Chorografia do Maranhão: Joaquim Santos

[O Imparcial, 8 de dezembro de 2013]

Violonista, ex-integrante da Camerata Carioca, autor das trilhas sonoras de mais de 20 filmes e professor da Escola de Música, Joaquim Santos é o 21º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Filho do comerciante português Camilo Gomes dos Santos e da dona de casa Raimunda Moraes dos Santos, nascida em Bequimão, Joaquim Antonio dos Santos Neto nasceu em São Luís em 20 de dezembro de 1951. Além dele e seus pais, a casa da infância que lhe habita a memória era dividida com quatro irmãos – entre os quais o cineasta Murilo Santos –, a avó portuguesa, primos e tias.

Desde criança Joaquim Santos demonstrou talento e vocação para as artes. Aos sete anos já se dedicava às artes plásticas – desenho, pintura e escultura –, tendo vencido alguns concursos. Com o dinheiro destes, aos 14 anos, comprou o primeiro violão, que escondia no guarda-roupa, por puro receio da opinião do pai, bastante rígido. O músico, no entanto, reconhece o apoio da família na continuidade dos estudos da música e posterior carreira que seguiu. De seus três filhos, Juliano Santos reside no Rio de Janeiro e também se dedica ao violão.

Professor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo, em cuja sala Santinha Vasconcelos recebeu a chororreportagem, Joaquim Santos é um dos nomes mais importantes do violão brasileiro. Integrou a Camerata Carioca, grupo fundamental para a revalorização e revitalização do choro no Brasil, entre o fim da década de 1970 e início da de 80. Com o grupo gravou o disco Tocar, além de ter acompanhado nomes como Elizeth Cardoso e Nara Leão.

Outra área em que se destaca é a composição de trilhas para cinema: já assinou mais de 20, tendo recebido diversos prêmios Brasil afora. São dele, entre outras, as trilhas sonoras de O testamento, de Euclides Moreira Neto, O incompreendido, de Francisco Colombo, Ódio, de Breno Ferreira, Infernos e O exercício do caos, de Frederico Machado, Bandeiras verdes, O crime da Ullen, O massacre de Alto Alegre e Quem matou Elias Zi?, do irmão Murilo Santos. No último citado, também assina os desenhos [nota do blogue: recentemente assinou a trilha de O camelo, o leão e a criança, de Paulo Blitos].

Misto de trabalho e diversão é a pesquisa que desenvolve sobre a música produzida no Maranhão no século XIX. Joaquim Santos tem editado partituras do período, às vezes baseando-se em manuscritos. Em seu vasto acervo há verdadeiras joias de nomes como Pedro Gromwell, Antonio Rayol [nota do blogue: no vídeo acima, Retoques, última faixa de Shopping Brazil, de Cesar Teixeira, uma das músicas cantadas por Dona Teté é a Ladainha de Nossa Senhora, de Antonio Rayol] e Inácio Cunha. “Há muito choro, muito schottisch, valsas, mazurcas, que ninguém conhece. Os músicos precisam ir aos arquivos, tem muita coisa bonita”, afirma. Privilegiados, os chororrepórteres encerraram a entrevista ouvindo alguns temas em seu laptop.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

Dá pra dizer que a música trouxe teu avô ao Brasil? Eu não sei o que motivou essa viagem dele. Ele, chegando aqui, trabalhava como violinista e carpinteiro. Ele tocava violino no cinema mudo. Na Faculdade de Farmácia, eu vim descobrir depois, por documentos, ele foi o chefe da carpintaria.

Como era o ambiente musical em tua casa, na infância? Muito bom. Meu pai ouvia muito música clássica, música popular. Tinha disco de choro, disco de Pixinguinha, aqueles cantores e cantoras da época, todos, a chamada era do rádio. Tinha esse lado da música popular, meu pai curtia muito, mas predominantemente música clássica. Discos de fado, violino, e discos norte americanos, orquestra. Sábado, todo domingo, era música o dia inteiro. A questão da música na minha vida surgiu mais ou menos quando eu tinha uns 14 anos. Eu, desde criança, aos sete anos, desenhava muito, com o incentivo de minha avó portuguesa, que morava com a gente. Com sete anos eu ganhei um concurso de desenho do Sesi. Minha primeira exposição de pinturas e de escultura, eu tinha 10 anos. Eu fiz uma coletiva nessa época, o governador Newton Belo ofereceu um jantar, medalha, eu tenho até hoje. Nesse período todo até uns 14 anos, minha dedicação exclusive era com as artes plásticas, pintura, escultura, eu fazia muita exposição. Eu estudei com Telésforo Moraes Rego, com Nilton Pavão. Depois eu retomei quando fui morar em Minas, trabalhei na Casa de Gravura, trabalhei para [Carlos] Scliar, pra [José Alberto] Nemer, [Carlos] Bracher, eram artistas [plásticos]. Quando eu comecei minha experiência com violão, eu comprei um violão com o dinheiro dos quadros, ficava tentando tocar, e naquela época eu conheci Ubiratan [Sousa, músico, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013], não pessoalmente, ele tocava o Prelúdio de Bach, e eu ficava louco pra tocar daquele jeito, fiquei muito encantado. E também uma coisa que me influenciou bastante era um programa, logo que inaugurou a televisão, a Difusora, um programa, acho que era Panorama Panamericano, um filme em preto e branco, tinha a cena, uma das reportagens, [o violonista espanhol Andrés] Segovia tocando, e aí eu fiquei apaixonado pelo violão. Eu comecei a estudar escondido de meu pai, comprei o violão com meu dinheiro, mas escondia no guarda-roupa. No dia em que meu pai soube, eu já tocava alguns clássicos. Mas eu não tinha técnica. Eu aprendi a ler música sozinho. Quando eu cheguei para Lourdinha Lauande [a historiadora Maria de Lourdes Lauande Lacroix] eu já estava tocando violão. Ela era uma excelente pianista, eu morava do lado. Tinha um padre que tocava violino que almoçava lá, cônego Osmar Palhano de Jesus. Ele era pintor, foi meu professor de pintura também. Então eu comecei a tocar mesmo sozinho. Quando eu soube que João Pedro [Borges, violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] estava na cidade, que tocava muito bem, aí eu fui estudar com ele. Quando eu fui estudar com ele, eu já estava tocando, mas sem técnica.

A tua primeira influência, vendo alguém tocar, foi Ubiratan? Foi. Eu vi Ubiratan, Segovia na televisão.

Ubiratan chegou a te dar aula? Nesse período, não. Depois eu tive acho que duas aulas com ele.

E Lourdinha Lacroix, chegou a te dar aulas? Exatamente. Eu chegava pra ela “e essa música aqui”, mostrava a música e ela dizia “isso aqui toca assim”. Ela dava umas orientações. Eu comecei a estudar bastante violão. E fiquei estudando com João Pedro no período de férias e fui avançando. Quando inaugurou a Escola de Música, em 1974, depois de um semestre, João Pedro sugeriu que eu ficasse não só como aluno dele, mas também como professor assistente, por que tinha uma procura muito grande de violão. Eu fiquei como assistente, depois ele foi embora e eu fiquei como titular. Em 1980, mais ou menos, 79, eu ganhei meu primeiro prêmio de trilha sonora, que foi do filme do Euclides [Moreira Neto, cineasta, ex-Diretor do Departamento de Assuntos Culturais da UFMA e ex-presidente da Fundação Municipal de Cultura de São Luís], O testamento. Depois desse evento eu fui para o Rio estudar com o Ian [Guest, músico, professor de violão].

Teus pais sempre te apoiaram? Sempre! Inclusive, antes de ir pra Escola de Música, eu trabalhava como desenhista no Cema, a Fundação Maranhense da TV Educativa. Foi aí que o João Pedro sugeriu que eu largasse lá o emprego para ficar na Escola de Música.

Mas no começo você escondia o violão de teu pai. Era só um receio de ele não receber bem? Exatamente. Nós éramos cinco [irmãos], tinha muita gente na casa, ele era muito rígido, por que tinha os primos, as tias, enfim. Eu fiquei com medo de ele implicar com o violão, embora eu tivesse comprado com meu dinheiro.

Fora as formações em artes plásticas e música, você teve outra formação? Eu me empreguei como desenhista, depois como professor de música. Depois eu comecei a fazer luthieria. Eu faço muito restauro. Meu sonho era fabricar, mas é tanto instrumento para consertar, os alunos pedem para regular, violino, violão, o que eu tenho para terminar…

Quem foi teu mestre de luthieria? Eu considero dois grandes mestres: um foi o [luthier japonês Shigemitsu] Suguiyama, que foi o primeiro, e o outro foi Mário Jorge. Daí você vai pegando informação com várias pessoas. Eu frequentava muito a oficina do Mário Jorge, inclusive meu primeiro violão, que eu fiz, foi [o luthier] Sérgio Abreu quem me vendeu a madeira pra fazer.

Fala um pouco de tua ida pro Rio de Janeiro, como é que se deu? Eu fui para o Rio com uma bolsa, que era meu salário, aqui da Escola, em 1980. Depois, a Olga [Mohana, ex-diretora da EMEM], que era diretora, não queria que eu ficasse no Rio, queria que eu voltasse, e eu queria estudar mais um pouco. Acabou que eu perdi meu emprego. Chegando lá no Rio, eu continuei tendo aula com João Pedro e naquela época a Camerata Carioca ensaiava também na casa de João Pedro e eu ficava ouvindo ali. Coincidiu que o João Pedro se desligou da Camerata, queria investir na carreira solo, e me indicou. Tinha duas pessoas indicadas. Eu não sou chorão. Minha ligação com o violão sempre foi com a música clássica, sempre tive simpatia, mas eu aprendi muito sobre o choro quando entrei na Camerata. Pintou um concerto de última hora e eu tive umas duas semanas pra estudar, arranjos de Radamés [Gnattali, pianista e mastro gaúcho, fundador da Camerata Carioca]. Foi um concerto na Sala Cecília Meireles, com Joel Nascimento no bandolim, Henrique Cazes no cavaquinho, eu fiquei no primeiro violão, substituindo João Pedro, Maurício Carrilho no segundo, Luiz Otávio [Braga] no [violão] sete cordas e Beto Cazes no pandeiro. Nesse programa a gente tocou a Suíte Retratos [nota do blogue: no vídeo acima, a formação que executa a Suíte Retratos ainda tem João Pedro Borges ao violão], tocamos o Concerto de Vivaldi, com Radamés tocando, e tocamos também… tinha um repertório, eu não lembro, tinha Jacob do Bandolim e uns dois choros livres no final do concerto. Eu estava bastante tenso, era minha estreia, fiz o melhor possível, eu estava doente, um problema no dente que se agravou. Quando a gente estava no camarim, Henrique Cazes chegou todo contente: “sabem quem está aí? [Os violonistas] Sérgio e Odair Assad”. Aí foi que meu coração gelou, tocar pra esses caras! Mas foi legal, o concerto foi bom. Foi muito boa essa experiência. Daí a gente seguiu, foram várias apresentações. Gravamos o disco Tocar [1983] e outros discos também, com a Nara [Leão, cantora], a volta da Nara aos palcos foi com a gente, Teatro da Lagoa. Nós participamos de uma faixa do disco Nasci pra bailar [1982] e depois outro disco, Meu samba encabulado [1984].

Tocar foi o único disco que você gravou com a Camerata? Como grupo, sim. Esse disco foi muito bom, nós ganhamos o prêmio [da revista] Playboy de melhor disco.

Eu me lembro de um em que vocês acompanhavam Elizeth Cardoso, Uma rosa para Pixinguinha [1983]. Uma Rosa para Pixinguinha. A gente gravou o disco com a Nara, Meu samba encabulado.

Esse, vocês fizeram todo o disco com a Nara? A Camerata e a turma do Fundo de Quintal [grupo de samba e pagode]. Inclusive a gente fez o [a turnê do projeto] Pixinguinha com esse disco. Sem eles, a gente fez o Japão, com a Nara. Chegamos lá foi uma maravilha. Fizemos vários shows com a Nara, shows também com [o músico Roberto] Menescal. Fizemos um concerto só para jornalistas e críticos de música em Tóquio, alguém postou uma música no youtube, Jacaré de saiote, um frevo [de autoria de Antonio da Silva Torres, o Jacaré]. Depois eu produzi um disco, com a participação de Tom Jobim, chama-se Radamés [Gnattali, 1985], músicas que Radamés fez para alguns compositores e que alguns compositores fizeram para ele [o lado a tem seis faixas em que Radamés homenageia e é homenageado por Tom Jobim, Paulinho da Viola e Capiba; no lado b, três movimentos do Quarteto popular, de autoria do gaúcho].

E a convivência com Radamés, qual a importância, o que significou para você? Pra mim, aliás, pra todos nós que convivemos com Radamés, tivemos essa oportunidade, por várias maneiras: só como pessoa, você estar ao lado de um grande artista como Radamés, isso já é uma grande honra. Posso dizer que sou um cara de sorte e fico muito feliz com isso. Eu vi a Nara Leão na televisão aqui em São Luís, nunca imaginei que pudesse trabalhar com ela e fui até seu professor de violão. A mesma coisa com Paulinho da Viola, todos esses artistas. Radamés eu lembro de vê-lo tocando piano na televisão e, poxa, chegar, estar aqui do lado, na sala dele, tocando com ele, aprendi muito. Era super rígido, mas tinha um lado muito à vontade. Ele não gostava de ensaiar, fazia as coisas muito rápido. Não era o tipo de músico preocupado com detalhes, preciosista. Mas se aprendia muita coisa, de vida mesmo, de músico.

Qual a estatura de Radamés dentro da música brasileira? É pouco conhecido, não tem o reconhecimento merecido. A gente ouve mais as pessoas ligadas à música popular, principalmente ao choro, que conhecem, têm uma aproximação, mais que os compositores eruditos. Os compositores que colocam Radamés no programa geralmente são violonistas, que conhecem esse lado, que inclusive tocam o lado da música popular.

