Umberto Eco, Jean Wyllys, Cleidenilson, “jornalismo” e linchamentos

Capa do Extra (RJ) de hoje (8). Reprodução
Capa do Extra (RJ) de hoje (8). Reprodução

 

Tenho certeza que todos/as os/as coleguinhas que passaram pela faculdade de jornalismo viram O nome da rosa, de Jean-Jacques Annaud, baseado no livro de Umberto Eco.

Há quase um mês o escritor italiano declarou que “as redes sociais dão o direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade””.

Recorro ao mestre – que talvez me localizasse nesta “legião de imbecis” – para tratar do assassinato de Cleidenilson Pereira da Silva, de 29 anos, segunda-feira passada (6), por volta de meio dia, no Jardim São Cristóvão.

O caso já é por demais conhecido, sobretudo após ganhar repercussão nacional: depois de uma tentativa de assalto a um bar na região, Cleidenilson foi rendido, amarrado a um poste, despido, e assassinado a socos, chutes, pauladas, pedradas e garrafadas, sangrando em via pública até o óbito.

Nada justifica o ato selvagem, a barbárie nossa de cada dia, a “vingança” coletiva – São Luís tem uma média de um linchamento mensal, embora nem todos ganhem a mesma repercussão. O ato, além de tudo, foi extremamente covarde, já que a vítima estava imobilizada.

A maioria dos comentaristas de internet faz jus à sentença de Eco: “o drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Quase nenhum deles consegue ir além das tentativas de justificar o crime pela exceção: “e se invadissem sua casa?”, “e se estuprassem sua filha?”, “leva pra casa!” – este último comentário em relação ao adolescente que sobreviveu à turba enfurecida que assassinou Cleidenilson. A maioria não apenas concorda, como teria ajudado a linchá-lo se lá estivesse presente. E além: ajudarão a linchar qualquer um/a em qualquer circunstância, se no futuro tiverem oportunidade.

De minha parte, prefiro acreditar no – e lutar pelo – aperfeiçoamento dos sistemas de justiça e segurança pública, entre outras políticas públicas garantidoras de direitos, para que não existam Cleidenilsons – não no sentido de aniquilá-los, mas no de que deixem ou sequer ingressem no mundo do crime – nem linchadores, com suas práticas medievais em pleno século XXI.

À “legião de imbecis” que aplaudiu o linchamento – segundo o carioca Extra, que deu uma bela capa hoje (8) sobre o assunto, 71% dos que comentaram a notícia no perfil do jornal no facebook são a favor da prática – soma-se agora a que critica o deputado federal Jean Wyllys (PSol/RJ), justamente por ele ter emitido opiniões contrárias à manada enfurecida que bate/u palmas para o preto tingido de vermelho sob o sol inclemente de São Luís do Maranhão em pleno meio dia.

Uns revoltaram-se com as expressões “turba de psicopatas” e “multidão surtada de fascismo”, usadas por ele. “A carapuça só assenta na cabeça de quem usa”, já diria minha sábia vozinha. Acham ilegítimas as manifestações do parlamentar pelo fato de ele ser baiano, ter sido eleito pelo Rio de Janeiro e pouco visitar o Maranhão (à distância só se pode incentivar o linchamento?).

O diabo não é o “idiota da aldeia” ou a “legião de imbecis”: estes são o autointitulado “cidadão de bem”, propagador do senso comum – alimentado pelos programas policialescos de rádio e tevê, cabe lembrar – de que “bandido bom é bandido morto”. O diabo é jornalistas e veículos ditos “sérios” embarcarem no tom monocórdio, em vez de separar o joio do trigo.

A também muito boa capa de O Estado do Maranhão de ontem (7). Reprodução
A também muito boa capa de O Estado do Maranhão de ontem (7). Reprodução

A primeira visita de Danilo Caymmi à Ilha

[Íntegra da entrevista publicada quarta-feira passada, 20, no Alternativo, O Estado do Maranhão]

Danilo Caymmi conversou sobre memória, o centenário do pai, Dorival Caymmi, download, biografias, festivais, Ecad, e é claro, música

O artista durante a entrevista no hall do hotel. Foto: Zema Ribeiro
O artista durante a entrevista no hall do hotel. Foto: Zema Ribeiro

 

O cantor e compositor Danilo Caymmi esteve em São Luís no fim da semana passada. Veio para um show no Ponta do Bonfim – Música e Por do Sol. Realização de um grupo de amigos apreciadores de boa música, o projeto já trouxe à Ilha, noutras edições, nomes como Paulinho Pedra Azul e Renato Braz.

O filho de Dorival, cuja obra foi celebrada no show, estava cansado – vinha de participar do Festival Sesc de Inverno, em Petrópolis/RJ, mas não se negou a nos conceder uma entrevista, um dia antes de sua apresentação, num dos cartões postais que admirou em São Luís.

Acompanhado do produtor Miguel Bacelar, Danilo trajava camisa preta, calção e tênis no fim da tarde da sexta-feira (8). Conversamos num sofá na recepção do Premier Hotel, onde estavam hospedados. Antes da conversa, em que esbanjou simpatia, sacou o celular e, já sentado, fotografou a tarde. Revelou-me ter conta no instagram: “Eu gosto de fotografar. Me divirto na estrada. Aqui tem um céu lindo”, elogiou.

Seu show no projeto Ponta do Bonfim foi precedido das apresentações de Alberto Trabulsi, que ofereceu um repertório de clássicos da música brasileira, acompanhado de Reuber Rocha (guitarra) e Guilherme Raposo (teclado), e Bruno Batista, que acompanhado de Luiz Jr. (violão de sete cordas, guitarra e banjo), mesclou músicas de seus dois mais recentes discos a inéditas, contando com a participação especial de Claudio Lima – chegaram a anunciar para setembro nova edição do show Hein?, em que os dois dividem o palco.

Entre canto e flauta (emprestada de Zezé Alves), Danilo Caymmi, acompanhado ao violão por André Siqueira, passeou por clássicos de sua autoria, de seu pai e músicas de Tom Jobim. Não faltaram Andança [Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós], Casaco marrom [Danilo Caymmi, Guarabyra e Renato Corrêa], O bem e o mal [Danilo Caymmi e Dudu Falcão], O que é o amor [Danilo Caymmi e Dudu Falcão] – as duas, temas da minissérie Riacho Doce, baseada na obra de José Lins do Rego –, Marcha dos pescadores [Dorival Caymmi], Você já foi à Bahia? [Dorival Caymmi], Maracangalha [Dorival Caymmi], Vamos falar de Tereza [Danilo e Dorival Caymmi] – tema da minissérie Tereza Batista Cansada de Guerra, baseada na obra de Jorge Amado –, Samba da minha terra [Dorival Caymmi], Marina [Dorival Caymmi], Eu sei que vou te amar [Tom Jobim e Vinicius de Moraes], entre inúmeros outros clássicos, cantados pelo público a plenos pulmões, com direito a aplausos de pé e insistentes pedidos de “mais um”.

Do pai, de quem herdou o bom humor, contou ainda histórias engraçadas, certamente já consagradas nos anedotários baiano e da música popular brasileira. O sol já havia se posto quando ele deixou o palco, reafirmando o prazer em estar em São Luís pela primeira vez e a vontade de voltar.

Com o violonista André Siqueira, durante o show na Ponta do Bonfim. Foto: Doriana Camello
Com o violonista André Siqueira, durante o show na Ponta do Bonfim. Foto: Doriana Camello

 

Você já conhecia São Luís? Não. É a primeira vez que estou aqui. Trabalho desde os anos 1970 viajando, vamos ser bem específicos, 1973, depois de muitos projetos Pixinguinha, a única capital do Brasil que eu não conhecia era aqui, São Luís, o estado também. É a primeira vez que eu venho. Estou caprichando mesmo para fazer um show superlegal por que estou devendo muitos anos. É muito especial, estou encantado, não conhecia o Centro Histórico, mas sei da fama, dos Lençóis também. Estou fascinado. Eu me divirto muito com fotografia durante essas excursões, fotografei muitas coisas agora no trajeto do aeroporto para cá.

Como é que pintou o convite? Foi surpresa? Demorou muito a aceitar? Não, eu aceitei de primeira. O Miguel [Bacelar, produtor] recebeu o convite, aceitamos logo. Eles [a produção do projeto Ponta do Bonfim – Música e Por do Sol] já haviam feito um evento aqui com um amigo comum, o Renato Braz, grande cantor, amigo de meu irmão Dori [Caymmi]. Quando eu soube, “poxa, é a oportunidade bacana de conhecer”. Pra mim tá sendo meio show e turismo também.

Duas expectativas: qual a sua para o show de amanhã e o que o público pode esperar de você? A minha expectativa para amanhã é fazer o melhor possível. O público pode esperar isso. Como eu nunca estive aqui, é uma vontade de, como se tivesse muito tempo perdido, resgatar. Vou mudar um pouco o repertório. Vou cantar meus sucessos, Andança, Casaco Marrom, as músicas de Riacho Doce, até um arranjo especial para uma bem específica dessa trilha, O que é o amor, minha com Dudu Falcão, um arranjo do André Siqueira, que está comigo, que é um grande músico, e canções de Caymmi também. Nós estamos fazendo shows, eu Dori e Nana [Caymmi], pelo Brasil, vamos fazer dia 16 agora no HSBC em São Paulo. Estou muito feliz em estar aqui. Estou cansado, é lógico, estava na Serra, trabalhando no Rio, 10 graus de temperatura, chego aqui essa exuberância do calor, um almoço maravilhoso, uma pescada maravilhosa, estou encantado, realmente encantado. Sempre tem Caymmi, Jobim, músicas minhas, basicamente isso, com tratamento novo, embora eu não fique muito centrado nos discos que eu gravei.

Como outros grandes nomes da música do Brasil, entre os quais destaco os Chicos Buarque e Maranhão, você também chegou a cursar arquitetura. Isso! Como Tom Jobim também.

Alguma semelhança entre os ofícios? Compor é arquitetar? Tem. Por exemplo, algumas músicas do Riacho Doce são muito curtas, pequenas, e muito densas. Isso também é uma influência direta da arquitetura, da casa mínima, da simplicidade condensada. Sala, quarto, cozinha e banheiro, ali está tudo o que você precisa sem muitos arabescos, a ideia é essa. As canções são muito diretas, elas já entram dizendo a que vem. Como exemplos eu posso dizer O bem e o mal, minha com Dudu Falcão, O que é o amor também. São canções com uma síntese muito forte, é uma coisa proposital que tem a ver com a estrutura da arquitetura.

Teu pai chegou a ficar indeciso entre a pintura e a música. A arquitetura, ou algum outro ofício, tentou te desencaminhar da música? Sim. A Marinha. Tem um parceiro de meu pai, ele tem poucos parceiros, Hugo Lima era oficial da Marinha. Quando eu tinha uns 10 anos, 11 anos ele me levou para o Rio, nós fomos fazer um passeio, arsenal de Marinha, eu conheci aqueles barcos todos, Marinha de guerra, eu fiquei fascinado, quase eu entrei para a Marinha quando eu tinha uns 16 anos, a Escola Naval.

