Para ler e reler (e deixar mais doce a vida)

Trinta e poucos. Capa. Reprodução
Trinta e poucos. Capa. Reprodução

 

Qualquer assunto é tema para Antonio Prata e essa versatilidade também faz dele um grande cronista. Trinta e poucos [Companhia das Letras, 2016, 226 p.; leia um trecho] reúne um punhado de crônicas suas publicadas desde 2010 no jornal Folha de S. Paulo.

Do relacionamento à paternidade, passando por futebol, infância, tecnologia, Deus, Keith Richards, procrastinação, cirurgia plástica, cinema e muito mais, qualquer assunto é tema para Antonio Prata, insisto.

A crônica, esse gênero legitimamente brasileiro, tornado grande literatura por nomes como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Nelson Rodrigues, entre outros – não à toa todos citados na seleção de Trinta e poucos –, encontra em Antonio Prata um dos melhores nomes a garantir a continuidade desta tradição, hoje, no país.

Por detrás de textos aparentemente simples, descolados do compromisso com o factual, o calor da hora, tão caro às principais manchetes dos jornais, a crônica pode ser erroneamente vista como gênero menor. No fim das contas, tudo acaba forrando obra ou embrulhando peixe, como tira sarro o próprio Prata. E talvez aí resida a necessidade de o autor reunir as melhores em um livro, a que os afeitos às tecnologias podem achar desnecessário: livro? Que coisa mais obsoleta! Ainda mais com textos já publicados em jornal, outros torcerão o nariz.

Por detrás de textos aparentemente simples, insisto, toda a sensibilidade e um misto de erudição e cultura de almanaque do autor – em Saída para o mar, por exemplo, ele cita a Wikipedia como fonte. Engana-se quem pensa, no entanto, que é fácil ser cronista. Que é fácil ser Antonio Prata.

Filho do Mário (como assim, que Mário?, ele também uma referência, também personagem), Antonio Prata tem quase quarenta, como entrega o título do presente volume, e já tem, mesmo tão jovem, seu lugar garantido em algum panteão ao lado de todos os citados – inclusive Luis Fernando Veríssimo e Humberto Werneck, de quem também lembra em textos ao longo de Trinta e poucos, o bom humor sempre presente, outra característica sua.

A vida é que nem rapadura: é doce, mas é dura, diz o dito popular. Pode ser mais doce ou mais dura. Depende, certamente, se você lê ou não Antonio Prata.

Lúcida, lúdica e necessária: uma Aula sobre a ditadura

Ah, como era boa a ditadura... Capa. Reprodução
Ah, como era boa a ditadura… Capa. Reprodução

 

Ah, como era boa a ditadura… [Companhia das Letras, 2015, 287 p.; leia um trecho]: só podia mesmo ser o título de um livro de Luiz Gê o único lugar onde essa frase soa bem. Pura e fina ironia, obviamente. “A história dos últimos anos da ditadura militar nas charges da Folha de S. Paulo”, como anuncia o subtítulo explicita melhor: a obra não é mera coletânea, é uma Aula, com A maiúsculo, de História, com H idem.

O livro cobre o trabalho de Luiz Gê no jornal paulista entre 1981 e 1984, o que, por um lado, pode parecer facilitar seu trabalho à época, afinal de contas, eram os anos da chamada abertura, da redemocratização do país. Acompanham os desenhos textos explicando o contexto, (re)apresentando personagens – dando nomes aos bois –, tornando-o leitura obrigatória para estudiosos e interessados em humor, história, quadrinhos e até mesmo àqueles que hoje em dia frequentam passeatas pedindo a volta da ditadura – estou certo de que alguns poderiam mudar de opinião após “reviver” com atenção o período.

“Quer que eu desenhe?” é irônica pergunta comumente usada para iniciar uma contraposição a argumentos. Luiz Gê desenha e escreve com propriedade de quem (sobre)viveu (a)o regime, ousando contestá-lo. E defende algumas teses interessantes: primeiro, é falacioso falar em ditadura militar, pois o golpe de 1964, em sua urdidura, contou com civis e graças a este apoio é que foi possível; segundo, a ditadura não durou apenas 21 anos, já que José Sarney, que governou o país entre 1985 e 1990, não foi eleito, mas chegou à cadeira do poder central após mudar de partido (olha o fisiologismo aí, gente!) e a morte do titular Tancredo Neves, de quem o maranhense era vice.

Gê aborda ainda heranças malditas da ditadura, para além das mais óbvias: os métodos das polícias militares, a permanência da prática de tortura, apesar de diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e da lei que a proíbe, e a anistia que perdoou torturadores: até hoje, no país, ninguém foi punido pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante o regime, ao contrário de outros países latino-americanos que também sofreram com ditaduras.

“Mas a pior de todas as heranças, a que até hoje não foi superada, foi a destruição da altamente bem-sucedida experiência educacional e do ensino público anterior a 1964. Escolas públicas tinham o mesmo nível ou maior que muitas escolas ditas de elite. Essa experiência, que poderia ter sido aperfeiçoada e ampliada para alcançar um maior número de pessoas, foi sumariamente eliminada sem jamais ter se recuperado, algo crucial que vem afetando profundamente o desenvolvimento de nossa sociedade e de nosso país”, escreve Luiz Gê à página 278. E na seguinte: “o Brasil de hoje, foi criado naquela ruptura no ano de 1964. Quem não puder enxergar o que foi exatamente que ocorreu durante os 21 anos que se seguiram não pode entender aquilo que vive hoje. Havia outra possibilidade para o Brasil e para o nosso presente […]. Tudo “mudou” para permanecer fundamentalmente igual. As relações de poder político e econômico se reajustaram. Qual dos dois manda mais em nosso sistema?”, indaga-se/nos.

Lúcido e lúdico, Ah, como era boa a ditadura… é vasto painel com muito material ainda bastante atual, infelizmente, sobretudo no que diz respeito à nossa fauna política – o folclore, a burrice, o oportunismo – e ao pensamento único da grande mídia – algumas concessões são benesses dos ditadores a apoiadores do regime.

O autor – Personagem menos conhecido e cultuado, mas tão ou mais talentoso que muitos de seus pares, o paulista Luiz Gê é arquiteto e professor universitário, entre inúmeras outras atribuições, com contribuições fundamentais à cultura brasileira ao menos nos últimos 45 anos: fundou as revistas Balão – que revelou talentos como Angeli, Laerte e os irmãos Paulo e Chico Caruso – e Circo, é autor da cultuada graphic novel Av. Paulista [1991, reedição da Companhia das Letras, 2012, 88 p.], em que conta, à sua maneira, parte da história de São Paulo, fez os projetos gráficos de Clara Crocodilo [1980] e Tubarões voadores [1984], de Arrigo Barnabé – este segundo disco são quadrinhos de Luiz Gê musicados por Arrigo –, e roteirista do matutino global TV Colosso. Como quadrinhista venceu os prêmios Casa de Las Américas, em Cuba [1981], o troféu HQ Mix, no Brasil [1991] e o prêmio Angelo Agostini de Mestre do Quadrinho Nacional, concedido pelo Senac [2005]. Ano passado presidiu o júri do Salão de Humor de Piracicaba, um dos mais importantes do país, que também o premiou, ainda na década de 1970. Na ocasião, realizou sua primeira exposição, Luiz Gê quadro a quadro, com cerca de 600 obras.