Os papeis que Pixinguinha exerceu durante quase cinco décadas, depois dele, quem assumiu essa tarefa no rádio, na televisão, nas gravadoras, foi Radamés, como arranjador, como um cara que deu rumo para a música brasileira durante tempo significativo. Exatamente. Foi um grande compositor. Foi editado há uns dois anos, um professor da UFMA, Ricieri [Carlini Zorzal, Dez estudos para violão de Radamés Gnattali: estilos musicais e propostas técnico-interpretativas; a dissertação foi defendida na UFBA, em 2005, e posteriormente publicada em livro], ele escreveu, foi a dissertação dele de mestrado, sobre os dez estudos de Radamés, eu até fiz o prefácio do livro, tem o pdf, está disponibilizado [para download]. É bem interessante, ele faz uma análise, embora o Radamés não aceitava essa questão do jazz, mas é interessante, por que ele começa a ver essa mistura da brasilidade, da música, com essa questão do jazz, que é presente na música do Radamés.

Na sua opinião, que papel exerceu a Camerata na trajetória do choro? Essa é uma boa pergunta. O choro surge exatamente dessa mistura dos ritmos brasileiros com a música da Europa, da África, toda aquela história que todo mundo conhece, vai pras ruas e pros salões. O choro é uma música erudita. Vamos dizer na linguagem de hoje, é uma música de concerto. A Camerata surgiu num período, ainda mais no formato em que ela veio, colocando e ressaltando esse lado refinado da música, camerístico. Foi muito importante e foi determinante, influenciou vários grupos. A gente pega vários grupos, como o Água de Moringa. Tem um muito interessante, que com certeza teve algum contato com a Camerata, chama Papo de Vento, é um conjunto de sopro. É muito bom. Eu acho que a Camerata teve esse papel importantíssimo. Dessa escola da Camerata, eu chamo até de escola, surgiram várias coisas. Depois que a Camerata acabou, infelizmente acabou no Japão, justamente no momento em que a gente recebeu todos os reconhecimentos e convites para tocar. Tinha o trabalho com a Nara, mas a gente foi convidado, só o conjunto, para fazer vários concertos, gravamos até com uma cantora pop japonesa, ela cantou Tom Jobim. Eu não queria que terminasse, mas foi uma decisão da maioria.

O fim da Camerata foi cercado de brigas? Como foi? Eu não vou dizer brigas, mas insatisfações. Já vinham se acumulando há um tempo.

Como é tua relação hoje com os remanescentes da Camerata? Excelente. O Henrique uma vez veio aqui, foi muito bom, Luiz Otávio, todos eles, Maurício. Eu gosto muito deles. Eu acho que na Camerata eu até consegui muitas vezes equilibrar essa balança das insatisfações e divergências, eu sempre conciliava. Acho que é o melhor caminho que tem. Depois acabou, Radamés morreu, nos reunimos, fizemos um concerto. Depois houve um segundo momento de reunião, não para continuar. Nessa ocasião, já o Maurício não quis ir. No lugar dele foi o [violonista] João Lyra e no lugar do Dazinho, que morreu, foi o [clarinetista] Paulo Sérgio Santos. A Camerata teve um papel muito importante, naquele momento, de abrir os caminhos. Eu aprendi muita coisa nessa vivência, de gravações.

Fora Tocar e os discos com Nara e Elizeth Cardoso, de que outros discos você participou? Teve um disco do Zé Tobias, Camerata, Radamés e Zé Tobias [José Tobias, Rapsódia Brasileira, 1984]. Gravei com Benito di Paula, com a Camerata, ele gravou umas músicas antigas, mas não sei se chegou a virar disco. Teve Taiguara [Canções de amor e liberdade, 1985]. Outros discos, tem um da Teca Calazans [Mário, 300, 350, 1983], várias pessoas da Camerata participaram, mas não com o nome da Camerata [ele não cita o disco Caymmi, de Dorival Caymmi, 1985].

Aqui no Maranhão você não chegou a gravar discos? Não.

Além da Camerata você participou de outros grupos? Lá em Minas, sim. Eu tinha um duo, flauta e violão, com Salomé Viegas, fizemos concertos em vários lugares, era legal, a gente tinha um repertório que incluía choro, Egberto Gismonti, Bach, Villa-Lobos. Depois a gente formou um trio, com um violoncelista. Eu tenho um vídeo que eu gravei, saiu na TV Cultura.

De uns tempos pra cá me parece que você anda meio afastado de palcos e estúdios, fora o lance de fazer trilhas sonoras. Você não tem vontade de voltar, não sente falta? Até foi legal falar nisso. Quando eu vim pra cá, eu vi que a realidade era outra. Tem gente que sobrevive de música e eu tiro o chapéu, é uma coisa bem difícil. Toca aqui, acolá, ganha um dinheirinho aqui, acolá, eu não sei se eu teria pique. Eu senti um choque muito grande, eu estava muito envolvido com a música de concerto, e pensei, “poxa, aqui não é minha praia”. Isso foi me afastando do palco até por uma questão, quando você deixa de tocar no palco, você vai criando medo de palco, e foi o que aconteceu comigo, de certa maneira, associado a uns problemas nas minhas unhas. Eu deixei, toquei pouco, fiz poucos recitais. Eu lembro de um na época do festival da prefeitura [o Festival Internacional de Música de São Luís, em 2002]. Eu toco assim, acompanhando aluno, e eu estudo todo dia. Todo dia! Tocar, eu toco aqui na Escola de Música. Agora eu descobri uma coisa que Yamandu [Costa, violonista sete cordas gaúcho] já usa e eu resolvi experimentar: unha artificial. Agora estou me preparando para tocar.

As trilhas para cinema são muitas. Não tem uma preocupação de tua parte de registrar esse material? Lançar isso em disco, no sentido, inclusive, de que muitos desses filmes, ninguém sabe onde está, como faz para assistir. Eu sempre pensei. Eu tenho vontade de fazer um cd. Seria um projeto bem caro, muita coisa eu teria que regravar, por conta da qualidade, da época. Muitas dessas músicas que eu faço para filmes, a maioria curtas, a maioria é para orquestra.

Você faz reparo, conserta instrumentos. Você toca outros instrumentos? Não. Só violão. Piano é uma coisa assim, não é nada. Eu estudo as cordas por que eu estou na direção da Orquestra de Cordas daqui [da EMEM], já faz bastante tempo, desde que eu cheguei aqui, em 1999. Eu aprendi muito aqui na Escola, na própria orquestra. Eu tenho alguns arranjos e orquestrações que acho que foram bem sucedidos, o pessoal gosta, muita gente me elogiou. Eu fiz arranjos para cordas para Água e vinho e Loro, de Egberto Gismonti, fiz orquestrações para umas mazurcas de [o violonista espanhol Francisco] Tárrega que acho que ficou legal. E fora isso tenho meu trabalho de pesquisador da música do século XIX, que a gente sempre toca. Não é arranjo, são edições.

Como é teu método na hora de compor uma trilha? É preciso ver as cenas antes? Eu já experimentei de todo jeito. Eu gosto muito da trilha de Infernos [de Frederico Machado]. Ele me encomendou a trilha e disse que queria inferno e céu, “tudo é baseado na poesia de meu pai”. Eu conheço a poesia de Nauro [Machado, poeta, pai do cineasta Frederico Machado] e sei que o inferno não é tão inferno, pela beleza poética com que ele descreve, e o céu não é tão céu, essa coisa densa que é Nauro. E ele disse: “agora eu vou só combinar uma coisa contigo que é fundamental: eu penso numa coisa de voz, [o compositor minimalista norte-americano] Phillip Glass, mas não vou te mostrar o filme”. Eu acho que foi uma das trilhas mais bem sucedidas, uma das. Por outro lado, já o inverso, eu assisto a cena, participo do filme, vejo as filmagens, converso com o diretor, aí é outro tipo de envolvimento, que funciona. Essa coisa diversificada é legal, são sempre desafios. Tudo é possível. De modo geral, a conversa do diretor com o compositor é fundamental. Quando eu vejo a cena eu sei exatamente onde eu posso colocar o silêncio e onde eu posso colocar a música.

Para você, como educador, o que significa o fato de São Luís ter, hoje, além da Escola, duas faculdades de música? Isso mudou bastante. A primeira coisa que a gente pode pensar é que existia um mito muito forte aqui em São Luís, que as pessoas que leem música não tocam de ouvido. Há essa tendência, lógico. É muito fácil você pegar, ler a partitura e não precisa tirar de ouvido, não treina. Tinha muita gente aqui que toca muito bem, que não sabe ler nem escrever [partitura]. Aqui mesmo na Escola, havia gente que não tinha habilidade com a leitura, mas são excelentes músicos. Hoje estão na universidade, já leem. É um caminho mais aberto, uma possibilidade. Eu volto à história do choro: o músico de choro gosta tanto de choro, que se interessa, vai atrás, acaba lendo [partitura]. Mas eu não resumo o curso de música só à leitura. Esses dois cursos formam professores, para ensinar música. Agora, lá, não é um curso de instrumento. Continua a Escola de Música sendo o grande centro de formação instrumental. Fora disso, um excelente espaço para o aprendizado de música são as igrejas. Acontece hoje uma coisa que acontecia no século XVIII: o centro de formação do músico era nas igrejas. Os compositores que nós temos do século XVIII, Manuel Antonio de Oliveira, Ermelindo Lobo de Mesquita, o próprio Antonio Rayol era regente, Leocádio Rayol. Isso está acontecendo hoje, de maneira informal, mas você vê grandes músicos em igrejas. Agora vai ter teste para o curso técnico. Se se fizer uma enquete, a maioria dos músicos que vêm fazer o teste, o propósito é melhorar a performance nas igrejas.

Qual a importância do choro para a música brasileira? Choro é aquilo que há de mais fundamental que a gente possa pensar. É fundamental. A música brasileira, a raiz da música brasileira, qualquer gênero que surja depois, o movimento da bossa nova, tudo isso a gente pode ver que tem um pé no choro, e que é um gênero, uma questão de identidade, uma estrutura não só formal, mas também melódica, harmônica, ela tem toda essa abertura, não só pela questão do tradicional, ela se abre. Uma das coisas mais inovadoras que eu conheço de choro são as obras do Maurício [Carrilho] com o Choro Ímpar.

Música instrumental no Sesc Amazônia das Artes

João Pedro Borges faz passeio por escolas do violão brasileiro. Josué Costa, vencedor do I Festival de Violão do Piauí, se apresenta na sequência

João Pedro Borges conversou com exclusividade com o blogue sobre apresentação de amanhã (23). Foto: Rivanio Almeida Santos
João Pedro Borges conversou com exclusividade com o blogue sobre apresentação de amanhã (23). Foto: Rivanio Almeida Santos

 

Violonista e professor de música, João Pedro Borges, 67, é um nome fundamental para o violão brasileiro, que ajudou a divulgar inclusive fora do país. Entre o fim da década de 1970 e boa parte da de 80, Sinhô, como também é conhecido no meio musical, integrou um capítulo fundamental para a renovação do choro no Brasil: a Camerata Carioca, do maestro gaúcho Radamés Gnattali.

A bagagem e as histórias são muitas. Musicalmente, boa parte poderá ser conferida em concerto que o músico apresenta amanhã (23), às 19h, no Teatro João do Vale (Rua da Estrela, Praia Grande), com entrada franca, dentro da programação da Mostra Sesc Amazônia das Artes.

Sinhô, que recentemente percorreu o Brasil ao lado do violonista gaúcho Daniel Wolff, numa série de concertos pelo projeto Sonora Brasil, também do Sesc, apresentou-se na última edição da Mostra Sesc Guajajara de Artes, ao lado da cantora Célia Maria, em outubro do ano passado. Sobre estar mais uma vez escalado para uma programação da instituição, ele comentou: “Desde o Sonora, mantenho excelentes relações com o Sesc e é com grande prazer que participo da sua extraordinária programação. Representar o Maranhão no Sesc Amazônia é uma distinção que muito me honra”.

O concerto do maranhense será seguido pelo de Josué Costa, às 20h, no mesmo palco. O piauiense venceu o I Festival de Violão do Piauí, cujo júri era formado, além de João Pedro Borges, por nomes como Turíbio Santos e Guinga. “É um jovem violonista muito talentoso e que nos deixou impressionados quando venceu aquele concurso. Estou curiosíssimo para ver como está “a Fera” neste momento”, elogia.

Eventos como os citados, de que Sinhô participou, demonstram a valorização da música instrumental pelo Sesc. Pergunto-lhe o que falta para que isto seja mais corriqueiro e pauta dos poderes públicos e da iniciativa privada. “Creio que a excessiva politização da vida brasileira e da maranhense em particular, sempre acaba levando as chamadas políticas públicas para o campo suspeito das disputas pelo poder. O primeiro mundo há muito nos dá o exemplo de como integrar o público e o privado criando um mercado independente onde a música instrumental vive dos seus méritos. O Sesc, preenchendo uma lacuna brasileira, tem desenvolvido projetos que contemplam a música não comercial e de mais difícil acesso, tendo em conta os critérios da indústria cultural”, respondeu.

Como repertório de sua apresentação ele anuncia “um passeio pelo violão brasileiro, juntando patriarcas como [Heitor] Villa Lobos, [Ernesto] Nazareth, Radamés Gnatalli e figuras marcantes como João Pernambuco, Garoto e Paulinho da Viola. O programa mostra as relações de influência entre eles e registra mudanças rítmicas, harmônicas e sociais da vida brasileira”, antecipou.

Após sua participação no Sesc Amazônia das Artes, João Pedro Borges irá ao VI Festival de Violão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O festival acontece de 21 a 25 de setembro e, além do maranhense, terá concertos gratuitos de Marco Pereira, Turíbio Santos e Egberto Gismonti, entre outros.