O que significou para você tocar no Som Imaginário, e pouco depois ter integrado a banda de Tom Jobim? Além, é claro, do fato de ter nascido em uma das famílias mais musicais do Brasil? Foi muito importante. No caso do Matança do porco [terceiro e último disco do grupo Som Imaginário, de 1973], arranjos do Wagner Tiso [compositor e pianista], na verdade a gente nem dava muita importância para o disco naquele momento, era uma fase muito fértil, muito criativa, praticamente a gente dominava a Odeon, músicos novos, numa faixa de 20 a 25 anos, todo o pessoal do Clube da Esquina, músicos cariocas como Robertinho, Luiz Alves. Por acaso a gente se cruzava muito da Odeon, a gente ia fazendo outras coisas, gravando, e Wagner Tiso me chamou para tocar essa flauta. Eu estava tocando muito, em vários discos importantes da MPB. Esse foi um ano muito fértil, saíram discos muito importantes em 1973. Depois, o Tom também tem uma importância enorme: ele me descobriu como cantor. Até então eu cantava com a voz mal colocada. Já era compositor, já tinha ganhado festivais com Andança e Casaco Marrom, e o Tom me disse, quando eu entrei pra Banda Nova, “canta, essas músicas assim”, ele dizia, “por que eu tenho a voz assim abafada ao alho” [risos], aí eu peguei solos, olha só que responsabilidade, Samba do avião [Tom Jobim] e A felicidade [Tom Jobim e Vinicius de Moraes]. A gente cantou no mundo inteiro meus solos dentro do show dele. Eu tive que me preparar para o canto com a professora Heloisa Madeira, que era prima dele, aí fui descobrir a minha voz mesmo, depois foi embora, gravei o primeiro disco de sucesso, pelas mãos do Mariozinho Rocha, na Globo.

Qual o tamanho da responsabilidade, qual o peso de ser um Caymmi? Estou vendo isso muito na minha filha [a cantora Alice Caymmi]. No começo de carreira cobram muito, como estão cobrando dela. Parece que estou vendo a minha própria vida passando, por que ela, os tios são Dori e Nana, o avô Dorival Caymmi, ela com 24 anos. É o mesmo processo. Tem uma hora que as pessoas começam a destacar, o próprio público tira do contexto, diz assim, “pô, eu gosto é do Danilo, eu gosto muito da Nana, gosto do Dori”, e se vai juntando esses pedaços para uma personalidade musical, com a ajuda do público, naturalmente.

Qual o significado deste 2014, o centenário de Caymmi, a importância de celebrar a obra dele? Nós [a família] começamos desde o ano passado a trabalhar efetivamente no centenário. Temos vários produtos. Por partes, vamos começar pelo livro: tem a biografia [Dorival Caymmi – Acontece que ele é baiano], da minha sobrinha Stella, filha da Nana, que também tem textos de João Ubaldo [escritor baiano recém-falecido], talvez tenha sido o último texto grande de João Ubaldo, do Caetano Veloso, do professor Júlio Diniz da PUC, e da própria Stella, um livro maravilhoso. Tem quatro discos em andamento, o disco [Caymmi] que a família gravou pela Som Livre ano passado, que ganhou prêmio especial de música popular [no Prêmio da Música Brasileira], tem o disco [Dorival Caymmi – Centenário] a ser lançado, de produção de meu irmão e Mario Adnet [violonista], com participação do Chico Buarque, Caetano, Gil, eu, Nana e Dori, e o próprio Mario Adnet, um disco meu [sem título definido] já com outra conotação, produtores da cena contemporânea, Domenico Lancelotti e Bruno di Lullo, a ideia do disco é o seguinte: eu quero saber como eles olham Dorival Caymmi, eu estou somente como cantor e flautista.

Os arranjos são deles? Tudo deles. Repertório, a escolha do repertório, tudo. Shows, tem o Mar de Algodão, um show meu, do Francis [Hime, compositor e pianista] e da Olivia [Hime, cantora], com orquestra, tem formato para grande orquestra e também reduzido, direção do Flávio Marinho. Tem os shows, eu, Nana e Dori, que a gente vai fazer em São Paulo agora, e Salvador. Tem o [show] Dorivália, da Alice Caymmi, que já é uma coisa mais jovem, mas bem consistente, uma visão da obra, puramente dela. Agora estou fechando um balé também. E tenho também um trabalho com Claudio Nucci [cantor e compositor]. Uma exposição [Caymmi 100 anos] que está em São Paulo agora, patrocinada pelos Correios, com curadoria da Stella Caymmi, que deve seguir para Brasília em setembro. E eu tenho uma ideia também de transformar uma redução dessa exposição, estou buscando patrocínios, para que se possa passar essa exposição, com pocket show meu e do Claudio, por exemplo, aqui em São Luís, uma espécie de Semana Caymmi. A ideia é uma itinerância, e também as atividades de pensamento. É muito importante explicar Caymmi para professores, para que depois o professor transmita para os alunos, uma parte mais educacional para formação de massa crítica. A gente acabou de fazer isso no Festival de Inverno. Fomos eu, o professor Julio Diniz, Stella e um músico. A gente fala das coisas, da obra de Caymmi, das curiosidades, do que as pessoas não sabem, em determinado momento a gente ilustra isso musicalmente, o público pergunta. Isso deve acompanhar minha ideia, por exemplo, vem aqui, se faz uma Semana Caymmi em São Luís, vem a exposição, o show, essa atividade de pensamento é a menina dos olhos, pelo ponto de vista da memória. Estamos fazendo isso também para que sirva também de exemplo para outros centenários que virão, já se tem certo know how do que é preciso fazer. Você viu, por exemplo, o centenário de Vinicius [de Moraes] passou batido, a família entregou para uma firma só, o que é um risco muito grande. Eu mesmo estou negociando tudo separado.

A intermediação dos parentes pode ser um fator facilitador, por conta da preocupação com a preservação da memória, não apenas uma empresa querendo ganhar dinheiro. Absolutamente. Essas atividades de pensamento os cachês são irrisórios, pelo tempo e pelo sacrifício, mas a importância é enorme. Você ter um professor tão abalizado como o Julio, a Stella, que entende profundamente da obra, eu, ilustrando musicalmente e falando o que sei do convívio, com um bom músico, isso é bacana, é um lado de educação. Particularmente acho que o problema cultural do Brasil passa pela educação diretamente. A nossa preocupação é formação de massa crítica: quanto mais tem formação de professores, os professores ficam sensibilizados, levam isso para a escola, pedem para as crianças fazerem trabalhos sobre Dorival Caymmi, sobre a música. A gente precisa tomar cuidado com isso, de preservar a memória. É muito importante. Recentemente caiu num vestibular quem era Tom Jobim e ninguém sabia, mas as crianças não têm culpa disso. Tem que formar o professor e daí você chega na memória. A mídia quer ganhar dinheiro ou não pagar direito autoral. E não é um problema só do Brasil. O mundo hoje está ligado, tem grandes conglomerados interessados em não pagar direito autoral, então faz parte você eliminar o passado e só ver o presente, o imediato, a cultura relâmpago.

Você falou há pouco sobre a liberdade dada a produtores para recriar a obra de Dorival Caymmi. Li há algum tempo uma declaração de Dori, mais preocupado com a intocabilidade da obra do pai de vocês. Vocês divergem nesse quesito? A gente bate um pouco de frente, Dori pensa de uma maneira, eu penso de outra. Eu acho que você tem que motivar o jovem a pegar daqui e levar pra frente. Papai mesmo detestava isso de “naquele tempo que era bom”, ele já era muito progressista, olhava muito à frente. Sempre foi um esteta e um vetor. Eu também sigo isso. Tem que motivar o jovem a olhar, pelo que ele entende, se é rock, se é funk. Eu não sou dessa polêmica se a música tá velha. As coisas têm uma dinâmica própria, tem muita gente trabalhando, fazendo coisas incríveis pelo Brasil inteiro. Agora, tem que ter o pensamento mais aberto, para entender essa diversidade e essa complexidade dessa situação que a gente vive. É um mundo novo que se desperta com a internet. Aí é que está! As pessoas não aceitam computador, não aceitam essa informação. Eu adoro essa dinâmica que está no mundo, existem coisas belíssimas. Tem muita coisa acontecendo.

Como é sua relação com essa tecnologia em relação ao consumo e a produção da música? Como você enxerga, por exemplo, a figura do download? Eu fui diretor da Abramus [Associação Brasileira de Música e Artes] quatro anos, uma associação de direitos autorais. Eu sempre vi isso, o que acontece, a internet acaba ajeitando as coisas desfavorecendo ao autor. A gente está passando uma fase difícil, mas pela própria dinâmica, como a internet age, ela é livre, ela acaba ajeitando uma forma de remunerar o autor. Acho que estamos passando um momento de transição que penaliza o direito autoral, em função de grandes companhias, grandes conglomerados econômicos internacionais. Não tem como ser contra [o donwload] por que vai chegar um garoto de 10, 15 anos e vai hackear tudo. Essa coisa de “a minha privacidade”, isso não existe mais. Não existe pilar de concreto, é uma coisa mutante, ela anda, ela vai se formando, como nossas células. Ou você tem essa compreensão ou fica muito difícil conviver nesse mundo.

Parece uma discussão já encerrada a polêmica sobre as biografias. Qual a sua opinião sobre aquele imbróglio todo? Eu acho muito ruim cercear o direito de as pessoas escreverem biografias. Onde se discute isso é na justiça: você não gostou, vai atrás da justiça. Como também eu sou contra essa questão de colocar o diretor da estrutura do direito autoral num controle do governo, ou transformar uma lei que o governo controla isso. Amanhã você pode ter um governo diferente. Hoje nós vivemos num ambiente privado, amanhã isso pode ser uma arma voltada para a gente. Como a gente tem esse problema todo com a Ordem dos Músicos do Brasil há anos, é uma coisa de carimbo do Estado. Você não consegue sair disso. Se os músicos acabarem com a Ordem perdem direitos trabalhistas e por aí vai. Eu sou totalmente contra esse negócio de você controlar. A biografia não autorizada tem que existir. Vai esconder o quê? Não tem nada pra esconder. O artista já é transparente. A gente cai numa dinâmica que o mundo não aceita mais, uma dinâmica antiga, um conselho de cinco pessoas que vai decidir não sei o quê ou desqualificar o próprio autor.

Qual a sua opinião sobre o Ecad [o Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais]? O Ecad é um escritório de arrecadação de direitos autorais com todos os defeitos, mas é privado, é nosso, é do compositor. Eu sou contra a estatização de um ambiente privado. Quando eu trabalhava com direito autoral se discutia a criação do Instituto Brasileiro do Direito Autoral, com a criação de 200 empregos. Quem vai pagar isso? O compositor! As pessoas tratam o Estado brasileiro, “ah, o Ecad é uma porcaria, mas o governo é ótimo! O governo é uma vestal”. Quando se trata disso o governo é lindo e o Ecad é ruim. Agora vamos comparar o Ecad com a corrupção dentro do governo, em todas as esferas: como é que fica isso? Nada contra você ter, dentro do Ministério da Cultura, como tinha antigamente, um Conselho Nacional do Direito Autoral, o CNDA, como se fosse uma agência, ver o que está acontecendo. Agora, transformar num Instituto Brasileiro de Direito Autoral, com 200 empregos, diretorias, jetons, isso é ruim. Eu quero que o Ecad seja mesmo virado de cabeça pra baixo, só não quero que seja estatizado, por que eu não posso sair do pressuposto de que o Estado brasileiro no momento é uma vestal.