A raposa e as urnas

[letra pra um samba de breque e ocasião, que permanece sem melodia. Escrevi por conta deste episódio e o título me veio, óbvio, inspirado no saudoso Reginaldo Rossi]

 

Charge de Carlos Latuff originalmente publicada no Vias de Fato (agosto/2014)
Charge de Carlos Latuff originalmente publicada no Vias de Fato (agosto/2014)

Vocês se lembram por que
O urubu ficou com raiva do boi
Mas a raposa tá contente
Eu vou contar por que foi

Um amigo do rei ganhou
Uma licitação
Pra cuidar de urna eleitoral
(num curral)
Lá no Maranhão

É muita cara de pau
Um amigo da família
Vestir pele de cordeiro
Pra beneficiar a matilha

Refrão

As urnas vão
De ferry atravessar a baia
E o Maranhão continua
A ser notícia ruim todo dia

É tanta água
Mas não mata minha sede
Agora além do ferry (e da lancha)
A urna também é do Cantanhede

Ser Bolívia é preciso!

Em foto roubada do blogue Futebol Maranhense, a formação do Sampaio de 74. Em pé: Benazi, Moraes, Gilson, Lourival, Raimundo e Santos. Agachados: Buião, Djalma Campos, Dionísio, Sérgio Lopes e Airton
Em foto roubada do blogue Futebol Maranhense Antigo, a formação do Sampaio de 1974. Em pé: Benazi, Moraes, Gilson, Lourival, Raimundo e Santos. Agachados: Buião, Djalma Campos, Dionísio, Sérgio Lopes e Airton

Roubo de Xico Sá o título que ele deu, na Folha de S. Paulo, à coluna que comemorava o título do Vasco da Gama na Copa do Brasil em 2011. Troco o nome do heroico português pelo apelido do Sampaio Correa, que logo mais entra em campo, no Albertão, em Teresina/PI, para enfrentar a equipe carioca pela série B do Campeonato Brasileiro.

As equipes enfrentaram-se seis vezes, com quatro vitórias do Vasco, uma do Sampaio e um empate. Já disse, há algum tempo, no éter das redes sociais, que mais importante que o hexa brasileiro na Copa do Mundo é o título brasileiro do Sampaio na série B deste 2014.

Ao que o boliviano roxo e torcedor realista (pode?) Susalvino Viana, meu tio, advertiu-me: devemos torcer pela permanência do tricolor na série B. Para não cair. O Sampaio tem time para isso. Para ser campeão ou subir, não. O mesmo Susalvino havia me dito que seria praticamente impossível o Sampaio passar pelo Palmeiras na Copa do Brasil, do que discordei e a história mais uma vez revelou-me um péssimo comentarista/analista do ludopédio.

Se com prudência ou roxura cabe aos poucos mas fiéis leitores, amigos torcedores e amigos secadores – gracias, again, Xico Sá –, decidir: o importante é empurrar a Bolívia querida à recuperação.

Mas logo um cruzmaltino escrever isso?, decerto alguns me perguntarão. A explicação é simples: quem tem mais chances de voltar à série A (o verbo cabe a ambos os times, já que o Sampaio já figurou na elite do futebol nacional, como veremos adiante)? Certamente o time de São Januário. O que torna cada ponto para a Bolívia querida ainda mais importante e valorizado.

A julgar pelas estatísticas, cruzmaltinos e bolivianos devem sair satisfeitos com uma vitória dos visitantes – o mando de campo é da equipe carioca, punida por aquela briga de torcidas em jogo contra o Atlético/PR –, hoje, em terras piauienses: a única vitória do Sampaio contra o Vasco se deu justamente em 1974, quando a equipe liderada por Roberto Dinamite sagrou-se campeã brasileira pela primeira vez.

2 na bossa, 2 no céu

Outro dia mesmo eu reouvi essa pérola, recém-adquirida numa coleção lançada pela Folha, a mesma a que me fez chegar, via tuiter, a notícia da subida de Jair Rodrigues.

Imediatamente lembrei-me dum show dele, vibrante, na edição de 2006 do Prêmio Universidade FM. Na ocasião ele pediu para Elis Regina descer. Eu tive certeza que ela obedeceu. Agora os dois se reencontraram na bossa do céu.

O campo de Pedrinhas e o Brasil

FLÁVIO SOARES*

“Relembrai vossa origem, vossa essência;/vós não fostes
criados para bicho,/e sim para o  valor e a experiência”
(Dante em P. Levi, É isto um homem?)

Para Ana Clara (in memoriam)

CAMPO DE PEDRINHAS

Passagem de 2013 para 2014, ainda em meio às festas do Natal e Ano Novo, clima carnavalesco chegando, expectativas da Copa do Mundo, nova onda de protestos e eleições de outubro, e eis que o “espetáculo do suplício” maranhense ganha nova projeção no país dos “Amarildos”. Aparece como relâmpago a iluminar, por instantes, o coração das trevas desse país, na forma dos horrores da Penitenciária de Pedrinhas, localizada na periferia de São Luís. Guerra civil em estado puro, banal, sem mediações.

Corpos “picadinhos”, perfurados a balas, facas, facões e canivetes, segundo a lógica da revolta, do ódio, do crack; cabeças degoladas, exibidas como troféus ou bolas de futebol; esqueletos de ônibus queimados; homem, mulheres e crianças em chamas; tiros em delegacias e policiais morrendo e matando adoidado; denúncia do estupro de mulheres por presos em “visitas íntimas” coletivas; cidade com mais de milhão de habitantes tomada pelo medo; imagens do horror na mídia em transe; divulgação de gravação dos papos de guerra via celulares entre membros do “Bonde dos 40” e do “Primeiro Comando do Maranhão” (PCM), antiga facção dos “baixadeiros”, inspirada no PCC-SP e CV-RJ; estado de emergência decretado no sistema prisional (de fato, em toda a região metropolitana), entregue ao domínio “pacificador” da PM e da Força Nacional, num estado onde, como disse certa vez um ex-secretário da segurança, “tudo é possível”; planos e planos emergenciais; denegação sobre denegação de um governo radicalmente alienado, simulando Roseana “no país das maravilhas” para uma população prisioneira da impotência, assombrada e indignada.

Mesmo difícil, vale distinguir as razões da explosão midiática daquelas da implosão de Pedrinhas em si. Há dez anos, pelo menos, denúncias são feitas por órgãos como SMDH, MP-MA e OAB-MA. Várias rebeliões, com mortes e decapitações, ocorridas antes, foram noticiadas pela imprensa. Exemplos: presídio São Luís-Pedrinhas, com 18 mortes (3 decapitações), novembro de 2010; Delegacia Regional de Pinheiro, Baixada maranhense, com 6 mortes (4 decapitações), fevereiro de 2011; CADET-Pedrinhas, com 9 mortos e dezenas de feridos, outubro de 2013. No entanto, sem força para criar abalos maiores.