Paulinho da Viola faz única apresentação hoje (22) em São Luís

Última passagem do artista pela Ilha aconteceu durante o Festival Internacional de Música, em 2002

Foto: Zema Ribeiro
Foto: Zema Ribeiro

Paulinho da Viola volta à São Luís para um show depois de 12 anos de sua última apresentação na ilha – no Festival Internacional de Música que celebrou os 390 anos da cidade. O artista se apresenta hoje (22), no Patrimônio Show (Aterro do Bacanga), às 21h, acompanhado de sua banda: Beatriz Faria (vocal), Celsinho Silva (percussão), Cristóvão Bastos (piano), Dininho (contrabaixo), Hércules (bateria), João Rabello (violão), Marcos Esguleba (percussão) e Mário Sève (sax, flauta e clarinete). A abertura fica por conta do DJ Franklin, em um set de samba que dá pequena amostra de sua vasta vinilteca e de seu conhecimento profundo do assunto.

A elegância e a serenidade de sempre estavam impregnadas no homem que surgiu para a coletiva de imprensa com pouco mais de meia hora de atraso. Calça clara e camisa listrada, sequer havia almoçado, embora pouco se importasse com isso. Vanessa Serra, assessora de comunicação da produtora Ópera Night, disse-lhe que todos os que ali estavam, eram, além de jornalistas, seus fãs.

No lobby bar do Grand São Luís Hotel, que hospeda o príncipe do samba, o clima era de descontração. Às perguntas, o músico respondia calma e longamente, sem se importar que dali a pouco teria que sair para comer algo. De repente sua esposa advertiu: “Paulinho, o pessoal está querendo ir!”. “Que pessoal?” Ela se referia às equipes de televisão presentes, que precisavam captar sonoras e correr para o fechamento das edições. Não sem antes passar para gravar um pronunciamento patético do senhor prefeito sobre as chuvas que ora castigam a cidade.

O artista lembrou-se das origens, o início ao violão, as rodas de choro que ocorriam em sua casa, “humilde, modesta”, e de figuras como Jacob do Bandolim, a cujo Conjunto Época de Ouro seu pai, o violonista César Faria, pertenceu. Lembrou ainda a influência dos mais velhos, particularmente do pai, e a preocupação deste em o filho seguir seu caminho, além de gravações importantes que presenciou.

Com a elegância que lhe é peculiar, confessou-se atrapalhado com tantos flashes. Parecia perder o fio da meada. Uma pausa de um fotógrafo menos contido e continuou as histórias. Em meio às várias que contou, respondendo perguntas dos repórteres e emendando memórias – cantando e/ou chorando –, chegou a lacrimejar lembrando seu Zé Maria, seu primeiro professor de violão: “meu irmão encontrou-o muitos anos depois, se apresentou. Ele não disse nada. Simplesmente continuou o caminho, e falou: sabe por que o socialismo não vai dar certo? Por causa da vaidade do homem”.

Paulinho da Viola deu poucas pistas do repertório do show de hoje: mesclará suas obras mais conhecidas a repertório inédito. O artista tem gravados dois discos ao vivo ainda não lançados e esta turnê não terá registro. Tampouco haverá choro no repertório: “há tempos não toco; choro você tem que tocar todo dia, não dá para fazer de qualquer jeito. Mas preciso voltar, as pessoas cobram”. Alguma coisa de Lupicínio Rodrigues será lembrada, por conta do centenário de nascimento que o gaúcho completa neste 2014 – Nervos de aço batizou seu disco de 1973, com a gravação mais conhecida desta sublime dor de cotovelo.

Lembrei-lhe A obra para violão de Paulinho da Viola, disco que João Pedro Borges gravou em meados da década de 1980, com participação do compositor e de seu saudoso pai. Gravado pela Kuarup e distribuído como brinde a clientes de uma empresa mineira, o álbum nunca teve relançamento em cd. O maestro gaúcho Radamés Gnattali – com quem o maranhense tocou na Camerata Carioca – dizia ser quase possível falar em uma escola Paulinho da Viola do instrumento. Perguntei-lhe se não havia planos de relançar o disco.

“Eu falei com João algumas vezes. Como não existe mais a empresa que fez o brinde, aquilo [o disco] nos pertence. Eu pensei em mais uma vez conversar com ele, encontrá-lo agora [aproveitando esta sua passagem pela ilha] e a gente tentar fazer isso. Isso foi em 80 e pouco, 85, por aí. E ficou lá escondido, brinde, não foi vendido nem nada. Aconteceu um fato engraçado: uma violonista, não sei como, ouviu, e me procurou. Márcia Taborda. E disse: “olha, eu ouvi, tenho um amigo que tem o disco, e eu gostaria de saber se eu poderia fazer um trabalho com estas músicas”. E eu falei “claro”. Ela foi na minha casa algumas vezes e eu passei a maior vergonha, não estava encontrando as partituras e ela queria tirar algumas dúvidas comigo. E eu pegava o violão e algumas coisas eu não lembrava mais, foram muitos anos, e ali tem algumas músicas que não são muito simples, você precisa estar permanentemente tocando. E eu há muitos anos não tocava aquilo e passei uma vergonha [risos], eu tinha que me lembrar e dizer “foi feito assim”,    e algumas coisas eu tinha que voltar ao disco. Depois eu achei as partituras e ela gravou um disco [Choros de Paulinho da Viola, Acari, 2005] e gravou até outra música [Além das 10 faixas de A obra para violão de Paulinho da Viola, Marcia Taborda gravou Rosinha, essa menina, Escapulindo e Floreando]. Foi lançado comercialmente, um trabalho bonito que ela fez também. Mas este disco podia ser reeditado, é legal”, relatou.

Éramos poucos repórteres no recinto, mas além dos disparos de máquinas fotográficas, celulares tocavam vez por outra atrapalhando o fluir da entrevista. Paulinho da Viola manteve a elegância e a tranquilidade. Disse que propagava histórias justamente contando-as aos outros. Perguntei-lhe se não havia planos de escrever um livro. “Eu, até para escrever um bilhete para alguém, demoro. Escrevo, isso não está bom, apago, muda uma palavra. Leva tempo. Acho que não, eu escrevo mal”. Lila Rabello discordou. Eu também, e trechos de músicas de vários discos seus vieram-me imediatamente à cabeça. Um gênio manso e modesto.

Lembrei-me de Chico Buarque, que gravou sua Sinal fechado, dos grandes intervalos entre seus últimos discos – o que ocorre também ao autor do diálogo musical que virou símbolo de resistência à ditadura militar – e do tempo roubado àquele pela literatura. Paulinho da Viola disse que a relação com as gravadoras mudou, sobretudo com o advento da internet. “Qualquer um, com um equipamento não muito sofisticado pode obter, em um quarto, uma sonoridade que não conseguíamos em estúdios há uns anos. Isso realmente mudou toda a relação artística com o público, a distribuição de determinado produto. Eu gravo uma música, ponho na internet, posso não ganhar nada, ou ganhar de outro jeito”, declarou.

Alguns grandes nomes da música brasileira de sua geração agruparam-se no Procure saber, defendendo o veto às biografias. Sobre o assunto, ele é a favor da publicação sem a necessidade de autorização prévia. “Biografia tem que ser uma coisa aberta mesmo. Eu só não quero saber de fofoca”, afirmou.

A banda já tinha se mandado na frente. Paulinho da Viola, a esposa e a produção iam almoçar. Eu seguiria para outro compromisso. A pressa impediu-me de perguntar-lhe ainda sua opinião sobre as manifestações que tomaram conta do Brasil desde junho passado. Ele volta à São Luís para um show e encontra a cidade em meio a chuvas torrenciais, protestos diários e greves anunciadas para hoje, dia de seu espetáculo. Que seja como o título de um de seus choros: Inesquecível!

Chorografia do Maranhão: Turíbio Santos

Confesso que tremi.

Eu queria revelar isso sem soar desrespeitoso com todos os outros instrumentistas que já entrevistamos e com aqueles que ainda entrevistaremos.

Turíbio Santos, violonista maranhense de consolidada carreira internacional, estaria em São Luís para um concerto por ocasião das comemorações de aniversário da cidade. Tocou com João Pedro Borges, 7 de setembro, véspera do aniversário, na Praça Maria Aragão, cartão postal da lavra de Niemeyer, no centro da Ilha.

Feita completamente sem recursos (os chororrepórteres tiram do bolso a gasolina e a cerveja e das famílias o tempo) a série não podia perder a oportunidade de entrevistar um dos maiores violonistas do mundo em todos os tempos.

Levei meu exemplar de Mentiras… ou não?, livro do músico, para catar o autógrafo. Saí de lá também com uma coletânea com que ele presenteou a chororreportagem. No show, ao procurá-lo para adquirir outros discos, comprei uns e ganhei mais outros e Turíbio esbanjou simpatia e elogiou o projeto e sua equipe, destacando a importância da Chorografia para a música, o jornalismo, a história do Maranhão.

Confesso que emudeci.

No sofá da sala da casa de João Pedro Borges, onde Turíbio estava hospedado, Ricarte conduziu quase a íntegra da entrevista. Arrisquei umas poucas perguntas. Rivanio, depois, quando comentei esse nervosismo diante do mestre, revelou: “é, vendo a cara de vocês dois, pareciam crianças com brinquedo novo”.

Revelado isso, à entrevista, pois.

[O Imparcial, 29 de setembro de 2013]

Maior responsável pela divulgação da obra de Heitor Villa-Lobos no mundo e um dos mais importantes violonistas brasileiros em todos os tempos, Turíbio Santos é o 16º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVANIO ALMEIDA SANTOS

Um dia um aluno perguntou-lhe desconfiado: “Professor, o senhor tem discos gravados?” “Devo ter gravado uns 25”, respondeu. “Mas, professor, eu não encontro nenhum disco seu nas lojas”, o aluno insistiu. Turíbio Santos também se aborrecia com aquilo e a história é ele mesmo quem conta na Abertura de Mentiras… ou não? – uma quase autobiografia [Jorge Zahar, 103 p.], livro que publicou em 2002. Adiante, no mesmo texto, o violonista se surpreenderia: estava errado o número, até responder ao aluno curioso ele já tinha lançado 35 discos. No final do livro uma discografia apresenta 54 títulos.

O músico esteve em São Luís por ocasião das festividades de 401 anos de São Luís, quando se apresentou ao lado de João Pedro Borges [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] na Praça Maria Aragão – a casa de Sinhô, onde Turíbio se hospedou, abrigou a entrevista. Vez por outra o anfitrião rememorava nomes e datas, num luxuoso auxílio à chororreportagem. Esta, aproveitando sua passagem pela Ilha, também lhe perguntou: quantos discos? O 16º. entrevistado da Chorografia do Maranhão não sabia dizer ao certo: 68 ou 70, ficou de conferir. Turíbio Santos parecia estar preparado para a conversa, em que os chororrepórteres pareciam ser apenas figurantes: suas falas, longos depoimentos, dispensavam quaisquer perguntas.

Se Heitor Villa-Lobos foi um dos fundadores da moderna música brasileira, unindo erudito e popular, Turíbio Santos é certamente o principal responsável pela divulgação mundo afora da obra do genial maestro – que ele conheceu pessoalmente. Um dos mais importantes violonistas brasileiros de todos os tempos, Turíbio Soares Santos nasceu em 7 de março de 1943, na Rua Pereira Rego (hoje Craveiros, continuação de São Pantaleão), no centro da capital maranhense. Filho da assistente social e psicanalista Neide Lobato Soares Santos e do administrador – “um burocrata” – Turíbio Soares Santos, cantor e violonista diletante – “um seresteiro” –, de quem herdou a paixão pelo violão e pela música.

Além de músico você tem outra profissão? Não. Quer dizer, eu tive várias ocupações, mas não profissão. Profissão minha, quando eu preencho profissão, profissão é músico. Mas eu dirigi o Museu Villa-Lobos durante 24 anos, fui professor da UFRJ durante 33 anos, morei fora do Brasil durante 20 anos, onde fui professor também, além de concertista, mas tudo sempre ligado à música.

Quando você percebeu que ia viver de música? Ainda criança? Como é que foi a entrada nesse universo? É o seguinte: a paixão pela música provavelmente foi inoculada por meu pai. Meu pai era aquele que domingo de manhã ouvia um programa de música brasileira, não sei em que rádio, provavelmente na Rádio Nacional, não sei também o nome do programa, mas seria tipo Hora da Saudade ou Serestas do Brasil. Algumas vezes ele ouvia ópera também dentro de casa. Ele tocava violão e cantava muito bem, era seresteiro. Antes de eu nascer, aqui no Maranhão, meu pai já tinha discos de [os violonistas] Andrés Segovia e Dilermando Reis. Quer dizer, aquilo fazia parte da casa, aquele som, o som do violão. A paixão pela música começou pelo som do violão, isso com certeza absoluta. Você vai guardando, no teu inconsciente tem uma gaveta onde você vai guardando alguns valores misteriosos que você só descobre aos 70 anos [gargalhada]. É pena, né? Mas se você descobrisse aos 10 anos acabava a mágica. Pelo menos alguma coisa você leva de bom fazendo 70 anos [risos], você descobre que esse som tava na gaveta desde aquela época.