Hoje e amanhã (8 e 9) acontece em São Luís a 6ª. edição do Lençóis Jazz e Blues Festival, um festival não competitivo que tem a cantora Joyce Moreno entre as atrações. Você, cuja carreira começou em festivais, acha que o formato, bastante difundido nas décadas de 1960 e 70 se esgotou? Hoje os festivais promovidos pela televisão mais se parecem reality shows. Já. Pois é, não adianta, esse formato caiu. Hoje tem que se encontrar uma coisa diferente, alguém vai encontrar uma fórmula competitiva diferente, acredito que se passe pela rede. Primeiro que você tem vários segmentos. Essa juventude, tem um pessoal mais novo que há muito tempo não compra cd. Hoje os lançamentos são feitos só pela rede, ou vinil. A música tomou uma cara diferente, também está transformando, estão procurando maneiras de divulgar seu próprio trabalho, maneiras de ser ressarcido por esse trabalho também. Aí é que entra a dinâmica que vai mudar o direito autoral. O próprio jovem vai encontrar maneiras de ser remunerado, o jovem acha isso injusto, quem fez não ganha. Tom Jobim dizia, “ah, é um cachê simbólico. Poxa, mas a conta de luz não é simbólica, a conta de telefone não é simbólica”. Nós somos profissionais. Tem uma visão muito preconceituosa, às vezes, de achar que estamos em casa tocando violão, na rede. Se trabalha de segunda a segunda e não para de trabalhar. Trabalhar com arte no Brasil não é fácil. A gente precisa desse dinheiro de direito autoral, a arrecadação vem caindo, caindo, caindo. Essa forma antiga não existe mais. Eu dei sorte, peguei uma época áurea.

Obituário: Ubiratan Teixeira

Ubiratan Teixeira perdeu ontem (15) a batalha que travou nos últimos meses contra um câncer no estômago. Nome fundamental para a literatura, o jornalismo e o teatro maranhenses, Bira, como era conhecido entre os íntimos e os nem tanto, deixa importante legado nas áreas em que atuou.

As áreas, em sua obra, aliás, não raro se confundiam. Transitava com desenvoltura por elas, às vezes mesclando-as. Suas crônicas em O Estado do Maranhão, jornal em que trabalhou desde a fundação, não raro deixavam o leitor na dúvida: o que ali havia acontecido de verdade e o que era pura invenção da cabeça mágica de Bira? A pulga na orelha do leitor que só os melhores cronistas conseguem plantar.

No teatro era autor e crítico. Seu grande Pequeno Dicionário de Teatro é obra que o torna merecedor de respeito em qualquer canto e se Bira não foi mais famoso ou conhecido (respeitado era e continuará sendo), certamente é por ter optado pela província. Seu conto Vela ao crucificado rendeu festejadas adaptações ao teatro, por Wilson Martins, e ao cinema, por Frederico Machado.

Encontros – Em 2007 sua novela Labirintos venceu uma das categorias do último edital para literatura lançado pela Secretaria de Estado da Cultura. Vez por outra, à época, ele ia à sede do órgão, na Praia Grande, saber do desenrolar das coisas para a publicação, prevista no regulamento do certame. Os poucos encontros que tivemos sempre foram muito agradáveis: Bira era muito educado, simpático e engraçado. Adorava ouvir suas lembranças de episódios hilários somadas às de José Maria Nascimento, Nauro Machado e Wilson Martins, gargalhadas às quais por vezes somei as minhas, quando eles se reuniam, para água, cafezinho e prosa, na sala que eu ocupava (naqueles idos eu chefiava a Assessoria de Comunicação da Secma). A burocracia emperrou e as obras vencedoras do edital lançado pelo governo Jackson Lago só foram publicadas no governo Roseana Sarney, quando o golpe judiciário tirou aquele do poder.

Ubiratan merece mais respeito. Foto: Murilo Santos

 

O Estado da lambança – Se por um lado a oficialidade, em notas de pesar e fotografias aos pés do féretro, parece lamentar realmente a perda de Ubiratan Teixeira, por outro sua memória parece já ameaçada: qual Tião Carvalho apontado como João do Vale, no Parque Folclórico da Vila Palmeira, órgão público estadual, o velho e saudoso Bira aparece, no mesmo “palco”, como Odylo Costa, filho, entre gente – inclusive o com quem lhe confundem – de sua mesma envergadura: Ferreira Gullar e Josué Montello. Nem comentarei a grafia do nome do jornalista que batiza outro importante órgão público estadual.

Homenagem – Ubiratan Teixeira já havia sido escolhido pela Fundação Municipal de Cultura como um dos homenageados da 8ª. Feira do Livro de São Luís, que acontecerá em novembro.

Outra grande perda – Em pouco mais de um mês, é a segunda grande perda para as letras maranhenses: seu confrade na Academia Maranhense de Letras (AML) José Chagas faleceu em 13 de maio passado.

Sobe José Chagas, maior versejador destas plagas

Conheci José Chagas (Piancó/PB, 29/10/1924 – São Luís/MA, 13/5/2014) primeiro por sua poesia, simples, mas não simplória, portanto cativante. Paixão à primeira leitura. Durante certo tempo acompanhei suas crônicas sabáticas nO Estado do Maranhão, valendo-me da assinatura de algum lugar em que trabalhei.

Ainda lembro-me do impacto de ouvi-lo abrindo XXI, livro-disco de Celso Borges. Depois o conheci pessoalmente, já velho e frágil. Dizer conhecer, neste caso, talvez soe um exagero: eu não era um seu amigo, nem fomos próximos, vi-o no máximo duas ou três vezes, em geral em eventos. Numa Feira do Livro o ouvi falar, por ocasião do lançamento de algum de seus muitos livros.

Ele não tardaria a abandonar a coluna e deixar leitores órfãos de sua pena – perdoem se não lembrar aqui a ordem precisa em que os fatos se deram. Depois deixaria de lançar livros. Dizia ter abandonado a poesia. Com sua subida – o poeta faleceu às 13h de hoje, após dias internado em um hospital da capital – familiares certamente descobrirão material inédito. Chagas pode até ter abandonado a poesia, mas esta certamente não o abandonou.

Uma vez pensei em entrevistá-lo por ocasião de alguma efeméride de Marémemória (1973), seu livro-poema tornado peça multimídia (1974) pela trupe do Laborarte, donde vem essa imagem de Josias Sobrinho e Cesar Teixeira que encabeça este blogue. Por qualquer motivo não o fiz.

Como até agora não escrevi sobre o lindo A palavra acesa de José Chagas, obra-prima lançada no posfácio de 2013, pelas mãos “cavando a terra alheia” de Celso Borges e Zeca Baleiro, um disco fundamental, imprescindível. Como a própria poesia de José Chagas.

A exemplo de outros pa/lavradores que de alguma forma relacionaram poesia e música, Chagas será lembrado sobretudo por Palafita (José Chagas/ Fernando Filizola/ Toinho Alves) e, principalmente, Palavra acesa (José Chagas/ Fernando Filizola), versos seus musicados pelo Quinteto Violado ainda na década de 1970 – a segunda fez estrondoso sucesso cerca de 15 anos depois, quando escolhida para trilha sonora de uma novela da Rede Globo. Ambas as faixas estão em A palavra acesa de José Chagas, recriadas, a primeira por Lula Queiroga e Silvério Pessoa, a segunda por Zeca Baleiro.

Era certamente um de nossos maiores poetas, mas nem isso se considerava. E não por modéstia, já que afirmava ser o maior versejador que conhecia. Nesse quesito, todo mundo está certo, todo mundo tem razão. Chagas era grande no que fazia.

Deixa mais de 20 livros publicados, entre os quais destaco (diante da importância no conjunto da obra ou por questão de gosto pura e simples) Marémemória (1973), Lavoura azul (1974), Alcântara – negociação do azul (ou A castração dos anjos) (1994), De lavra e de palavra (ou Campoemas) (2002) e Os canhões do silêncio (2002), entre outros. Obra vasta e profunda que merece ser (mais) conhecida – ainda é tempo.

Protesto por transparência ocupa Secma; secretária se esconde

No estado com o menor número de policiais por habitante, a governadora Roseana Sarney destacou cinco viaturas e duas motos para conter cerca de 20 manifestantes do Bloco da Lagosta, que ocuparam parte do térreo da Secretaria de Estado de Cultura do Maranhão (Secma), ontem (24), no finzinho da tarde.

A secretária Olga Simão, que responde pela pasta, mentiu: mandou algum moleque de recados seu informar aos manifestantes que não estava e fugiu não se sabe por onde. O superintendente de ação e difusão cultural Wellington Reis fez uma cara de “o que é que eu tou fazendo aqui?” e o secretário adjunto Israel Ferreira desceu e fez o que faria qualquer um que fala do que não entende: não disse coisa com coisa nem convenceu quem estava ali buscando apenas o que deveria ser condição sine qua non de qualquer jeito de governar, isto é, transparência no trato com a coisa pública.

Em resumo, os manifestantes querem saber que critérios foram adotados para selecionar uns artistas maranhenses outros não para compor a programação carnavalesca oficial do Governo do Maranhão, se houve licitação para a contratação do Marafolia para a organização da festa e quanto se está gastando na “palhaçada”, digo, “brincadeira” toda. Questões que deveriam ter respostas antes mesmo das perguntas, que há muito já deveriam ter sido feitas pela Assembleia Legislativa e por meios de comunicação.

No fim de semana Olga Simão deu entrevista ao jornal O Estado do Maranhão, de propriedade de seus patrões. Entre um monte de chavões e lugares comuns, destaco o trecho que segue, da última resposta da secretária ao repórter: “A grande meta deste ano é a inclusão do estado no Sistema Nacional de Cultura (modelo de gestão que visa ao fortalecimento institucional das políticas culturais no Brasil)” [O Estado do Maranhão, Geral, p. 8, domingo, 23/2/2014, link para assinantes com senha]. Uma pergunta lógica viria a seguir, mas todos sabemos por que não foi feita: como integrar um Sistema Nacional de Cultura sem respeitar princípios básicos de democracia e transparência como um simples edital público para a composição de uma programação oficial?

O Vias de Fato, “o jornal que não foge da raia”, como reza um de seus slogans, foi o único a se fazer presente ao protesto de ontem. O texto foi postado no perfil do veículo no facebook. Continue Lendo “Protesto por transparência ocupa Secma; secretária se esconde”

Brasil-Polônia, uma ponte pavimentada de alegria musical

Barbosa Trio surgiu após turnê do músico paranaense Wagner Barbosa pela Polônia, acompanhado do cearense Rafael Mota Rodrigues e do polonês Kuba Palys. Sonoridade de Alegria, disco de estreia do grupo, tem vários sotaques

POR ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ESTADO DO MARANHÃO

O Barbosa Trio não carece de muito tempo para fazer jus ao título de seu disco de estreia: Alegria [2013]. Se você tomar como marco zero a audição da bolachinha em si, disponível para download grátis no site do bandleader Wagner Barbosa, bastam os segundos iniciais de Pererê (parceria dele com Demetrius Lulo), faixa de abertura. Mas antes, ver a capa, em que ele e Rafael Mota Rodrigues e Kuba Palys aparecem em tons circenses, fellinianos, já garante alguma… alegria.