Claro que é imoral expor ou esconder as barbaridades do Maranhão apenas por razões eleitorais, embora isto seja um dado real da briga pelo poder entre bandos partidários. Mas, sem dúvida, o modo como o Maranhão oficialmente se olha e quer ser visto foi posto em questão, como nunca antes, quando da divulgação mundo a fora dos vídeos das decapitações (feita pelos presos na rebelião de 17 de dezembro de 2013), imediatamente considerada pelo Governo do Estado “ato criminoso” (a divulgação, é claro), invertendo a situação; e, em seguida, das imagens dos ônibus incendiados (3/1/2014) e, dias depois, a morte de Ana Clara, em cujo enterro se fez presente o senador João Alberto, linha de frente da oligarquia Sarney, ex-governador (abril de 1990 a março de 1991) famoso pela “Operação Tigre” e alcunha de “Carcará”. Sobre as cenas da decapitação, o argentino Juan Ernesto Méndez, relator membro do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU, observou: “Já vi cenas de morte entre presos… mas é a primeira vez que eu vejo decapitação… Depois que vi essas terríveis imagens em Pedrinhas, pedi à minha equipe de Genebra que analise o assunto” (Folha de S. Paulo, 12/1/2014).

Não foi, portanto, o simulacro da cultura, da cidade “patrimônio da humanidade”, dos Lençóis maranhenses, mas a brutalidade dos vídeos expondo presos decapitados, “videodrome” produzido em celular pelos próprios, que catapultou o Maranhão da Oligarquia Sarney e suas prisões e, por tabela, sua tragédia social, numa escala inédita. Primeiro sucesso maranhense mundial. Com certeza um marco que assinala a entrada do Maranhão no século XXI. Não é só uma questão de espetáculo, de exploração mercadológica e contemplação passiva da própria desgraça. Estratégia fatal, a violência em si dos presos atingiu um extremo praticamente impossível de ser batido, de ser trocado na mesma moeda, pela violência do poder oligárquico. A não ser que este fosse capaz de degolar a si mesmo. Eis aí, quem sabe, a “grandeza” desse ato pérfido numa terra em que, já dizia João Lisboa no século XIX, “miséria” e “mal” (dos opressores) não sofriam compensações do “bem”.

De toda maneira, numa região onde a violência da colonização e do império deixou traumas arraigados, e onde elite e povo tendem a decidir o que é bom e ruim quase sempre pelo espelho de fora, o giro neste espelho – agora não mais da barbárie em civilização, mas da civilização em barbárie, expondo o Maranhão atroz e mentiroso  criticado pelo autor acima –, produzido pelo bombardeio das notícias e vídeos do terror local na imprensa nacional e do Mundo, feriu a imagem oficial esquizofrênica do “povo cordato” cujo monstro da violência, vindo não se sabe de onde, um governo-protetor se encarregaria em manter preso nos labirintos das Pedrinhas. Seu lugar merecido e justo.

Resta saber se tais deslocamentos levarão à consciência das classes populares quanto às causas materiais, políticas e sociais da violência que lhes atinge em primeiro lugar, potencializando sua capacidade de indignação, ou ao reforço das velhas expectativas messiânicas e, em especial, a ânsia por novas formas de controle (tipo Sistema BI paranaense, coleira eletrônica, novo “modelo de gestão” e coisas do tipo.).

Embora Pedrinhas seja um dos principais presídios do Brasil, seu universo carcerário é relativamente minúsculo. Representa 1%, ou menos que isso, da crescente população carcerária do país (de mais de 500 mil). Em números absolutos, fontes do TJ-MA indicam, até 12/12/2013, um total de 5.466 presos em todo o estado, dos quais 1.555 cumprem penas em delegacias. Déficit de 2.562 vagas. Segundo o Banco Nacional de Mandatos de Prisão do CNJ existem ainda 5.539 mandatos por cumprir. Pergunta-se: como é possível a um Governo de Estado cuja população atinge quase 6.800.000 habitantes (nas estimativas recentes do IBGE), e cujo pacto com o poder federal é cantado e decantado, “fracassar” de modo tão grotesco na guarda de 5.466 presos?

É comum se dizer que as condições extremas em Pedrinhas, absolutamente desumanas, decorrem de um sem número de fatores, tais como: concentração e superpopulação de presos do interior e da capital num só lugar, com celas totalmente inadequadas, cheias de “gambiarras”, insalubridade; falta de recursos humanos e materiais; corrupção, inexistência da fiscalização e mistura indiscriminada dos presos, fora da Lei de Execuções Penais; presos ilegais; facções e rebeliões; denúncia de abusos, tortura, espancamento e morte, cometidos pelo chamado “Serviço Velado da Polícia Militar”; paralisação na Delegacia da Estiva da maioria dos inquéritos das mais de 300 mortes nos últimos 10 anos; crimes no interior das prisões denunciados e não investigados; assassinato de denunciantes; crimes com erros periciais básicos; desaparecimento de presos, etc.

São práticas e situações de governo deliberadas, sistemáticas e sabidas, ligadas, por um lado, a uma ideia particular de justiça, para não dizer fascista, bastante comum na Colônia penal maranhense, segundo a qual presos devem pagar pecados no inferno carcerário. Nem lugar de passagem para cumprimento da pena, nem de reclusão, a prisão é o próprio espaço da pena de morte. Oficina do diabo, sem dúvida. Crença de que bandido não pode ter “privilégios” e o sistema carcerário é a “última das prioridades”. O imaginário dominante é marcado pelo ódio arraigado aos “direitos humanos”. A ideia é de que “monstros” devem ser punidos como “monstros”.

Trata-se, sem dúvida, de assumido preconceito social e racial oriundo das camadas senhoriais, mas aceito como natural por extensa parte da população. Incapacidade crônica do miserável em perceber as causas históricas, sociais e políticas da violência num contexto em que elas berram. Basta observar, para verificar essa aceitação, que, dentro do Campo de Pedrinhas (alguma dúvida de que é um tipo de Campo?), o berço étnico-social comum não é apagado pelas diferenças das posições e funções – se presos, agentes penitenciários, monitores, inspetores ou policiais. São quase sempre negros esfolando negros a serviço de brancos ou quase-brancos, situados a quilômetros e quilômetros de distância, em bairros, edifícios e condomínios nobres à beira do Atlântico.

De outro lado, o quadro atual do “abandono” liga-se a uma situação não menos decisiva de “descontrole”, caracterizada pelas disputas no interior das polícias, especialmente entre alto comando da Polícia Militar e Secretário de Segurança; Secretário do presídio e agentes penitenciários (a divulgação do vídeo falso da perna dissecada não veio daí?); gangues contra gangues. Como se a lógica do “monstro” se reproduzisse para todos os lados. O caos instalado favorece o “domínio das facções” e suas guerras cruéis envolvendo controle das prisões, comércio das drogas em franca expansão na Ilha e no Continente; disputas entre presos da Capital e do Interior (os “cara da baixada”); abuso sexual das mulheres (negado por alguns presos). A desordem instalada resulta num ambiente inevitável de delinquência, propício aos conluios entre bandidos e agentes penitenciários corruptos e, sobretudo, à livre exploração econômica da prisão pelas facções do governo e empresas dos comparsas contratadas. Negócios e intolerâncias se retroalimentam.

