o problema cultural do Brasil passa pela educação diretamente. A nossa preocupação é formação de massa crítica: quanto mais tem formação de professores, os professores ficam sensibilizados, levam isso para a escola, pedem para as crianças fazerem trabalhos sobre Dorival Caymmi, sobre a música. A gente precisa tomar cuidado com isso, de preservar a memória. É muito importante. Recentemente caiu num vestibular quem era Tom Jobim e ninguém sabia, mas as crianças não têm culpa disso. Tem que formar o professor e daí você chega na memória. A mídia quer ganhar dinheiro ou não pagar direito autoral. E não é um problema só do Brasil. O mundo hoje está ligado, tem grandes conglomerados interessados em não pagar direito autoral, então faz parte você eliminar o passado e só ver o presente, o imediato, a cultura relâmpago.

Você falou há pouco sobre a liberdade dada a produtores para recriar a obra de Dorival Caymmi. Li há algum tempo uma declaração de Dori, mais preocupado com a intocabilidade da obra do pai de vocês. Vocês divergem nesse quesito? A gente bate um pouco de frente, Dori pensa de uma maneira, eu penso de outra. Eu acho que você tem que motivar o jovem a pegar daqui e levar pra frente. Papai mesmo detestava isso de “naquele tempo que era bom”, ele já era muito progressista, olhava muito à frente. Sempre foi um esteta e um vetor. Eu também sigo isso. Tem que motivar o jovem a olhar, pelo que ele entende, se é rock, se é funk. Eu não sou dessa polêmica se a música tá velha. As coisas têm uma dinâmica própria, tem muita gente trabalhando, fazendo coisas incríveis pelo Brasil inteiro. Agora, tem que ter o pensamento mais aberto, para entender essa diversidade e essa complexidade dessa situação que a gente vive. É um mundo novo que se desperta com a internet. Aí é que está! As pessoas não aceitam computador, não aceitam essa informação. Eu adoro essa dinâmica que está no mundo, existem coisas belíssimas. Tem muita coisa acontecendo.

Como é sua relação com essa tecnologia em relação ao consumo e a produção da música? Como você enxerga, por exemplo, a figura do download? Eu fui diretor da Abramus [Associação Brasileira de Música e Artes] quatro anos, uma associação de direitos autorais. Eu sempre vi isso, o que acontece, a internet acaba ajeitando as coisas desfavorecendo ao autor. A gente está passando uma fase difícil, mas pela própria dinâmica, como a internet age, ela é livre, ela acaba ajeitando uma forma de remunerar o autor. Acho que estamos passando um momento de transição que penaliza o direito autoral, em função de grandes companhias, grandes conglomerados econômicos internacionais. Não tem como ser contra [o donwload] por que vai chegar um garoto de 10, 15 anos e vai hackear tudo. Essa coisa de “a minha privacidade”, isso não existe mais. Não existe pilar de concreto, é uma coisa mutante, ela anda, ela vai se formando, como nossas células. Ou você tem essa compreensão ou fica muito difícil conviver nesse mundo.

Parece uma discussão já encerrada a polêmica sobre as biografias. Qual a sua opinião sobre aquele imbróglio todo? Eu acho muito ruim cercear o direito de as pessoas escreverem biografias. Onde se discute isso é na justiça: você não gostou, vai atrás da justiça. Como também eu sou contra essa questão de colocar o diretor da estrutura do direito autoral num controle do governo, ou transformar uma lei que o governo controla isso. Amanhã você pode ter um governo diferente. Hoje nós vivemos num ambiente privado, amanhã isso pode ser uma arma voltada para a gente. Como a gente tem esse problema todo com a Ordem dos Músicos do Brasil há anos, é uma coisa de carimbo do Estado. Você não consegue sair disso. Se os músicos acabarem com a Ordem perdem direitos trabalhistas e por aí vai. Eu sou totalmente contra esse negócio de você controlar. A biografia não autorizada tem que existir. Vai esconder o quê? Não tem nada pra esconder. O artista já é transparente. A gente cai numa dinâmica que o mundo não aceita mais, uma dinâmica antiga, um conselho de cinco pessoas que vai decidir não sei o quê ou desqualificar o próprio autor.

