Morre João Donato, aos 88 anos

Com o buquê recebido na mão, João Donato saúda o público que lhe cantou os parabéns, após show em São Luís. Fotosca: Zema Ribeiro (17/8/2018)

Quando o alemão Marc Fischer (1970-2011) esteve no Brasil, “à procura de João Gilberto”, subtítulo de seu “Ho-ba-la-lá” (Companhia das Letras, 2013), entrevistou uma pá de gente ligada a um dos papas da bossa nova, entre eles o acriano João Donato (17/8/1934-17/7/2023).

Foi recebido pelo pianista e compositor em seu apartamento, trajando uma vistosa camisa florida e um cigarro entre os dedos. Fischer percebera que o consumo de tabaco havia diminuído bastante no Brasil e não deixou de observar: “nossa, você deve ser o último brasileiro que ainda fuma”, disse. Ao que Donato respondeu: “e provavelmente o último ainda vivo”.

Após o encontro, que cito de memória, João Donato entregou-lhe um baseado, onde escreveu o nome de João Gilberto (1931-2019), desejando-lhe sorte em seu intento.

A descontração era uma das marcas de um dos arquitetos que ajudou a revolucionar a música popular brasileira. Desde que chegou ao Rio de Janeiro e passou pelo obrigatório, à época, Beco das Garrafas, trocou o acordeom pelo piano, ajudou a inventar e consolidar a bossa nova, ganhou o mundo e o resto é história.

Aos 88 anos esbanjava uma jovialidade que só a música é capaz de proporcionar e explicar. João e o piano pareciam uma coisa só. Tocava e cantava sorrindo. Parecia estar pura e simplesmente se divertindo, embora saibamos que para atingir seu nível são necessários anos de estudo e dedicação.

Estreou em disco com “Chá Dançante” (Odeon, 1956) e em 1970 lançou “A Bad Donato”, que representava uma guinada em sua trajetória, apontando seu caminho a partir dali: fazer música sem rótulos nem preconceitos. Embora seja reconhecido como bossa-novista, sua extensa obra abarca uma série de gêneros, ao longo de discos e parcerias com nomes como Bud Shank (1926-2009), Carlos Lyra, Emílio Santiago (1946-2013), Eumir Deodato, Gilberto Gil, Joyce Moreno, Marcos Valle, Paula Morelenbaum, Paulo Moura (1932-2010), Roberto Menescal, Rosinha de Valença (1941-2004), Wanda Sá e seu filho Donatinho.

Seus trabalhos mais recentes são “Síntese do Lance” (Rocinante, 2012), com Jards Macalé, e “Serotonina”, lançado ano passado, cujo título é a possível tradução do que a música significa/va para João Donato e seu grande fã-clube: serotonina é um neurotransmissor relacionado aos sentimentos de satisfação e bem-estar.

Tive a oportunidade de entrevistá-lo duas ou três vezes, a mais recente com Gisa Franco em setembro passado, no Balaio Cultural, na Rádio Timbira, justamente por ocasião do lançamento de “Serotonina” (relembre a seguir).

Em 2018 estive em seu aniversário de 84 anos. Visitei-o no camarim antes do show que ele fez na edição daquele ano do Lençóis Jazz & Blues Festival, única ocasião em que assessorei o evento (com Vanessa Serra) produzido por Tutuca Viana. Sua apresentação, dia 17 de agosto, terminou com todo o ótimo público presente à Concha Acústica Reinaldo Faray (Lagoa da Jansen) cantando-lhe o “Parabéns a você”.

João Donato faleceu hoje (17) em decorrência de uma série de problemas de saúde. Recentemente ele teve uma infecção nos pulmões e foi internado na Casa de Saúde São José, onde estava intubado desde semana retrasada. O velório acontecerá nesta terça (18), no Theatro Municipal, em horário a confirmar. O corpo será cremado na sequência, no Memorial do Carmo.

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Ouça “Síntese do Lance”:

Ouça “Serotonina”:

“A rainha está morta”, o baixista também; mas “há uma luz que nunca se apaga”

Da esquerda para a direita: Andy Rourke, Mike Joyce e Johnny Marr, com Morrissey deitado à frente. Foto: Mirrorpix/ Reprodução
Da esquerda para a direita: Andy Rourke, Mike Joyce e Johnny Marr, com Morrissey deitado à frente. Foto: Mirrorpix/ Reprodução

“Best I” e “Best II”, de 1992, coletânea dupla vendida separadamente, foram os primeiros discos que ouvi da banda inglesa The Smiths. Eu era um adolescente de gosto musical estranho, cujo inglês aprendido na escola não me permitia entender muita coisa, mas lendo as letras nos encartes, eu cantava (ou, melhor dizendo, imitava o som das palavras estrangeiras) praticamente todas as 28 faixas. Ouvi os discos na casa do amigo Nilsoaldo Castro Silva, o Capu, em Rosário/MA, que depois me emprestou para eu copiar em fitas k7. Somente já adulto consegui comprar os CDs num sebo – além de alguns outros de uma das bandas de minha predileção.

Morrissey (voz), Johnny Marr (guitarras), Andy Rourke (baixo) e Mike Joyce (bateria) eram “a banda que esperou a Legião Urbana”, segundo as palavras de Capu que nunca esqueci, proferidas quando me apresentou o grupo, certamente referindo-se à formação (antes de trio a banda brasileira também foi um quarteto), à sonoridade, ao sucesso paralelo – The Smiths lançou “The Queen Is Dead” e a Legião Urbana “Dois”, em 1986 – e ao fato de ter um vocalista homossexual. Certa vez, bebíamos ouvindo Smiths e alguém comentou que não gostava da banda por este motivo. Capu retrucou com uma lição: “o que me interessa é a arte, não a vida particular das pessoas”. A coletânea seguiu rodando.

Muitos anos depois, quando Guta entrou pela primeira vez no apartamento então sem mobília que alugamos até hoje (mas hoje cheio de CDs, dos Smiths, inclusive), ela pediu para ouvir música. Saquei o celular e mandei, sem erro, “There Is A Light That Never Goes Out”, uma de minhas preferidas da banda – ali, então, eu descobriria a coincidência: era também uma de suas bandas e músicas prediletas.

O baixista Andy Rourke (17/1/1964-19/5/2023) morreu hoje, aos 59 anos, vítima de câncer no pâncreas. “Andy será lembrado como uma alma gentil e bonita por aqueles que o conheceram e como um músico extremamente talentoso pelos fãs de música. Pedimos privacidade neste momento triste”, escreveu o amigo e ex-companheiro de banda Johnny Marr, em seu perfil no twitter.

Marr e Rourke se conheceram no colégio, em Manchester, onde costumavam tocar guitarra no intervalo do almoço. Só quando formaram uma banda é que ele experimentou o baixo, instrumento do qual não mais se separou. Entre desentendimentos com o vocalista Morrissey e após breves períodos afastado da banda, integrou os Smiths até sua dissolução, após o lançamento de “Strangeways, Here We Come” (1987). Ainda colaborou com Morrissey em discos de sua carreira solo, além de artistas como Sinéad O’Connor e The Pretenders.

Rourke e Mike Joyce chegaram a processar Morrissey pela distribuição dos direitos autorais dos Smiths, após o fim do grupo, mas desistiu da ação após um acordo extrajudicial – recentemente o vocalista sairia do armário político ao flertar com a extrema-direita.

O baixista ainda chegou a fundar grupos como o Freebass, com outras autoridades no instrumento: Gary Mounfield (ex-Stone Roses) e Peter Hook (ex-New Order e Joy Division), além de, com o músico e dj russo Olé Koretsky e a vocalista do grupo The Cranberries Dolores O’Riordan (1971-2018) – então namorados –, a banda D.A.R.K., com quem lançou o álbum “Science Agrees” em 2016.

O produtor Stephen Street (The Smiths, Morrissey, Blur e The Cranberries) também se manifestou no twitter. “Estou muito triste ao ouvir esta notícia! Andy era um músico excelente e um cara adorável. Envio minhas mais profundas condolências e pensamentos a seus amigos e familiares. RIP #AndyRourke”, escreveu.

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Ouça “The Queen Is Dead” (1986), álbum considerado a obra prima dos Smiths:

A voz do Brasil

A cantora Gal Costa. Foto: Fernando Frazão. Agência Brasil. Reprodução

Gal Costa (26/9/1945-9/11/2022) é um dos meus primeiros ídolos musicais – os outros são Nelson Gonçalves, Roberto Carlos e Waldick Soriano, graças à modesta coleção de discos de meus avós (com quem morei até os sete anos), que comecei a fuçar ainda na infância. Do último, por exemplo, aos seis anos de idade eu sabia de cor e salteado as 12 faixas do repertório de um elepê intitulado “O melhor de”, de capa azul, com uma foto dele sobre um fundo cor de laranja. O disco abria com “Tortura de amor”.

Como quase todo brasileiro nascido da década de 1960 para cá, tenho Gal Costa desde sempre presente na trilha sonora da própria vida. É como se ela sempre estivesse estado ali. Em meu aniversário de um ano, por exemplo, o disco “Fantasia” (1981), lançado no ano em que eu nasci, quase furou, de tanto tocar – por causa do sucesso “Festa do interior” (Abel Silva/ Moraes Moreira).