O paranaense Wagner Barbosa já tinha um disco, mas este Alegria foi concebido após uma turnê do trio pela Polônia, terra natal de Palys – Rodrigues é cearense. A ponte Brasil-Polônia garante ao disco vários sotaques – ou deveríamos dizer sorrisos? – incluindo o nordestino, o jeito “leste europeu” de tocar piano do titular do instrumento, o jazz, a bossa, a beatlemania.

Wagner Barbosa (voz, violão e arranjos), Rafael Mota Rodrigues (percussão) e Kuba Palys (piano) passeiam entre temas autorais e releituras, com participações especiais de Toninho Ferragutti (sanfona na faixa título), Joanna Chmielecka (voz na faixa título), Jurandir Santana (guitarras em Água de beber), Jorge Helder (contrabaixo em Nothing new), do grupo polonês de percussão Ritmodelia (em Pata de elefante) e Lu Amaral e Adonias Jr. (vozes em Vento bravo). Kuba Palys canta o Blackbird dos Beatles.

A palavra polonesa Szczęście, que significa felicidade, também aparece na capa, e é uma grata surpresa ouvir o modo como toca o trio, entre seis músicas de autoria de Wagner Barbosa (duas em parceria) e regravações de Blackbird (Lennon/ McCartney), Água de beber (Tom Jobim/ Vinicius de Moraes) e Vento bravo (Edu Lobo/ Paulo César Pinheiro). Alegria, felicidade e outros sentimentos aparecem. Algo que a boa música ainda é capaz de proporcionar.

[Esta reseninha saiu nO Estado do Maranhão, caderno Alternativo (link para assinantes com senha), no último dia 4 de dezembro. Aqui faço duas correções: não sei como este blogueiro errou os sobrenomes do percussionista do grupo e do contrabaixista convidado]

Como é que se diz eu te amo

[O Estado do Maranhão, Alternativo, ontem]

10 coisas que eu podia dizer no lugar de eu te amo, um disco sobre o amor que foge da pieguice

Kléber Albuquerque escreve e canta o amor sem soar cafona

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO

As 10 coisas que eu podia dizer no lugar de eu te amo [Sete Sóis, 2012] são, na verdade, 14, este o número de faixas do novo disco de Kléber Albuquerque, um de nossos mais interessantes compositores da atualidade.

O repertório, inteiramente autoral, é quase todo inédito – Kléber recria Tevê, parceria com Zeca Baleiro, gravada por ele em O coração do homem bomba, e Devoluto, parceria com Sérgio Natureza, homenagem a Celso Borges, gravada em Música, livro-disco do poeta, de que ambos participam – aqui o reencontro de Kléber e Baleiro, que canta nas duas regravações. Outros parceiros que comparecem são Sérgio Lima (Brincadeira de amor), Lúcia Santos (All Star e Terra do Nunca) e Gabriel de Almeida Prado (Sujeito objeto). Elaine Guimarães divide com ele os vocais em Vazante – momento sublime, de versos como “lágrima/ água com navalha/ migalha de mar/ mágoa é água parada”. Entre os músicos André Bedurê (contrabaixo), Michelle Abu (percussão), Ricardo Prado (teclados) e Rovilson Pascoal (guitarras).

É um disco sobre o amor, o que entrega o título e o colorido florido da chita (maranhense?) da capa – o próprio Kléber assina produção musical e projeto gráfico, este com Vivi Correa –, mas fugindo do piegas. “Essa tal de poesia/ é coisa que vicia/ e maltrata o coração/ faz rimar fel e folia/ faz amar quem não devia/ dá rasante na razão/ mas em comparação/ com outras profissões/ vê mais sol/ vê mais lá/ vê mais dó”, canta em Maquinário, sobre o próprio ofício.

Nem só de amor vive o artista, que brinca com gramáticos e dicionaristas em Sujeito objeto: “Ei, Pasquale/ por que o andar dessa menina/ sempre rouba palavras da minha boca?/ Ei, Aurélio/ por que o olhar dessa garota/ planta versos na minha cabeça oca?/ Michaelis/ então me diga o motivo/ de tantos adjetivos”. Quer dizer, é sobre o amor, sim. Tevê é sarro com a sociedade consumista: “comercial de xampu/ cerveja e celular/ mentiras para crer/ e credicard”. No fundo, é também sobre o amor, aquele amor-preguiçoso esparramado no sofá da sala.

São 15 anos de carreira, inaugurada em 1997 com 17.777.700. 10 coisas é o sexto disco de um dos compositores preferidos de nomes como Ceumar e Rubi, para ficarmos em duas das melhores vozes que já o interpretaram. São mais de 15 anos dedicados à música, que o amor ao ofício não começa no disco. A continuar nestas trilhas, o número de apaixonados por Kléber Albuquerque e sua obra só tende a aumentar.

Caos no sistema penitenciário: há tempos o governo tem as mãos banhadas de sangue

Em cerca de 10 dias o saldo de mortos na Penitenciária de Pedrinhas chega a 18 – ontem (9) foram 13, mais 30 feridos – e o seríssimo problema tenta ser encoberto pela mídia governista como mera “guerra de gangues”. Puro cinismo! Outra tentativa dos poderosos de tapar o sol com a peneira foi responsabilizar a descoberta de um plano de fuga pela rebelião: não colou, um detento desmentiu a versão – no próprio jornal governista.

A tática é conhecida: membros de facções rivais são colocados juntos e o resultado é o banho de sangue que lava as páginas e ajuda a vender jornais. As autoridades tapam o nariz e fazem de conta que não têm nada a ver com isso. Hoje reforçada pela tecnologia e redes sociais, o mau gosto espalha-se rapidamente e em larga escala.

“Governar é cuidar das pessoas”, apregoa o slogan das propagandas governistas. A apática Roseana Sarney tem as mãos – se não o corpo todo – banhadas de sangue, após seguidas carnificinas, dentro e fora dos presídios. Se isto é cuidar das pessoas, melhor dispensar.

Aos mortos, sequer resta dignidade – algo que já não tiveram em vida – membros expostos no açougue humano para o deleite de um público de um freak horror show.

As redes sociais, as mesmas que proliferam os registros do terror, ajudam a espalhar boatos: um arrastão aqui, um não saiam de casa acolá. O que só torna as coisas ainda piores do que já estão, a realidade mais bruta e cruel que a ficção.

“Providências terão de ser tomadas”, disse Aluísio Mendes, secretário de segurança pública, ao jornal de seus patrões, O Estado do Maranhão. Há tempos deveriam ter sido tomadas: a começar pelo domínio da corrupção no sistema penitenciário, se não o que explica a entrada de drogas e armas em presídios?

Deixo um exemplo antigo, tão antigo que o próprio Aluísio Mendes já era secretário. Nem preciso dizer quem (já) era a governadora do Estado, preciso?

Um craque das letras

[Íntegra da entrevista publicada hoje no Alternativo, O Estado do Maranhão]

O escritor e jornalista Xico Sá, autor convidado da 7ª. Feira do Livro de São Luís, falará ao público sobre jornalismo, literatura e futebol, temas da palestra que fará dia 2 de outubro no Teatro João do Vale auditório da Faculdade de Arquitetura. Na entrevista concedida aO Estado ele abordou ainda cinema, a viagem que fará à Espanha, a obra de Bruno Azevêdo e arriscou um palpite sobre a ascensão do Sampaio Correia à série B

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO

Nascido no Ceará, formado jornalista em Pernambuco, Xico Sá há muito está radicado em São Paulo. Já desfilou seus textos, dos mais elegantes da literatura e do jornalismo brasileiros, por veículos como Veja, Folha de S. Paulo, Playboy, Trip, TPM, V e muitos outros.

É autor de livros tão diversos como Nova Geografia da Fome – parceria com o fotógrafo Ubirajara Dettmar, que percorreu os caminhos iniciais do Programa Fome Zero no Brasil –, Modos de Macho e Modinhas de Fêmea, Se um cão vadio aos pés de uma mulher abismo, Catecismo de Devoções, Intimidades e Pornografias e o mais recente, Big Jato, espécie de autobiografia inventada que virará filme em breve (leia um trecho).

Também se aventura com a mesma elegância e desenvoltura por terrenos difíceis como o consultório sentimental – o que fez no Saia Justa, do GNT, e continua em seu blogue, hospedado no site da Folha de S. Paulo – e na crônica esportiva – aos sábados os leitores da mesma Folha deliciam-se com seu inconfundível jargão, “amigo torcedor, amigo secador”.

Outras aventuras de Xico dão-se ainda no campo da música e do cinema. O jornalista é parceiro de bandas como a mundo livre s/a e estrelou videoclipes de Sidney Magal [Tenho] e Junio Barreto [Passione], além de ter feito pontas como ator em filmes como Crime Delicado (baseado no livro homônimo de Sérgio Sant’anna) e O cheiro do ralo (baseado idem em Lourenço Mutarelli).

Convidado da 7ª. Feira do Livro de São Luís, Xico Sá estará numa mesa mediada por este jornalista, no Teatro João do Vale auditório da Faculdade de Arquitetura (Rua da Estrela), dia 2 de outubro (quarta-feira), às 18h. Ele falará sobre Literatura, jornalismo e futebol. Por e-mail, o candidato a galã da 7ª. FeliS concedeu a entrevista a seguir a O Estado.

O Estado do Maranhão – Quais as expectativas para um retorno à São Luís, desta vez, finalmente, na condição de autor convidado do maior evento literário do Maranhão?
Xico Sá – Voltar à São Luís é bom de qualquer jeito. Até quando eu viajava ao Maranhão apenas como repórter, para trabalhar, já era bom, imagina agora, quando poderei trocar uma ideia com os leitores e, quem sabe, conquistar novos olhos e atenções para minhas crônicas e livros. Não vejo a hora.

Big Jato é um romance que funcionaria bem também como um livro de contos. Em tempos de redes sociais, em que as linhas que dividem palco e plateia, formadores e consumidores de informação estão cada vez mais tênues, você é um dos que joga nas onze: é Jornalista com J maiúsculo, cronista esportivo, consultor sentimental, ator e galã. Como diz o título da biografia do Simonal escrita por Gustavo Alonso, também convidado da 7ª. Feira do Livro de São Luís: é preciso ter suingue pra não morrer com a boca cheia de formiga? Só o suingue salva. Minha história sempre foi assim, uma viração danada, tenho a peleja nordestina n´alma. Já fui de tudo nessa vida: vendedor de passarinho, garçom, porteiro de cabaré, vendedor, fiscal de trânsito no Recife etc. Agora essa vidinha burguesa tá é uma moleza. Doce de mamão com coco. Gosto dessa embolada de fazer de um tudo ao mesmo tempo. Coisa de artista moderno [risos].

Seu mais novo livro é mais ou menos uma autobiografia inventada, isto é, mescla realidade e ficção em torno de um caminhão limpa-fossas, o personagem título. Nessa salada literária eu penso em cinema, no que você já atuou como roteirista e ator. Big Jato daria um ótimo filme, concordas? Rapaz, o livro foi adaptado e será filmado no próximo ano pelo diretor Claudio Assis [de Febre do Rato, Amarelo Manga etc.]. O roteiro está pronto e agora só falta um pouco ainda da grana, mas já vai entrar em fase de captação.