Quando você começou a aprender a tocar, a mexer no violão? Nós nos mudamos pro Rio quando eu tinha três anos e meio. No Rio de Janeiro, quando eu tinha mais ou menos 10 anos, minhas duas irmãs mais velhas começaram a estudar violão. Elas já tocavam violão. Meu pai foi casado duas vezes, as duas irmãs do primeiro casamento, Lilá e Conceição, já cantavam e tocavam violão, influenciadas pelo pai. Arrumaram um professor chamado Molina. Isso é muito engraçado. Esse Molina era mecânico da aviação, boêmio. Eu ficava na moita, olhando as aulas, depois pegava o violão. Eu já tinha 12 anos e já tinha brincado muito com o violão. O Molina veio para a aula, eu fingi que estava tendo a primeira aula, ele dava as coisas e eu pram [imita o som das cordas do violão com a boca], matava de primeira [gargalhada]. Ele ficou impressionado e eu, moita. Terminou a aula, ele disse para minha mãe, “esse garoto é impressionante, eu ensino as coisas parece que ele já sabe”. E eu, moita, fiz o show até o final [risos]. Depois o Molina nunca mais apareceu lá em casa [gargalhada]. Aí elas foram estudar com o Chiquinho, um cara engraçadíssimo, aquele professor famoso, em Copacabana, o violão sempre debaixo do braço, careca. Ele tinha dois filhinhos pequenos, foi aluno de Dilermando Reis. Ele tinha competência no acompanhamento, no solo, tinha muito bom gosto, tinha um som parecido com o Dilermando, já familiar para mim por causa de meu pai. A aula dele era uma bagunça de tal ordem, que uma cena ficou para sempre na minha memória: eu tocando, e o Chiquinho de repente diz: “ô, Luzia, tira esses meninos daqui!” Eu levantei para ver o que estava acontecendo, aquela careca luzidia, os meninos tinham empurrado uma boia, ele estava dando aula com aquela boia enfiada na cabeça [risos]. O Chiquinho era muito divertido, mas tive pouco tempo aula com ele, uns três meses, aí eu galopei na aula, comecei a tocar coisas que nem ele tocava, saí à toda velocidade. Nessa época meu pai me levou pra ver um filme de Andrés Segovia, na embaixada americana. Eu tava com 12 anos. O filme eram vários artistas e aquelas duas aparições de Segóvia, tocando uma Sonatina de [o compositor espanhol Federico Moreno] Torroba e Variações sobre um tema de Mozart, de [o violonista espanhol Fernando] Sor, ficaram tão impregnadas na minha cabeça, foi um choque, um impacto tão alucinante, que eu nunca mais vi esse filme. Fui revê-lo 30 anos depois, já em vídeo, mas parecia que eu o tinha visto há cinco minutos, de tal maneira ele tinha entrado na cabeça. Essa noite para mim foi importantíssima. Quem fez aquilo foi a Associação Brasileira de Violão. Nessa noite estavam presentes [o violonista] Antonio Rebello, que viria a ser meu professor, [o compositor] Hermínio Bello de Carvalho, que foi quem me mostrou o mundo da música popular, e [o violonista] Jodacil Damasceno, que me mostrou o mundo da música clássica. Através de Hermínio eu conheci todos os grandes músicos, os grandes, grandes mesmo: Jacob do Bandolim, Pixinguinha. O Antonio Rebello me marcou muito como cidadão. Eu era ávido, com um ano e meio eu já estava correndo atrás da passagem de [o violonista uruguaio Oscar] Cáceres pelo Rio. Ele veio uma vez, depois veio outra, sempre a ABV. Esse capítulo é importante por que naquela época havia muita atividade voluntária na música. Eu sinto muita falta disso, sinto que houve uma perda e nós estamos ganhando de volta esse espírito. O que aconteceu? Eu vi mais tarde, na evolução da profissão, acabei dando meu primeiro concerto, por causa da dona Lilah Lisboa, na SCAM, Sociedade de Cultura Artística Maranhense.

Isso era que ano? Já foi em 1962. Ainda em 1962 eu fui tocar meu segundo concerto na SCAV, Sociedade de Cultura Artística de Vitória. Olha que interessante: a partir de 1964 houve uma coisa estatizante, onde as secretarias de cultura entraram e praticamente acabaram com essas sociedades. Por que virou aquela coisa estatal, de governo, “o governo vai fazer”. E o governo não fez droga nenhuma, só fez asfixiar e não colocou nada de volta. Agora acho que nós aprendemos muito com essa lição e há várias coisas renascendo, com a colaboração também de governos, com a colaboração estatal, mas não naquele sentido de vir de cima pra baixo, hoje todo mundo quer participar. Eu já tava de olho grande na profissão, não de ser violonista, mas eu queria saber o que era esse negócio de ser concertista. Eu peguei um ônibus e fui atrás do Oscar Cáceres. Eu ia pro DOPS [o Departamento da Ordem Política e Social, órgão repressor da ditadura militar brasileira], ficava esperando, aquela coisa do serviço público, o passaporte estava ali, “não, você volta amanhã”, amanhã “volta amanhã”, passei uma semana, o cara viu que eu não ia desistir, me deu o passaporte e eu, com a autorização de meu pai, me mandei de ônibus para o Paraguai. Até Montevidéu e de lá conviver com o Cáceres. Na época eu arrumei uma namorada no Rio Grande do Sul, então parava em Porto Alegre [risos]. Depois as coisas simplificaram mais ainda, que eu arrumei uma namorada em Montevidéu, a irmã do Cáceres [risos]. Ele vivia em condições muito modestas, já tinha estado na Europa, não deu certo. Eu pensei: bom, isso é o pior que pode acontecer? Então vai dar pra eu ser violonista. Ele toca o dia inteiro, tem os alunos dele, a mulher era pianista. Fiquei muito amigo deles. O Cáceres foi um professor que nunca me deu uma aula formal. Ele me deu todas as aulas possíveis me deixando estar perto dele. E eu era chato pra burro, eu era furão. Eu dizia pra ele, quando ele estava aqui no Rio, “eu posso ir ao seu hotel te olhar estudar?” Ele ficava sem graça, queria dizer não e eu chegava. Ele pensava, “puxa, lá vem aquele pentelho!”, eu sentava lá e ficava vendo-o estudar [risos]. Isso ele só me disse anos depois: “como você enchia o saco!” [risos]. Foram acontecendo as coisas no Rio. Um dia o Hermínio me levou pra fazer uma conferência, eu, Jodacil Damasceno, lá no MEC, pra Arminda Villa-Lobos. Ela me viu tocando, a Mindinha, uma pessoa fantástica. Outra pessoa que entrou na minha vida… ela me ouviu tocando e pediu para eu ir ao Museu. Conversando, ela disse “eu queria que você fizesse o primeiro disco do Museu”. Eu pensei que ela queria que eu gravasse um 78 rotações. “Eu quero que você grave os 12 estudos [para violão]”. Nove meses depois estava feito.

Esse disco foi o teu primeiro disco? E também o teu primeiro contato com a obra de Villa-Lobos ou já existia? Primeiro disco [O contato com a obra de Villa-Lobos], já existia há muito tempo. Logo, logo, quando eu vi Segovia, por conta própria pegava os Estudos, estudei com Cáceres, Rebello. Eu gravei esse disco e propus à gravadora fazer um disco com Cáceres: “você não quer gravar um disco com a gente?” e o dono da gravadora, a Caravelle, topou. Cáceres veio, fizemos um concerto no Rio, eu já estava com dois discos, agora eu tenho que pensar sério nessa brincadeira. Aí pensaram sério por mim e deram o golpe de Estado. O último dia que eu fui à universidade [Turíbio cursava Arquitetura] foi o dia 31 de março de 1964 [quando teve início a ditadura militar brasileira]. Não volto mais aqui, não vou perder meu tempo. Fiquei indignado, horrorizado. Eu procurei me informar qual era o grande concurso de violão que existia fora do Brasil. Aí eu descobri o concurso da Rádio e Televisão Francesa, a RTF, e me inscrevi nesse concurso. Eu fui pedir uma passagem no Itamaraty, era o Vasco Mariz [autor de Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro, de 1948] que estava no serviço de relações exteriores, ele pediu os documentos para ver que eu tinha sido classificado entre os cinco finalistas. Ele me deu a passagem ida e volta, eu fui e ganhei o concurso.

Você ficou quanto tempo em Paris? Fiquei 10 anos. Ao todo 20 anos, por que os outros 10 anos eu estava no Rio, mas a minha sede continuava lá.

Lá em Paris entre aulas e concertos, sempre. Aí começou toda uma mecânica. A rádio de um lado funcionando, o disquinho da Catedral e do Choros, o disco da Maria Aparecida [discos iniciais de Turíbio Santos], algumas conferências e recitais nas Juventudes Musicais Francesas. Aí um dia me telefona um cara da [gravadora] Musidisc Europe. “Olha só, a gente fez um levantamento aqui e o Richard Anthony gravou o Concierto de Aranjuez numa versão popular, Aranjuez, mon amour, vendeu milhões. Se a gente fizer com um jovem violonista desconhecido, a gente pode vender pelo menos uns 10 mil discos a preço popular. Então a gente pensou em você. A proposta é: a gente paga mil dólares a você, mas do outro lado do disco você grava o que você quiser, desde que seja espanhol” Aí ele perguntou: “você já tocou com orquestra?”, eu disse: “lógico!”, nunca tinha tocado [risos]. “Toca o Concierto de Aranjuez?”, “Todo dia” [risos]. Aí eu fiquei pensando, deve ser daqui a seis meses. “Ótimo, tá fechado, 15 de janeiro você grava”. Era 15 de dezembro. Cheguei em casa era o Concierto de Aranjuez pra o quarteirão inteiro se mudar, noite e dia. Pra completar eu tinha decidido que ia trazer o Cáceres pra Paris. Olha o círculo que se armou. Eu tinha um atelier d’artiste, era uma sala desse tamanho, um quartinho e a cozinha. Eles vieram, 30 de dezembro. Minha mulher, a Sandra, ficou doida, coitadinha. No dia em que eu fui gravar eu tinha febre de 40 graus. Gravamos o concerto, o regente não era grande coisa, a orquestra também não era grande coisa, mas não era uma vergonha. O disco vendeu 300 mil. A porta do mercado discográfico abriu pra mim. A Erato, a maior companhia de música clássica de lá, me ligou perguntando se eu queria gravar um disco de música espanhola pra Erato. Eu falei que não. “Como?” “Não, eu quero gravar pra Erato os 12 Estudos de Villa-Lobos”. “Mas Villa-Lobos não tem mercado aqui, você está novo”. “Ou isso ou nada”. Decisões fantásticas que você toma na vida. Vendeu feito batatinha. Os caras se empolgaram, “agora o segundo disco, agora é música espanhola, não é?” Eu falei “não, ainda não. Agora eu peguei o gostinho, eu quero fazer o Concerto para Violão e Orquestra, o Sexteto Místico e a Suíte Popular Brasileira”. “Mas é um investimento isso”. “Ué, não vendemos bem? Custa você arriscar?”. Meti o pé outra vez e outra vez arrebentamos a boca do balão. Botei o Cáceres dentro dessa editora, ele gravou discos solos, briguei com o produtor Roberto Vidal, que estava ganhando royalties escondido, eu não sabia, e em 18 anos gravei 18 discos para eles. Depois que a carreira pegou o embalo é que fui descobrir onde eu estava metido.

Sua carreira parece que chegou num momento em que cansou. É o primeiro capítulo desse livro [aponta para o exemplar de Mentiras… ou não? que autografou para um dos chororrepórteres]. Eu nunca tive intenção de ficar lá. Chegou um momento em que a gente [ele e Sandra Santos, sua esposa] pensou no que ia fazer. O primeiro filho, Ricardo, nasceu lá em 1970; depois nasceu uma menina, a Manuela, em 1972. Em 74 a gente decidiu: voltar para o Brasil. Por que a garotada vai pra escola no Brasil, pra saber como é o país. Se botar na escola aqui, nunca mais a gente volta. As facilidades sociais eram espetaculares. Esse conforto todo material de lá a gente preferiu trocar pela espontaneidade do Brasil, a alegria de poder criar no Brasil. Eu fiz algumas aventuras lá, algumas delas muito importantes. Eu comecei a ver o repertório do violão e descobri que tinha peça original de [o compositor] Darius Milhaud que não tava gravada, tinha peça de [o compositor] Henri Sauguet que nunca tinha sido tocada. Eu fui bater na Erato, depois de ter feito os discos que eles queriam, “vamos fazer um disco de música francesa”. “Não vamos fazer nada, você é louco!” Dessa vez eles tinham razão: o disco foi um fiasco comercial [risos]. Mas virou cult, foi um sucesso artístico que dura até hoje. Até no Brasil, de vez em quando tem um garoto que manda me pedir música.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

Voltando para o Brasil, você foi direto para a universidade? Como foi o retorno? O retorno ao Brasil ocorreu da seguinte maneira: em 1974 voltamos ao Brasil. 10 anos de França, dois filhos. E agora? Eu não avisei ninguém na Europa. Disse, no máximo: meu endereço por uns tempos passa a ser esse. Eu estava indo para Japão, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Alemanha, não podia interromper esse movimento, tinha muita companhia, muito empresário envolvido. Mantive o movimento lá fora e as viagens começaram a doer na alma. Eu saía e passava 40 dias fora, voltava, passava 15 dias com as crianças na praia. Aquilo foi doendo na alma. Fiquei de 74 até 84 fazendo esse tipo de loucura. Em 1980 eu tive uma ruptura interna terrível. Eu estava desesperado, foi o único momento da minha vida em que pensei em suicídio. Eu fiquei entocado e aconteceu uma coisa maravilhosa. O Guilherme Figueiredo estava como presidente da Funarj [a então Fundação de Artes do Rio de Janeiro] e teve um grande entrevero entre ele e a direção da Sala Cecília Meireles. Um dia ele me liga e diz “Turíbio, eu preciso de sua ajuda. Você não pode falar com seus amigos compositores, quem pode assumir a direção?”. Eu consultei, ninguém podia. Ele me convidou. “Mas eu viajo direto”. “Eu te dou autorização para viajar, eu posso fazer isso”. Eu assumi detestando. Um dia aconteceu uma coisa: “ué, ele tá aí? Ele não vive viajando?”. A primeira universidade que me convidou para abrir a classe de violão foi a UFRJ, do outro lado da rua. Ao mesmo tempo o Guilherme também soube da história e o [professor] Luiz Paulo Sampaio veio da Unirio perguntando se eu não queria abrir também lá. “Olha, pessoal, é o seguinte, a ideia me fascina completamente, eu estou até aqui com esse negócio de viagem. Só que não pode ser assim de repente. Eu agora vou freando as coisas devagarzinho até conseguir sair com elegância de uma série de compromissos”, havia compromissos assumidos até três anos na frente.

