Quase 1.500 almas lotaram completamente ontem (11) o Centro de Convenções Pedro Neiva de Santana para prestigiar um histórico encontro de gigantes: MPB-4, Toquinho e Ivan Lins (por ordem de subida ao palco) trouxeram à ilha o espetáculo com que comemoram seus 50 anos de carreira, com produção local de Mário Moraes e Alegria Produções. Vinham de Teresina/PI, onde a apresentação foi cancelada por falta de público.
“50 anos da gente, mais 50 do Toquinho, mais 50 do Ivan Lins, que eu acho que esconde a idade, são na verdade 150 anos de música”, brincou Miltinho (voz e violão), após abrirem com De frente pro crime (João Bosco/ Aldir Blanc).
É um show descontraído, não há guerra de egos ou coisa que o valha. Estão todos irmanados em oferecer o melhor de si, em nome da música, com muito bom humor. “Espero que vocês aí gostem. Aqui no palco, podem ter certeza que adoramos”, continuou Aquiles (voz) – o grupo se completa com Paulo Malaguti (voz, teclado e percussão) e Dalmo Medeiros (voz e percussão, ex-Céu da Boca).
Destaque, na apresentação do MPB-4, para a sequência Chico Buarque, em que entoaram Yolanda (Pablo Milanés, versão de Chico Buarque), Apesar de você, Roda viva e Cálice (Chico Buarque/ Gilberto Gil).
A interpretação de Amigo é pra essas coisas (Aldir Blanc/ Silvio Silva Jr.), certamente uma das mais aguardadas da noite, foi algo sublime, de arrepiar, um show à parte.
O espetáculo como um todo, não podia ser diferente, era uma espécie de antologia ao vivo. Não à toa surgiu Toquinho, violão em punho, atacando de Tarde em Itapuã (Toquinho/ Vinicius de Moraes). Ainda com o MPB-4 no palco desfilou seu repertório infantil: A casa (parceria com Vinicius de Moraes), Ar (O vento) (idem), A bicicleta (Mutinho/ Toquinho), O caderno (Toquinho/ Mutinho) e Aquarela. Em meio a tudo isso, O pato (Toquinho/ Vinicius de Moraes), com direito a incidental de Miltinho imitando a voz do Pato Donald ao entoar Ninguém me ama (Antonio Maria). “O pato tá fodido!”, gracejou ainda no timbre do personagem da Disney.
Discípulo de Paulinho Nogueira, Toquinho reverenciou seus mestres do violão, incluindo Gente humilde (Garoto; a música depois ganhou letra de Chico Buarque e Vinicius de Moraes) no repertório. Não esqueceu também seu primeiro sucesso: Que maravilha (parceria com Jorge Ben). Tampouco deixou de fora Samba de Orly, outra parceria “adulta” com Vinicius de Moraes.
Antes de sair do palco, anunciou Ivan Lins, que seria acompanhado, na percuteria, por outra lenda viva da música brasileira, o que garante a sigla-soma do título desta resenha: João Paraíba, integrante do mítico Trio Mocotó – que gravou com Jorge Ben no início da carreira, e com o jazzista Dizzy Gillespie, cujas sessões, por anos desaparecidas, renderam o ótimo Dizzy Gillespie no Brasil com Trio Mocotó, gravado em 1974 e lançado apenas em 2010.
Pouco depois de subir ao palco, Ivan Lins reclamou do excesso de luzes de celulares apontados em direção ao palco. Alegou desconcentrar-se e pediu a compreensão da plateia. Em sequência, pouco ligando para se a plateia atendeu ou não a seu apelo, passeou por repertório autoral, incluindo, entre outras, Abre alas, Lembra de mim e Madalena, além de Sou eu (parceria com Chico Buarque). A plateia foi ao delírio.
Foi um show recheado de histórias engraçadas, muito bem humorado. Toquinho, por exemplo, lembrou de quando o compositor e cronista Antonio Maria se passou por Vinicius de Moraes ao encontrar uma mulher muito bonita num avião, lendo um livro do poetinha – não havia no livro foto de seu autor e Maria morria de medo de aviões. Levou a mentira até o fim, tendo saído com a mulher, a quem convidou para jantar. Ao encontrar Vinicius, contou: “você broxou!”.