Sua passagem pela FeliS é uma espécie de última escala no Brasil. Fale um pouco do que vai fazer na Espanha [o autor viaja para lá logo após a 7ª. FeliS]. O que trará de lá na mala e no bolso? Tenho uma ligação muito forte com a literatura picaresca espanhola, muito parecida com tudo que a gente faz no Nordeste em matéria de narrativa. Do cordel ao mar das nossas histórias orais. No Big Jato uso muito desse traço. Estou indo para uma pequena temporada estudar esse tema na Espanha. No próximo ano, no entanto, vou para ficar um ano.

Você assinou a quarta capa dA Intrusa, de Bruno Azevêdo e já o apontou como o maior escritor em atuação no Brasil. Na 7ª. FeliS ele lançará Baratão 66 [nota do blogue: a hq será lançada somente em novembro], graphic novel em que uma casa de depilação durante o dia funciona como puteiro à noite. O que acha da ideia, seja na ficção seja na realidade? Bruno Azevêdo é um dos maiores, sem dúvida, talvez o mais moderno e invocado dos nossos narradores, com múltiplos recursos e uma formação que junta o erudito, o popular e toda a bagaceira do que se convencionou a chamar de brega no Brasil. Ainda não me curei ainda da paixão pelA Intrusa e o cara já me lasca esse Baratão 66. Acompanho com prazer e curiosidade a trajetória desse rapaz.

Amigo torcedor, amigo secador! Sua palestra na FeliS tem como tema “Literatura, jornalismo e futebol”. Nestes campos, quais são as suas principais referências, seus escritores, redatores e jogadores de cabeceira? Tem saído coisa muito boa na literatura contemplando o universo do futebol. O que mais me empolgou ultimamente foi o livro Páginas sem Glória, do Sérgio Sant´Anna. Genial o conto homônimo sobre um craque amador que experimenta o sucesso rápido no Fluminense e depois cai em desgraça de novo no subúrbio carioca. Ando às voltas com um personagem de futebol no romance que estou escrevendo. Não é obrigatoriamente um livro sobre futebol, mas o personagem principal é um angustiadíssimo goleiro na hora do gol, como na canção do Belchior.

Este ano o Sampaio Correia sobe? Tomara Deus. Merece pela performance que mantém desde o ano passado. Estou na torcida boliviana e bolivariana.

“Fui em direção ao jornalismo movido pelo interesse pela linguagem poética”

[Íntegra da entrevista publicada hoje no Alternativo, O Estado do Maranhão]

Jornalista, poeta e letrista de música, Ademir Assunção fará três participações na 7ª. Feira do Livro de São Luís. Com nove livros publicados, um cd lançado e outro a sair ainda este ano, ele concedeu entrevista exclusiva a O Estado do Maranhão

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO

Jornalista, poeta e letrista de música, Ademir Assunção tem nove livros publicados: LSD Nô (poesia, 1994), A Máquina Peluda (prosa, 1997), Cinemitologias (prosa poética, 1998), Zona Branca (poesia, 2001), Adorável Criatura Frankenstein (prosa, 2003), A Musa Chapada (com Antonio Vicente Pietroforte e Carlos Carah, poesia, 2008), Buenas Noches, Paraguaylândia (poesia, Assunção, Paraguai, 2009), A Voz do Ventríloquo (poesia, 2009) e Faróis no Caos (coletânea de entrevistas, 2009). Em 2005 lançou o cd Rebelião na Zona Fantasma, com participações dos parceiros Edvaldo Santana e Zeca Baleiro. Tem inéditos um cd – que lança ainda este ano – e quatro livros – três de poesia e uma coletânea de reportagens publicadas em diversos veículos. Alô, editores do meu Brasil!

Já ganhou alguns prêmios com sua produção, mas não é o tipo de cara que espera por bons ventos ou tempos de vacas gordas: o lance dele é o mar bravio, em que se mete a largas braçadas e pernadas, cara e coragem. Para lançar seu primeiro disco, por exemplo, à época, vendeu um carro. Para selecionar as 29 entrevistas de Faróis no Caos, passou dois meses isolado em uma praia.

Formado na Universidade Estadual de Londrina, o autor, convidado da 7ª. Feira do Livro de São Luís, passou pelas redações da Folha de Londrina, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo, Marie Claire, Veja São Paulo, além de frilar por outras: Revista dos Bancários (SP), O Tempo (Belo Horizonte), Gazeta do Povo (Curitiba), A Notícia (Joinville), Cult, IstoÉ, Revista Educação e Caros Amigos. Quando o jornalismo, sobretudo o cultural, começou a ficar careta ele caiu fora – um de nossos mais interessantes jornalistas está exilado das redações.

Ademir Assunção fará três participações na 7ª. FeliS: dia 28 de setembro (sábado), às 18h, no Auditório da Associação Comercial do Maranhão (Praça Benedito Leite), com mediação deste jornalista, ele profere a palestra “A farsa da big mídia e as revistas fora do centro: uma outra história”. Domingo (29), às 19h30min, apresenta-se no recital Poesia no Beco, no Beco Catarina Mina (Praia Grande), acompanhado do guitarrista Marcelo Watanabe. Dia 30 (segunda-feira), às 16h30min, divide um Café Literário com o também jornalista e poeta Eduardo Júlio. “Poesia rima com rebeldia: Leminski, Torquato e cia. Ilimitada” é o tema da conversa, que acontece na Galeria Valdelino Cécio (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande).

Em entrevista por e-mail a O Estado, Ademir Assunção falou de poesia, jornalismo, música, revistas literárias, sua trajetória, redes sociais e da expectativa por sua primeira visita à São Luís do Maranhão.

ENTREVISTA: ADEMIR ASSUNÇÃO

O Estado do Maranhão – Ano passado você lançou o livro de poemas A voz do ventríloquo e a coletânea de entrevistas Faróis no caos. Sua trajetória parece desde sempre marcada por essa, digamos, vida dupla: a poesia e o jornalismo. Em que sentido um e outro se ajudam e completam e/ou atrapalham?
Ademir Assunção – Fui em direção ao jornalismo movido pelo interesse pela linguagem poética. Peguei um período em que era possível praticar um jornalismo bem mais instigante do que o atual. Era possível desenvolver um estilo, ou vários estilos de escrita, e discutir questões relevantes com mais profundidade. Sempre fui fascinado pela página grande de um jornal, com todas as suas possibilidades criativas, desde a linguagem gráfica, fotográfica, até a própria escrita. O jornalismo me ajudou a criar uma disciplina e a procurar uma poesia mais impura, mais misturada ao cotidiano. E o estudo da tradição poética me ajudou a praticar um jornalismo mais criativo, enquanto foi possível. Embora sejam linguagens e meios bem diferentes, procurei contaminar um ao outro, levando uma consciência poética ao jornalismo e trazendo um pouco das impurezas da linguagem jornalística para a poesia.

Poesia “é saber usar a língua para extrair gemidos, uivos e palavras obscenas das mulheres mais vagabundas”. Esta é a resposta que você deu ao também poeta Edson Cruz, em O que é poesia? [2009], livro que ele organizou. O que mais é poesia? E levando em conta essa definição, você arriscaria um chute? Há muitos ou poucos poetas por aí? Bons ou ruins? Não gosto da poesia como algo puro, uma espécie de virgem imaculada no alto de um pedestal. Prefiro a poesia que vai para o meio da rua, que lambe as feridas dos trombadinhas, que se deixa violentar por tudo o que é humano, que se arrisca aos altos voos mas que tem consciência de que o asfalto é duro é áspero. Como diria Nietzsche: “de tudo o que se escreve, aprecio somente o que é escrito com o próprio sangue.” Sim, há muitos poetas que escrevem com essa fúria e essa urgência. São esses os que mais me interessam.

A mediocrização do jornalismo cultural brasileiro te obrigou a um exílio voluntário. Entrevistas como as reunidas em Faróis no caos estão cada vez mais raras na chamada grande mídia. Neste aspecto, uma volta ao passado parece mesmo impossível? Nada é impossível e o tempo não é linear como pensamos. É possível que a qualquer momento surja uma nova tribo de jornalistas que encare o exercício da escrita e da informação de maneira apaixonada e ousada, e não apenas como uma profissão, onde “quem pode manda e quem tem juízo obedece”. Para mim, isso é uma total falta de juízo. É preciso também que as condições se apresentem para que essas mudanças aconteçam. Quanto ao meu exílio, não foi tão voluntário assim. Passei períodos difíceis, sem grana, sem conseguir trabalho em jornal ou revista algum. Mas nunca estive disposto a vender o que tenho de mais precioso: a minha inquietação.

Muito do conteúdo dos poemas de A voz do ventríloquo é uma crítica a essa sociedade do espetáculo e do consumo desenfreado, que vai mais a um show ou a um restaurante para postar a foto do artista no palco e da comida no prato que para apreciar um ou outro. A experiência parece só existir se compartilhada. Escrever é um exercício solitário, que vai na contramão disso tudo. Como você dosa o exercício de escritor com a exposição na medida que o mesmo deve ter, divulgando a obra, conquistando leitores? Sinceramente, nunca me preocupei em conquistar mais leitores. Sigo fazendo o que tenho que fazer. A escrita, para mim, é vital. Tenho tanto prazer em passar madrugadas escrevendo solitariamente quanto em subir em um palco e apresentar meus poemas com minha banda. É claro que tenho intenção de influenciar mais pessoas, de interferir no resultado do jogo, mas que isso aconteça sem concessões descabidas. A poesia é capaz de abrir o olho de muita gente. Não a encaro como um entretenimento. Não tenho nenhuma dúvida de que minha percepção seria mais pobre se não tivesse lido Uivo, de Allen Ginsberg, ou a tradução da Ilíada por Haroldo de Campos, para citar dois exemplos.

Além dos livros de poesia e prosa e da atividade jornalística, outra atividade sua é a música. Para você, há diferença na hora de compor uma letra de música ou escrever um poema? Apenas diferenças técnicas. No meu caso, a maior parte das minhas parcerias musicais nasceu de poemas já escritos. Poucas vezes escrevi poemas para harmonias ou melodias já prontas. Acho um equívoco pensar que a “grande poesia” só pode existir no livro. Itamar Assumpção, por exemplo, é um poeta de altíssima voltagem. Só que em vez de publicar livros, gravou discos. São meios diferentes, com possibilidades diferentes. Gosto muito do poema cantado de Gilberto Gil [Metáfora, do disco Um banda um]: “Na lata do poeta tudo nada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha caber / O incabível.”