Pode soar cabotino escrever sobre o falecimento de alguém falando de si mesmo, mas se o faço é tão somente para demonstrar a importância de Gal Costa em minha formação e perceber algo cuja ficha cai somente agora: talvez a baiana tenha sido uma das responsáveis pelo menino que adorava descobrir as novidades nos museus musicais dos parentes ter decidido virar jornalista. Entre tantos outros vinis da coleção de meus avós, por exemplo, havia dois exemplares de “A arte de”: um de Caetano Veloso e um de Gal Costa. Quando se abriam os álbuns duplos podiam se ler as letras e foi neles que aprendi a cantar, por exemplo, “London, London” (Caetano Veloso) inteira, sem nunca ter tido uma aula de inglês antes.

Corta para 1995: Gal Costa lançou “Mina d’água do meu canto”, com repertório inteiramente dedicado a músicas de Chico Buarque e Caetano Veloso – deste, foi a maior intérprete, superando inclusive Maria Bethânia, irmã do também baiano. Meu avô comprou o vinil, que tinha menos músicas que o cd (que só recentemente consegui comprar, numa de minhas andanças por sebos) e eu ficava horas ouvindo “Odara” e “Língua”, ambas de Caetano, e Gal é tão marcante que às vezes me pego pensando se não foi com ela que ouvi essas músicas pela primeira vez.

Invariável e merecidamente apontada como uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, Gal Costa faleceu hoje, de causa ainda desconhecida. Ela havia se submetido a uma cirurgia para a retirada de um nódulo em uma fossa nasal, suspendendo a agenda de apresentações. Diz-se costumeiramente que o Brasil é um país de cantoras e muitas das que se dedicaram ao ofício depois dela, confessam sua influência.

“Tropicália ou panis et circensis”. Capa. Reprodução

Com os também baianos Caetano Veloso (com quem dividiu “Domingo”, seu disco de estreia, em 1967), Gilberto Gil, Maria Bethânia e Tom Zé e o piauiense Torquato Neto – que se suicidou há exatos 50 anos, na mesma data em que Gal nos deixa –, a cantora foi uma das artífices do movimento tropicalista, que revolucionou a música popular brasileira e ajudou a cunhar a própria sigla MPB para se referir ao amplo arco de interesses que movimentou suas carreiras. Ela e o piauiense aparecem lado a lado na icônica fotografia da capa do disco-manifesto “Tropicália ou panis et circensis” (1968), arranjado por Rogério Duprat.

Com Caetano, Gil e Bethânia, em 1976, Gal Costa lançou um elepê intitulado “Doces Bárbaros”, mesmo nome do quarteto. Quando Gil completou 80 anos em junho passado, durante uma coletiva de imprensa por ocasião do lançamento de um museu virtual com sua obra e memorabilia, com mais de 40 mil itens, o compositor chegou a afirmar: “Que a gente se reúna de novo, os quatro Doces Bárbaros. Tomara que aconteça”. Infelizmente não deu tempo.

O também baiano Waly Salomão produziu o antológico “Fa-tal – Gal a todo vapor” (1971), um de seus mais festejados álbuns, em que lançou nomes como Jards Macalé, parceiro de Waly em “Vapor barato”, e Luiz Melodia, com “Pérola negra”, para citar apenas dois clássicos. Sua versão voz e violão (com arranjo de Lanny Gordin) para “Sua estupidez” (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos) é simplesmente insuperável – pouca gente sabe, mas é da dupla o sucesso composto sob medida para a musa inspiradora, “Meu nome é Gal” (1969).

A menina que, reza a lenda, exercitava o canto em casa com uma panela na cabeça, para testar timbres, texturas e conhecer e ousar ultrapassar os próprios limites, Maria da Graça Costa Pena Burgos, seu nome de batismo, sempre teve na curiosidade uma de suas marcas. Entre as 10 músicas gravadas por Gal Costa mais tocadas nos últimos 10 anos em rádios, sonorização ambiental e casas de festas e diversão, aparecem os nomes de Caetano Veloso (“Meu bem, meu mal”, “Baby” e “Dom de iludir”), Djavan (“Azul” e “Açaí”), Ronaldo Bastos (“Chuva de prata”, parceria com Ed Wilson, e “Sorte”, com Celso Fonseca), Mallu Magalhães (“Quando você olha pra ela”), Chico Buarque (“Folhetim”), Michael Sullivan, Miguel e Paulo Massadas, parceiros em “Um dia de domingo”, cujo dueto com Tim Maia é a campeã de execuções.

O ecletismo do top 10 (a nota de pesar do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) lista as 20 mais) confirma: a baiana tinha seus compositores prediletos, mas sempre se manteve aberta ao novo, o que explica, em alguma medida, ter sido madrinha dos citados Macalé e Melodia, mas que também permitiu à artista revelar e/ou ajudar a reconhecer o talento de nomes como Mallu Magalhães, Vitor Ramil (de quem gravou “Estrela, estrela” em 1981, mesmo ano em que o autor, então com 18 anos), Marília Mendonça (com quem gravou em dueto “Cuidando de longe”, parceria dela com Juliano Tchula, Júnior Gomes e Vinícius Poeta em “A pele do futuro”, de 2018), Junio Barreto (de quem gravou em “Estratosférica”, de 2015, “Jabitacá”, parceria dele com Lirinha e Bactéria, e a faixa-título, dele, Pupillo e Céu; além de “Santana”, em “Hoje”, seu disco de 2005) e Zeca Baleiro, que merece uma história à parte.

Em 1997, ano em que o maranhense lançava seu disco de estreia, “Por onde andará Stephen Fry?”, pela MZA Music, do Midas musical Marco Mazzola, a cantora gravaria seu “Acústico MTV” para o canal de televisão MTV Brasil, com a participação de nomes como Frejat, Herbert Vianna e Luiz Melodia. Uma das músicas do disco de estreia de Baleiro era “Flor da pele”, composta em homenagem a “Vapor barato”, a citada parceria de Jards Macalé e Waly Salomão. O maranhense e a baiana cantaram juntos um medley com as duas músicas e o resto é história.

Não tive a oportunidade de ver Gal Costa ao vivo. Alguns tiveram e não souberam aproveitar: em 2012 a artista se apresentou em São Luís, em evento para convidados na inauguração das obras de ampliação de um shopping center da capital maranhense, ocasião em que ela teve que interromper seu show de cerca de uma hora por três vezes, pedindo ao público para se calar, já que o barulho das conversas estava impedindo-a de fazer seu trabalho. Ela cumpriu seu compromisso profissional, mas ao fim da apresentação, irritada, saiu do palco sem se despedir do público.

Na recém-encerrada eleição presidencial, em nome de superar o projeto neofascista no poder, a cantora declarou apoio a Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de quem era histórica opositora. Em uma rede social, ela celebrou a vitória: “Orgulho do nosso Brasil!!! Vamos reconstruir nossa democracia com Lula meu presidente!!!! A felicidade não cabe em mim!!!”, exclamou.

Se em “Brasil” (Cazuza/ George Israel/ Nilo Romero), em vez de “mostra tua cara” Gal Costa tivesse cantado “mostra tua voz”, certamente ouviria a si própria.

Nome: Letieres Leite. Sobrenome: gênio

Letieres Leite. Foto Márcio Lima. Revista Continente. Reprodução

O baiano Letieres Leite (8/12/1959-27/10/2021), homem-música inventor da Orkestra Rumpilezz, é um nome absolutamente fundamental para a música brasileira, ao menos para quem se liga em fichas técnicas, coisa cada vez mais rara, num tempo em que as plataformas digitais mal dizem quem canta determinada música, quanto mais quem compõe, arranja ou toca instrumentos.

Com trajetória acadêmica iniciada nas artes plásticas, Letieres começou a aprender música de forma autodidata, tendo aprofundado seus estudos na área frequentando o Franz Schubert Konservatorium, em Viena.

Daniela Mercury, Davi Moraes, Didá Banda Feminina, Elza Soares, Goma-Laca, Ivete Sangalo, Lenine, Ligiana, Márcia Castro, Marco Lobo, Maria Bethânia, Marilda Santanna, Ná Ozzetti, Orkestra Rumpilezz, Serena Assumpção, Zé Manoel e Zé Miguel Wisnik são alguns dos nomes com quem o maestro t(r)ocou, entre arranjador, compositor e instrumentista (percussão, flautas e saxofones).

Certa feita o maestro passou por São Luís, em companhia da cantora Ligiana. Levei-os ao Bar do Léo. Estavam curtindo férias e não queriam holofotes, tanto que não fiz foto, nem escrevi uma nota sobre a viagem e o encontro. Bebemos juntos e conversamos um bocado. A cantora estava gestando “Floresta”, seu segundo disco, cujo título homenageia sua avó paterna, e tem arranjos e direção musical de Letieres.

Recordo a enorme alegria que foi para ele, ao chegar ao museu da música encravado no hortomercado do Vinhais, pouco após apresentá-lo a Leonildo Peixoto Martins, proprietário do estabelecimento, reverenciando-o merecidamente, como o gigante que era, Léo sacar de sua vastíssima coleção o “disco vermelho” de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz. Ele jamais imaginaria se ouvir ali.

Mas antes, lembro também que, a caminho do bar, ela reclamou de um lojista que se recusou a repetir uma música de um disco que ouvia. Era o “Bandeira de aço” (Discos Marcus Pereira, 1978), de Papete. Ainda no carro, comentei: “quando chegarmos onde estamos indo, você vai ouvir essa música quantas vezes quiser”; palavra que cumpri com a ajuda da simpatia que Léo devota a quem quer – na verdade, a quem demonstra interesse por boa música.