Ivan Lins lembrou-se de quando, entrevistado por Alcione, Tom Jobim respondeu que a única saída para a música popular brasileira era o aeroporto – resposta que ele não mudou apesar da insistência da direção da emissora. “Era um tempo em que a Globo ainda tinha programas de tevê dedicados a boa música. Mas isso foi há muito tempo”, afirmou, entre o lamento e a galhofa, para aplausos da plateia.
Lembrou-se também de Cauby Peixoto, gravando um “difícil” como “difíxil”, como se imitasse o Jorge Ben de Por causa de você menina, o “você” pronunciado como se grafado com x. Lembrou-se até de Latino, que gravando uma participação em um disco, foi advertido várias vezes pelo diretor: “você desafinou”, seguido de “está fora do ritmo”, “tem que ter sentimento”. Ao que o cantor retrucou: “eu sou só um: ou canto afinado, ou no ritmo, ou com sentimento”.
O apoteótico final reserva o encontro no palco de sete grandes artistas, passeando por Regra três e, no bis, Quem te viu, quem te vê, dos onipresentes Vinicius de Moraes (parceria com Toquinho) e Chico Buarque, respectivamente. “Noite de gala”, como (quase) diz a letra da saideira.
BASTIDORES
Pouco antes do show, Homem de vícios antigos foi até os camarins e conversou rápida e exclusivamente com os astros da noite
Homem de vícios antigos – Vocês têm uma relação com o Maranhão de longa data, desde que defenderam Gabriela, num festival em 1967, e depois gravaram Descampado verde, ambas de Chico Maranhão. Qual a sensação de visitar a terra de um parceiro das antigas? Vocês mantêm algum tipo de contato até hoje? Há algum número de Chico Maranhão previsto no roteiro?
Aquiles – Não. A gente não canta há muito tempo Gabriela, nem Descampado verde. Descampado verde por acaso eu até ouvi recentemente a gravação. Eu falo com ele por facebook, ele disse que vai a São Paulo e a gente está combinando de se encontrar para tomar uma cachaça. Ele falou que vai para passar um tempo, tem umas coisas para fazer, e a gente vai se encontrar. A gente foi muito junto com ele, no início da nossa carreira, exatamente aquele festival, outros festivais, a gente andava junto, era uma turma de amigos que por acaso cantavam, faziam sucesso, a gente ficou bem próximo naquela época, depois cada um espalhou. A gente já veio algumas vezes, fazia tempo que a gente não vinha à São Luís e eu espero que para vir uma próxima vez não demore tanto.
Vocês estão comemorando 50 anos de carreira, começaram dentro de um período turbulento da história brasileira, a ditadura militar. Que paralelo vocês fazem com o momento político vivido no Brasil, hoje?
Aquiles – Quando a gente começou a gente vivia sob uma ditadura. Agora a gente não vive sob uma ditadura, ao contrário, estamos em um regime democrático, mas existe uma crise política muito forte, que em alguns momentos parece até que não estamos em uma democracia. Mas o fato é que a gente está numa democracia e temos que descobrir jeitos de endireitar o que está torto, completamente torto.
Você tocou muitos anos com Papete, que nos deixou recentemente. Qual o lugar e a importância de Papete?