Você falou detalhadamente de alguns discos feitos na Europa e na volta ao Brasil saíram dois discos, um pouco depois, que eu considero muito importantes: Valsas e Choros [1979] e Choros do Brasil [1977], de que participaram [os violonistas] João Pedro Borges e Raphael Rabello. Como foi o contato com Raphael? Qual era a data, João Pedro, em que a gente saiu pelo Brasil fazendo o Seis e Meia? [“76, 77”, responde João Pedro]. Nessa época eu tava procurando um violão sete cordas. Aí liguei pro Hermínio: “Você conhece algum bamba?” “Tem um garoto que tá começando, vou mandar aí pra tua casa”. Abri a porta tinha um molequinho, gorducho, sério pra burro, não ria nem por decreto. Sentei, “pega o violão aí”, ele destroçou o violão, e eu, “caramba, você é um ET!” [risos]. Mas não ria, seríssimo: Raphael Rabello. Aí nós saímos pra turnê com ele: João Pedro, Raphael, Jonas no cavaquinho, [a cantora] Alaíde Costa, [o flautista e clarinetista] Copinha e Chaplin na percussão. Percorremos o Brasil todo, João Pedro era o carrasco do Raphael. Ele acompanhava muito e João Pedro dizia: “você tem que solar, dominar como solista”. As pessoas viam a precocidade do Raphael, já ganhando dinheiro, acompanhando todo mundo. Tanto batemos que mais tarde quando ele encontrou Radamés [Gnattali, pianista e maestro], ele tava lendo bem música, conhecia o outro lado da música, não ficava só preso no acompanhamento, que ele fazia muito bem.

E como era sua relação com Radamés? Ótima! Eu conheci Radamés, mais uma vez, por causa do Hermínio. O Radamés fez uma série de estudos e o número 1 é dedicado a mim e eu nunca toquei. Aí um dia ele me telefonou, “ô, Turíbio, você nunca tocou o meu estudo? Que negócio é esse?”. “Ô, Radamés, eu gosto muito dos estudos, acho eles lindos, mas cada estudo é a cara do violonista que você dedicou, mas não é a sua cara. Eu ouvi os discos com Edu da Gaita, com seu sexteto, esse é o Radamés! Por que você não faz um negócio Radamés para o violão? Samba, bossa nova, choro…” “Deixa que eu vou fazer”. 15 dias depois tava pronto. Aí eu gravei pra Erato, publiquei na coleção Turíbio Santos, da [editora] Max Eschig, e fiz a estreia, meu circuito era Londres, Paris e trouxe tudo isso pra ele. Ele ficou felicíssimo. Chama-se Brasilianas 13, com bossa nova, samba bossa nova, a valsa e o choro e era a cara do Radamés. Aí ele ligou: “Vamos fazer outros?” [risos]. Fez outra e eu disse, “Radamés, está faltando uma literatura do Nordeste para violão”, aí ele fez uma pequena suíte com toada, frevo. Foi a última música que ele fez. Ele não morreu logo em seguida, mas foi a última música que ele conseguiu escrever e trabalhar.

Você saiu muito cedo do Maranhão, aos três anos e pouco de idade. Como é a relação com a terra natal? Fortíssima! Eu saí com três anos, mas meu pai vinha todas as férias, eu sempre vinha com ele. A Rua das Hortas eram só parentes e amigos. Infelizmente a maioria morreu.

De alguma forma isso influenciou tua música? Quando Fernando Bicudo estava dirigindo o teatro [Arthur Azevedo], ele me chamou para uma semana de reestreia e sugeriu: “por que você não compõe alguma coisa?”. Aí eu compus uma suíte chamada Teatro do Maranhão, que virou disco e depois virou concerto para violão e orquestra.

Teus discos hoje estão quase todos esgotados. O que se acha é para download na internet. O disco de violão, como todos os cds, eles fazem uma tiragem. Botam mil no mercado. A cabeça dos caras é o seguinte: se os mil venderem em uma semana, eles fazem mais mil. Mas se durar um mês eles não fazem mais. É uma loucura! Na Europa não se usava esse critério pavoroso de lucro, de ganância a qualquer preço. Ontem eu toquei na Academia Brasileira de Letras e tinham seis discos meus à venda. As companhias são tremendamente predadoras.

Como é a sua relação com tecnologia? É boa, eu acho a tecnologia ótima, contanto que ela não interfira na coisa interior que eu tenho. Que ela sirva!

Então você é a favor do download? Eu não compraria um disco meu hoje, tá tudo no youtube, com imagem, com tudo [risos]. Não tem como ser contra. A produção não consegue ser protegida defronte dessa máquina. Ela nivela por baixo. Havia uma seleção, bem ou mal, eu passei por várias seleções até chegar a fazer esses discos todos. De repente, esses discos todos sumiram. Hoje em dia qualquer garoto faz o seu disco em casa e bota na internet. É uma coisa aproximativa, com o som mais ou menos, e bota no youtube, é terra de ninguém. Eu mesmo, quando quero pesquisar alguma coisa a meu respeito, eu vou no youtube direto. É mais rápido eu achar lá do que na minha estante.

Uma das primeiras ocorrências é a execução do Choros nº. 1 [Heitor Villa-Lobos] com você e a Orquestra de Violões. Ah, é. Aquela é muito forte!

Falando em Villa-Lobos, como foi seu contato pessoal com ele? Eu só tive um contato com Villa-Lobos. Mas não podia ser melhor do que foi. Eu fiquei três horas sentado numa mesa com ele, ele falando da música dele para violão e da carreira dele toda. Foi em 1958, um ano antes dele morrer, no antigo Conservatório de Canto Orfeônico, no Rio. Na mesa estavam sentados Arminda Villa-Lobos, ele e Julieta, irmã da Arminda, e do lado de cá estavam Ademar Nóbrega, que veio a ser um biógrafo dele, eu e mais uma outra pessoa. Eu fui parar ali, com 15 anos de idade, por que havia um programa de rádio chamado Violão de ontem e de hoje, feito pelo Hermínio e pelo Jodacil, e eles não podiam ir. O Hermínio, como sempre visionário e memorialista, disse: “anota tudo o que ele disser, mesmo que você ache que não seja importante, um dia vai ser”. E eu fiz exatamente isso. Ele falou três horas, mostrou música, mostrou disco de Segóvia. Isso eu transformei num livrinho chamado Villa-Lobos e o violão, editado pelo Museu Villa-Lobos, com a revisão da própria Arminda, que estava lá.

João Pedro Borges: um perfil necessário

Este perfil de João Pedro Borges tecido pelo jornalista Wilson Marques não pretende ser uma biografia definitiva do músico, mas preenche uma lacuna sentida quando se trata de pesquisar a vida e obra deste talentoso artista maranhense, que se declara professor, acima de tudo.

João Pedro Borges foi o mestre, o gênio escolhido por Wilson Marques para inaugurar esta coleção de perfis em que pretende retratar, em breve e daqui por diante, diversas personalidades das artes do Maranhão, quase sempre carentes de bibliografia que lhes abarque.

Renomado violonista, de fama internacional, João Pedro Borges, o Sinhô, participou de capítulos importantíssimos da música brasileira, como a Camerata Carioca do maestro gaúcho Radamés Gnattali e a consequente renovação do choro no Brasil, ali iniciada, além da “aterrissagem” do brasileiríssimo gênero nos Estados Unidos, para ficarmos apenas nestes exemplos, pois mais não caberiam nesta orelha.

Razão e sensibilidade, como cravou a poeta e amiga Arlete Nogueira da Cruz em artigo, João Pedro Borges não é apenas um, equilibrando-se entre o erudito e o popular, usando para tal não corda bamba, mas as cordas do instrumento que há muito abraçou profissionalmente: o violão é a vida de João, rima barata, ofício não. Nele combinam-se ainda a grandeza de ser um dos maiores neste vasto universo musical e a simplicidade e humildade que conquistam qualquer um com quem converse, sobre qualquer assunto, em particular sobre música.

Música o que queremos ouvir, tocada por João Pedro Borges, durante e após esta leitura, de tão agradável, ligeira.

[Orelha que escrevi para João Pedro Borges: violonista por excelência (Clara Editora, 2013), do jornalistamigo Wilson Marques, livro que inaugura a série Perfis maranhenses]

Chorografia do Maranhão: Rui Mário

[O Imparcial, 7 de julho de 2013]

Rui Mário é uma espécie de camisa 10 de nossa música: aos 30 anos é o sanfoneiro preferido de 11 entre 10 artistas maranhenses. Não por acaso é o 10º. entrevistado da Chorografia do Maranhão.

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Rui Mário é uma espécie de camisa 10 de nossa música. O talento de sobra lhe garante vaga em qualquer seleção destas plagas. Sua musicalidade está nos genes: é filho de Raimundo dos Reis Lima, ou simplesmente Seu Raimundinho, e neto de José Reis Lima, ambos sanfoneiros.

Não por acaso o 10º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão, Rui Mário nasceu em Santa Luzia do Tide, em 13 de fevereiro de 1983, e veio para a capital em 1989, por conta das viagens a trabalho do pai, que se dividia entre a música e o trabalho com carnes e linguiças. Aos sete anos começou a tirar sons de uma sanfona e aos 11 a tomar aulas com Eliézio, até hoje uma referência.

Preferido por 11 em cada 10 artistas de nossa música, o filho de dona Maria Mendes Lima, tem quatro irmãos, todos criados ao som de muito choro e forró. “Eu acordava com o som da sanfona de meu pai”, lembra. Aos sábados e domingos, às tardes, Seu Raimundinho organizava um sarau famoso em sua casa, no São Bernardo, no quintal de um pequeno comércio. Certamente o ambiente da infância e adolescência ajudou a moldar a versatilidade de Rui Mário, admirador confesso do pai, um grande exemplo.

Na diminuta temporada junina recente da capital maranhense o músico fez 27 apresentações, entre shows com um trio de forró no Barracão do Forró, Casa do Idoso e Ipam, e como sanfoneiro das bandas de sete artistas: Carlinhos Veloz, Chico Saldanha, Fátima Passarinho, Gerude, Josias Sobrinho, Papete e Ronald Pinheiro.

O pai da pequena Maria Eduarda, 3, conversou com os chororrepórteres no Bar do Léo – que desligou o som para colaborar com a transcrição da entrevista e, aqui e acolá, ouvir a sanfona de Rui ilustrando um pedaço da conversa. Chovia forte em São Luís, o que levou o ensaio para onde o músico seguiria dali, com o cantor e compositor Erasmo Dibell, a ser cancelado. Um caso raro de dedicação ao trabalho, no seu caso, sinônimo de música.

Tua casa sempre foi um ambiente musical? Sempre teve um trio de forró? Com certeza! Eu acordava com o som da sanfona do meu pai tocando e contando histórias do meu avô, que também tocava, que era um bom sanfoneiro, naquela época tocava sanfona de botão. Ele era praticamente o braço direito de meu avô. Onde meu avô tava, ele tava junto, tocando. Então, ele contava muito essa história pra gente, sempre tocando junto, e botava o vinil pra tocar chorinho, Luiz Gonzaga, Dominguinhos, sempre foi isso. A gente o acompanhava, tocando. Eu comecei tocando triângulo. Então era mais ou menos isso, a gente sempre esteve junto ali. Sempre teve um trio. Inclusive tá se formando um agora, que tem dois sobrinhos, que um é sanfoneiro, outro toca zabumba, e já nasceu outro: com certeza vão formar um trio de [forró] pé de serra.

Sempre teve o encorajamento a seguir carreira de músico ou em algum momento teu pai desencorajou por certo preconceito que ainda possa haver contra músicos? Não. Lá em casa, nunca, ninguém… Minha mãe, sim, sempre, “Ó, estudo na frente da música”. Ela incentivava muito a gente, “vai estudar, vai estudar sanfona, vai estudar o teu instrumento”. A gente brincava demais, principalmente eu, então ela sempre pedia, meu pai também, pra que eu estudasse meu instrumento. Na verdade nunca teve ninguém que dissesse “eu acho que esse não é o rumo certo”, sempre foi encorajando mesmo.

Desde pequeno você tinha vontade de aprender sanfona ou durante algum tempo achava que era um instrumento démodé? Como é que foi tua escolha pela sanfona? Foi intuitivo, uma coisa que eu nunca imaginei, nunca pensei que fosse ser. Tocava triângulo, gostava de tocar, acompanhar meu pai, ouvir as músicas, mas nunca pensei nem em pegar no acordeom. Mas um dia eu peguei, e ao mesmo tempo em que peguei derrubei, então já se tornou aquela coisa traumática, “não pegue mais”. Aí eu participei de um grupo pé de serra com um tio meu que tocava sanfona também, Nunes do Acordeom. Lá tinha muita sanfona pequena e tinha um primo que tocava sanfona também, Ronaldo, eu olhava ele tocando e achava bonito, então partiu dali aquela vontade de também querer. Depois de eu ter derrubado a sanfona de meu pai, eu disse “rapaz, essa daqui eu não pego mais”, ele já tinha brigado, não ficou zangado, “olha, tem cuidado!”. Então eu fui lá, na casa do meu tio, comecei a pegar, a sanfona era menor, então mais leve, e comecei aí, meus primeiros acordes.

Com quantos anos? Sete anos, quando eu comecei a dar meus primeiros acordes mesmo, Asa branca [Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira] como sempre, já foi na mente, é a primeira coisa que a gente escuta, a melodia tava na cabeça, e foi na intuição mesmo.

Você nunca seguiu outra profissão, nunca estudou outra coisa, sempre música? Sempre música. A gente nunca teve outra profissão, eu nunca tive, meu irmão, minha irmã, sempre música na nossa cabeça e levando como profissão mesmo.

Isso já responde uma pergunta que a gente faz para todos os entrevistados: você vive de música? Vivo de música. A minha vida toda, tudo o que eu tenho hoje foi a música que me deu.