Nem lembro quantas vezes pedimos e fomos atendidos pelo dj residente, como brincalhonamente refiro-me a Léo – as sequências não têm a mesma graça quando ele não está no bar: a certa altura, Letieres Leite batucava na mesa o “Boi de Catirina” (Ronaldo Mota), já anotando mentalmente, e comentando com Ligiana, ideias para o arranjo da regravação do clássico que ela acabou fazendo em “Floresta” (2013).

Tive a honra de assistir, presencialmente, a uma demonstração da genialidade do maestro.

A orfandade dos pivetes, dos alcoólatras e dos amigos

Da esquerda para a direita, o blogueiro, o poeta e jornalista Cunha Santos, o poeta-músico ZéMaria Medeiros e o jornalista Gutemberg Bogéa a caminho de Carolina, circa 2004. Foto: acervo ZR

Filho de Durval Cunha Santos e Josefina Medeiros, Jonaval Medeiros da Cunha Santos nasceu em Codó/MA, em 10 de novembro de 1952 e faleceu hoje (20), vitimado por insuficiência respiratória em decorrência de um edema pulmonar, em São Luís, cidade que adotou e por que foi adotado desde antes de seu primeiro aniversário. Era irmão da cantora Didã.

Jornalista, entre poemas e contos publicou livros sob os pseudônimos Cunha Santos Filho e J. M. Cunha Santos: “Meu calendário em pedaços” (1978), “A madrugada dos alcoólatras” (s/d), “Pesadelo” (1993), “Paquito, o anjo doido” (s/d) e “Vozes do hospício” (2008), para citar alguns.

Neste último, dedicou-me o soneto “Motel”, um dos poucos poemas que sei dizer de cabeça, originalmente publicado n“A madrugada dos alcoólatras”, que recitei em muitas noites, em sua companhia ou fazendo sua fama ir além de sua presença: “O mênstruo da aurora em tom vermelho/ repete-me abatido na vidraça/ minha imagem em dó, ré, mi, coalha no espelho/ o sol, lavando o rosto, vê e passa/ É a manhã, rebento do meu sono, afoito/ me mudo para a lâmpada que acesa/ crava minha sombra sobre a mesa/ caneta e eu, poema, eterno coito/ Saudades dela em mim como estrias/ na pele – e como é duro removê-las/ devassos, nós dormimos quando é dia/ porque às noites, como cães lassos de orgia,/ se ela faz suruba com as estrelas/ eu vivo em coito anal com a poesia”.

Dividi muitas mesas e noites com Cunha Santos e pouparei os poucos mas fiéis leitores de histórias que poderiam soar apologia ao alcoolismo. Ele tinha consciência de sua condição e afirmava na terceira capa de “A madrugada dos alcoólatras” que o livro “não tem outra pretensão que não a de tentar descrever, através da poesia, pelo menos uma parte do sofrimento de que são acometidos todos eles”.

Recordo com especial carinho uma noite de sexta-feira que pariu o sábado em que amanhecemos tomando café numa padaria na Rua de São Pantaleão, próximo de onde ele então morava, e dali, com a mesma roupa de ontem, seguimos para assistir uma palestra do brilhante Agostinho Ramalho Marques Neto, que fora seu professor no curso (não concluído) de Direito, na Universidade Federal do Maranhão.

Na orelha de “Odisseia dos pivetes”, o jornalista e ex-deputado Luiz Pedro, falecido em junho passado, escreveu: “Cunha é um dos Santos de minha devoção”. Não exagerava. Além de poeta, foi um dos maiores cronistas políticos que o Maranhão conheceu.

Figura extremamente humana, era capaz de passar a noite distribuindo esmolas a quantos pedintes encostassem na mesa, deixando a conta na pendura – o fiado nas quitandas e bares ou a cumplicidade dos “colegas de copo e de cruz” invariavelmente garantiam-lhe a solidariedade.

Era um homem de esquerda, o que ninguém podia negar, combativo com a arma que tinha: a palavra. Se para muitos poetas e jornalistas o espectro ideológico deve ser omitido em nome de uma inalcançável, portanto falsa, imparcialidade, Cunha Santos nunca deixou de dizer de que lado estava, fosse escrevendo poemas em livros, fosse escrevendo textos em jornais. Combateu com igual fervor, entre a juventude e a melhor idade, a ditadura militar de 1964 e o governo genocida de Jair Bolsonaro – no que também irmanamo-nos: se uma CPI tem medo de dar às coisas o nome que as coisas têm, nós não.

Ia às lágrimas com facilidade, fosse por um poema, uma música, a situação do país, “comovido como o diabo”, como cravou outro poeta de sua predileção, exatamente como o personagem que dá título a um de seus poemas mais conhecidos, “As lágrimas de Seu Nelson”: Seu Nelson chorava todas as manhãs/ não porque estivesse velho ou triste/ não porque lhe deprimisse estar no mundo/ Seu Nelson chorava todas as tardes/ não porque sentisse dor ou soubesse de saudades/ não porque lhe deprimisse não ter muito aonde ir/ Seu Nelson chorava todas as noites/ não porque fosse criança ou tivesse medo do escuro/ não porque lhe restasse na vida um único e antigo amor/ Seu Nelson chorava todas as manhãs/ porque tinha certeza de que jamais/ haveria outra manhã igual àquela/ Seu Nelson chorava todas as tardes/ porque cedo ou tarde todas as tardes acabam/ Seu Nelson chorava todas as noites/ porque sabia que as estrelas/ se repetiriam em outras noites,/ naquela noite nunca mais/ e que sua madrugada só duraria/ até a hora de chorar mais uma vez”.

Talvez Seu Nelson e todos nós choremos por sabermos, agora, que nunca mais Cunha Santos escreverá outro poema, outra crônica. Resta a nós a saudade e relê-lo.

Gigi Moreira (31/1/1957-10/11/2020)

O artista em seu habitat natural, o palco. Foto: reprodução/ Facebook.

Nunca esquecerei a ocasião em que o percussionista e compositor Erivaldo Gomes me disse: “Gigi Moreira era pra ser nosso Tom Zé”. Referia-se à genialidade da música de Gislenaldo Machado Moreira (31/1/1957-10/11/2020), falecido hoje, após alguns dias internado no Hospital de Cuidados Intensivos (HCI), na capital maranhense – chegou a ser intubado por sequelas da covid-19.

Piauiense de nascimento, Gigi chegou à São Luís ainda na infância. Era graduado em Educação Física (Ceuma) e tinha pós-graduação em Gestão Cultural (Estácio São Luís). Servidor da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma) desde 1981 estava à disposição da Secretaria de Estado de Esporte e Lazer (Sedel), onde ocupava o cargo de Chefe do Departamento de Lazer.

Era um artista múltiplo: ator, diretor, cantor e compositor. Foi no campo das artes que deixou sua mais profunda contribuição ao Maranhão. Foi um dos fundadores do Grupo Independente de Teatro Amador (Grita), do bairro do Anjo da Guarda, onde morava, um dos mais longevos em atividade no Maranhão, encenando a Via Sacra pelas ruas da área Itaqui-Bacanga há cerca de 40 anos. O velório acontece esta tarde no Teatro Itapicuraíba, sede do grupo, no Anjo da Guarda.

“A Secma e o secretário Anderson Lindoso prestam condolências aos familiares e amigos do artista nesse momento de tristeza”, manifestou-se a Secma em nota de pesar publicada em seu site.

“O Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal do Maranhão manifesta o seu mais profundo pesar pelo falecimento do artista Gigi Moreira por todas as contribuições culturais ao nosso Estado”, afirmou outra nota de pesar, distribuída pelas redes sociais.

Era um amigo querido, mais um a que a pandemia de covid-19 obrigou a nos virmos com menos frequência do que gostaríamos. Um de nossos últimos encontros presenciais foi por ocasião do lançamento do “Frevo desaforado”, de Joãozinho Ribeiro, que congregou uma constelação de artistas na Galeria Valdelino Cécio, no Centro de Criatividade Odylo Costa, filho (Praia Grande), pouco antes do carnaval. Com seu habitual sorriso estampado, Gigi Moreira deu sua canja. De outra feita dividimos algumas cervejas na calçada do Botequim da Tralha – também antes da pandemia – ocasião em que conversamos sobre amenidades, projetos e a tragédia que é o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro.

Em 2009 estivemos juntos no Fórum Social Mundial, em Belém/PA. No Acampamento Balaiada, Gigi Moreira foi um dos artistas maranhenses a emprestar sua voz para denunciar ao mundo o golpe judiciário então em curso que acabaria por cassar o mandato do então governador Jackson Lago (1934-2011).

Gigi sempre teve lado e nunca escondeu. O assassinato do artista popular Jeremias Pereira da Silva, o Gerô, espancado até a morte por policiais militares, em 22 de março de 2007, instituiu o Dia Estadual de Combate à Tortura, celebrado a todo 22 de março, no Maranhão, por iniciativa da então deputada estadual Helena Heluy (PT).

Em 2008 o bloco tradicional Pau Brasil, do Anjo da Guarda, prestou merecidas homenagens a “Linguafiada”, um dos pseudônimos com que Gerô assinava seus cordéis. O samba-tema, na oportunidade, tinha melodia de Gigi Moreira e Wilson Bozó e letra deles e Ribão, Jeovah França, Josias Sobrinho e este que vos perturba.