Toquinho – Eu conheci o Papete e trabalhei com ele durante muitos anos. Fizemos tantos shows, fora do brasil, aqui. Papete era um dos melhores percussionistas do mundo. Ele tinha uma precisão incrível, matemática, parecia um cientista tocando percussão. Ele tocava tudo, eu fazia meus discos com ele. Eu queria fazer uma escola de samba, ele gravava toda a escola de samba, gravava o bumbo, depois o pandeiro, depois o tantã, repinique, ele fazia instrumento por instrumento, gravava tudo. Cantava muito bem, fez vários discos importantes, resgatando toda uma cultura popular, tanto daqui quanto de outras regiões do Brasil. Era um músico fantástico, trabalhou com pessoas importantes, não só comigo, com Vinicius, Almir Sater. Fiz uma turnê com ele, só violão e percussão na Itália, nós trabalhamos muito, gravamos muito, muitos discos. Eu tinha uma confiança enorme musical nele, como amigo também, claro. Dividimos vários momentos, não só no palco, mas no cotidiano, fizemos grandes investidas musicais. Meus discos quase todos foram gravados com a percussão do Papete. Era um dos maiores percussionistas do mundo, não só do Brasil. Acho que se ele tivesse ido para os Estados Unidos ele seria um percussionista como alguns brasileiros que estão lá e são conhecidos mundialmente. Ele seguramente estaria ali no nível desses grandes músicos, mas aqui no Brasil ele fez um trabalho muito bonito mesmo, vai deixar saudade e uma lacuna que não pode ser preenchida facilmente. Ou melhor, não vai ser preenchida à maneira dele. Ele tinha uma sensibilidade, uma precisão e uma sutileza para tocar que realmente eu não vejo em outros percussionistas até hoje.
Você ficou muito conhecido por Aquarela, há pouco na passagem de som você tocou O vento, A bicicleta. Tua obra vai muito além dessa faceta infantil. O fato de você ser mais reconhecido por ela te incomoda?
Toquinho – Eu não concordo com isso, não acho que eu sou conhecido como música infantil. Acontece que essas músicas estão ficando mais que as outras. É um dos caminhos que eu segui. São gerações que estão passando e elas ficam novas para as crianças que estão vindo e vai ficando, de geração em geração. Essas músicas não estão morrendo. Tarde em Itapuã é uma geração que ouviu. Quando você pega Aquarela, A bicicleta, O caderno, os colégios estão fazendo festa de final de ano com elas. As crianças estão vendo essas canções como canções novas. O cara que tem 50 anos hoje cresceu ouvindo essas músicas, o filho dele, pode ser que ele já tenha netos. Na minha geração eu sou o único que tem essa vantagem. O que tem de gente, criança no shopping que vem me pedir autógrafo, às vezes a mãe quer o autógrafo, faz a criança cantar [risos]. Toda essa geração de 15 anos me conhece, pode conhecer o resto, mas vem por esse lado. Vem aqueles adultos falar comigo: “cresci ouvindo sua música” [risos]. [O disco] A Arca de Noé foi [lançado em] 1980, nós estamos falando de quase 40 anos. Aquarela é de 1983, são 33 anos. Quem tem 40 anos hoje, tinha sete quando ela foi feita. Isso que você ouviu [na passagem de som] é por que nós temos um momento no show só de música infantil. É de um show que eu faço com o MPB-4, nós resgatamos essa célula do show. Eu não posso deixar de fazer no show um momento lúdico. Eu tou pra fazer um show, uma produção grande, só de música infantil. Eu tenho quatro discos de música infantil, A Arca de Nóe [volumes] 1, 2, Casa de brinquedos e os Direitos da Criança [Canção de todas as crianças, de 1987], que é uma coisa reconhecida pela ONU. O público mais forte que existe é o infantil, ele carrega três quando vai assistir, leva mãe, pai, tia, avó.
Vinicius de Moraes é tua maior saudade na música?