Depois de Rebelião na Zona Fantasma você está preparando um novo disco, fundindo poesia com rock e blues, numa experiência para muito além de recitar poemas com fundo musical. A banda que te acompanha se chama Fracasso da Raça, um belo nome que já traduz uma opinião, uma visão de mundo. Deste novo disco – como se chamará? – já tive a oportunidade de ver o clipe de Bang bang no sábado à noite e ouvir Lena [enviada por e-mail em primeira mão]. Em ambas estão referências fundamentais para tua literatura, como Bob Dylan, John Lee Hooker, Sérgio Leone. O que mais esperar? E qual a previsão de lançamento? Este novo disco, que se chama Viralatas de Córdoba e será lançado em novembro, está mais radical do que Rebelião na Zona Fantasma. Das 14 faixas, há apenas uma cantada, um blues interpretado pela cantora Fabiana Cozza. É um poema que Edvaldo Santana musicou, sem nenhuma alteração. Todos os outros são entoados, com ritmos, com modulações, com intenções de voz diferentes. Porém, meticulosamente encaixados em harmonias e compassos musicais. Como você frisou, não se trata de poemas falados com um “fundo musical” aleatório, improvisado. O processo de composição com os músicos Marcelo Watanabe [guitarrista que o acompanhará em Poesia no Beco, durante a 7ª. FeliS], Caio Góes e Caio Dohogne foi muito curioso. Os próprios compositores jamais haviam trabalhado desta maneira. Gravei também O Deus, parceria com Edvaldo Santana e Paulo Leminski e Nossa Vida Não Vale um Chevrolet, do Mário Bortolotto. Ambas são canções, originalmente cantadas, mas fiz uma versão falada (ou “entoada”, como prefiro). Em Chevrolet acrescentei o poema Eu Caminhava Assim tão Distraído, do poeta e dramaturgo Maurício Arruda Mendonça.

As revistas literárias e culturais são tema de uma das mesas de que você participa na 7ª. Feira do Livro de São Luís. Recentemente a editora Abril fechou a Bravo!, que apesar de já não ser como quando iniciou, ainda tinha alguma importância. É um sinal dos tempos? Ou sempre foi assim: a tesoura que corta o orçamento pega primeiro na cultura? Essa é a realidade do mercado editorial. Se uma publicação comercial não dá lucro financeiro, acaba sendo extinta. Não era um leitor assíduo da Bravo!, mas lamento seu fim. Particularmente, preferia que a Veja fosse extinta e a Bravo! continuasse.

Você é um dos editores da revista Coyote, que já conta 10 anos, 24 edições, um pequeno apoio da Prefeitura de Londrina e muita paixão e teimosia dos editores – a teimosia uma espécie de sal da poesia, tempero que não pode faltar. A meu ver é a mais importante revista de literatura do Brasil, hoje. Como surgiu a ideia e o que os leva a resistir? Rodrigo Garcia Lopes [também convidado da #7felis], Marcos Losnak e eu fizemos outras revistas antes, juntos, ou separados. A Coyote nasceu de uma necessidade nossa de mostrar autores, tanto do passado quanto do presente, que considerávamos importantes e que não víamos em outras publicações. E há uma particularidade da Coyote que as pessoas notam de cara: a linguagem gráfica. Para mim, Losnak é um gênio do design gráfico. Não entendemos a revista apenas como “suporte” para textos. A própria linguagem gráfica assume um papel de altíssima significância.

Que outras revistas literárias te fizeram e/ou fazem a cabeça? Várias, da Navilouca à Azougue. Muitas revistas surgiram nas últimas décadas, a maioria desapareceu, mas deixou contribuições importantes. Para citar algumas: Bric-a-Brac (Brasília), Orobóro e Medusa (Curitiba), Imã (Vitória), Ontem Choveu no Futuro (Campo Grande), Carioca e Inimigo Rumor (Rio de Janeiro), Pulsar (Teresina, se não me engano), Pajeurbe (Fortaleza) e Revista de Autofagia (Belo Horizonte). Há várias outras que me escapam à lembrança no momento.

Você conhece a Pitomba, editada aqui por Bruno Azevêdo, Celso Borges e Reuben da Cunha Rocha? Qual a Coyote, também tem periodicidade de-vez-em-quandal e é feita com pouquíssimo apoio, no fim das contas sai do bolso do trio mesmo. O que acha da publicação? Gosto do tom de provocação e irreverência da Pitomba. Cada poeta ou grupo de poetas traz suas referências críticas e criativas. É importante que elas apareçam, que causem atritos. Os atritos provocam movimento, abrem novos horizontes perceptivos.

Outro tema que você debaterá é relação entre poesia e rebeldia, passando por obras de Paulo Leminski e Torquato Neto, entre outros, poetas que também influenciaram teu trabalho, você um rebelde. Quem são os rebeldes de hoje, que nomes valem a pena e mereceriam uma indicação tua, a um amigo, dentro de uma livraria? É preciso situar o termo “rebeldia”, para que não se torne algo caricato. Atitudes rebeldes surgem da necessidade de se firmar outras maneiras de viver e de fazer as coisas. Elas são vitais para ampliar a percepção, as experiências, para não cair na vala da acomodação, do mais-do-mesmo. Espíritos rebeldes sempre existiram, no passado, no presente e existirão no futuro. A lista dos poetas vivos que mais me instigam não é pequena. Para citar apenas cinco deles, eis alguns que procuro acompanhar com grande interesse: Douglas Diegues, Rodrigo Garcia Lopes, Fabrício Marques, Celso Borges e Micheliny Verunschk. Mas há um punhado de outros, que podem se sentir incluídos.

Você participa ainda do Poesia no Beco, em um espetáculo de voz e guitarra, espécie de miniatura do que será o disco. Quais as expectativas para esta apresentação e em geral, nesta sua primeira visita à Ilha natal de Ferreira Gullar? O que vou apresentar em São Luis do Maranhão, com o guitarrista Marcelo Watanabe, é uma versão, digamos, mais descarnada das composições que estão nos dois discos, o Rebelião e o Viralatas. Não tem os arranjos, com bateria, baixo, backing vocais, percussão, que estão presentes nos discos. As composições serão apresentadas mais próximas da raiz, de como elas nasceram. Tomara que as pessoas se sintam estimuladas com o que vão ouvir. Quero aproveitar essa minha primeira viagem ao Maranhão para mostrar o que estamos fazendo e também conhecer o que os criadores daí estão aprontando.

A música de Paulo Leminski

[O Estado do Maranhão, 1º. de setembro de 2013]

Digitalização de acervo e livro de partituras mostrarão outra porção de um múltiplo Leminski, cuja poesia foi recentemente reunida em livro

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO

A coleção de poemas que Paulo Leminski publicou em livros, inclusive póstumos, reunida em Toda Poesia [Companhia das Letras, 2013, 421 p.], bateu recordes: alcançou os 50 mil exemplares vendidos, soma nada desprezível para o mercado livreiro, e particularmente de poesia, no Brasil.

Leminski foi vários: poeta, publicitário, jornalista, tradutor, professor, judoca, romancista, contista. E músico. Revoltava-lhe, aliás, ser reconhecido apenas como letrista. Tinha razão: embora compusesse em parceria, e muito de sua obra musical ter surgido pelas mãos de parceiros que musicaram versos publicados em livros, o samurai malandro compunha letra e música.

Casos de Verdura, gravada por Caetano Veloso em Outras palavras [1980], e Luzes, gravada por Suzana Salles e Arnaldo Antunes, ela uma das Orquídeas do Brasil, banda de mulheres que acompanhou Itamar Assumpção – parceiro de Leminski – no triplo Bicho de Sete Cabeças [1993].

Não à toa, antes dos apêndices – orelhas, prefácios e tais – de Toda Poesia, lemos Notas sobre Leminski cancionista [p. 385], breve artigo assinado por José Miguel Wisnik – que já musicou tradução de Leminski. Entre as histórias que conta, aliás, está a de como Luzes chegou, através de recados ao telefone, aos ouvidos e mãos de Suzana e Arnaldo, num episódio que envolve, além dele, Alice Ruiz e Zé Celso Martinez Correa.

Wisnik diz que se o projeto de um Leminski músico não se concretizou plenamente, encontra na obra do ex-Titã sua mais perfeita tradução: a combinação entre o poema grafado na página do livro e a canção gravada no disco. Canção pop.

Através de sua obra, Leminski permanece vivíssimo hoje. É inegável que a gravação de Verdura por Caetano tenha colaborado para sua popularidade na década de 1980, quando Caprichos e relaxos [1983] esgotou edições na saudosa Brasiliense, que teve como editor Luiz Schwarz, que devolve Leminski às estantes em Toda Poesia, e que lançou no Brasil autores fundamentais como Jack Kerouac e John Fante – este, aliás, traduzido por Leminski.

Leminski músico – No campo musical Leminski tem obra curta, mas nada desprezível. Só as duas aqui citadas já lhe garantiriam lugar no panteão de nossos grandes compositores, merecendo mais espaço no dial. Entre outras de sua lavra poderíamos citar rapidamente Custa nada sonhar, Dor elegante, Filho de Santa Maria, Vamos nessa (as quatro com Itamar Assumpção), Mudança de estação, sucesso dA Cor do Som, Promessas demais (com Moraes Moreira e Zeca Barreto), gravada por Ney Matogrosso, Polonaise (com José Miguel Wisnik, gravada pelo próprio), Além alma (com Arnaldo Antunes), O velho León e Natália em Coyoacán (com Vitor Ramil), Reza (com Zeca Baleiro) e O Deus (com Ademir Assunção e Edvaldo Santana).

Leminski com Caetano Veloso e Alice Ruiz, em Curitiba (1976)

Leminski colecionou histórias engraçadas envolvendo sua produção musical. Uma delas a citada revolta confessada quando queriam rotulá-lo simplesmente letrista. “Eu sou músico!”, bradava, revoltado. E sonhava com o dia em que todas as pessoas fossem músicos, tocassem algum instrumento.

Com a grana dos direitos autorais da gravação de Verdura, por Caetano Veloso, comprou um fusca verde, justamente batizado de… Verdura. Detalhe: Leminski não dirigia. Foi Leminski quem deu ao xará Paulo Diniz o título de uma de suas mais famosas músicas: Ponha um arco-íris na sua moringa. Era uma frase do Catatau, que estava escrevendo quando os dois moravam no Solar da Fossa. Diniz usou-a para intitular a música e o poeta, em homenagem ao amigo, retirou-a do livro.

Também é famosa a correção que o poliglota Leminski aplicou ao mesmo Paulo Diniz na construção da letra de Quero voltar pra Bahia, cujo refrão é em inglês: “I don’t want to stay here/ I wanna to go back to Bahia”. Mexer na letra e retirar o verbo duplicado, como queria Leminski, iria acabar com a métrica e a homenagem do baiano ao conterrâneo exilado acabou saindo com o erro com que a conhecemos.

A obra musical de Paulo Leminski será sua próxima porção a chegar ao público. Aprovado pelo Programa Petrobras Cultural, o projeto A obra musical de Paulo Leminski – um patrimônio cultural do Paraná e do Brasil prevê a digitalização das fitas cassetes deixadas por Leminski (contendo dezenas de canções inéditas) e a posterior organização de um livro de partituras com sua obra musical completa.

Sobre este e outros assuntos, em entrevista por e-mail, uma das responsáveis pela empreitada, a musicista Estrela Ruiz Leminski, filha de Alice Ruiz e Paulo Leminski, deu detalhes sobre a produção.

Poeta, musicista, professora: Estrela Leminski seguiu os passos do pai

“NÓS JÁ SABÍAMOS DA FORÇA DA POESIA DELE”
ENTREVISTA: ESTRELA RUIZ LEMINSKI

A compositora, escritora e professora Estrela Leminski, filha do poeta, é responsável pelo resgate da obra do pai. Na entrevista, ela comenta essa fase da redescoberta do público em relação a grandiosa obra do pai.