Ouçam “Salve Gerô!”:

Réquiem para Maria

Maria Lindoso com o neto e o bisneto. Fotos: Zema Ribeiro

Houve um tempo em que os cromos dos álbuns de figurinhas não eram autocolantes. Lembro-me que endureci um calção limpando cola dos dedos. Não lembro que idade tinha o guri que eu era, mas tinha especial apreço pelo calção azul e vermelho costurado por minha avó, Maria do Rosário Lindoso (8/12/1939-25/10/2020), com quem morei até os sete anos de idade, em Rosário/MA.

13 anos depois de Antonio Viana, meu avô, vovó faleceu, vítima de um câncer de pulmão – foi fumante por mais de 60 anos de vida. Tinha também mal de Alzheimer. Teve seis filhos, pois não fazia distinção da última, adotada: Solange (minha mãe), Sérgio, Silvio, Sara, Susalvino e Silvandira, por ordem de data de nascimento.

Perdi as contas de netos e bisnetos que deixa e, dos primeiros, ao menos a safra inicial de meia dúzia, todos íamos comprar-lhe doses de cachaça (escondidos de vovô), com que costumava se aquecer para os banhos de cuia no tanque, boca da noite. Além de dar os primeiros tragos em hollywoods, carltons, plazas, frees, derbys e que tais, atendendo à sua outra ordem: “menino, vai acender um cigarro pra mim”.

Faleceu justamente no dia do encerramento dos festejos de Nossa Senhora do Rosário, santa padroeira de sua cidade natal e que lhe batizou, ela, nascida, afinal de contas, num dia de Nossa Senhora da Conceição. Não era uma católica fervorosa, mas tinha lá seu altar particular, com umas imagens, diante das quais vez por outra acendia velas e rezava.

Tampouco era politicamente correta e divergíamos em muitos temas, diante dos quais eu geralmente calava, a fim de evitar atritos e não soar desrespeitoso. Lembro-me que no último passeio que fizemos juntos, ela reclamou por eu estar servindo o churrasco à minha companheira, e não o contrário. Dissemos qualquer coisa e tentamos acreditar que tais comentários se deviam a um abismo geracional (embora gente – parentes, inclusive – mais jovem que nós mantenha esse tipo de pensamento e postura).

Mesmo com a vida quase nunca sendo fácil, deixou valorosas lições de honestidade, em espécies de ditados que eu mesmo só ouvi de sua boca. “Homem que é homem caga na mão e come”, dizia, ensinando que problemas têm que ser enfrentados e resolvidos, não adianta ficar choramingando pelos cantos. Ou: “quem não tem, não tem raiva”, advertindo que a inveja, a cobiça e a ganância não são boas conselheiras.

Foi apresentada ao bisneto José Antonio antes de ao diploma de jornalismo, que ela nunca deixou de me cobrar. O homem formado, no fundo, nunca deixou de ser o menino de calça curta e tênis conga, como fotografado a seu lado, um dia, provavelmente o da cerimônia de formatura do ABC, no gramado em frente ao jardim de infância em que aprendi a ler – ao lado da igreja da matriz –, derrubado pela insensibilidade dos gestores públicos.

O mesmo menino que nunca esquecerá o quintal onde tanto brincou, cheio de plantas, cuidadas com extremo zelo, os pés de abacate dos quais ela me enviava os frutos, sabedora do quanto os aprecio, ou do prejuízo nos camarões frescos que me mandava descascar: o ingrediente para a torta sempre acabava em menor quantidade, pois eu já ia me pagando o trabalho com uma porcentagem do aferventado.

Bença, vó!

Chico da Ladeira (6/12/1949-24/10/2020)

[Faleceu ontem (24) em São Luís, o compositor Chico da Ladeira, em decorrência de falência múltipla dos órgãos; na singela e merecida homenagem prestada pelo Balaio Cultural, que produzo e apresento com Gisa Franco, aos sábados, na Rádio Timbira AM, citei, de memória, perfil escrito por Cesar Teixeira e publicado no Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante, em fevereiro de 2004, que reproduzimos a seguir]

CHICO DA LADEIRA: MEMÓRIAS DE UM EMBAIXADOR

A verdadeira história de um compositor que ajudou a Flor do Samba a conquistar vários títulos no Carnaval, posou ao lado de Garrincha para uma foto, e é capaz de fazer embaixadas com tampinhas, moedas e copos, não só para beber, mas para mostrar a todos os malabarismos que os artistas maranhenses fazem para sobreviver e serem notados.

POR CESAR TEIXEIRA*

O compositor Chico da Ladeira em janeiro passado, durante gravação no estúdio Zabumba Records. Foto: Suzana Fernandes

Na rua Antônio Rayol (antiga São João), subindo a ladeira tangente à Fonte das Pedras, o encontramos na casa nº 240, sóbrio. Fala mansa, de bermudas e sem camisa, exibe uma enorme cicatriz na barriga proeminente. “Não foi nada. Uma operação que fiz há quinze anos. Tiraram só uma úlcera do estômago, a vesícula biliar e o apêndice”.

Francisco de Assis Vieira é conhecido entre os sambistas da cidade, ratos de praia e boêmios em geral como Chico da Ladeira, apelido que recebeu da tia Dodoca. Em 1979, em parceria com Augusto Maia, compôs um samba bastante difundido como “Haja Deus” e considerado um hino daquela agremiação carnavalesca.

“Haja Deus, quanta beleza
a Flor do Samba vem mostrar.
São festejos e motivos
da cultura popular”

A popularidade de Chico, entretanto, vem do tempo da bola de seringa na praça do Mercado Central e das peladas no Portinho, na Maravalha, ao lado de Japi, Djalma, Pindura, Bacurau e Dalmir, entre outros militantes. Logo conquistaria uma vaga nos desafiados da Ponta d’Areia, sempre regados pela chuva etílica que desabava no bar de Dona Nazaré, fazendo curva com o vento.

Os craques Chico da Ladeira e Garrincha, em Imperatriz/MA. Foto: Acervo Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante

Foi várias vezes contratado para integrar seleções do interior do Estado, durante campeonatos regionais. Numa das viagens, em Imperatriz, encontrou-se com Garrincha, ex-craque do Botafogo convidado para fazer uma exibição pública, em fins dos anos 60, na inauguração do estádio Frei Epifânio d’Abadia, jogando pelo Cruzeiro, um time local.

A habilidade de Chico com a bola o levou a ser aspirante de times maranhenses como o Ferroviário e o Vitória do Mar, além do Bola Sete, de futebol de salão, na década de 70.

TESOUROS DA JUVENTUDE

Chico lembra da infância, meticuloso, como quem junta pedaços de um filme. “Toquei sino na igreja de Santana, de calça curta engomada e conga, de manhã cedo. Era só pra paquerar as meninas”. Não fez nem o primário, mas aprendeu a ler e a escrever pegando bolos de Dona Risoleta, na rua das Crioulas.

Tinha outras virtudes: era um exímio driblador de bondes e empinador de papagaios, disputando com Alvinho e Ratinho. Vez por outra, retirava das prateleiras do Lusitana e da Loja 4.400 um pouco da mais-valia, transformando gêneros juvenis de primeira necessidade em justiça social. “Eu não tinha medo de nada”.

Entre 14 e 15 anos, para garantir os ingressos do estádio Nhozinho Santos e dos cinemas Éden, Rival e Rialto (gostava de filmes de cow-boy e karatê), carregava sacolas no Mercado Central, e sacrificava dois ou três meses consertando malas de papelão na Casa Santo Antônio, rua da Paz, depois abandonava o serviço. “Era só pra comprar uma calça e uma camisa”.

Foi o futebol, inicialmente, que lhe trouxe algumas doses de vantagem na vida. Recorda que começou a beber tardiamente, aos 18 anos, e, junto com os companheiros de bola, garantia cachaça e mulher na Zona sob o patrocínio de China, pandeirista que vivia na pensão Crás, e sustentava um time amador do mesmo nome. “Lá tinha até karaokê”, acrescenta.

Chico também costumava, na praia ou no bar, exibir-se descalço, fazendo pezinho – embaixadas – com um limão, suspendendo copo e colocando na nuca uma tampinha ou moeda (oferecida por algum incrédulo), que acabava no bolso para completar a próxima cerveja.

O SAMBA NO PEITO

Chico da Ladeira em reprodução da página do Guesa Errante com o perfil escrito por Cesar Teixeira

Aos poucos ele foi deixando a bola, e, adúltero, mergulhou noutra paixão há muito cultivada: o samba. Não era para menos. A casa onde nasceu, em 6 de dezembro de 1949, e na qual vive até hoje, era um terreiro de bamba. Lá foi sede dos Fuzileiros da Fuzarca (fundado em 1936), e depois do bloco Os Lunáticos.

Por ali passaram figuras relevantes do samba maranhense, como Mascote e o náufrago de águas temperadas Cristóvão Colombo.

Chico não viu a batucada dos Fuzileiros na casa da rua São João, pois o bloco se mudou para a São Pantaleão em 1942, quando ainda não era gente, mas chegou a ser baliza de Os Lunáticos, cujos refrões mexiam sua cabeça. O bastante para arriscar-se a fazer o primeiro samba –“Topless” – para um bloco de brincadeira que criou com outros jovens:

“…que coisa louca, que coisa louca,
é tanto peito que me dá água na boca”

Tudo culpa do pai adotivo, o bicheiro Arnaldo Ewerton Vieira, e dos muitos tios, como Raimundo Ewerton de Souza (Diquinho), poeta e compositor inspirado “que faleceu cuspindo o fígado”, lembra Chico. Depois das lunáticas reuniões, os ensaios passaram a ser na casa de Dona Preta, algumas casas acima.