Quem foram os teus mestres? Teu pai parou para te ensinar? Ele não parou pra me ensinar, tipo “ó, Rui, acorde tal, solo tal”, mas ele parava para me educar musicalmente. Quando eu tocava uma música e fazia alguma coisa errada, ele dizia “não é por aí, a nota é essa, o dedo é esse”, o ensinamento dele foi mais esse. Tenho um irmão mais velho, por parte de pai, que chegou a me ensinar alguns solos, passar algumas coisas, e já com 11 anos comecei a pegar aulas com Eliézio do Acordeom. Passei um ano com ele, meu pai conseguiu falar com ele e pediu que ele me passasse uma coisa a mais.

Vamos fazer um parêntese antes de continuar: pra ti o que significa Eliézio enquanto acordeonista? Pra mim um mestre do acordeom. Um cara incrível que chegava lá em casa e mostrava tudo o que sabia. Uma pessoa por quem tenho admiração, meu pai principalmente. Às vezes ele chegava quatro da manhã lá em casa e a gente tinha que acordar pra recebê-lo. Mas por que isso? Pela admiração que a gente tem por ele, pelo privilégio de tê-lo lá em casa, perto da gente. Meu pai fala que aprendeu muito com ele, só no olhar, só de vê-lo tocando.

Quem conhece Eliézio e te vê tocando percebe traços da sofisticação. É impressionante como a gente percebe aquele requinte que ele tem. Ele foi o cara em que eu me inspirei, me espelhei. Eu sempre busquei isso, sempre quis estar perto dele.

Você teve outros professores? Tive, mas na área harmônica, mais pra parte de teclados, Silvano, Jecivaldo, apesar de ser guitarrista, Israel Dantas, mais a parte teórica.

Você estudou na Escola de Música? Passei um ano lá, mas não deu para conciliar com o trabalho. Fiz um ano com Zezé Alves [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013] e a professora Kátia [Salomão, violoncelista].

Parece um caminho meio natural, quem toca sanfona tocar teclados, piano. Você tem preferência por um instrumento ou por outro? Eu digo que meu grande amor é a sanfona, e a paixão é o piano, devido a harmonia, a delicadeza que o piano tem, o sentimento, que a sanfona também com certeza tem. Minha preferência é o acordeom, foi ali que eu comecei. Se me perguntarem se eu considero sanfoneiro ou pianista, com certeza sanfoneiro.

Como foi o início de tua carreira em São Luís? Você participou de grupos, além do Choro Pungado? Quando pequeno, participei de um grupo chamado Trio Mirim, que era desse meu tio, Nunes do Acordeom. Depois a gente foi crescendo e virou Ronaldo e seus cabra. Teve outro grupo que eu participei, esse já tocando sanfona, antes eu tocava triângulo e cantava, o Pimenta de Cheiro. Daí por diante, meu pai começou a trabalhar com alguns artistas daqui, mas ele não se adaptava, não se sentia bem, e me colocou. Eu comecei praticamente com Gabriel Melônio, aos 13 anos de idade. Depois as pessoas foram vendo, ligando, aí eu comecei a participar de quase todos os shows de artistas daqui.

Hoje tu tens a agenda sempre muito cheia, és o preferido de 11 a cada 10. [Gargalhadas]. Sempre muito cheia, graças a Deus! A gente se empenha, eu me empenho muito pra fazer um bom trabalho.

Além de instrumentista, você desenvolve outras habilidades na música? Como eu montei um home studio, eu tive que me empenhar em arranjar músicas, então eu tou correndo atrás disso, desse lado arranjador. A parte mais difícil da música é essa: ali é sua identidade, sua assinatura. Eu tou estudando pra desenvolver esse lado. O lado compositor ainda não consegui encaixar. Eu acho difícil compor. Qual a área que você vai? Chorinho, forró, baião, jazz. Eu tou buscando o elemento crucial pra poder compor, pra diferenciar, uma linha.

Mas a gente tem ouvido coisas tuas, o Baião de doido [música de Rui Mário gravada pelo Choro Pungado em um disco demonstrativo do grupo]. O Baião de doido eu fiz como tema para abertura de um show do [cantor e compositor] Chico Viola. Então eu fiz aquele início e começou dali, “dá pra terminar”, comecei a desenvolver.

Você se considera um chorão? Não. Eu me considero um admirador do choro. Chorão, eu imagino assim, aquele cara que vivencia, onde tem choro, tem que estar lá, onde está a turma do choro tem que estar junto. Eu não sou desse jeito, eu sou muito caseiro. Eu não me considero chorão por isso.

Um momento muito importante do choro recente aqui no Maranhão é o Choro Pungado. Você se saiu com bastante desenvoltura e competência entre os chorões. Ali foi um tempo muito bom, eu acho que aquela época do Clube do Choro [Recebe] a gente gostava de estar ali, o público prestava atenção. O mais gostoso era isso, você fazia e tinha a resposta do público. A gente se empenhava, estudava.

No Brasil a sanfona, sobretudo depois de Luiz Gonzaga, ficou muito atrelada ao forró, a ritmos nordestinos. A gente conhece um episódio envolvendo o Radamés [Gnattali, maestro e pianista gaúcho] e o Chiquinho [do Acordeom, que depois viria a integrar grupos de Radamés], de início por certo preconceito de Radamés com a sanfona, por não gostar do som do instrumento, por achar que a sanfona não era instrumento de choro, superado depois que ele ouviu Chiquinho tocar. A gente te ouvindo em disco ou em show, percebe que tua sanfona cabe em choro, [bumba meu] boi, rap, no que vier. Você já sofreu algum tipo de preconceito por conta do instrumento? Não. Inclusive eu mesmo já fui um que disse, em determinada ocasião, que achava que a sanfona não cabia ali. Mas o cara por querer, por achar bonito o som do instrumento, insistiu. E tava certo. A sanfona é um instrumento universal, cabe em qualquer tipo de música.

Você já tocou em discos de Cesar Teixeira [compositor, Shopping Brazil, 2004], Josias [Sobrinho, compositor, Dente de ouro, 2005], Lena [Machado, cantora, Samba de minha aldeia, 2010], Gildomar [Marinho, compositor, Olho de boi, 2009], Joãozinho [Ribeiro, compositor, o inédito Milhões de uns, gravado ao vivo no Teatro Arthur Azevedo em novembro de 2012], quer dizer, grandes compositores, grandes intérpretes. O que significa, pra ti, participar destes registros? Ah, eu fico muito satisfeito, por que você trabalha pra ter um espaço e ser reconhecido. Quando pessoas desse nível te chamam para participar de um cd, você percebe que o seu empenho, no seu instrumento, na música, deu certo, você tira por esses chamados. Eu me sinto orgulhoso, fico muito satisfeito.

Tem algum disco preferido entre os que você já participou? Eu gosto muito daquele cd do Cesar Teixeira, gosto muito dos arranjos. Outro cd que eu gosto muito, uma coisa mais moderna, é o da Lena, esse último, arranjado pelo Luiz Jr., bem moderno. São dois cds que eu gosto muito.

Tem algum artista com quem tu gostaria de tocar em show ou disco e ainda não o fez? Tem um artista que esse ano, eu tava correndo atrás, era o Papete. Esse ano eu tive a honra de tocar com ele no São João, e participar do disco dele [Sr. José… de Ribamar e Outras praias, 2013].

Rui, uma vez você recebeu um elogio de Dominguinhos… Ah, isso foi… [emocionado] Eu estive com Josias Sobrinho em Porto Alegre, um festival do Sesc, algo assim, um evento do Sesc, e a gente encontrou lá com Dominguinhos, uma pessoa humilde, conversou com a gente, a gente passou o dia no hotel conversando. Quando foi no dia do show, a gente tocou antes dele, foi quando ele entrou, tocou três, quatro músicas, e ele me anunciou lá: “rapaz, aqui nesse evento tem um pessoal do Maranhão, e tem um sanfoneiro que tá com eles, filho de um amigo meu, Raimundinho, lá do Maranhão, que tá tocando muito bem, e eu vou chamar ele aqui pra tocar uma comigo”. Eu fiquei sem chão. Foi bom demais, lembrei demais do meu pai, queria que meu pai estivesse lá. Foi emocionante.

Qual a importância do choro, na tua opinião? Como você percebe o choro? Qual o papel que o choro cumpre na música brasileira instrumental? O choro, na minha vida, fez e faz parte da minha formação musical. Eu considero o choro um estilo musical que exige muito do instrumentista. Em todos os aspectos, o cara tem que ter muita velocidade, percepção, improviso, então, o choro é a raiz da nossa música brasileira, é o princípio. É um estudo, um aprendizado, uma escola.

Você tem acompanhado o desenvolvimento do choro no Brasil hoje? Percebe diferença nessa nova geração? Com certeza! Uma mudança incrível! Um nível jazzístico, apesar de o choro ser mais antigo, uma praia diferente. Eu aceito isso por que traz novos músicos, pessoas jovens a gostar do choro. Concordo com essa mudança, abrindo mais.

Durante muito tempo o acordeom sofreu preconceitos, como já abordamos. Hoje ele ganhou mais autoestima, mais juventude? Sim, mais juventude. Acho que a tecnologia ajudou muito. Antigamente a gente não via quem tocava, quem tava se destacando. Hoje em dia muitos jovens tão tocando, “poxa, esse cara tá tocando muito”, aí as pessoas se dedicam.

Quem são os grandes nomes do acordeom no Brasil hoje que a gente tem que ouvir? Primeiramente Dominguinhos. Aí Sivuca, Oswaldinho… O engraçado de Oswaldinho, apesar de eu ouvir muito Dominguinhos quando criança, o Dominguinhos mudou a história do choro, ele pegou a linha do choro e passou pro baião, ele criou isso; ele sempre foi muito mais tema, aquela coisa mais elaborada. Oswaldinho fazia o tema, mas no meio da música ele improvisava. Quando eu pegava o vinil para ouvir, era sempre primeiro o Oswaldinho, pra poder escutar o improviso dele.

E dessa nova geração de acordeonistas, quem te chama a atenção? Cesinha, Mestrinho, Chico Chagas. Linhas diferentes. Cesinha e Mestrinho a mesma linha de Dominguinhos, já o Chico Chagas, uma coisa mais clássica, mais pro [Toninho] Ferragutti.

Em que linha tu te encaixarias? Ainda não me achei [gargalhadas]. Eu gosto muito do clássico, eu corro muito atrás disso, talvez por escutar muito Sivuca, mas também amo Dominguinhos, e tento buscar um pouco ali dele. Eu tento mesclar.

E do choro? Escapando do fole? Aponta um nome da antiga e um da nova geração que te faz parar para ouvir com prazer. Ernesto Nazareth. O acordeonista Orlando Silveira, muito bom também. Da nova geração o Hamilton de Holanda, o Trio Madeira Brasil.

E o choro no Maranhão, como é que tu tens observado? Com Hamilton de Holanda, como ele modificou um pouquinho o choro, isso atrai os jovens para essa área, pro choro. Eu acredito que tem crescido, nós temos Robertinho [Chinês, bandolinista e cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013], Wendell [Cosme, bandolinista e cavaquinhista], tem o grupo do Wendell, o Quarteto Cazumbá. Eu acredito que se aqui tiver mais incentivos, vai pra frente.

Como é tua relação com as tecnologias, seja operar softwares no estúdio, seja, por exemplo, e-mails, redes sociais, a internet em geral para divulgar teu trabalho? A tecnologia eu uso mais para trabalho. Eu tento me sair o máximo dessa tecnologia de rede social, de colocar minha imagem para todo mundo ver, eu sempre fico muito apreensivo com isso. É claro que eu uso, eu tenho que usar. Você arruma contratos para trabalhos, eu corro mais atrás disso do que [expor] a minha vida pessoal.

Os músicos em São Luís se ressentem da falta de um palco, depois do Clube do Choro Recebe. Como você enxerga o mercado para o músico em São Luís, sobretudo para quem toca na noite? Acho que cresceu. Antigamente você não via os bares com música ao vivo, inclusive com músicos daqui. Era muito difícil. Apesar de a música não ser “a” música, mas acho que cresceu o mercado pro músico aqui no Maranhão.

Se você tivesse que eleger um músico maranhense? Posso dizer meu pai? Meu pai eu admiro demais. Ele não teve o que a gente tá tendo. Tecnologia realmente. Antigamente era rádio. Tocava uma música uma vez numa rádio e ele já tinha que pegar. Ele não pergunta. Ele aprende ouvindo. É um músico indo e voltando, autodidata, improvisador, é uma coisa dele mesmo.

Além dele, algum outro? [O contrabaixista] Mauro Sérgio, um cara que se destacou nacionalmente, [o violonista] Luiz Jr., Robertinho Chinês e [o guitarrista] Israel Dantas são os caras que eu admiro.

Chorografia do Maranhão: João Pedro Borges

[O Imparcial, 14 de abril de 2013; aos poucos mas fieis leitores do blogue um bonus track: a versão abaixo traz algumas perguntas e respostas que ficaram de fora da edição do jornal, embora isso ainda esteja longe de ser a íntegra da deliciosa conversa que Ricarte Almeida Santos e este que vos perturba tivemos, fotografados por Rivânio Almeida Santos, com o mestre João Pedro Borges, um papo longo em uma noite de segunda-feira; o violonista fala como professor que é, fazendo questão de deixar tudo bastante explicado para que não restem dúvidas aos alunos; orgulho de ter aprendido essa lição.

Este post é dedicado a Maria Pepê, cunhada de Sinhô]

Quarto entrevistado da série, João Pedro Borges é um dos mais importantes nomes do violão, do choro e da música brasileiros. Seu talento é reconhecido internacionalmente

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

João Pedro da Silva Borges nasceu em uma vacaria, espécie de pequena fazenda, onde hoje fica o edifício Clara Nunes, “olha que grata coincidência”, no Apicum, região central da capital maranhense, em 23 de junho de 1947. O apelido Sinhô ganhou da avó: “Minha avó, mãe do meu pai, eu nascendo numa fazendinha, nasceu o Sinhozinho, nossa herança coronelesca. Era o Sinhô, Sinhozinho. Aí pronto, pra distinguir dos outros irmãos, que eram muitos [onze], era Sinhô e acabou-se”.