A “delinquência, ilegalidade dominada, é uma agente para a ilegalidade dos grupos dominantes”, diz Foucault em Vigiar e Punir. O que se chama “fracasso” da prisão é, na verdade, êxito. Forma de produção da criminalidade com o apoio da polícia visando estabelecer, a serviço dos grupos dominantes delinquentes, o controle e a exploração social. Pedrinhas é parte de um montante de investimentos que só entre 2009 e 2013 movimentou 274,1 milhões do governo do estado para empresas de “familiares, amigos e correligionários” (O Globo, 12/1/2014, “Roseana Sarney já gastou 274 milhões…”). Não dá para dissociar a conversão das prisões em negócios rendosos de compadres, a cada volta no parafuso do nosso estado de emergência, da atual configuração do capitalismo: novo regime da crueldade baseado precisamente na militarização da vida social e administração da miséria absoluta.

AMNÉSIA E NEGAÇÃO DA CRUELDADE

Mas a contribuição de Pedrinhas para a sucessão de horrores que vem causando fascínio e repulsa no mundo é fruto de um “princípio do mal” ainda mais horroroso, estrutural, sem a qual não funciona a máquina social e histórica perversa e fantasmagórica chamada “Maranhão”. Uma espécie de “Louisiana” do Norte, com a qual, no entanto, o atual Brasil “civilizado, moderno e industrializado” convive há séculos sem espanto algum. Na verdade desde que o Maranhão era a antiga Província do Norte do Império. Ou terá sido apenas acaso que a nova “Guantánamo” noticiada do país, esteja encravada, desde o finalzinho de 1965, na capital de um dos estados do nordeste, onde nervos, cabeças e ossos estão literalmente entre os mais expostos da fratura social brasileira do Planeta?

Violência social e histórica, a crueldade que caracteriza o mundo infeliz dos cárceres maranhenses não é, de modo algum, produzida exclusivamente dentro dele; não é, no fundo, diferente daquela que distingue a relação do governo com o mesmo povo negro, mestiço e pobre nas escolas, hospitais, transportes, saneamento, moradia e mundo do trabalho. Todos os dias, matérias e matérias são divulgadas na imprensa sobre cada um destes setores e a situação quase sempre é de completo desprezo e falta de humanidade. Ou será que a “superlotação” das prisões é tão diferente assim da dos ônibus, hospitais e moradias usadas pelos trabalhadores? Vistos como indignos de viver, são explorados como se pertencentes ao mundo dos “animais” ou das coisas, cujo único modo possível de tratamento, além do religioso (isto é, busca da salvação da alma), é a aplicação da lei social da indiferença e crueldade. A “taca” de “deixar nós moído”, nas palavras de um “monstro” ao radialista Silvan Alves.

O Maranhão das Pedrinhas, sobretudo, é o mesmo Maranhão miserável dos massacres, assassinatos, genocídios de camponeses, índios, quilombolas; o mesmo Maranhão 66 de Glauber Rocha, filme que teima obsessivamente em não acabar, eterno retorno do inferno, para o qual Pedrinhas, nascida já como depósito de detentos, não passou despercebida; mas também o Maranhão da extinção indígena, denunciada em Serra da Desordem (filme inquietante de Andréa Tonacci), pela invasão de fazendas, madeireiras, exploração de minério; o Maranhão da alta bandidagem de Grupos políticos e estrutura oligárquica, de Flávio Reis; o Maranhão da província escravista de O Mulato (lançado em 1881, em São Luís), de Aluísio Azevedo; o Maranhão da barbárie e do simulacro de João Lisboa, enfim, em que a oligarquia Sarney funda, pelo monopólio, exploração e depredação mafiosa das verbas públicas, o seu domínio de quase meio século, e faz de tudo para ocultar e dissimular de todos, até do mundo, pela estratégia de mudar a mentira em verdade e a verdade em mentira, conforme as circunstâncias e conveniências de quem age como se fosse um poder divino, criador da luz a partir do nada (não é esse o discurso do “Maranhão Novo”?), dono do destino, da vida e da morte dos seus súditos.

A reação do governo diante do horror do Campo de Pedrinhas é sintoma explícito da gravidade da sua esquizofrenia moral e social: “rede de boatos”; “mal que vem para o bem”; “fruto da ação do governo”; “o estado está mais rico”; “cresce e melhora”; “o Maranhão de verdade”; “campanha política contra o Maranhão”; “não existe oligarquia”; “licitações” para compra de lagostas e caviar; “Eu amo o Maranhão, aqui é bom demais”; “sou pacifista”; “falta de fundamentação”; e até a conspiração da oposição com a imprensa internacional. Nem a junção da mais fina ironia de Machado de Assis com o espírito mais anárquico de Rogério Sganzerla daria conta em narrar e filmar todo o jogo de negação, deformação e recalque sarneista da memória da crueldade do Maranhão e em especial da sua própria barbárie.

Exploração e recusa radical do outro, o sarneismo é um tipo de anomalia histórico-social, banalização do mal, que jamais poderá encarar suas origens e história. A não ser no terreno da mistificação, dos mitos, da simulação, da estetização cultural, do “inexplicável”. Como a barbárie pode encarar a si mesma? Olhar em seus olhos opacos? De todas as oligarquias do Maranhão, essa foi talvez a que, visando o domínio total, mais fez para apagar a relação dos seus súditos com o real. Grau zero da simulação. No entanto, historiadores e estudiosos, de distintas formações e colorações ideológicas, alcançaram (sabe o deus das pesquisas e arquivos locais como) denunciar e analisar as contradições do Maranhão e sua violência, sob os mais diversos aspectos, em vários momentos. Permita o leitor, ainda que de passagem, a lembrança necessária de alguns: João Lisboa, Jornal do Timon; Dunshee de Abranches, O Cativeiro; Carlota Carvalho, O Sertão; Mathias Assunção, A Guerra dos Bem-te-vis; Alfredo Wagner, A Ideologia da Decadência; Victor Asselim, Grilagem: corrupção e violência em terras do Carajás; Wagner Cabral da Costa, Sob o signo da morte: o poder oligárquico de Victorino a Sarney; Lourdes Lacroix, Jerônimo de Albuquerque Maranhão: guerra e fundação no Brasil colonial; Mundinha Araujo, Insurreição de escravos em Viana, 1867; Manuel da Conceição, Essa terra é nossa; Maristela de Paula Andrade (org.), Chacinas e Massacres no Campo; Yuri Costa, A Outra Justiça: a violência da multidão representada nos jornais, etc.

Para alguém minimamente afeito à realidade absurda do estado, as cenas de Pedrinhas evocam um filme de horrores inacreditáveis, presentes desde sua pré-história colonial. Tempos das primeiras guerras cruéis, onde cabeças indígenas eram decepadas em estranhos “folguedos bárbaros”. Horrores cuja recorrência, hoje, nem os estudiosos mais cretinos teriam coragem de negar. Em primeiro lugar, os da Balaiada, guerra matricial do Maranhão pós-colonial, desencadeada no final de 1838, por uma revolta na cadeia da vila da Manga (atual Nina Rodrigues), vale do Munim, por conta de recrutamentos arbitrários.