Qual a sua opinião sobre o Ecad [o Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais]? O Ecad é um escritório de arrecadação de direitos autorais com todos os defeitos, mas é privado, é nosso, é do compositor. Eu sou contra a estatização de um ambiente privado. Quando eu trabalhava com direito autoral se discutia a criação do Instituto Brasileiro do Direito Autoral, com a criação de 200 empregos. Quem vai pagar isso? O compositor! As pessoas tratam o Estado brasileiro, “ah, o Ecad é uma porcaria, mas o governo é ótimo! O governo é uma vestal”. Quando se trata disso o governo é lindo e o Ecad é ruim. Agora vamos comparar o Ecad com a corrupção dentro do governo, em todas as esferas: como é que fica isso? Nada contra você ter, dentro do Ministério da Cultura, como tinha antigamente, um Conselho Nacional do Direito Autoral, o CNDA, como se fosse uma agência, ver o que está acontecendo. Agora, transformar num Instituto Brasileiro de Direito Autoral, com 200 empregos, diretorias, jetons, isso é ruim. Eu quero que o Ecad seja mesmo virado de cabeça pra baixo, só não quero que seja estatizado, por que eu não posso sair do pressuposto de que o Estado brasileiro no momento é uma vestal.

Hoje e amanhã (8 e 9) acontece em São Luís a 6ª. edição do Lençóis Jazz e Blues Festival, um festival não competitivo que tem a cantora Joyce Moreno entre as atrações. Você, cuja carreira começou em festivais, acha que o formato, bastante difundido nas décadas de 1960 e 70 se esgotou? Hoje os festivais promovidos pela televisão mais se parecem reality shows. Já. Pois é, não adianta, esse formato caiu. Hoje tem que se encontrar uma coisa diferente, alguém vai encontrar uma fórmula competitiva diferente, acredito que se passe pela rede. Primeiro que você tem vários segmentos. Essa juventude, tem um pessoal mais novo que há muito tempo não compra cd. Hoje os lançamentos são feitos só pela rede, ou vinil. A música tomou uma cara diferente, também está transformando, estão procurando maneiras de divulgar seu próprio trabalho, maneiras de ser ressarcido por esse trabalho também. Aí é que entra a dinâmica que vai mudar o direito autoral. O próprio jovem vai encontrar maneiras de ser remunerado, o jovem acha isso injusto, quem fez não ganha. Tom Jobim dizia, “ah, é um cachê simbólico. Poxa, mas a conta de luz não é simbólica, a conta de telefone não é simbólica”. Nós somos profissionais. Tem uma visão muito preconceituosa, às vezes, de achar que estamos em casa tocando violão, na rede. Se trabalha de segunda a segunda e não para de trabalhar. Trabalhar com arte no Brasil não é fácil. A gente precisa desse dinheiro de direito autoral, a arrecadação vem caindo, caindo, caindo. Essa forma antiga não existe mais. Eu dei sorte, peguei uma época áurea.

O novo Delito de André Morais

Demorei a descobrir o trabalho do ator, cantor e compositor André Morais. Somente recentemente ouvi Bruta flor (2010, disponível para download no site do artista), seu disco de estreia, cuja epígrafe são os versos “cada manhã que nasce/ me nasce/ uma rosa na face”, de Paulo Leminski.

É um álbum bonito, cheio de parcerias e participações especiais: Âmago, faixa que novamente cita Leminski e tem violão e arranjo de Nonato Luiz, é parceria dele com Marco Antonio Guimarães (inventor do Uakti); Lua-me, parceria com Carlos Lyra, tem piano de André Mermahri; Pequenas epifanias, parceria dele com Ceumar tem participação da mineira (voz e kalimba); Leve, parceria com Milton Dornellas, cita Emily Dickinson e também tem violão e arranjo de Nonato Luiz; Canção meretriz, em parceria com Ná Ozzetti, conta com participação dela; as vozes de Tetê Espíndola cantam a Ave Maria de Bach e Gonnoud; Seio é parceria dele com Chico César; Mônica Salmaso canta O canto do cisne negro, que mistura Villa-Lobos e Baudelaire; De corpo aberto, parceria com Sueli Costa, tem seu piano; e Toninho Ferragutti assina sanfona e arranjo em Desprimavera, parceria com Edu Krieger.

Em resumo, qualquer ouvinte de música brasileira tem aí seus motivos para querer ouvir e ter o disco. Uma boa notícia é que ele já está preparando o segundo e soltou aperitivo: Delito, parceria dele com Lucina.

*

Agradeço a dica ao amigo Glauco Barreto, ávido fã número zero de Ceumar (com quem fui ao mais recente show da mineira em Brasília).

Floresta urgente!

A cantora Ligiana disponibilizou seu segundo e aguardado disco, Floresta, para audição em sua conta no Soundcloud. O disco físico, que terá distribuição da Tratore em todo o Brasil, deve chegar às lojas em breve. Mas o trabalho já vazou (aproveitem e baixem logo, que vale muito a pena).

Floresta, cujo título homenageia a avó paterna da cantora, merecerá outro post; esse aqui foi só para avisar aos poucos mas fieis leitores deste blogue do belo achado na downloadland. Em tempo: aos 35 anos do antológico Bandeira de aço, Ligiana regravou Boi de Catirina, composição de Ronaldo Mota registrada por Papete em 1978.