Filho de Raimundo Felipe Borges e Marina Silva Borges; a mãe, professora normalista, o pai, técnico em eletrônica, especialista em rádio e televisão, um empreendedor que chegou a ter gráfica, trabalhava com o avô na Livraria Borges, de propriedade da família, a maior da São Luís da época, quando o menino João Pedro nasceu.

Ele é um dos maiores violonistas brasileiros em todos os tempos e participou de um capítulo fundamental para a renovação do choro no Brasil: a Camerata Carioca do gaúcho Radamés Gnattali, com que o maranhense chegou a gravar discos e fazer diversas apresentações Brasil afora. Seu talento é hoje reconhecido internacionalmente e o disco mais recente, Clássicos Latino-Americanos, foi gravado em 2005, em uma igreja na França.

Wilson Marques concluiu recentemente um perfil seu para uma coleção que pretende publicar em breve. Para a construção do livro, entrevistou o próprio João Pedro Borges além de figuras próximas, como Chico Saldanha, Arlete Nogueira da Cruz e Sérgio Habibe, entre outros. “É ele contando a história dele, não é uma minuciosa biografia, mas sobretudo um registro de sua trajetória e da importância do trabalho dele para a música brasileira”, adiantou o jornalista.

João Pedro Borges conversou com O Imparcial/ Chorografia do Maranhão no Chico Discos, acompanhado, na decoração do ambiente, de diversas personalidades da música: algumas delas ele chegou a conhecer pessoalmente e são citadas por ele ao longo da conversa.

Quando foi que tu percebeste que teu negócio era a música? Eu sempre tive certos indícios de sensibilidade. Por exemplo, eu ganhei, por ocasião de um natal, um violãozinho de plástico, e aquilo era o brinquedo que mais me encantava. Então eu simulava cantar com aquilo, com o passar do tempo eu buscava alguma forma de afinação. Lembro que na minha infância passava um deficiente visual numa carroça puxada por um burro, conduzida por um ajudante que provavelmente era filho dele, e tinha a peculiaridade de que este senhor  tocava cavaquinho. Então, eu guardava dinheiro pra ter o que levar pra ele, por que quando a gente chegava, ele dizia “a pedido é mais caro”. Lembro que quando ganhei esse pequeno violão eu queria imitar um pouco o homem cego que passava lá na minha rua, quase que todos os dias. Mas só mais tarde [consegui], meu padrinho José Silva foi meu primeiro professor de violão. Ele fazia parte da velha guarda das pessoas que lidavam com o choro. Foi ele o meu vínculo com o choro, era violonista, compositor. Ele era irmão adotivo, por afinidade, do famoso professor Custodinho, Custódio Zaqueu Coelho, que eu considero o grande violonista do Maranhão, anterior a[o violonista] Turíbio [Santos], por exemplo, como geração. Era um violonista extraordinário. Cheguei a ter aulas com ele.

A tua escolha por ser músico contou com o apoio da família? De uma parte da família, que me incentivou. Tinham muitos saraus na minha casa. Sistematicamente tinham reuniões de violonistas, de músicos na minha casa, onde o repertório era basicamente choro de violão. Esse meu padrinho era um pintor de paredes, mas era um homem autodidata, de uma intelectualidade muito grande, tinha um conhecimento extraordinário. Ele foi a primeira pessoa que me falou da cultura musical brasileira. Os personagens que ele citava para mim eram Pixinguinha, Ernesto Nazareth, falou de Agustín Barrios quando passou aqui, ele era amigo do pai de Turíbio, que era seresteiro, e frequentava um pouco esse grupo, que a gente chamava os velhos, na época. Nessas reuniões meu padrinho notou meu interesse em ficar ouvindo aquilo. Aí ele perguntou se eu não queria tocar violão e eu disse “quero!” Ele disse “então eu vou te ensinar”, e me ensinou um choro. Eu não comecei por acordes, fazendo assim, ele botou a minha mão e me ensinou um choro chamado Mariazinha [toca trechos ao violão, não sabe dizer a autoria]. Esse choro tem uma peculiaridade formal [fala enquanto continua tocando]: é que ele tem três partes, todas no mesmo tema, ele é uma síntese da forma do choro.

O choro, durante muito tempo, os músicos tocavam por diletantismo. Tinham geralmente outra profissão e tocavam choro nas horas vagas para se divertir e às vezes, como desenvolviam muita capacidade, habilidades, acabam se tornando músicos conhecidos, consagrados, mas não eram profissionais da música. Você é um profissional da música, vive de música, sempre viveu de música?Isso faz diferença? Sim. Faz diferença. Quer dizer, em termos. Se a gente levar em consideração que Jacob do Bandolim era escrivão, César Faria trabalhava numa repartição, há que se levar em consideração aí que há um impulso por detrás desse aparente amadorismo. Quer dizer, eles tinham profissões que lhes davam sustentação, mas grande parte da atividade deles era exercida em torno do choro. A diferença é a seguinte: uma carreira de concertos não é uma carreira convencional, é algo que vive de oportunidades que se inventam, que são criadas. Por exemplo, os concursos de violão são uma forma de atrair a atenção para jovens, têm limite de idade. Eu fui por outro caminho alternativo, me beneficiei da companhia dos meus professores. Depois de um ano que eu estudava com Jodacil Damasceno, ele me tornou assistente dele, eu tive como alunos Dori Caymmi, Guinga, Marlui Miranda, Durval Ferreira, Miltinho do MPB-4. Depois Turíbio me convidou para montar um curso no Rio de Janeiro.

Eu queria que tu contasse um pouco de tua participação em uma banda cover dos Beatles. Tinha a vizinhança próxima com os Saldanha, na Rua de São Pantaleão, Ubiratan Sousa, que gostava muito de choro, foi quem me falou pela primeira vez da bossa nova, me mostrou uns acordes e aprendia comigo a linguagem do choro, aquelas baixarias, que eu era especializado por conta de meu padrinho, que era craque na área. Nessa época surge a televisão por aqui e os irmãos Saldanha, principalmente o mais novo, Nena, falavam bem inglês. E surgiu essa coisa da televisão e todo mundo encantado com a música dos Beatles. Então eles fizeram um conjunto em que eu era apenas o acompanhador. Eu não aparecia no vídeo, e ficava com um violão de cordas de aço poderoso que eu tinha, que parecia uma guitarra, e acompanhava só com esse violão todo mundo. Era Francisco Saldanha, Nena, o Antonio Saldanha, Benedito, que eu não lembro o sobrenome, estudava também no Liceu, Chico Linhares, o Francisco Linhares, que também morava na Rua de São Pantaleão, Edson, também não me lembro o sobrenome e eu acompanhando. Mudou essa formação. Entra Ubiratan nesse conjunto, que muda de nome, de The Five Gems para Os Rebeldes, e ficamos vinculados à televisão, inicialmente através dos programas de Reinaldo Faray. Tava começando a Difusora.

Depois tu ajudaste a fundar a Escola de Música do Estado, que surge no momento em que uma nova geração de artistas começava a produzir com base nas linguagens da cultura popular. E eles tinham a esperança de que a Escola de Música pudesse ser a continuidade de um processo de absorção dessas linguagens, numa escola de identidade mais maranhense? Tinha esse desejo? Como é que era isso na época? A responsável intelectual por todo esse movimento é [a poeta e ex-secretária de Estado da Cultura] Arlete Machado. Foi ela quem concebeu e encomendou o plano da Escola de Música. O que aconteceu foi o seguinte: os primeiros professores, quer dizer, eu vim em 1974, da África, diretamente para cá para São Luís do Maranhão. Criou-se essa escola de música, a primeira diretora é nossa melhor pianista de todos os tempos, Maria José Cassas Gomes, e o resto eram professores que vieram de fora. Era Clemens Hilbert, um alemão que dava cursos de extensão nos seminários de música da ProArte, lá por Teresópolis. Tinha outro professor chamado João Solano, que era um pianista que também estudava relações internacionais, queria ser diplomata. Veio daqui do Ceará um pianista chamado Flávio, não me lembro agora também do sobrenome dele, mas um excelente músico, pianista, e Gilles Lacroix, que chegou a dar aula de música, de teoria musical, tempo em que ele estava se decidindo a largar a batina. Nesse contexto a Escola de Música foi organizada, ali no Apeadouro, e os primeiros candidatos que surgiram, por exemplo, [o compositor] Sérgio Habibe, que trabalhou também um tempo como funcionário lá da escola. Então surgiu [o compositor Giordano] Mochel, Zé Martins, Josias [Sobrinho] e [o compositor] Cesar Teixeira, sempre a gente tendo aquele cuidado de que eu não queria descaracterizar o trabalho deles, mas eles estavam em busca de formação. Eu tinha um discurso de fundamentação. Dizia “até para você fazer bem essas coisas nossas, você precisa de recursos, de técnica”. Sérgio Habibe é um caso flagrante de ter mudado o nível de composição a partir do estudo, ele próprio reconhece isso. Josias Sobrinho foi o meu melhor aluno de harmonia, eu dei um curso pra ele de harmonia aplicada ao violão. Eram alunos dedicados. Eu forneci uma espécie de subsídio pra eles, mas sempre com a recomendação, dizendo “olha, vocês não têm que estudar pra serem músicos eruditos, nem nada, é pra melhorar o que vocês estão querendo fazer”. Naturalmente da parte deles devia haver certas expectativas políticas, por que o movimento pra eles não era só artístico. Pra mim era um movimento artístico, pra eles era político.

Lá no Rio você teve uma convivência com uma nova geração de chorões, com gente da antiga, e você vivenciou o momento de renovação do choro, ali da virada dos anos 70 para os anos 80, convivendo ali com nomes como Paulinho da Viola, com a Luciana [Rabello], com a turma dOs Carioquinhas, Radamés [Gnattali]. Conte um pouco dessa história. Eu passei a ser habitué de todos os saraus que o Jodacil participava. Tinha um amigo nosso chamado Tonzinho, que na realidade é Milton Borges, eu chamava até ele de parente, morava em Niterói, tinha sido amigo pessoal de Jacob, de Six e de Jonas, e através das idas de Six ao Rio de Janeiro nós fomos parar um dia na casa desse Tonzinho e lá ele reunia Abel Ferreira, Copinha, Arthur Moreira Lima passou por ali, Paulinho da Viola, tudo o que era do choro, Ronaldo do Bandolim com os irmãos. O Raphael Rabello, que eu conheci tocando junto com Turíbio, tinha 12 anos, travou logo amizade comigo, tocava, tinha uma formação bem consolidada de música e ele tinha o que eu gostava, tudo em quanto dizia respeito ao choro tava consolidado na cabeça dele, não tinha que aprender nada. Ele era herdeiro de toda a tradição do Dino [Sete Cordas] e do Meira [Jaime Florence], que foi o grande professor dele, professor do Baden [Powell]. O Raphael, um dia assim, disse “olhe, aniversário da Nara Leão, nós vamos lá na casa dela, e eu queria te levar por que eu tenho uma pessoa que eu quero te apresentar”. Aí me apresentou pro Joel [Nascimento], estávamos tocando, quando ele me viu tocar, disse “olha, nós estamos iniciando um trabalho”, não existia esse nome, Camerata [Carioca], isso veio depois, “de tocar uma suíte que o Radamés tá transcrevendo”, acho que nem todos os movimentos ainda estavam transcritos, só tavam os primeiros, “você não gostaria de participar?”, e eu “gostaria”. Marquei um ensaio com eles, acho que na minha casa, e me encantei com o trabalho, aí começamos a montar a Suíte Retratos. A partir dessa nova abordagem com o choro, os saraus começaram a mudar de feição, num determinado momento eles abriam espaço, “vamos ouvir a rapaziada”, e ficavam encantados com aquilo. E aí esse trabalho começou a chamar a atenção, por que a gente começou a montar um espetáculo chamado Tributo a Jacob do Bandolim, foi considerado o melhor espetáculo de 79 no Rio de Janeiro.

Tu tens uma vasta discografia, tocando, integrando a Camerata Carioca, fazendo Valsas e Choros [1979] e Choros do Brasil [1977]… [interrompendo] Com Turíbio eu tenho três discos. Choros do Brasil foi o primeiro, Valsas e Choros, depois tem o Violão Brasil [1980], que a gente fez para um projeto, por que nessa época, disco instrumental dependia também muito desses projetos que eram feitos pra dar brindes de empresas. Por exemplo, eu gravei a obra de Paulinho da Viola [A obra para violão de Paulinho da Viola, 1985], não quisemos nem eu nem Paulinho editar comercialmente, por que sabíamos que os acordos não iam ser bons, apesar de que eu tinha muita consideração com a [gravadora] Kuarup, Mário de Aratanha [idealizador e proprietário da gravadora] praticamente me lançou como produtor, eu ganhei cinco prêmios Sharp como produtor de discos, e editor, fazia aqueles acabamentos todos, tem discos nossos inclusive que ganharam também prêmio na Europa, foram lançados lá pelo Chant du Monde, gravadora que substituiu a Erato francesa. Eu fiz o meu primeiro disco de forma independente em 1977. Logo depois daquela ideia lançada pelo Antonio Adolfo, do disco independente, alguns músicos eruditos descobriram que podiam fazer aquilo. E Jodacil me disse “por quê que tu não faz um disco?” Aí eu decidi fazer também um disco, isso em 1977, concomitante com a ideia do Choros do Brasil, com Turíbio, eu fiz esse disco, sozinho, gravei no estúdio do Museu da Imagem e do Som. O segundo disco [João Pedro Borges Interpreta, 1983] já foi proposta da Kuarup, como eu fiz muitos trabalhos com a Kuarup, Mário disse “olha, a gente tava querendo fazer um disco teu”. Foi um disco dedicado a violonistas espanhóis e clássicos. Depois deste, A obra para violão de Paulinho da Viola, o quarto que eu fiz já foi na França [Clássicos Latino-americanos, 2005]. Eu também nunca me entusiasmei muito com a indústria do disco especificamente, por que eu era muito criterioso, a gente tinha aquele medo de ser explorado, mesmo tendo a compreensão de que um disco não era uma forma de ganhar dinheiro, era uma forma de divulgar o trabalho.