Horror reconhecido de cara por um autor monarquista, Gonçalves de Magalhães, com “um só fato”, mas que dizia tudo: “a um mísero ancião octogenário cortaram o ventre e nele coseram um leitão vivo, que lhe roía as entranhas; esta recordação horrível de um suplício tartáreo foi feita ante os olhos dos filhos e da esposa do desgraçado velho, e nem deixaram os frios algozes, que galhofavam, sem o ver exalar o último expiro no meio das cruéis vascas e dolorosos gritos da família, que além deste martírio foi espancada em despedida. A tanto chega a cruel fereza do coração humano!” (Memória histórica e documentada da Revolução da Província do Maranhão. São Paulo, Siciliano, 2001, p. 46). Houve quem duvidasse do exemplo, vendo exagero, por expressar preconceitos racistas de um conservador da Corte do Império. Mas, no dizer de autora mais insuspeita, Carlota Carvalho, a guerra dos Bem-te-vis foi um “espetáculo dos suplícios” traumático e alucinador (O Sertão. Ética, 2000, p. 138).

Numa entrevista recente, intitulada “Bonde errado”, dada ao jornal O Estado de S. Paulo (11/01/14), o advogado Luís Antonio Pedrosa, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, questionado sobre “vídeos de terror” em Pedrinhas, diz: “Num deles o preso teve o olho extraído e jogado ainda pulsando na direção de uma juíza que negociava as reivindicações; em outro abriram o tórax de um preso, tiraram o coração, deceparam seu pé e o colocaram dentro da cavidade. Entrar num presídio logo após uma rebelião é encontrar vísceras.” Na mesma entrevista, informa que presos dizem que a prática adotada pelas facções do presídio, de cortar cabeças de pessoas vivas como modo de impor respeito, foi inaugurada por um índio guajajara (Barra do Corda), tal o grau de revolta com as humilhações sofridas ali.

A visibilidade dos aspectos sinistros do sarneismo tem suas chances aumentadas, no entanto, na medida em que o país se ajusta com sucesso ao controle total do capital. Será mera coincidência que o instante em que o relâmpago de Pedrinhas ilumina o Brasil como “Grande Maranhão”, é o mesmo em que ele é atravessado pela lógica desastrosa do mercado mundial? Sem querer dizer que este sinal de alarme esteja sendo ouvido, é como se a “hora maranhense” do país se aproximasse a cada volta dada no ponteiro do relógio da normalização da exceção, da militarização da vida social e da administração da miséria extrema.

Na feição desmedida do Maranhão, a monstruosidade social brasileira atual é expressão, sem dúvida, do pacto republicano pra lá de diabólico do sarneismo com o governo FHC, intensificado com o Lulismo. Criatura genuína de uma ditadura que alçou a barbárie brasileira a patamares inéditos, essa oligarquia acompanhou e foi protagonista do colapso da modernização nacional-desenvolvimentista e da extinção da política no país. Ajustada às novas Administrações emergenciais do PSDB e depois PT, configura-se como um tipo bem sucedido de poder que ampliou as diferenças de classes, estrangulando suas lutas através da guerra civil molecular. Dirigido por um poder senhorial endinheirado, sua violência maior, com a conivência de sempre do poder nacional, foi transformar o estado num deserto de miseráveis físicos, intelectuais, morais e políticos. Como esperar iniciativa de mudança de um povo que não tem sequer saúde para se manter em pé?

Para os sobreviventes, resta o sentimento indefinível do acúmulo de problemas praticamente insolúveis. Não por acaso, nas últimas décadas, muitos têm fugido (quando não são traficados) em busca desesperada de saídas ou abrigos nos estados do Norte, Centro-Oeste, Sudeste, na expectativa ilusória de uma exploração mais civilizada. Outros seguem ralando e resistindo na província, do jeito que podem, no meio do nada. Será tão difícil assim compreender que o Maranhão, sem deixar de ser questão político-social, é também um problema humanitário?

SINAL DE ALERTA MARANHENSE

Nessas horas, ante a constelação de impasses insolúveis dentro da estrutura social-oligárquica de poder vigente, ou de qualquer pacote de medidas emergenciais vindas do governo federal, recoloca-se um enigma de dois séculos de idade, pelo menos, e que sintetiza vários outros. Afinal, o que é o Maranhão?

Preconceitos não deixam de ressoar no trato da pergunta. E o preconceito, como se sabe, não é só questão da ignorância dos fatos, como da forma de narrá-los. Quem estuda o Maranhão com sensibilidade crítica, e não só o do governo de ontem ou da “era Sarney”, sabe da cegueira singular gestada no coração sombrio das suas classes senhoriais. Mas quem, por exemplo, já passou pelo sudeste aprende logo que, desde muito tempo, o Maranhão não é apenas questão de geografia, simples ponto no extremo norte do país, mas símbolo do “atraso brasileiro” na sua forma igualmente extrema.  Nunca entenderam (desconhecemos exceções) a modernidade radical desse atraso.

Uma coisa é certa: é imenso equívoco falar do Maranhão como se fosse caso isolado, “feudo” distante, exótico lugar de “banquetes totêmicos”, originalidade das originalidades, tanto quanto como se fosse mais uma variação da situação nacional. Afirmação essa rapidamente explorada pela oligarquia para assegurar cinicamente sua “irresponsabilidade” criminosa e considerar injusto o que se diz sobre o Maranhão, e ainda posar como defensora “revoltada” da auto-estima de um povo que na prática destruiu e corrompeu. Contra o crescimento da vergonha, insegurança e desânimo popular, denegar sempre, até o fim: “não, o Maranhão não é isso; o maranhense é ordeiro”; o ocorrido foi coisa de “alguns celerados”; aqui “nunca teve uma tradição de violência”. A culpa é das “drogas”. Não é daqui…

É preciso indagar, sem ilusões, sobre a situação do estado e suas conexões obscuras com o país (a concordância dos últimos governos federais com o horror maranhense prova isto), mas evitando deduzir tal situação simplesmente a partir de uma abstração “nacional” ou do que se sabe sobre determinadas localidades e regiões (São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo), como fizeram diversos comentaristas e nossa oligarquia de cada dia. Diferença de grau? Pode ser. Mas diferença decisiva. Neste momento em que determinadas regiões do país parecem dar sinais de vitalidade social (indicado nos protestos de 2013), mas em que a exceção maranhense tende a tornar-se regra nacional, importa, no entanto, compreender a “dialética” de que se o Brasil é e sempre foi país de oligarquias, da desigualdade social e do encarceramento de pessoas das classes populares, nem todas as oligarquias, desigualdades ou formas de encarceramento são como as maranhenses (ou são?). Não é problema de quantidade, volume ou primazia, seja lá no que for, mas intensidade e duração. Qualidade das coisas.