Com 16 anos, Chico da Ladeira apresentou-se na Rádio Gurupi, cantando uma música de Roberto Carlos, e foi premiado com um kit: tênis Ki-Chut, escova e pasta de dentes.

Seu talento como compositor, porém, só foi descoberto em 1978, quando fez “O Circo” para a Flor do Samba, convidado por Augusto Maia, que depois seria seu parceiro. O tema baseava-se no tradicional refrão circense: “Ô raia o sol, suspende a lua/Olha o palhaço no meio da rua”.

Em 1980, mudou-se temporariamente para a escola Unidos da Camboa, onde compôs “Sonhos”, junto com Zé da Conceição, parceiro predileto: “São dias zodiacais/o destino não se muda/as cartas não mentem jamais”. Com Zé, também fez um samba para a Unidos da Senzala, do município de Pinheiro. Mas logo voltaria para a Flor, e novos sucessos ajudaram a escola a vencer na passarela.

“De Saint Louis a São Luís, enfim uma só Paris”, foi o samba-enredo de 2002, com letra e música de sua autoria. Este ano anunciou “Os Sete Pecados da Capital”, em parceria com Augusto.

FORA DO ESQUEMA

Chico da Ladeira admite que sua popularidade também lhe valeu um emprego de contínuo nas Centrais Elétricas do Maranhão, de onde foi demitido após a privatização da empresa. “Eu e mais de 2 mil pessoas”. Com a grana da indenização, comprou um apartamento no Ipem-Bequimão, que lhe rende de aluguel 150 reais por mês. “Muita gente pensava que eu ia torrar em cachaça”.

A esse preconceito ele atribui o fato de não ter sido ainda apoiado pelas instituições culturais do Estado. “Os órgãos deveriam procurar mais os artistas. Fico com vergonha. Outro dia fui na Gerência de Cultura pedir ajuda pra publicar um livreto de poesia e disseram: – Aqui tu não pode subir, Fulano não deixa!”.

Seus poemas, apesar de sufocados pela precária convivência com os livros, são farpas da experiência humana acumuladas no pâncreas de quem tem que transformar sentimentos em flanelinha para enxugar a sujeira de uma sociedade conservadora. Em “Corvos e Gaviões” vomita:

“É melhor ser coveiro
do próprio cemitério
que abraçar os homens
dos três poderes
onde o mar vira inferno”

Chico, no fundo, é o mesmo moleque, aguardando a hora de driblar o destino e marcar mais um gol. Se tivesse nascido no Cantagalo, talvez ocupasse lugar de honra entre sambistas. Aqui os artistas da gema são condenados a andar de costas para a história. Por isso, quem vê o compositor descendo manhoso a ladeira que o popularizou, imagina que está subindo.

*CESAR TEIXEIRA é jornalista e compositor

*

Bonus track: em janeiro o poeta e jornalista Celso Borges e o percussionista Luiz Cláudio levaram Chico da Ladeira ao Zabumba Records e registraram sua voz para um disco. Com a pandemia de covid-19 o projeto foi adiado.

Ouça uma das composições de Chico da Ladeira registradas na ocasião:

Sérgio Sant’Anna (1941-2020)

O escritor Sérgio Sant'Anna. Foto: Daniel Ramalho. Jornal Cândido. Biblioteca Pública do Paraná/ Reprodução
O escritor Sérgio Sant’Anna. Foto: Daniel Ramalho. Jornal Cândido. Biblioteca Pública do Paraná/ Reprodução

 

Os últimos contos que Sérgio Sant’Anna (30/10/1941-10/5/2020) publicou em vida, Das memórias de uma trave de futebol em 1955, no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 26 de abril passado, e A dama de branco, em 1º. de maio, na revista Época, atestavam que o peso dos anos não lhe afetou a qualidade da obra. O par de contos podia figurar em qualquer de seus livros mais recentes, Anjo noturno: narrativas (2017), O conto zero e outras histórias (2016) e O homem-mulher (2014) todos publicados pela Companhia das Letras.

O escritor faleceu nesta madrugada, vítima do coronavírus. Era merecidamente considerado um dos maiores escritores brasileiros em atividade, com sua prosa elegante entre o conto e o romance, povoada de tipos urbanos, violência, sexo e em diálogo permanente com outras linguagens, como a música, as artes visuais e o cinema, arte a que teve adaptadas algumas de suas obras, com destaque para Um crime delicado (Companhia das Letras, 1997), que ganhou a tela grande pelas mãos do diretor Beto Brant em 2005.

O declínio do Rio de Janeiro (e do Brasil) também estava entre seus temas prediletos. Lembrava com solenidade os bares de paredes espelhadas que podiam se tornar o paraíso de quem queria flertar ou o inferno de um cônjuge eventualmente acusado de algo que sequer estava fazendo. Também as apostas no turfe, frequentado por homens elegantemente vestidos, como se, justamente, para figurar em sua prosa, além do futebol, sobretudo os jogos e treinos do Fluminense, seu time do coração, que nos legou obras-primas como Páginas sem glória (Companhia das Letras, 2012).

Quando descobri seu perfil no facebook, a princípio desconfiei, como daquele lendário perfil de João Gilberto entrevistado pela revista Trip – um dos livros mais festejados de Sant’Anna é justamente O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982). Perderia Sérgio Sant’Anna tempo em redes sociais, sempre burilando um próximo conto genial com que nos deleitaríamos quando do lançamento de uma próxima coletânea? Sim, e mesmo fora da página no livro, o capricho de sempre com as letras: escrever confundia-se com sua própria vida, entre o ganha-pão, a diversão e o descanso.

Era um ardoroso combatente do bolsonarismo e de toda a desumanidade impregnada e exalada pelo regime neofascista tupiniquim. Na rede social chegou a escrever que “o Brasil é um filme de terror”, entre suas manifestações diárias de preocupação com os rumos do país, desgovernado por gente que nunca leu uma linha escrita por ele e tampouco dirá qualquer coisa sobre seu falecimento, aos 78 anos, com um legado monumental.

Pela rede social também, anunciou a suspeita de ter contraído a covid-19, o que viria a se confirmar com sua internação. “Hoje pra mim foi barra, tive vários sintomas e achei que estava com o vírus. Mas meu clínico veio aqui e me receitou antibióticos. Estamos vivendo no fio da navalha”, manifestou-se em 28 de abril.

Atencioso, um pouco antes, me respondera um e-mail, negando um pedido de entrevista que lhe fiz. A ideia era que ele falasse ao Radioletra sobre o conto recém-publicado na Folha. “Agradeço o convite, mas estou com problemas de saúde e não posso aceitá-lo. Um abraço. Sérgio”, escreveu.

A morte era também uma das obsessões do escritor. Como lembra este parágrafo de “Lencinhos”, conto de O homem-mulher, um de meus prediletos, entre tantos: ““Vou contar uma coisa para vocês”, eu disse. “Às vezes imagino que renasço numa vida futura e encontro meu pai já falecido e outros amigos mortos e todos nos regozijamos, e é como se não houvesse passado tempo nenhum desta vida para a outra.””. No facebook escreveu, em 23 de abril: “A gente morre, mas se diverte”.

Mas sua obsessão mesmo era escrever e reinventar-se. Como revelou ao jornalista Alvaro Costa e Silva em um perfil publicado no jornal Cândido, publicação mensal da Biblioteca Pública do Paraná: “A cada nova obra, procuro fazer alguma coisa diferente. Do contrário, perderia a graça”. Ou como se manifestou pela rede social, também a 23 de abril: “Meus queridos e minhas queridas, não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir se não escrevendo”.

RIP Aldir Blanc: “chora a nossa pátria, mãe gentil”

O compositor Aldir Blanc num boteco com João Bosco (E), seu parceiro em tantas obras-primas. Foto: reprodução
O compositor Aldir Blanc num boteco com João Bosco (E), seu parceiro em tantas obras-primas. Foto: reprodução

 

Com Aldir Blanc (2/9/1946-4/5/2020) se vai uma parte da inteligência, da elegância e do bom humor brasileiros. Médico psiquiatra de formação, é um dos maiores letristas da Música Popular Brasileira, assim mesmo com as iniciais maiúsculas.

Cronista também com C maiúsculo, retratou o Brasil como ninguém, nas parcerias musicais principalmente com João Bosco e Guinga, mas também nos textos que publicou em jornais como o Pasquim e O Globo por cerca de meio século. Era também versionista de mão cheia – poucos lembram, mas é dele a versão de Amarillo by money (T. Stafford/ P. Frazer), que virou Entre a serpente e a estrela na voz de Zé Ramalho e um grande sucesso nas rádios, alavancado pela presença na trilha sonora da novela Pedra sobre pedra (a mesma gravação integrou, mais recentemente, a trilha sonora da novela O sétimo guardião).

O êxito radiofônico de letras de Aldir Blanc não era algo incomum. Qualquer brasileiro já assobiou alguma criação sua, às vezes sem saber quem é o autor. Outro ótimo exemplo é Resposta ao tempo (parceria com Cristóvão Bastos), imortalizada por Nana Caymmi, antes de sua adesão ao bolsonarismo – em nome do que chegou a chamar Caetano Veloso, Chico Buarque e seu ex-marido Gilberto Gil de “chupadores de pica” de Lula.