Era o que eu ia perguntar: tem disco com a Camerata, com Paulinho da Viola, com Turíbio, tem disco em que tocas só em uma faixa, casos de Mistura e Manda [de Paulo Moura, 1983] e Shopping Brazil [de Cesar Teixeira, 2004], para citar apenas alguns. O que tu consideraria, ou por razões afetivas ou por razões de importância pra música do Brasil, uma discografia básica de João Pedro Borges? Pro pessoal ir atrás, baixar na internet. Tributo a Jacob do Bandolim [da Camerata Carioca, 1979], sem a menor sombra de dúvida. Por que na realidade eu era um mero componente, eu digo que fui testemunha privilegiada. O Hermínio Bello de Carvalho tinha a seguinte definição: “olha, essa Camerata vai dar certo por que tem o grande arranjador e compositor, tem o grande intérprete e tem o grande ensaiador”, por que eu tinha uma técnica de ensaio que nem Turíbio tem essa técnica, era tudo muito bem organizado, até Radamés eu enquadrava. O [jornalista] Aramis Millarch uma vez, num ensaio, eu discutindo com Radamés, mas discutindo assim numa boa, a gente tinha uma amizade muito grande, mas eu sabia o limite dele, já pela idade, ia até certo ponto, por que ele já queria sair para tomar chopp, comer alguma coisa, ele não tinha muita paciência de ficar ensaiando, como Turíbio também nunca teve, mas o resto do pessoal precisava de ensaio. Aí Radamés dizia “não, agora já tá bom”, e eu dizia, “não senhor, ainda não está bom, ainda tem uma partezinha que nós vamos limpar aqui”. Aí terminava o ensaio e eu dizia, “e aí, Radamés?”, “é, é, ficou melhor”, aí ele dava o braço a torcer.

Soubemos que você anda compondo. Eu fiz arranjos na época, na própria época do Valsas e Choros os arranjos eram assim coletivos, mas sempre prevalecia uma base. Como Turíbio tinha muita confiança em mim, sabia que eu tinha formação, lia música melhor do que todos os outros, eu dava muita colaboração nesse sentido dos nossos discos, assim a parte mais erudita. Agora a parte mais tradicional, mais dentro da linguagem do choro, imagine, com Jonas e Raphael, não dá nem… pelo contrário! Foi uma escola, foram meus mestres, o que aprendi com eles não tá no gibi. Aqui, depois que eu voltei à São Luís do Maranhão, minha amizade com [os poetas José] Chagas e Nauro [Machado], e as reuniões periódicas pra ouvir música, com Arlete [Nogueira da Cruz Machado, poeta, esposa de Nauro], o Chagas começou a me passar umas poesias dele não editadas. Me deu vários cadernos. E olhei aquilo, eu digo “rapaz, isso dá música!”.

Isso é recente? Mais recente, eu sempre tive minha ideia de compor, compor choro, compor valsa, sempre toquei valsas e choros que eu mesmo compus. Tem coisas que eu nem escrevi, que foi embora, Turíbio até brigava comigo por conta disso. Aí comecei a escrever essas canções de Chagas, musiquei dez poesias de Chagas, uma de Nauro e descobri mais recentemente, desse povo novo, que existe por aí, fora dessa geração, pra mim, na minha opinião, a melhor poeta que a gente tem chama-se Aurora da Graça Almeida. Ela me deu um livro, eu preciso dar esse livro pra vocês lerem. Ela me deu um livro e eu descobri coisas assim maravilhosas. Deixa ver se me lembro, sem compromisso [começa a dedilhar o violão]. Chama-se Mágoa. Um homem prevenido vale mais do que dois desprevenidos [abre o case e tira uma folha de papel em que o poema está anotado]. Olha a letra, diz assim [recitando]: “meu coração sem cor e sangue/ maldiz a mágoa renascida do tempo estilhaçado que vivi/ meu coração sem cor e sangue/ esconde a selva oculta do perdão/ esconde as palavras mais belas e fugazes que não disse/ no meu coração de veias seculares/ padece a solidão de antigamente/ maltrata-me a vida retalhada/ maltrata-me não ser o que eu queria/ maltrata-me deixar sem poesia/ os que previram minha dor, minha agonia/ meu coração sem cor e sangue/ repleto de veios de fervor/ resgata a duras penas o sentido/ de ser ao menos navegante nessa vida” [canta, acompanhando-se ao violão; ao final recebe aplausos dos chororrepórteres].

Ficou clara tua percepção sobre o cenário no Brasil, tanto no Rio como em Brasília, que são os dois focos. No Maranhão como é que tu observa a cena choro? Quais os fatos mais importantes, recentes? O choro tá presente desde o século XIX, a própria pesquisa que Maurício [Carrilho] e Luciana fizeram no acervo João Mohana, se identifica, desde quando nasceu no Rio, já existia choro aqui. Mas hoje, o cenário, pra onde aponta? O quê que tá faltando? Olha, o que acontece é o seguinte: eu digo que tem coisas que as brasas podem passar muito tempo só fumegando de leve mas não apaga completamente. Aqui sempre houve esse potencial, que fez surgir os primeiros conjuntos, tipo [o Regional] Tira-Teima, Rabo de Vaca, já com o advento da Escola de Música já surge a ideia do [Instrumental] Pixinguinha, todo mundo sempre com uma estética voltada inicialmente para a inovação. Aqui no Maranhão surgiu a ideia do Clube do Choro, todo mundo aqui foi testemunha do grande impacto que isso causou na sociedade. Eu vejo esse cenário que o choro se diversificou, atraiu o povo da nova geração, a gente vê agora o movimento Madre Deus, o movimento do Clube do Choro. Pra mim o grande impulso foi lá o Chico Canhoto, com o Clube do Choro Recebe, por causa da concepção inteligente, de compreender que o choro é mais do que ele aparenta ser, ele está presente nas coisas todas, está presente na música de Tom Jobim, Caetano Veloso fez choro, Chico Buarque faz choro, Cesar Teixeira. Então essa junção, primeiro da música instrumental com a música cantada, pra quebrar os preconceitos, e segundo, com o componente da música maranhense, foi a boa fórmula. Nós estamos vivendo ainda dos dividendos desse investimento, na minha opinião. Eu acho que está faltando o aspecto didático, ou melhor dizendo, pedagógico da coisa. O choro tem uma vertente de entretenimento, que ele agrada todo mundo, todo mundo vai, tem público sempre, quando a coisa é bem organizada, tem espaço; segundo, isso só não garante a subsistência do choro, os movimentos vão e vêm, as casas comerciais, os estabelecimentos, tem época que é moda aqui, tem época que é moda ali, tem muita oferta na cidade. Por isso que até hoje eu lamento que a ideia da casa lá [uma sede própria] do Clube do Choro não tenha dado certo, por que tinha um projeto social relevante envolvido.

Dessa nova geração tem alguém dos instrumentistas do choro que te enche os olhos, que tu vê como uma boa promessa? Tem. Robertinho [Chinês] eu acho que é um grande talento. Aliás, antes dele se projetar no choro, o pai dele me procurou na época da formação da Escola de Música do Município, quando a gente ainda tava dando aula lá naqueles camarins da [praça] Maria Aragão e o pai dele me procurou, são dois filhos, nem sei o que é feito do irmão. O que eu passei pra ele, na época, foi o seguinte: “olha, você tem que investir em formação. Teus filhos têm talento, mas eles têm que investir na formação, por que o que garante o desenvolvimento do talento, a formação é o adubo do talento, sem formação, sem você correr atrás do fundamento, se fundamentar, desenvolver”. Essa juventude, por exemplo, eles têm uma facilidade técnica pra tocar, mas isso só não garante. Eu vi muito menino prodígio que abandonou a profissão. Por que tem toda uma estruturação que é psicológica, por que na realidade você tá lidando com a própria vida. Às vezes ele pode se desenvolver no instrumento, absorver bem a coisa do choro e ser mais um chorão na cidade, muito bom. Mas é só isso?

Na tua entrevista diversas vezes tu citaste Turíbio. Na tua opinião, quem é Turíbio Santos? Turíbio Santos é o mais importante violonista brasileiro. Pra mim ele é uma espécie também de matriz fundadora. E é facílimo de explicar. Foi o primeiro violonista brasileiro que se destacou internacionalmente, o primeiro que ganhou um concurso que chamou a atenção pra profissão. Se Ronaldinho Gaúcho botou uma porção de meninos pra jogar futebol e querer ser Ronaldinho, Turíbio fez isso com o violão. A importância dele foi pelo seguinte: ele deu o exemplo, ganhou o concurso e projetou uma carreira internacional de respeito; segundo, foi o violonista brasileiro dessa geração mais generoso, montou curso de violão, criou movimentos sociais como ele fez lá com os Villa-Lobinhos, atraindo banqueiros para bancar a carreira de gente, tem gente que tirou a mãe do tráfico, da marginalidade, alugou apartamento, tá vivendo da profissão, toca na noite, estudaram lá graças a ele. O que pode se acrescentar à dimensão de um bom instrumentista é a dimensão social, o que ele faz em benefício dos semelhantes dele. Turíbio criou os dois cursos superiores, tanto na UFRJ como na UniRio. Foi o primeiro camarada que tirou o violonista de seu isolamento, por conta de criar a ideia de Orquestra de Violão, foi o primeiro violonista que pegou João Pernambuco e disse “isso aqui é música de qualidade”. Quer dizer, quem é o camarada que tá por trás de todos esses movimentos? São as ideias que ele gerou.

E a preocupação dele com a memória de Villa-Lobos, também, não é? Com a memória de Villa-Lobos. Que é um reconhecimento, por que Villa-Lobos projetou a carreira dele. A Mindinha Villa-Lobos [viúva de Heitor Villa-Lobos] quando encomendou dele os 12 estudos para violão talvez nem imaginasse a projeção que ia dar, foi o que facilitou a carreira dele lá fora, foi o primeiro violonista a gravar os 12 estudos de violão de Heitor Villa-Lobos.

Você ajudou fundar a Escola de Música, mas ajudou a fundar outras escolas, mostrando uma preocupação sua sempre com o processo de formação pedagógica. Ceuma, depois foi diretor da Escola de Música, fundou a Escola de Música do Município. Fale um pouco dessa tua preocupação com o processo da formação do músico. Eu acho que é uma questão de humanidade. Essa preocupação eu sempre tive. Eu raciocinei a seguinte coisa: se eu não tivesse tido certa ajuda, que me projetasse, que me ajudasse nos momentos em que eu precisei, numa família de 11 filhos, quais seriam as perspectivas que a gente teria aqui? É uma preocupação social, humana, de ver que a música pode ajudar uma pessoa a plantar ideias que podem mudar sua vida. Ela é uma porta de entrada, ela não é a solução pra tudo, mas ela é a porta de entrada. É como se você entrasse num ônibus e esse ônibus começasse a passar por paisagens que você não conhece e você pode nem saltar, mas você diz “olha, se eu quiser ir eu tomo esse ônibus e vou pra ali pra aquele lugar”, eu sempre tive essa preocupação. Quando eu digo que eu vim da África pra ser o primeiro professor, talvez as pessoas não dimensionem o que representou em termos de sacrifício pra mim. O caminho natural era ir pra França, e eu vim pro Maranhão. Uma coisa que eu fiquei consciente ao longo desse tempo: não dá pra fazer agora sacrifícios maiores esperando que as coisas que você constrói sejam mantidas se elas estiverem vinculadas ao processo político. A política é a coisa mais traiçoeira que pode existir na vida, por que uma hora tá, outra hora não tá, outra hora volta, outra hora não volta mais, não tem continuidade, esse é que é o grande problema.

Queria que tu deixasse registrada aquela história gostosa do carrinho de picolé. As lembranças que eu tenho da minha infância, eu vivia muito dentro de casa, por que minha família não me deixava sair muito. Nem pra praça, tinha a Praça da Misericórdia ali, minha mãe dizia que eu tinha que evitar “adjunto”. Antes mesmo de começar a estudar mais seriamente o violão, eu já tava começando, tinha um ouvido assim que apurava, eu gostava de ouvir rádio, meu pai consertava rádios, a gente dormia com aquele barulhinho de rádio, ele ouvia a BBC de Londres, A Voz da América, aquelas coisas, e eu gostava, tinha um rádio em casa, e de tarde, chegava da escola, almoçava, tirava uma sonequinha, e aquele calor danado, ficava esperando a hora do sorvete passar, picolé e sorvete, e tal. Antes era num tipo de carrocinha, que o sujeito abria, aquela coisa toda. E nesse dia, rapaz, um dia quente, eu ligo o rádio e tá tocando essa valsa de Nazareth [Coração que sente], na Rádio Ribamar, que coisa linda, e o cara do sorvete gritou, “sorvete!”, aí eu aumentei o volume pra não perder, e fui correndo, naquele calor, esbaforido, e disse “eu quero um sorvete de baunilha”, e ele disse “você mesmo escolhe, abre aí pra escolher”. Agora, você imagina a sensação de você sair de um calor danado, faz aquele esforço, eu nunca tinha olhado pro lado de dentro [do carrinho de sorvete], que eu abro, vem aquela brisa gelada, com todos os sabores que estavam ali dentro. Ai, que sensação maravilhosa. Peguei o sorvete, volto, continuei ouvindo a música. Passa-se o tempo, cada vez que eu ouço essa música, Coração que sente, Arthur tocando, o quê que vem no meu nariz?, no meu olfato? O cheiro de todos aqueles aromas e pode estar o calor que tiver que vem aquela brisa maravilhosa.