Nas últimas décadas, abriu-se a possibilidade para recolocar a questão indicada, mas pelo avesso: a de uma “maranhensização” do Brasil a caminho. Fenômeno caracterizado pela disseminação de um coquetel improvável e atual a não poder mais de estado de exceção, formas de acumulação primitiva, combinação feliz de softwares importados e mão de obra barata e controlada, espoliação do trabalho (precisa lembrar que o estado é campeão do trabalho escravo?), agiotagem, assassinato de jornalistas corruptos e prefeitos idem, operação “boi barrica”, “operação tigre”, “Caso Matosão”, agronegócio predador, compra de eleições, força crítica e técnico-científica no chão, formas antigas de dependência cultural, desigualdade social, intolerância de todo tipo, alienação, impotência ou baixíssima capacidade de reação popular e campos de barbárie nos limites de Pedrinhas. Estamos falando de colônia, naturalmente.

A sensação é de que o clarão sobre o horror do Maranhão e seu universo carcerário (labirinto do minotauro que devorou Ariadne, ao contrário da fábula famosa) abre a possibilidade para pensar não apenas o estado em suas vísceras, mas, através destas, digamos sem receios, a genealogia do “totalitarismo” brasileiro emergente na virada do século XX para o XXI. Ao seu modo, o laboratório de Pedrinhas é isso aí. As cabeças degoladas e a vida da menina Ana Clara, que se foi nas chamas do ônibus incendiado, podem iluminar, no entanto, os caminhos do debate sobre as conexões entre ditadura e democracia, sarneismo e lulismo, norte e sudeste, pré-história e história do Brasil; produzir ângulos para perceber que o povo “capado e recapado, sangrado e ressangrado” deste estado é hoje um dos resultados mais visíveis, ou melhor, o resto, sem tirar nem pôr, do logro civilizatório do Brasil; e, sobretudo, a possibilidade de que este mesmo povo, das ruas e das prisões, abra os olhos, não para a salvação de quem nunca quis salvá-lo, “o Maranhão”, mas para a invenção da luta, das armas, invenção de si, visando superar de vez a guerra e a paz de cemitério deste programa fantasmagórico.

*Flávio Soares é professor do Departamento de História da UFMA. Texto originalmente publicado na edição de janeiro do Vias de Fato, nº. 50, já nas bancas

A retórica do ódio na cobertura

POR JAIME AMPARO ALVES*
OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA

Os brasileiros no exterior que acompanham o noticiário brasileiro pela internet têm uma impressão de que o país nunca esteve tão mal. Explodem os casos de corrupção, a crise ronda a economia, a inflação está de volta e o país vive imerso no caos moral. Isso é o que querem nos fazer crer as redações jornalísticas do eixo Rio-São Paulo. Com seus gatekeepers escolhidos a dedo, Folha de S. PauloEstado de S. PauloVeja e O Globo investem pesadamente no caos com duas intenções: inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e destruir a imagem pública do ex-presidente Lula da Silva. Até aí, nada novo. Tanto Lula quanto Dilma sabem que a mídia não lhes dará trégua, embora não tenham – nem terão – a coragem de uma Cristina Kirchner de levar a cabo uma nova legislação que democratize os meios de comunicação e redistribua as verbas governamentais para o setor. Pelo contrário, a Polícia Federal segue perseguindo as rádios comunitárias e os conglomerados de mídia Globo e Abril celebram os recordes de cotas de publicidade governamentais. O PT sofre da síndrome de Estocolmo (aquela em que o sequestrado se apaixona pelo sequestrador) e o exemplo mais emblemático disso é a posição de Marta Suplicy como colunista de um jornal cuja marca tem sido o linchamento e a inviabilização política das duas administrações petistas em São Paulo.

O que chama a atenção na nova onda conservadora é o time de intelectuais e artistas com uma retórica que amedronta. Que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso use a gramática sociológica para confundir os menos atentos já era de se esperar, como é o caso das análises de Demétrio Magnoli, especialista sênior da imprensa em todas as áreas do conhecimento. Nunca alguém assumiu com tanta maestria e com tanta desenvoltura papel tão medíocre quanto Magnoli: especialista em políticas públicas, cotas raciais, sindicalismo, movimentos sociais, comunicação, direitos humanos, política internacional… Demétrio Magnoli é o porta-voz maior do que a direita brasileira tem de pior, ainda que seus artigos não resistam a uma análise crítica.

Jornalismo lombrosiano – Agora, a nova cruzada moral recebe, além dos já conhecidos defensores dos “valores civilizatórios”, nomes como Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro. A raiva com que escrevem poderia ser canalizada para causas bem mais nobres se ambos não se deixassem cativar pelo canto da sereia. Eles assumiram a construção midiática do escândalo, e do que chamam de degenerescência moral, como fato. E, porque estão convencidos de que o país está em perigo, de que o ex-presidente Lula é a encarnação do mal, e de que o PT deve ser extinto para que o país sobreviva, reproduzem a retórica dos conglomerados de mídia com uma ingenuidade inconcebível para quem tanto nos inspirou com sua imaginação literária.

Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro fazem parte agora daquela intelligentsia nacional que dá legitimidade científica a uma insidiosa prática jornalística que tem na Veja sua maior expressão. Para além das divergências ideológicas com o projeto político do PT – as quais eu também tenho –, o discurso político que emana dos colunistas dos jornalões paulistanos/cariocas impressiona pela brutalidade. Os mais sofisticados sugerem que, a exemplo de Getúlio Vargas, o ex-presidente Lula se suicide; os menos cínicos celebraram o “câncer” como a única forma de imobilizá-lo. Os leitores de tais jornais, claro, celebram seus argumentos com comentários irreproduzíveis aqui.

Quais os limites da retórica de ódio contra o ex-presidente metalúrgico? Seria o ódio contra o seu papel político, a sua condição nordestina, o lugar que ocupa no imaginário das elites? Como figuras públicas tão preparadas para a leitura social do mundo se juntam ao coro de um discurso tão cruel e tão covarde já fartamente reproduzido pelos colunistas de sempre? Se a morte biológica do inimigo político já é celebrada abertamente – e a morte simbólica ritualizada cotidianamente nos discursos desumanizadores – estaríamos inaugurando uma nova etapa no jornalismo lombrosiano?

O espetáculo da punição – Para além da nossa condenação aos crimes cometidos por dirigentes dos partidos políticos na era Lula, os textos de Demétrio Magnoli, Marco Antonio Villa, Ricardo Noblat, Merval Pereira, Dora Kramer, Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes, Eliane Cantanhêde, além dos que agora se somam a eles, são fontes preciosas para as futuras gerações de jornalistas e estudiosos da comunicação entenderem o que Perseu Abramo chamou apropriadamente de “padrões de manipulação” na mídia brasileira. Seus textos serão utilizados nas disciplinas de deontologia jornalística não apenas como exemplos concretos da falência ética do jornalismo tal qual entendíamos até aqui, mas também como sintoma dos novos desafios para uma profissão cada vez mais dominada por uma economia da moralidade que confere legitimidade a práticas corporativas inquisitoriais vendidas como de interesse público.

O chamado “mensalão” tem recebido a projeção de uma bomba de Hiroshima não porque os barões da mídia e os seus gatekeepers estejam ultrajados em sua sensibilidade humana. Bobagem. Tamanha diligência não se viu em relação à série de assaltos à nação empreendida no governo do presidente sociólogo. A verdade é que o “mensalão” surge como a oportunidade histórica para que se faça o que a oposição – que nas palavras de um dos colunistas da Veja “se recusa a fazer o seu papel” – não conseguiu até aqui: destruir a biografia do presidente metalúrgico, inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e reconduzir o projeto da elite “sudestina” ao Palácio do Planalto.