O Estado do Maranhão – A Companhia das Letras publicou recentemente Toda Poesia, que reúne a obra poética publicada em livro por Paulo Leminski. A editora anunciou para breve a reedição de Vida, livro que reúne as quatro biografias que o poeta escreveu, de Bashô, Cruz e Souza, Jesus Cristo e Trotsky. Agora, a digitalização de fitas com músicas de Leminski e a produção de um livro de partituras com sua vasta obra musical foi recentemente selecionada num edital da Petrobras. Qual a importância de fazer Leminski, sempre vivo entre nós, voltar a circular?
Estrela Ruiz Leminski – Acho que a resposta se justifica na tua pergunta. Tudo também se deve ao fato da gente ter se mobilizado para segurar as rédeas da obra dele. Resolvemos ir atrás de tudo que faltava fazer para a obra dele, tão múltipla, vir à tona! Nessa tua lista ainda falta pontuar a exposição Múltiplo Leminski, realizada em Curitiba, no MON [o Museu Oscar Niemeyer], que vai circular o país.

Quando o projeto foi apresentado já se tinha dimensão do tamanho da obra musical de Leminski? Ou as coisas foram sendo descobertas ao longo da jornada? O aspecto musical dele é uma empreitada minha. Eu cresci ouvindo essas músicas, ele cantava muito em casa, e depois sempre curti o que foi gravado. O público vai se surpreender com a variedade e com o lado cancionista da obra dele.

Lembro-me de uma entrevista [ao jornalista Aramis Millarch] em que Leminski mostrava-se indignado quando as pessoas o chamavam letrista, já que ele compunha letra e música. Na mesma entrevista, ele afirmava sonhar com o dia em que todas as pessoas fossem músicos, isto é, que tocassem algum instrumento ou cantassem. Você, que acabou seguindo os passos de seu pai, na música e na poesia, acredita que esse dia vai chegar? Sonha com isso? Além de ser compositora e escritora sou professora de música. É isso que eu busco. É uma inquietação minha. As pessoas têm que ter pelo menos o direito de compreender os contextos culturais musicais, ter ferramentas críticas ao que escutam. Isso não acontece e se agravou muito com a falta do ensino da música nas escolas.

O que achou da poesia de Leminski desbancar os tons cinzentos de uma literatura pobre em uma rede de livrarias? O boom do livro não foi surpresa, foi alívio. Nós já sabíamos da força da poesia dele, da atualidade. Para a gente é a sensação de que ele está começando a ocupar um espaço merecido há tempos.

O retorno de Leminski às livrarias dá um gás no culto ao poeta, mas ele sempre teve um grande número de leitores, admiradores, fãs, seguidores. Enfim, de gente que consome e faz circular sua obra. O poeta e jornalista Ademir Assunção, que já organizou uma exposição sobre a vida e a obra de Leminski, teve dificuldades, por exemplo, para publicar uma entrevista de Raul Seixas em Faróis no Caos [Edições Sesc-SP, 2012, 407 p.], coletânea de entrevistas que ele fez ao longo de quase 30 anos de atividade jornalística. A entrevista de Leminski está lá. Como você, enquanto herdeira, lida com a obra de seu pai? Tem um aspecto de ser herdeira que é o fato de ser artista. E ainda por cima artista auto-produtora. Por um lado batalho mesmo que cada vez mais gente tenha contato com a obra dele como um todo, mas por outro não faço isso na ingenuidade. Conheço o caminho da roça e como negociar as coisas. A burocracia que isso envolve é chata, mas é necessária. Não vou julgar as famílias que por algum motivo causem entraves. De qualquer forma, sei que essa dinâmica, sendo parceira na empreitada com minha mãe e irmã [Aurea Leminski], dividindo as tarefas, tem dado cada vez mais certo.

Vinicius de Moraes e a influência do jazz

Livro reúne textos do poeta sobre jazz, escritos quando de sua passagem como diplomata por Los Angeles. Entre artigos e inéditos e publicados em revistas da época, poeta foi pioneiro em apresentar gênero aos brasileiros

POR ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ESTADO DO MARANHÃO

Vinicius de Moraes completaria 100 anos em outubro próximo. Foi um homem de muitas paixões e é daqueles artistas cuja vida não se dissocia da obra. Sobre o amor, ele mesmo disse, no Soneto de fidelidade, um de seus poemas mais conhecidos: “que não seja imortal posto que é chama/ mas que seja infinito enquanto dure”.

Uma das paixões de um dos inventores da bossa nova é esquadrinhada em Jazz & Co [Companhia das Letras, 2013, 152 p.], livro que reúne textos seus sobre o gênero musical americano, de que o poetinha tomou conhecimento durante sua estada em Los Angeles como vice-cônsul, seu primeiro posto diplomático, em meados da década de 1940 – pré-bossa, portanto.

Tomar conhecimento é mesmo isto que o leitor deve estar imaginando: ver com os próprios olhos, ouvir com os próprios ouvidos, em discos também, mas principalmente ao vivo, em boates, teatros, jams. O jazz surgira um pouco antes, mas estava em pleno desenvolvimento e é isso que deliciosamente nos relata Vinicius no volume organizado por Eucanaã Ferraz, que também assina seu prefácio.

Inéditos – Há artigos inéditos, textos publicados em revistas nacionais – Diretrizes, Flan, Sombra e Vanguarda –, em que um pioneiro Vinicius tentava traduzir ao leitor brasileiro o que é(ra) o jazz, relatos de jam sessions que presenciara, poemas, e o prefácio de Jazz Panorama, de Jorge Guinle, livro inaugural sobre o gênero no Brasil. Em Olhe aqui, Mr. Buster, pergunta ao personagem do título, justificando sua volta ao Brasil, mesmo o cargo lhe prevendo ainda mais um ano, mesmo amargando o prejuízo financeiro que lhe daria a volta ao Brasil: “O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?”

O formato do volume imita um compacto e é dividido em três partes: Jazz Jazz, onde soa mais, digamos, didático, e onde estão os textos mais compridos, sobre as origens do jazz e do spiritual; Jazz & Cinema e Jazz e a América, onde estão os poemas. Vinicius remonta aos tempos coloniais, escravidão e racismo para explicar como o jazz se consolidaria como a autêntica música americana e conta como o blues foi fundamental para a aparição do jazz.

Vinicius de Moraes cria uma intimidade com o leitor, como se não o lêssemos, mas tomássemos uns uísques com ele, que nos relata suas aventuras jazzísticas. O livro cobre um curto período: logo o poeta-diplomata voltaria ao Brasil e ajudaria a inventar a bossa nova – o que, fica mais claro agora, teve muito a ver com sua estadia americana e o jazz sorvido in loco.

O livro, no entanto, não deve ser alvo da curiosidade apenas de cats, como são chamados os aficionados pelo gênero. O relato que faz da jam, presenciada por ele, graças ao convite do músico amigo Zé Carioca – sim, o personagem de Walt Disney foi inspirado nele –, é de uma leveza e graça certamente perseguida por muito crítico de música por aí. Como, aliás, o livro inteiro.

[O Estado do Maranhão, Alternativo, 29 de agosto de 2013]

Choro & Companhia relê repertório pouco conhecido de Ernesto Nazareth

Disco Nazareth: fora dos eixos é bela homenagem ao pianista, por seus 150 anos de nascimento

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ESTADO

Não passa em brancas nuvens este 2013, ano do sesquicentenário de nascimento de Ernesto Júlio de Nazareth (1863-1934), um dos pais do choro. A efeméride tem gerado justas e belas homenagens, a exemplo de um site inteiramente dedicado à vida e à obra do pianista, criado e mantido pelo Instituto Moreira Salles.

Completados no dia 20 de março, os 150 anos de Nazareth também são lembrados pelo grupo Choro & Companhia, de Brasília/DF, que lançou Nazareth: fora dos eixos (Brasilianos, 2013), disco inteiramente dedicado à obra do músico que lhe batiza, de maneira nada convencional.

Amoy Ribas (percussão), Fernando César (violão sete cordas), Pedro Vasconcellos (cavaquinho) e Ariadne Paixão (flauta), ela responsável também pelos textos do encarte, (re)visitam um repertório de Nazareth praticamente desconhecido do grande público – e por vezes mesmo de aficionados pelo músico ou pelo gênero musical cujas bases ajudou a definir.

“Nazareth deixou uma extensa gama de composições diversas […]. Esse legado recebeu nossa atenção quando vimos que muitas dessas obras ainda continuavam raras ou muito pouco conhecidas do público em geral”, afirma um dos textos do encarte.

Músicas – Nas 11 faixas predominam tangos (e suas classificações brasileiro e carnavalesco), sambas, valsa, polca e polonesa, sob direção geral de Marcos Portinari e Hamilton de Holanda. O bandolinista participa do disco em Jangadeiro (tango brasileiro de 1922). Outros convidados especiais são Alexandre Dias (piano em Cataprus, tango brasileiro de 1914), Juninho Alvarenga (banjo na faixa-título, tango carnavalesco de 1922), Ricardo Dourado Freire (clarineta e clarone em Polonesa, polonesa anterior a 1922 – o encarte não traz a data precisa de algumas faixas) e Roberto Corrêa (viola caipira em Matuto, tango de 1917).

Como a obra do autor de clássicos como Brejeiro, Odeon e Apanhei-te, cavaquinho, Nazareth: fora dos eixos é disco plural em que o quarteto desfila por diversos climas. O banjo na faixa título lhe dá ares festivos, lembrando em determinados momentos o bumba meu boi e o cacuriá maranhenses (o azulejar selo do disco também nos faz pensar em São Luís); a viola caipira em Matuto dá à música ares rurais; e o uso de vibrafone (pelo percussionista Amoy Ribas) confere ar de música infantil (da rara, não a que se vê e ouve em programas para o público na tevê aberta) à Segredos de infância (valsa de data desconhecida) – título mais que apropriado.

“Queremos acrescentar nosso grão na interpretação da grande obra de Nazareth”, afirma ainda aquele texto no encarte, pura modéstia. O belo resultado certamente ficou à altura do homenageado. Na contracapa do disco, além do conteúdo, uma inscrição mostra que o grupo está à frente: em vez do “disco é cultura” de outrora, um “moderno é tradição” de agora.

[Reseninha no AlternativoO Estado do Maranhão de ontem]

Com Floresta, Ligiana Costa quer voar

A cantora concedeu a entrevista por e-mail

A cantora Ligiana Costa acaba de lançar seu segundo disco, Floresta, obra impregnada de Maranhão. Ela conversou com O Estado do Maranhão sobre o novo trabalho

ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O ESTADO DO MARANHÃO

Em De amor e mar (2009) Ligiana emergia sem sobrenome como uma grata revelação da música brasileira. Sua estreia trazia regravações de Batatinha (Conselheiro, parceria com Paulo César Pinheiro), Cartola (Consideração, com Heitor dos Prazeres), Novos Baianos (Só se não for brasileiro nessa hora, da dupla Moraes e Galvão), Baden Powell e Vinicius de Morais (Canto do Caboclo Pedra Preta) e Tom Zé (Se), que participa do disco, cantando com ela o clássico Eu quero é botar meu bloco na rua (Sérgio Sampaio), que fecha o disco.