Não me venha o leitor desavisado ou “neutro” – a esta altura do campeonato só itens de higiene de bebês podem se dar ao luxo de sê-lo – achar a citação desnecessária: Aldir Blanc era um esteta da palavra, que passeava com desenvoltura pelo sublime mas que bem podia também beirar o grotesco, a depender da exigência do momento, da circunstância. Além do quê era um libertário que não flertava com o conservadorismo. Em suas crônicas nunca escreveu o nome do golpista Michel Temer, por exemplo, sempre tratou-o como Temerreca – nunca deixou também de chamar Paulo Maluf pelo adjetivo cabível: ladrão.

Aldir Blanc era desses brasileiros que os brasileiros precisavam e deveriam conhecer mais. Como escreveu na letra de Querelas do Brasil, em parceria com Maurício Tapajós: “O Brazil não conhece o Brasil/ O Brasil nunca foi ao Brazil”. E adiante: “O Brazil não merece o Brasil/ O Brazil tá matando o Brasil”.

Iconoclasta por excelência e princípios, em 2003 compôs uma letra para Bola Preta, choro de Jacob do Bandolim em homenagem ao famoso Cordão carnavalesco carioca, entre o politicamente incorreto, para o qual não dava a mínima, e homenagens (?) a grandes nomes da música brasileira.

Escrever sobre seu falecimento é arriscar-se a chover no molhado (e usar este clichê é desde já uma prova disso): melhor seria se, em vez de um obituário, lêssemos suas crônicas, ouvíssemos suas criações geniais. Ou ainda arriscar-se a soar piegas: este arremedo de cronista, por exemplo, adoraria ter tomado alguns chopes em sua companhia, quiçá entrevistando-o, e chora sua perda como a de um parente mais velho, tão distante quanto querido.

Como Paulo Leminski, Aldir Blanc elevou o chiste de mesa de bar à condição de obra de arte. Dedicou seu Guimbas (Desiderata, 2008) à “memória de Henfil que, em O Pasquim, vivia me dizendo: “Humor é pé na cara””, chutes que ele nunca hesitou em dar. Num dos aforismos do mesmo livro ele anotou: “a distância entre a vida e a morte é do tamanho de um carrapato”.

Aldir Blanc estava internado desde o dia 10 de abril, com infecção urinária e pneumonia, quadro que evoluiu para infecção generalizada. Não tinha plano de saúde e uma campanha que uniu artistas, amigos e admiradores garantiu sua transferência de hospital. Acabou falecendo vítima do coronavírus.

É clichê dizer que artistas não morrem, já que sua obra fica; mas fará falta ao Brasil, sobretudo neste momento ao menos duplamente trágico, a pena mordaz de Aldir Blanc.

O ator Flávio Migliaccio. Foto: Isabella Pinheiro/ GShow/ Reprodução
O ator Flávio Migliaccio. Foto: Isabella Pinheiro/ GShow/ Reprodução

Este blogue lamenta profundamente registrar também o falecimento do ator Flávio Migliaccio (15/10/1934-4/5/2020). O Brasil certamente terá menos graça quando essa pandemia passar. Esta cada vez mais difícil se cumprir o desejo de Nani, expresso no prefácio de Guimbas: “E este livro, Guimbas, no futuro, quando o Brasil for o país que queremos, com certeza vai cair no vestibular”.

A seguir, 13 obras-primas de Aldir Blanc:

O bêbado e a equilibrista (João Bosco/ Aldir Blanc), com Elis Regina

De frente pro crime (João Bosco/ Aldir Blanc), com João Bosco

Nação (João Bosco/ Paulo Emílio/ Aldir Blanc), com João Bosco

A nível de… (João Bosco/ Aldir Blanc), com João Bosco

Resposta ao tempo (Cristóvão Bastos/ Aldir Blanc), com Nana Caymmi

Miss Suéter (João Bosco/ Aldir Blanc), com João Bosco e Angela Maria

Dois pra lá, dois pra cá (João Bosco/ Aldir Blanc), com Elis Regina

Bala com bala (João Bosco/ Aldir Blanc), com João Bosco

O mestre sala dos mares (João Bosco/ Aldir Blanc), com Elis Regina

Entre a serpente e a estrela (Amarillo by money) (T. Stafford/ P. Frazer/ versão: Aldir Blanc), com Zé Ramalho

Catavento e girassol (Guinga/ Aldir Blanc), com Leila Pinheiro

Me dá a penúltima (João Bosco/ Aldir Blanc), com João Bosco

Bola preta (Jacob do Bandolim/ Aldir Blanc), com Aldir Blanc, Jayme Vignoli e Água de Moringa

A lenda Rubem Fonseca

O escritor Rubem Fonseca. Foto: Zeca Fonseca. Divulgação
O escritor Rubem Fonseca. Foto: Zeca Fonseca. Divulgação

 

Como todo escritor (ou artista, em geral) que escolheu viver em reclusão, Rubem Fonseca (Juiz de Fora/MG, 11/5/1925 – Rio de Janeiro/RJ, 15/4/2020) também angariou, ao longo de seus quase 95 anos de vida, certo folclore ao redor de sua vida particular – se é que figuras públicas as têm.

Um dos maiores nomes da literatura brasileira em todos os tempos, com seu estilo seco, cortante, lascivo, duro, violento e urbano, autor de uma vasta obra entre contos e romances, adaptada ao cinema (Bufo & Spallanzani, de 1986) e à televisão (Agosto, de 1990), Rubem Fonseca parecia predestinado ao ofício que tão bem cumpriu desde a estreia, com os contos de Os prisioneiros (1963).

Nascido em Juiz de Fora/MG, tornou-se carioca aos oito anos de idade. Sua formação em Direito e atuação como delegado de polícia civil certamente ajudaram a moldar ambientes e personagens de suas obras iniciais e, portanto, a pavimentar sua trajetória, de merecido destaque sobretudo na literatura policial.

Seu livro mais recente é Carne crua (2018) e sua literatura é por demais conhecida – venceu seis prêmios Jabuti, dois APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), um Camões e um Machado de Assis –: influenciou quase todo contista que surgiu depois.

Por livros mais recentes, a crítica costumava dizer que o autor estava se repetindo, imitando a si mesmo; mas mesmo em títulos menos inspirados, ainda era superior à grande parte de seus pares de ofício.

Abordá-lo pelo viés de sua obra talvez tornasse tudo mais fácil ou simples, embora trabalhoso, com sua galeria povoada por Mandrake, José, Morel e tantos outros personagens que marcaram seus leitores.

Fico com duas histórias, digamos, extraliterárias, protagonizadas por Rubem Fonseca – que reconto aqui ao sabor da memória que, obviamente, pode estar me traindo.

Em 1989, já escritor famoso, ele estava em Berlim, na data exata da derrubada do muro. O repórter de televisão que entrevistou o brasileiro que participava do momento histórico não o identificou e caiu no trote do escritor, que não se apesentou com tal e foi veiculado nos lares conterrâneos como um brasileiro comum – era conhecida sua aversão a entrevistas, fotografias e câmeras.

A segunda, mais recente, pareceu um troco da vida. Um repórter, disfarçado de estudante de letras, abordou-o a caminho da padaria, dizendo precisar de ajuda para um trabalho da faculdade. Afável, Rubem Fonseca não se fez de rogado, mas dias depois leria no jornal a entrevista que “havia concedido” num banco de praça. No texto, indagado sobre como queria morrer, não vacilou: “tomara que bem velhinho e abraçado a uma gostosa”.

Rubem Fonseca faleceu hoje (15), no Rio de Janeiro, vítima de uma parada cardíaca. Tinha 94 anos.

Morre Ernesto Cardenal, o poeta da Hispano-América, aos 95

O poeta faleceu na tarde de domingo (1º.), após quatro dias hospitalizado. Sepultamento será sábado (7), em Solentiname

DO LA PRENSA, EM MANÁGUA, NICARÁGUA
TRADUÇÃO DE ZEMA RIBEIRO

O poeta e sacerdote nicaraguense Ernesto Cardenal. Foto: Arquivo La Prensa
O poeta e sacerdote nicaraguense Ernesto Cardenal. Foto: Arquivo La Prensa

Ontem (1º. de março) faleceu o poeta Ernesto Cardenal, aos 95 anos, às 15h06, após quatro dias hospitalizado por problemas respiratórios. Seu coração falhou.

O corpo será velado na funerária Monte de los Olivos e amanhã (3) haverá uma missa na Catedral de Manágua. O sepultamento será em Solentiname, sábado (7). A notícia foi anunciada pela poeta Gioconda Belli.

Ordenado sacerdote em 1965, Cardenal havia sido suspenso “A divinis” em 1985 pelo Papa João Paulo II por divulgar a Teologia da Libertação e fazer parte do governo sandinista.

Em fevereiro de 2019, 34 anos depois e durante uma crise de saúde, a Nunciatura Apostólica na Nicarágua informou ao poeta sobre a absolvição concedida pelo Papa Francisco. “O Santo Padre concedeu com benevolência a absolvição de todas as censuras canônicas” impostas ao poeta, dizia a carta.

Foi visitado pelo bispo auxiliar da arquidiocese de Manágua, Silvio Báez, e o padre Edwin Román, que realizaram atos de comunhão e bênçãos espirituais.

A missiva enviada pelo Papa Francisco veio a reconciliar Cardenal com o Vaticano. Com seu efeito o núncio apostólico na Nicarágua, Stanislaw Waldemar Sommertag, celebrou a primeira eucaristia com o poeta no seu leito de enfermo no Hospital Vivián Pellas.