Minha esperança ingênua e utópica é que o Partido dos Trabalhadores aprenda a lição e leve adiante as propostas de refundação do país abandonadas como acordo tácito para uma trégua da mídia. Não haverá trégua, ainda que a nova ministra da Cultura se sinta tentada a corroborar com o lobby da Folha de S.Paulo pela lei dos direitos autorais, ou que o governo Dilma continue derramando milhões de reais nos cofres das organizações Globo e Abril via publicidade oficial. Não é o PT, o Congresso Nacional ou o governo federal que estão nas mãos da mídia. Somos todos reféns da meia dúzia de jornais que definem o que é notícia, as práticas de corrupção que merecem ser condenadas e, incrivelmente, quais e como devem ser julgadas pela mais alta corte de Justiça do país. Na última sessão do julgamento da Ação Penal 470, por exemplo, um furioso ministro-relator exigia a distribuição antecipada do voto do ministro-revisor para agilizar o trabalho da imprensa (!). O STF se transformou na nova arena midiática onde o enredo jornalístico do espetáculo da punição exemplar vai sendo sancionado.

Coragem de enfrentar o monstro – Depois de cinco anos morando fora do país, estou menos convencido por que diabos tenho um diploma de jornalismo em minhas mãos. Por outro lado, estou mais convencido de que estou melhor informado sobre o Brasil assistindo à imprensa internacional. Foi pelas agências de notícias internacionais que informei aos meus amigos no Brasil de que a política externa do ex-presidente metalúrgico se transformou em tema padrão na cobertura jornalística por aqui. Informei-os que o protagonismo político do Brasil na mediação de um acordo nuclear entre Irã e Turquia recebeu atenção muito mais generosa da mídia estadunidense, ainda que boicotado na mídia nacional. Informei-os que acompanhei daqui o presidente analfabeto receber o título de doutor honoris causa em instituições europeias e avisei-os que por causa da política soberana do governo do presidente metalúrgico, ser brasileiro no exterior passou a ter uma outra conotação. O Brasil finalmente recebeu um status de respeitabilidade e o presidente nordestino projetou para o mundo nossa estratégia de uma América Latina soberana.

Meus amigos no Brasil são privados do direito à informação e continuarão a ser porque nem o governo federal nem o Congresso Nacional estão dispostos a pagar o preço por uma “reforma” em área tão estratégica e tão fundamental para o exercício da cidadania. Com 70% de aprovação popular e com os movimentos sociais nas ruas, Lula da Silva não teve coragem de enfrentar o monstro e agora paga caro por sua covardia. Terá Dilma coragem com aprovação semelhante, ou nossa meia dúzia de Murdochs seguirão intocáveis sob o manto da liberdade de e(i)mpre(n)sa?

*Jaime Amparo Alves é jornalista e doutor em Antropologia Social, Universidade do Texas, Austin

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Cheguei a este texto via Ademir Assunção.

Bandeira e a imprensa

“A opinião pública é a opinião da imprensa, não existe opinião pública.”

“A grande imprensa é o porta-voz do pensamento das classes conservadoras. E o domesticador do pensamento das classes dominadas. As pessoas costumam encarar os meios de comunicação como entidades e empresas cujo objetivo é informar as pessoas. Mas esquecem que são empresas, que elas estão aí para ganhar dinheiro. Graças a Deus vivemos numa época em que a internet nos proporciona a possibilidade de abeberarmos nos meios mais variados. Eu mesmo tenho uma relação com uns quarenta sites onde posso encontrar uma abordagem dos acontecimentos do mundo ou uma avaliação deles por olhos muito diversos; que vai da extrema esquerda até a extrema direita. Não preciso ficar escravizado pelo que diz a chamada grande imprensa. Você pega a Folha de S. Paulo e é inacreditável. É muito irresponsável. Eles dizem o que querem, é por isso que eu ponho muita responsabilidade no judiciário.”

“Quando as pessoas movem ações contra eles [os ditos grandes veículos de comunicação], contra os absurdos que eles fazem, as indenizações são ridículas. Não adianta você condenar uma Folha, por exemplo, ou umaVeja a pagar R$ 30 mil, R$ 50 mil, R$ 100 mil. Isso não é dinheiro. Tem que condenar em R$ 2 milhões, R$ 3 milhões. Aí, sim, eles iriam aprender. Do contrário eles fazem o que querem. Lembra que acabaram com a vida de várias pessoas com o caso Escola Base? Que nível de responsabilidade é esse que você acaba com a dignidade das pessoas, com a vida das pessoas, com a saúde das pessoas e fica por isso mesmo? Essa é nossa imprensa.”

*

Trechos de entrevista de Celso Antônio Bandeira de Mello a Elton Bezerra na Consultor Jurídico. Gracias ao amigo Pedro Marinho pelo envio do link.

Livreiro do Maranhão quer realizar um dos sonhos da “menina da capa”

O rosto é familiar, quer você adore, quer você odeie o MST. A imagem não ficou restrita à capa do livro. Correu mundo. Virou quase sinônimo do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, que conta com a simpatia e o apoio deste blogue em suas lutas.

Há alguns dias ganhou repercussão nas redes sociais, a partir de matéria publicada na Folha de S. Paulo, o fato de a menina da capa ou a menina da foto ou a menina do livro, como ficou conhecida, ser ainda uma sem-terra, 16 anos depois de lançado o Terra, com fotografias de Sebastião Salgado, pela Companhia das Letras.

A matéria é boa, apesar do problema (da grande mídia de que dona Folha faz parte) de usar o verbo “invadir” em vez de “ocupar” para se referir às ações do MST na luta pela reforma agrária no Brasil.

Em determinada passagem do texto Joceli Borges, hoje com 21 anos, diz ter dois sonhos: um lote de terra e dois exemplares do livro cuja capa estampou aos cinco. Um para ela, outro para seu pai.

O livreiro José Arteiro, um dos proprietários da livraria Linha do Equador (Av. dos Holandeses), hoje, em seu perfil no Facebook, informa ter comprado dois exemplares usados do livro na Estante Virtual: “Vou doar os dois livros que ela pediu, um para seu pai e outro para ela. Fiquei comovido com o pedido”, desabafou.

Arteiro está tentando contato com a menina para providenciar o envio. Quem tiver informações escreva para arteiromuniz@hotmail.com

Feira na Praia – Entre os próximos dias 30 de agosto e 2 de setembro, sempre das 16h às 22h, na Av. Litorânea (Calhau), próximo ao parquinho, diversos livreiros de São Luís realizarão uma Feira do Livro, a exemplo do que já fizeram em shopping centers e paisagens outras da capital maranhense. Oportunidade de comprar livros a preços promocionais curtindo a brisa (já que banho de mar, nem pensar!).