Ali, Ligiana já se insinuava compositora (Onda e Queda por um samba, esta parceria com seu pai, Celso Araújo, que também assina a letra de Chorando baixinho, de Abel Ferreira) e já se cercava de bons músicos e repertório para chegar exatamente onde queria.

Em Floresta (2013) não é diferente, embora também não seja igual. Ela espanta a “maldição” do segundo disco com um belo resultado. Agora ela assina Ligiana Costa e é mais compositora do que nunca – assina sete das 11 faixas. Cinco são parcerias com Marcel Martins e Celso Araújo (Malabares), Juliana Kehl (Desperta), Lucas Paes (Rouge), o produtor e arranjador do disco Letieres Leite (Corda e Mearim) e Chico César (Um pássaro). O pai continua presente – além da citada parceria, assina Vem a tempestade, versão para música de Pino Daniele, e musica versos do poeta maranhense que intitula a Canção de Sousândrade.

O Maranhão, aliás, faz-se também mais presente neste segundo disco de Ligiana. Além das presenças do pai e Sousândrade, estão lá os rios Corda e Mearim (título de uma faixa) e a regravação de Boi de Catirina (Ronaldo Mota), lançada por Papete em Bandeira de Aço (1978). “Ouvimos a canção e ficamos muito tocados. Quando mostrei para meu pai, ele disse: “sua vó Floresta adorava cantar essa canção””, revela como a pescou para o repertório. O título do disco é uma homenagem à Floresta Pires Araújo, sua avó paterna. “Quando juntei as canções não existia ainda a intensão de homenageá-la, foi ela que foi se mostrando ao longo do processo”, revela, mística.

O primeiro título trazia o mar, o segundo, floresta. Em Ligiana, vida e música acontecem de um jeito todo natural.

ENTREVISTA: LIGIANA COSTA

O Estado do Maranhão – Você é paulista, gerada no Xingu, crescida em Brasília, filha de uma mãe mineira e de um pai maranhense. De que modo este teu “Paratodos” tem reflexos em tua música?

Ligiana Costa – Me sinto sortuda por ser de Brasília, que é meio a síntese do Brasil, lugar onde se encontraram pessoas com todos os sotaques, culturas e jeitos do país para construir uma cidade que é meio de outro planeta, que é meio ET. Acho isso fascinante. Eu sou bem típica desse lugar, mãe da roça mineira e pai da floresta maranhense, criação na arquitetura de Niemeyer. Acho que o que faço musicalmente tem reflexos dessa multiplicidade e também da minha multiplicidade curiosa pessoal, as minhas andanças pelo mundo e as minhas andanças pelo tempo, por séculos passados e por lugares que me atiçam algum tipo de paixão. No caso do disco Floresta, se junta a mim uma mente brilhante, que tem sua criação muito baseada nas ancestralidades afro-brasileiras mas com antenas muito sérias apontadas para o mundo e para os tempos, que é o Letieres, que produziu e arranjou o disco. Acho que este encontro musical resulta em algo bastante verdadeiro, e é isso que me interessa ao fazer musica.

Este segundo disco, Floresta, está impregnado de Maranhão: homenageia a avó paterna, tem Sousândrade, teu pai [o compositor Celso Araújo], Ronaldo Mota, Corda e Mearim, rios maranhenses. Esse focar no Maranhão foi intencional? O mais interessante fazer arte é lidar com ela da forma mais submissa possível, lidar com a arte de forma espiritual, deixar que as coisas se resolvam porque existem forças que estão cuidando disso. O disco Floresta foi todo encarado dessa maneira. Quando juntei as canções não existia ainda a intensão de homenagear minha avó Floresta, foi ela que foi se mostrando ao longo do processo, foi se posicionando e de repente pareceu mais que óbvio que o disco fosse uma homenagem a ela e à energia da ancestralidade que ela representa, no caso, na minha vida pessoal. Claro que o fato dela ter esse nome, Floresta, rende a coisa ainda mais poética: sou neta da Floresta. Como comentei, a energia dela (que já faleceu) parecia guiar certas coisas e escolhas do disco. O Boi de Catirina foi uma delas. Eu e Letieres ouvimos a canção e ficamos muito tocados. Quando mostrei para meu pai, ele disse “sua vó Floresta adorava cantar essa canção”. Enfim, dizer mais o quê, né? O Maranhão é homenageado através de sua filha Floresta. Sousândrade é um poeta ao qual meu pai é muito ligado, além de ter composto a Canção de Sousândrade (em cima de trechos de poesias de Sousândrade), ele escreveu e encenou uma peça linda sobre o poeta maranhense, se chama Sousândrade em câmara ardente. Quando estávamos começando a gravar o disco senti falta de ter algo meio biografiazinha da Floresta, e mostrei pro Letieres um esboço para Corda e Mearim, os dois rios que se encontram em Barra do Corda, a cidade em que ela nasceu, e fizemos essa espécie de vinheta para ela. Me sinto feliz por ter me conectado ao Maranhão neste trabalho, um lugar tão misterioso e forte e ao mesmo tempo tão cruelmente abandonado e pisoteado por forças nefastas.

Comparando a De amor e mar, tua caprichada estreia fonográfica, Floresta é praticamente inédito e quase todo autoral. O que essa mudança significou para você? É um disco no qual me coloco mais “criadora”, né? Gosto disso e busquei isso. Quando me aproximei da musica popular essa era uma das coisas que me interessavam, poder criar, compor, inventar mesmo. No primeiro disco não ousei muito, estava ainda tateando, me descobrindo. Nesse novo trabalho me deixei ser mais compositora, também graças à forma respeitosa e entusiasmada como Letieres acolheu as coisas que eu mostrava. Me senti também mais ousada vocalmente, experimentei bastante, me lancei nuns bons abismos com a voz e Letieres foi como um provocador disso, acho que começo a me aproximar de algo interessante também neste sentido, da voz como instrumento, como uma palheta rica de cores e possibilidades.

Floresta tem música tradicional do Haiti, Pino Daniele e Ronaldo Mota, para ficarmos em temas que tu recrias. Recentemente você passou a apresentar um programa diário sobre música clássica na Rádio Cultura FM. Você ouve muita música, sempre? Costuma se reouvir? Pergunta-clichê: que discos levaria para uma ilha deserta? Não ouço música sempre não, gosto de ficar no silêncio em casa. Até por que é difícil pra mim fazer da música pano de fundo, gosto de ouvir com atenção plena.  É até engraçado, nessa minha nova experiência de apresentar um programa diário na rádio tenho mudado um pouco os hábitos do pessoal nos estúdios da rádio, que nem sempre ouviam o que estava sendo tocado. Eu gosto de ouvir alto e ficar entregue a cada peça. Não costumo me reouvir muito não, se alguém coloca o disco eu ouço mas é meio complicado por que minha atenção vai toda pra música e não consigo mais dialogar [risos]. Levaria pra uma ilha Passarim do Tom Jobim, a cantata Actus Tragicus de Bach, na gravação do Gardiner, o disco M’Bemba do Salif Keita, Orkestra Rumpilezz e o oitavo livro de madrigais de Monteverdi na gravaçao do Rinaldo Alessandrini. Se você me perguntar isso amanhã certamente a lista muda radicalmente. La donna è mobile!

Como surgiu a parceria com Letieres Leite? Eu e Letieres nos conhecemos num contexto muito especial, num ritual de ano novo num lugar muito sagrado de Salvador. Eu tinha o disco pré-desenhado na cabeça, repertório, ideias, e mostrei pra ele, que achou que podíamos erguer a Floresta juntos. Letieres é um gênio da música, nada menos que isso. Estar próxima dele numa criação é um privilégio, tenho muito orgulho e felicidade por isso. Dialogamos muito sobre cada arranjo e conceito e, ao mesmo tempo, dei carta branca a ele. Gravar um disco independente tem essa vantagem enorme: sem concessões, criação de música pela música. Nisso eu e ele parecemos muito, somos destemidos!

De amor e mar foi gravado em cidades diferentes, São Paulo, Brasília e Paris. Floresta foi todo gravado em Salvador, ao vivo no estúdio, você cantando e os músicos tocando todos ao mesmo tempo, sem edições. Que vantagens essa opção trouxe para o resultado que apresentas ao público? Acho que os dois modos de produção podem ser interessantes, mas neste meu momento atual e para esta música que desejava fazer, o ao vivo realmente era interessante. Letieres trabalha sempre assim, ele gosta da música sendo feita junto, da energia que surge disso. E efetivamente sente-se vibração de vida em coisas gravadas dessa forma. No nosso caso gravamos algumas coisas em separado, cordas, sopros, vocais extras, mas a base foi feita toda em quatro madrugadas de estúdio, claro que com bons ensaios antes e com arranjos muito precisos de Letieres. Gosto também da exaustão na arte, da urgência, acho que esses fatores são convocados num tipo de gravação como esta.

Antes de o disco físico ficar pronto, Floresta foi disponibilizado para audição no facebook e no soundcloud. Instantaneamente caiu na rede para download. Qual a tua opinião sobre o download, legal e ilegal, de músicas e outros bens culturais, nestes tempos hipertecnologizados? Gosto muito da ideia de circulação da música, das possibilidades que a internet e a troca de informações trazem. Me lembro que quando comecei a estudar música barroca eu juntava dinheiro pra comprar um ou dois cds por mês, vivia na caça, com fome de ouvir coisas novas. Hoje em dia é tão fácil conhecer coisas de todos os lugares e tempos, isso é genial. Eu mesma consumo música de todos os modos, ainda compro cds, baixo música ilegalmente e também legalmente.

Em De amor e mar você assinava apenas Ligiana. Por que a opção de assinar Ligiana Costa em Floresta, já que teu nome não é tão comum? Não tem um motivo especifico. Acho que quis ter sobrenome, origem. Gosto do meu Costa porque é simples, curto e bem sonoro.

Feito o pássaro do título da faixa que fecha o disco [Um pássaro, parceria com Chico César], quais os planos de Ligiana para os próximos cantos e os próximos voos? Assim como o pássaro: cantar. Quero muito fazer shows do disco Floresta, adoraria fazer um no Maranhão, terra da homenageada! Além disso, estou agora vivendo uma experiência maravilhosa, tenho meu próprio programa de rádio e isso é delicioso, poder propor músicas para milhões de pessoas, transmitir coisas boas e tal.

[O Estado do Maranhão, Alternativo, p. 5, 26/5/2013]

Minha primeira vez num jornal

Foi há 27 anos. Era domingo, 20 de abril de 1986. Eu tinha quatro anos de idade. Até falecer em 2007, meu saudoso avô Antonio Viana guardou a edição 8.632 de O Estado do Maranhão em que fui capa.

Outro dia, conversando, minha avó Maria Lindoso falou-me do exemplar, que eu até então não conhecia, ou não lembrava. Trouxe-o para digitalizar e compartilhar com meus poucos mas fieis leitores.

Era uma materinha sobre uma campanha de vacinação infantil da época e os efeitos do período chuvoso sobre as filas nos postos.

Destaque na capa, mamãe, por exemplo, não depõe no texto para o qual a foto chama; ela simplesmente foi retratada segurando o guarda-chuva e carregando minha irmã, enquanto eu e meu irmão somos conduzidos por Nilta “de Tereza”. De esquerda, apareço à direita na foto.

A primeira vez do blogueiro num jornal (clique para ampliar)