O poeta trapense [religioso pertencente à ordem de Trapa] disse no momento que recebia “amorosamente” do papa Francisco a absolvição da “censura canônica”.

Pegadas de Cardenal: o poeta, o sacerdote, o político

Quatro vezes indicado ao Prêmio Nobel: Em 2005 Cardenal foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura. Então em 2007 [foi indicado] pela Sociedade de Escritores do Chile, e o laureado poeta Raúl Zurita deu seu respaldo à candidatura.

Em 2010 foi proposto pela Sociedade Geral de Autores e Editores (SGAE) da Espanha. Mais de 150 poetas do mundo reunidos no VI Festival Internacional de Poesia de Granada, na Nicarágua, redigiram uma carta de apoio. A mais recente proposta ao Nobel foi realizada pelo ex-presidente uruguaio José Mujica, em 2018.

Obra premiada: Antes de receber o Prêmio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda (2009), Cardenal assegurava que era o poeta menos premiado. À época somente era possuidor do Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão (1980) e o Prêmio Ondas Mediterrâneas (2005).

Três anos depois sua vida e sua obra foram reconhecidas na Espanha. O poeta trapense foi agraciado com o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana (2012). No ano seguinte o governo francês o condecorou com a ordem Legião da Honra em grau oficial.

E no fim de 2018 [foi agraciado] com o Prêmio Internacional Mario Benedetti, que o poeta dedicou à criança mártir Álvaro Conrado, assassinado durante os protestos contra o regime de Daniel Ortega. O México lhe rendeu homenagem em seu 90º. aniversário de nascimento, entre outros a que o poeta não pode assistir.

Teologia da Libertação

[Ernesto Cardenal] Realizou estudos de Literatura na Universidade Nacional Autônoma do México, depois em Nova York, Espanha, Suíça e Itália.

Participou da chamada Revolução de abril de 1954, contra o ditador Anastasio Somoza Debayle. Se retira da atividade política e ingressa na abadia trapense de Nossa Senhora de Getsemani (Kentucky, Estados Unidos).

Conhece seu maestro, o monge e escritor Thomas Merton, a quem o poeta considerou como seu “pai espiritual”. Em 1959 continua seus estudos de teologia em Cuernavaca, México.

É ordenado sacerdote em Manágua em 1965. Funda a comunidade de Solentiname. Leva vida monástica e promove as artes naif entre os ilhéus.

Escreve o celebrado livro O evangelho de Solentiname. Junto a Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Jon Sobrino, entre outros, promove a Teologia da Libertação.

Durante sua viagem ao Chile faz amizade com o presidente Salvador Allende. Crítico do somozismo, chega a militar na luta da Frente Sandinista de Libertação Nacional, promove a solidariedade com a revolução no México, América Central, Cuba, Alemanha e em outros países europeus.

Com o triunfo [da Frente Sandinista de Libertação Nacional] em 1979 é nomeado Ministro da Cultura, para ser então o primeiro a ocupar este alto cargo na Nicarágua. Promove a exteriorização e oficinas de poesia. Em décadas anteriores do somozismo só existiam extensões de cultura.

A repreensão de João Paulo e a suspensão “A divinis”: Em 1983, João Paulo II visita a Nicarágua. Em sua chegada ao aeroporto repreende-o drasticamente enquanto Cardenal permanece ajoelhado.

O Papa o questiona por divulgar a Teologia da Libertação e por integrar o governo sandinista. A notícia ganha o mundo. Fato que ainda é lembrado quando se menciona seu nome na imprensa internacional.

Em 1984, João Paulo II proíbe “A divinis” a Cardenal de exercer o sacerdócio se continuar como ministro da cultura do governo sandinista. Como os sacerdotes, seu irmão Fernando Cardenal, Miguel D’Escoto e Edgar Parrales. Em janeiro de 1985 é suspenso legalmente. Em 2014 o Papa Francisco ordenou a suspensão do castigo.

Três anos depois, em entrevista ao jornalista argentino Enrique Vázquez, disse que somente D’Escoto foi reconciliado com a Igreja. Mas que nunca lhe tiraram a suspensão. Em fevereiro de 2019, Cardenal recebe, através da nunciatura em Manágua, a carta de perdão papal.

Abandona seu cargo de ministro, depois a FSLN: Em 1987 abandona o cargo por fortes controvérsias sobre política cultural com a poeta Rosario Murillo, secretária geral da Associação Sandinista dos Trabalhadores da Cultura (ASTC), e atual vice-presidente da Nicarágua.

Continuando com seu trabalho cultural, nos anos 1990 funda com outros o Centro Nicaraguense de Escritores (CNE), promove os livros e suas esculturas. E no final daquela década, com o austríaco Dieter Schönherr, funda a Casa dos Três Mundos, em Granada.

Em 1994 se retira da Frente Sandinista em protesto contra o autoritarismo de Daniel Ortega e dá seu apoio ao Movimento Renovador Sandinista, onde figuram escritores de renome internacional como o ex-vice-presidente Sergio Ramirez, autor do livro Adiós muchachos, e a poeta Gioconda Belli, do livro El país bajo mi piel: Memorias de amor y de guerra. Nas últimas décadas têm sido críticos do binômio Ortega-Murillo.

“Sou um perseguido político, tenho uma condenação de cárcere de um juiz de Daniel Ortega e, ademais, o congelamento de minhas contas bancárias”, indicou em declarações à imprensa em meio a uma visita à capital mexicana por ocasião da publicação do terceiro volume de sua Poesia Completa (Universidad Veracruzana, 2008).

Em 2007 o poeta viajou ao México e conversou com subcomandante Marcos do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Foi convidado para o XII Encontro Hispano-americano de Escritores Horas de Junho e ofereceu um recital de seu livro Polvo de estrelas, na Universidade de Sonora.

De suas obras poéticas e memórias

Nos dois últimos anos publicou, por ocasião de seus aniversários de 93 e 94 anos: Así en la tierra como en el cielo (2018) e Hijos de las estrellas (2019), ambos editados pela Anama.

Em sua juventude, em 1952, por seu poema Con Walker en Nicaragua, o poeta ganhou o prêmio do Centenário de Manágua. No mesmo ano fundou a editora El hilo azul.

Anos depois publica por diferentes editoras: Hora 0 (1957), Epigramas (1961), Salmos (1964), Oración por Marilyn Monroe y otros poemas (1965), Homenaje a los indios (1969), Oráculo sobre Managua (1973), Los ovnis de oro (1988), Cántico cósmico (1989), El telescopio en la noche oscura (1993), Poesia Completa Tomo I y II (2007), Versos del pluriverso (2012), Hidrógeno enamorado (2012) e Somos polvo de estrellas (2013). De suas memórias: Los años de Granada (2001), Vida perdida (2003) e La revolución perdida (2004).

Além de outros títulos com temas de religião, democracia e paz: Ansías y lengua de la poesía nueva nicaraguense (1948), Vida en el amor (meditaciones) (1970), El Envangelio em Solentiname (1975), La paz mundial y la revolución em Nicaragua (1981), Democratización de la cultura (1982) e Los campesinos de Solentiname pintan el Evangelio (1982), entre outros.

Cardenal também cultivou a escultura

De sua obra o poeta Julio Valle-Castillo disse que sua “arte provém do povo, passa pelas mãos de Cardenal e volta ao povo”.

Por seu lado, a historiadora da arte Maria Dolores Torres: “Ernesto Cardenal destaca a linha de figuração das peças, sua estilização e simplificação das formas naturais”.

Desde 1956 até uma recente exposição coletiva na galeria Códice em 2017 suas obras têm sido expostas na Unión Panamericana (Washington D.C.), Galeria Tagüe, Feira Mundial V Centenário, Sevilha (Espanha), Centro de la Raza, Seattle (Estados Unidos), Galeria Gerhard, Zurique (Suíça), Viena (Áustria), OEA (Washington D.C.), Museo Galería Josefina, Manágua e no Teatro Nacional Rubén Darío, na exposição Fin de Siglo.

Obituário: João Gilberto

Reprodução
Reprodução

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (10/6/1931-6/7/2019), baiano de Juazeiro, revolucionou a música popular brasileira ao inventar sua batida característica ao violão, que se configurou como marco inaugural da Bossa Nova. É graças à existência de João Gilberto que o Brasil viria a ter artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre muitos outros, gente que decidiu seguir a carreira artística após o arrebatamento que significou ouvir Chega de saudade (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), faixa que batizou o marco zero do movimento que fundiu o samba brasileiro ao jazz americano.

Certa vez, entrevistando Turíbio Santos, perguntei ao maranhense, referência internacional em se tratando de violão, se “João Gilberto era mesmo tudo isso que se dizia”. O maior divulgador da obra de Villa-Lobos mundo afora não hesitou: “é tudo isso e mais um pouco”.

Gênio foi adjetivo sempre atrelado ao nome de João, de quem disse Caetano: “melhor do que o silêncio só João”. Excêntrico foi outro. O jornalista alemão Marc Fischer, que suicidou-se antes de lançar Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto [Companhia das Letras, 2013], nas páginas de sua grande reportagem, urdida em uma viagem ao Brasil com o sonho de encontrar o ídolo, fez um verdadeiro inventário de justificativas para um e outro adjetivo.