Praia suja faz turismo despencar em São Luís

DA FOLHA DE S. PAULO

Na alta temporada, ocupação de hotéis passou de 75% em 2011 para 53% neste ano, segundo associação do setor

Justiça obrigou Estado a instalar placas sobre poluição em abril; todas as praias estão impróprias para banho

REYNALDO TUROLLO JR.
DE SÃO PAULO

A ocupação dos hotéis na alta temporada em São Luís/MA – marcada pelos festejos juninos, pelo bumba meu boi e pelas férias – despencou neste ano. A culpa, diz o setor, é das praias sujas.

Por ordem da Justiça Federal, o Estado teve de divulgar um relatório sobre a situação das praias e instalar, em abril, placas alertando sobre a poluição. Todas as praias da cidade estão impróprias para banho devido ao esgoto, segundo monitoramento do governo.

Praias como a do Calhau, considerada uma das mais bonitas da cidade, e a da Ponta d’Areia, a mais movimentada, onde ficam os clubes de reggae, estão com o nível de coliformes fecais na água acima do considerado tolerável.

TRANSPARÊNCIA  Segundo a Promotoria do Meio Ambiente, a situação é conhecida pelo menos desde 1997, quando foram feitos estudos sobre a falta de tratamento de esgoto na ilha.

“A população não percebia a realidade porque não havia transparência”, explica o promotor Fernando Barreto.

A cidade sentiu os reflexos. “O turismo e a rede hoteleira estão ameaçados. Estamos tendo que fazer cálculos mirabolantes para não demitir”, diz o presidente da ABIH (Associação Brasileira da Indústria de Hotéis) em São Luís, João Antônio Barros Filho.

A taxa de lotação de hotéis e pousadas na cidade em junho e julho de 2011 foi de 75%. Neste ano, caiu para 53%. “É culpa das praias.” As empresas associadas à ABIH têm 5.800 leitos, diz Barros Filho.

MÁ IMPRESSÃO – “No caminho do aeroporto para o hotel, o taxista me avisou de que nenhuma praia estava própria para banho”, disse o turista mineiro Thiago Bernardo Pinto, 32, que visitou São Luís em junho. “Foi a primeira má impressão.”

Em frente à pousada de Barros Filho, um cano despeja esgoto na praia há quatro anos. O cheiro incomoda os hóspedes, que só usam a piscina. Ele diz que alertou a Caema (companhia ambiental do Estado), sem sucesso.

A Caema, sociedade de economia mista gerida pelo Estado, explora os serviços de abastecimento e coleta e tratamento de esgoto na cidade. Segundo o site do órgão, apenas 38,6% dos moradores têm acesso à rede de coleta.

A cidade tem pouco mais de 1 milhão de habitantes.

De 1994 para cá, a Promotoria ajuizou oito ações contra o Estado e a Caema, cobrando o tratamento do esgoto.

Uma delas transitou em julgado em 2005. A Justiça ordenou que o governo parasse de lançar esgoto in natura nas bacias dos três maiores rios.

Como a ordem não foi cumprida, a Promotoria pediu à Justiça, em junho, que bloqueie as verbas de publicidade da Caema e do governo de Roseana Sarney (PMDB) para pagar R$ 22 milhões de multas.

Segundo a Promotoria, a prefeitura também é ré em parte das ações, por fazer a concessão do esgoto à Caema sem cobrar bons resultados.

Carlos Latuff contra a tortura

Nem lembro quando e como conheci o trabalho de Carlos Latuff. Provavelmente a primeira lembrança que tenho de um cartum seu é a famosa imagem abaixo, em que o jornalista Vladimir Herzog aparece enforcado vestindo uma florida camisa de turista tomando um coquetel (ou caipirinha ou “refresco”) com aquela fruta espetada na beirada do copo, enforcado por um cinto, o suicídio inventado, paródia da talvez mais conhecida foto do ex-diretor de jornalismo da TV Cultura. Aludia ele ao episódio em que a Folha de S. Paulo afirmara que a ditadura brasileira não passara de ditabranda.

Latuff é um gênio! Menos conhecido no Brasil que fora dele, nem sei dizer se infelizmente. Lá fora tem cumprido utilíssimo papel ao fazer críticas bem humoradas com seus traços e cores a diversos acontecimentos políticos. De sua arte também não escaparam episódios nacionais como o massacre de Pinheirinho, em São Paulo, e a ocupação do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, apenas para citar alguns dos mais recentes. Quem quiser saber e ver mais do trabalho do rapaz, basta acessar seu blogue, o dele, digo.

Em março passado, mais precisamente dia 22, quando se completaram cinco anos do assassinato do artista popular Jeremias Pereira da Silva, o Gerô, espancado até a morte por policiais militares em 2007, Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Maranhão (OAB/MA), Ouvidoria de Segurança Pública e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) lançaram Campanha de Combate à Tortura.

Dias antes, fiz contato com Latuff, cujo compromisso com causas e ideais nobres eu já conhecia. Um e-mail e alguns telefonemas depois, ele me encaminhou a bela arte do cartaz da Campanha, que abre este post e eu já havia publicado em alguns lugares.

Hoje é Dia Mundial de Apoio às Vítimas de Tortura. Roubo do perfil do jornal Vias de Fato no facebook a imagem abaixo, que o carioca desenhou há dois anos. A imagem permanece atual: infelizmente a tortura ainda é prática recorrente em nosso país. É preciso mudar este quadro, urgentemente!

A história de joelhos

RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO – Biógrafos, editores, juristas e demais interessados na liberdade de expressão reuniram-se ontem na Biblioteca Nacional para apoiar o projeto de lei do deputado federal Newton Lima Neto (PT-SP) propondo-se a corrigir os artigos 20 e 21 do Código Civil, que agridem justamente essa liberdade garantida na Constituição. Pelos ditos artigos, que pretendiam proteger as pessoas simples de exposições indevidas, as figuras públicas, inclusive as mortas, ganharam poder de autorizar ou não os livros que contam suas histórias.

Conheço bem essas “autorizações”. Uma semana antes da publicação de “Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha”, em 1995, o advogado das herdeiras do jogador -sem ter lido o livro- telefonou para ameaçar a Companhia das Letras com um processo por danos morais e falta de autorização. “Mas”, acrescentou, “tem acordo…”. Que consistia no pagamento de US$ 1 milhão, na época, R$ 1 milhão.

Significa que, com uma “autorização” desse valor, podiam-se praticar quantos danos morais se quisessem e, no caso, o biografado fosse lamber sabão. Para não abrir um precedente fatal, a editora preferiu o processo, o qual resultou na proibição do livro por um ano, arrastou-se por outros 11 e foi danoso para todos, inclusive para as pobres filhas de Garrincha. Pela ferocidade do processo, que assustou muita gente, o craque deixou de inspirar muitos subprodutos que poderiam beneficiá-las.

Uma biografia se compõe do protagonista, de uns 20 personagens secundários e de 200 ou 300 terciários. Com a interpretação que a Justiça dá hoje aos artigos 20 e 21, qualquer um desses, por mais insignificante, pode alegar que “não autorizou” sua participação ou a de seu pai ou avô no livro, e partir para a extorsão.

A cada “autorização” pedida por um biógrafo, é a história do Brasil que rasteja e se humilha.

[Folha de S. Paulo, Opinião, hoje]