Toquinho – Ele me dá saudade mais pessoal do que musical. [Quando] Ele morreu, um ano antes eu já estava trabalhando sem ele. Me dá saudade dessa hora, ele aqui tomando uísque, o que ele diria do Brasil hoje, seria muito bom ouvir a piada dele com o Tom Jobim, eram pessoas muito inteligentes. Faz falta isso, o que eles diriam de tudo, que músicas eu teria feito com ele esse tempo todo. Mas ao mesmo tempo eu esgotei com o Vinicius. Foram 10 anos, a gente morava junto, foram mais de 130 músicas, mais de 1000 shows. Chegou um momento que tinha que parar a parceria, ele foi embora na hora que tava madura já a coisa. Parece que ele me deu um aval para seguir a carreira sozinho, e foi um grande aprendizado com ele, que eu tou usufruindo até hoje, nós estamos falando dele até agora. Ele quem me passou esse lado infantil, esse lado lúdico, eu nunca pensei que eu fosse fazer música infantil na minha vida. Ele era muito mais jovem que eu, o tempo inteiro, eu era muito mais o fio-terra da relação, ele era o cosmonauta, o Vinicius era jovem, eu era muito mais velho. Eu comecei a musicar os poemas infantis dele, O pato, O pinguim, brincando, nunca pensei que a gente ia ficar disco. A gente gravou na Itália, a gente não tinha coragem de gravar no Brasil, essas cançõezinhas, a gente não tinha noção de como ia ficar. Na Itália estourou o disco, La casa [cantarola trecho de A casa em italiano]. Aí o Vinicius falou “vamos gravar no Brasil”. Chamamos vários artistas, que é A Arca de Noé, Chico, Milton Nascimento, todos toparam, foi um estouro, especial de televisão, Globo. A gente percebeu que tinha um caminho que estava aberto, era o blá blá blá, o refrãozinho, a gente começou a fazer isso de uma maneira mais séria, sem subestimar a criança. Tá dando no que deu. Estou com um trabalho muito bonito para fazer com o Elifas Andreato, que é A casa dos sonhos. São sentimentos que ganham vida e cada sentimento tem uma canção. O primeiro sentimento que eu fiz foi a mentira, é uma personagem maravilhosa, é ela quem canta. Tem muita coisa para se fazer no mundo infantil, eles me ensinaram muito, as crianças. É muito mais difícil você fazer música infantil, tem que ter humor, e ao mesmo tempo não subestimar a criança. Tem coisas que ela não entende que vai perguntar pro pai, aí o pai já tem que se interessar pela música. O caderno é um exemplo típico, é uma canção que as pessoas se emocionam até hoje. É uma canção infantil, mas ao mesmo tempo não é, você mexe no emocional da mulher, da menina, o caderno acompanha a gente desde os primeiros rabiscos, passando por várias fases. É infantil isso? Não sei, mas ficou sendo. Aquarela? Nunca foi música infantil, é uma música, só que as crianças adotaram, a publicidade da Faber Castell foi importante, tem 25 anos já, fazendo Aquarela, Aquarela, claro, as crianças adotaram isso, a coisa do lápis de cor. A vida é feita de circunstâncias, você não tem às vezes a intenção de fazer aquilo ou de dar a dimensão que ela assume, é a vida que faz isso, não sou eu. Eu só faço a música.
Você é um dos artistas brasileiros de mais prestígio internacional. Qual o segredo?
Ivan Lins – Essa aceitação não sou eu só, é toda uma comunidade de compositores que mantiveram dentro de sua música as raízes brasileiras. O grande diferencial que tem nisso tudo é o fato de que nós temos raízes brasileiras no nosso trabalho e ao mesmo tempo, quer dizer, nós temos a influência da música clássica, do jazz, da música folclórica brasileira. Nós somos uma mistura e a forma como nós desenvolvemos essa mistura é que cria essa identidade. Nossa linguagem é completamente diferente da deles. Tem similaridade nos acordes, nas harmonias, mas nós temos uma maneira muito particular de compor, e eu estou inserido nisso. Minha forma de compor agrada muito a eles pelas melodias e harmonias. Minhas harmonias vêm de Antonio Carlos Jobim, vem de Milton, vem de Dori [Caymmi], Ravel, Debussy, basicamente, Carlos Lyra, são assim os mais importantes. E veio também do jazz, antes de começar a compor eu era pianista de jazz e bossa nova, nem cantava, só música instrumental. Essa mistureba toda, a gente tem uma maneira muito particular de processar as informações, a gente percebe que fora, em outros lugares, é o que os encanta, surpreende. O Brasil também tem uma coisa, nós não temos uma escola definida de música. O Quincy Jones falou uma vez uma frase que eu achei incrível: “eu fico impressionado como vocês fogem da didática harmônica que é ensinada nos conservatórios. Vocês, depois de um dó maior perfeito, colocam um si menor com sétima, nona, décima primeira, com a maior naturalidade e totalmente fora da didática, e fica lindo, e fica lindo” [risos]. Talvez até pelo fato de grande parte da gente não estuda música da maneira como a música é ensinada no primeiro mundo, nesses conservatórios. Brasileiro é muito intuitivo e isso é o que faz com que a gente crie essa identidade completamente diferente, e eles levam um susto.