Por exemplo, a obsessão que acabou levando-o a inventar a batida revolucionária no banheiro de uma casa em Diamantina, interior de Minas Gerais. Ou no episódio em que se apresentando com Caetano Veloso, e reclamando da acústica do local da apresentação, começou a ouvir vaias da plateia e retrucou: “vaia de bêbado não vale”, levando o também baiano Tom Zé a escrever (em parceria com Vicente Barreto) uma crônica musical sobre o episódio – lançada em seu ep “Imprensa cantada”, de 2003.

Perfeccionista também. O lançamento de uma compilação reunindo sucessos de seus três primeiros discos, pela EMI, levou o artista a travar uma longa batalha judicial contra a companhia, alegando mudanças nos fonogramas originais, que chegaram a ser compactados para caber o máximo possível em um cd. Entre as várias histórias (reais e inventadas) acerca de sua persona é conhecida a do costume de passar até 12 horas no apartamento ensaiando a mesma música.

O último retrato. Sofia Gilberto/ Reprodução
O último retrato. Sofia Gilberto/ Reprodução

Recluso foi outro adjetivo que se colou a João, sobretudo nos últimos anos. A última vez em que anunciou uma turnê, com que comemoraria seus 80 anos, cancelou alegando uma gripe. O último retrato, em que aparecia elegantemente trajando um terno e segurando o violão, companheiro inseparável, foi postada por sua neta, Sofia Gilberto, em uma rede social.

Dono de uma obra irretocável, João Gilberto faleceu hoje (6), aos 88 anos, em seu apartamento no Leblon. Há algum tempo ele já apresentava um quadro de saúde debilitada – o falecimento foi confirmado pela família, mas a causa mortis ainda não foi divulgada, nem informações sobre velório e sepultamento. Deixa os filhos João Marcelo, Bebel e Luiza.

“Vai-se o homem do baixo”

Facebook. Reprodução

 

Faleceu ontem (22) em São Paulo, vítima de um infarto fulminante, o músico Gerson da Conceição. Tinha 52 anos e deixa uma folha extensa de relevantes serviços prestados à música brasileira, em especial o reggae – entre muitos outros feitos fundou a banda Manu Bantu, referência no gênero.

Tocou em discos de, entre outros, Banda Black Rio, César Nascimento, Marquinhos Mendonça, Rita Benneditto e Zeca Baleiro, além de ter deixado parcerias com o duo Criolina (Alê Muniz e Luciana Simões) e os poetas Celso Borges e Fernando Abreu.

Assim se manifestou o último em uma rede social: “Tenho muita alegria de todas as minhas parcerias musicais. Todas elas me fizeram ir um pouco mais longe, me deram e me dão um pouco mais de gás. Entre elas, um cara que era pura energia chamado Gerson da Conceição. Agora ele se vai, de repente. Está acima de minha compreensão como a vida pode abrir mão de alguém como Gerson. Ele que transpirava vida, a pura vibe que emanava dos seus dreads antenados. Fica a alegria de tê-lo conhecido, construído algo com ele mas, acima de tudo, de saber que seu contrabaixo poderoso continuará eternamente açoitando a Babilônia. Gerson Vive!”.

“Faz tempo que não convivo com Gerson diretamente, desde que ele mudou pra Sampa. Mas meu carinho, admiração e respeito por ele permanecem intactos até hoje. Adoro a voz, as canções, a energia positiva, a paixão pela música e todo amor que ele sempre me passava. A morte é inevitável a todos nós, mas ela sempre nos surpreende e nos deixa assim, quase sem vida também, por que dói demais”, declarou a cantora Rita Benneditto, de quem o contrabaixista foi um dos primeiros Cavaleiros de Aruanda [banda que acompanhou a cantora].

Foram inúmeras manifestações de pesar e, ante a vitalidade e juventude, reações de surpresa com a notícia, nas redes sociais. O compositor Josias Sobrinho lembrou-se de um episódio pouco conhecido, de quando Gerson estava iniciando a carreira. “Era um cara super do bem. Conheço desde os tempos do [bar] Risco de Vida. Quando ele saía do trabalho no Banco Real passava por lá para dar uma canja com as primeiras levadas que fazia”, rememorou.

Ao receber a notícia em um grupo de whatsapp desconfiei: há alguns anos Gerson havia sofrido um AVC do qual escapou sem sequelas. Minha reação automática foi tentar contato com pessoas próximas a ele, na esperança de que me dissessem se tratar de alarme falso, boato, fake news, qualquer coisa… Infelizmente não era. Confirmada a notícia, pedi um depoimento ao jornalista e dj Otávio Rodrigues, amigo comum. No áudio enviado é possível perceber a voz embargada, o esforço em conter as lágrimas. A última vez em que eles se apresentaram juntos foi em São Luís, em 2015, no palco do projeto BR-135, no show Poesia Dub, que tem como frontman o poeta Celso Borges. A dose seria repetida na próxima Virada Cultural, em São Paulo, mês que vem. Infelizmente não deu tempo.

“Quando a gente se conheceu eu morava em São Luís, tinha acabado de chegar, e logo percebi esse músico, ele chamava atenção. Logo ele montou a banda Conexão Rasta, e eu tinha uma esperança de ver no reggae do Maranhão uma inclinação mais jamaicana, mais radioleira, e o baixo no reggae é uma coisa especial, um item essencial, e há modos de se tocar. O reggae engana muitas vezes, muitos músicos acham que é fácil, que são poucas notas etc., mas o baixo especialmente mostra que não e o Gerson logo chamou minha atenção nesse aspecto. Ficamos amigos, quis o destino que eu voltasse de São Luís para São Paulo, depois ele também, o que só fortaleceu nossa relação, a presença do Celso Borges aqui também. Eu e CB começamos o Poesia Dub, esse nosso projeto, e logo na primeira apresentação ao vivo a gente sentiu falta de uma coisa mais forte, um live p.a., uma coisa que funcionasse mais visualmente, tivesse mais peso, e o chamamos para participar, o que ele vinha fazendo desde sempre. Assim foi no Itaú Cultural, depois no Tim Festival. Trocamos mensagens semana passada, por conta dessa gig mês que vem, ele me veio com planos de inovação, que tinha umas bases novas para me mostrar, coisas que a gente podia desenvolver juntos até essa apresentação… “sim, sim, vamos, vamos”, me chamando no estúdio. Em suma vão ficar as incontáveis lembranças, das nossas baladas por aí, em São Luís, aqui em São Paulo, entre shows juntos – a gente sempre se contatava, “vamos lá juntos!”, um chamava o outro –, e as tardes e noites imensas e sem fim, que passamos juntos, eu, ele, ou eu, ele e CB, ensaiando, bebendo pinga, catuaba, música, alegria, risada e fumaça. Um músico espetacular e um bom gosto musical absurdo. Era sempre uma delícia sentar e ouvir música com ele. Fica aí o curso da vida pra nós que ficamos, essa saudade sem fim. Vai-se o homem do baixo e deixa a gente aqui chorando baixinho”, declarou o não à toa alcunhado Doctor Reggae.

O corpo de Gerson da Conceição será velado e sepultado em São Paulo.

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Relembre Down down, com a Manu Bantu:

O irrotulável Luiz Melodia

Foto: divulgação

 

Foi mais fácil para a crítica e a indústria rotularem-no de maldito, como o fazem com qualquer um que não se enquadre a seus ditames. Ora, que ousadia, um negro descido do morro de São Carlos, Rio de Janeiro, não querer fazer samba. Ou não se limitar a fazer isso, destino natural de todo preto que se meta com música, ao menos era/é o que pensavam/pensam – e diziam/dizem – à época/ontem, hoje e sempre.

Consciente de seu papel e lugar, mesmo rotulado de maldito, Luiz Melodia (7/1/1951-4/8/2017) fez um dos discos fundamentais da história da música popular brasileira, daqueles que entram em qualquer lista de melhores em todos os tempos: Pérola negra, de 1973, era pura ousadia, desde a capa, pura ironia, desde o título.

Em 1971, nos lendários show e disco Fa-tal – Gal a todo vapor, Gal Costa lhe revelaria o talento ao Brasil, ao gravar justamente aquela que viria a ser a faixa-título de seu álbum de estreia. Além da tropicalista estão entre seus intérpretes Arnaldo Antunes, Barão Vermelho, Caetano Veloso, Cássia Eller, Elza Soares, Jards Macalé, Jussara Silveira, Maria Bethânia, Mart’nália, Pedro Luís, Renato Braz e Virginia Rosa.

Entre seus grandes sucessos estão Magrelinha, Estácio, Holly Estácio, Juventude transviada, Farrapo humano, Congênito, Fadas, Ébano e Presente cotidiano. Sua gravação para Codinome Beija-Flor (Ezequiel Neves/ Cazuza/ Reinaldo Arias) obteve grande êxito radiofônico, tendo integrado a trilha sonora da novela global O dono do mundo (1991). Entre as “flores em vida”, recebeu homenagens de Sérgio Sampaio e Itamar Assumpção, outros artistas, como ele, rotulados de malditos. O primeiro, com participação especial do homenageado, ofereceu-lhe Doce melodia (Luiz Melodia) (1982); o segundo, Quem é cover de quem? (1993).

Somente em 2007, com Estação melodia, ele dedicou um disco inteiro ao samba. Mas aí, independentemente de rótulos, já podia fazer o que queria – no fundo, sempre foi assim. Seu disco mais recente é Zerima (2014). Luiz Melodia tinha 66 anos e estava se recuperando de um transplante realizado para combater um câncer de medula.