Chorografia do Maranhão: Rui Mário

[O Imparcial, 7 de julho de 2013]

Rui Mário é uma espécie de camisa 10 de nossa música: aos 30 anos é o sanfoneiro preferido de 11 entre 10 artistas maranhenses. Não por acaso é o 10º. entrevistado da Chorografia do Maranhão.

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Rui Mário é uma espécie de camisa 10 de nossa música. O talento de sobra lhe garante vaga em qualquer seleção destas plagas. Sua musicalidade está nos genes: é filho de Raimundo dos Reis Lima, ou simplesmente Seu Raimundinho, e neto de José Reis Lima, ambos sanfoneiros.

Não por acaso o 10º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão, Rui Mário nasceu em Santa Luzia do Tide, em 13 de fevereiro de 1983, e veio para a capital em 1989, por conta das viagens a trabalho do pai, que se dividia entre a música e o trabalho com carnes e linguiças. Aos sete anos começou a tirar sons de uma sanfona e aos 11 a tomar aulas com Eliézio, até hoje uma referência.

Preferido por 11 em cada 10 artistas de nossa música, o filho de dona Maria Mendes Lima, tem quatro irmãos, todos criados ao som de muito choro e forró. “Eu acordava com o som da sanfona de meu pai”, lembra. Aos sábados e domingos, às tardes, Seu Raimundinho organizava um sarau famoso em sua casa, no São Bernardo, no quintal de um pequeno comércio. Certamente o ambiente da infância e adolescência ajudou a moldar a versatilidade de Rui Mário, admirador confesso do pai, um grande exemplo.

Na diminuta temporada junina recente da capital maranhense o músico fez 27 apresentações, entre shows com um trio de forró no Barracão do Forró, Casa do Idoso e Ipam, e como sanfoneiro das bandas de sete artistas: Carlinhos Veloz, Chico Saldanha, Fátima Passarinho, Gerude, Josias Sobrinho, Papete e Ronald Pinheiro.

O pai da pequena Maria Eduarda, 3, conversou com os chororrepórteres no Bar do Léo – que desligou o som para colaborar com a transcrição da entrevista e, aqui e acolá, ouvir a sanfona de Rui ilustrando um pedaço da conversa. Chovia forte em São Luís, o que levou o ensaio para onde o músico seguiria dali, com o cantor e compositor Erasmo Dibell, a ser cancelado. Um caso raro de dedicação ao trabalho, no seu caso, sinônimo de música.

Tua casa sempre foi um ambiente musical? Sempre teve um trio de forró? Com certeza! Eu acordava com o som da sanfona do meu pai tocando e contando histórias do meu avô, que também tocava, que era um bom sanfoneiro, naquela época tocava sanfona de botão. Ele era praticamente o braço direito de meu avô. Onde meu avô tava, ele tava junto, tocando. Então, ele contava muito essa história pra gente, sempre tocando junto, e botava o vinil pra tocar chorinho, Luiz Gonzaga, Dominguinhos, sempre foi isso. A gente o acompanhava, tocando. Eu comecei tocando triângulo. Então era mais ou menos isso, a gente sempre esteve junto ali. Sempre teve um trio. Inclusive tá se formando um agora, que tem dois sobrinhos, que um é sanfoneiro, outro toca zabumba, e já nasceu outro: com certeza vão formar um trio de [forró] pé de serra.

Sempre teve o encorajamento a seguir carreira de músico ou em algum momento teu pai desencorajou por certo preconceito que ainda possa haver contra músicos? Não. Lá em casa, nunca, ninguém… Minha mãe, sim, sempre, “Ó, estudo na frente da música”. Ela incentivava muito a gente, “vai estudar, vai estudar sanfona, vai estudar o teu instrumento”. A gente brincava demais, principalmente eu, então ela sempre pedia, meu pai também, pra que eu estudasse meu instrumento. Na verdade nunca teve ninguém que dissesse “eu acho que esse não é o rumo certo”, sempre foi encorajando mesmo.

Desde pequeno você tinha vontade de aprender sanfona ou durante algum tempo achava que era um instrumento démodé? Como é que foi tua escolha pela sanfona? Foi intuitivo, uma coisa que eu nunca imaginei, nunca pensei que fosse ser. Tocava triângulo, gostava de tocar, acompanhar meu pai, ouvir as músicas, mas nunca pensei nem em pegar no acordeom. Mas um dia eu peguei, e ao mesmo tempo em que peguei derrubei, então já se tornou aquela coisa traumática, “não pegue mais”. Aí eu participei de um grupo pé de serra com um tio meu que tocava sanfona também, Nunes do Acordeom. Lá tinha muita sanfona pequena e tinha um primo que tocava sanfona também, Ronaldo, eu olhava ele tocando e achava bonito, então partiu dali aquela vontade de também querer. Depois de eu ter derrubado a sanfona de meu pai, eu disse “rapaz, essa daqui eu não pego mais”, ele já tinha brigado, não ficou zangado, “olha, tem cuidado!”. Então eu fui lá, na casa do meu tio, comecei a pegar, a sanfona era menor, então mais leve, e comecei aí, meus primeiros acordes.

Com quantos anos? Sete anos, quando eu comecei a dar meus primeiros acordes mesmo, Asa branca [Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira] como sempre, já foi na mente, é a primeira coisa que a gente escuta, a melodia tava na cabeça, e foi na intuição mesmo.

Você nunca seguiu outra profissão, nunca estudou outra coisa, sempre música? Sempre música. A gente nunca teve outra profissão, eu nunca tive, meu irmão, minha irmã, sempre música na nossa cabeça e levando como profissão mesmo.

Isso já responde uma pergunta que a gente faz para todos os entrevistados: você vive de música? Vivo de música. A minha vida toda, tudo o que eu tenho hoje foi a música que me deu.

Quem foram os teus mestres? Teu pai parou para te ensinar? Ele não parou pra me ensinar, tipo “ó, Rui, acorde tal, solo tal”, mas ele parava para me educar musicalmente. Quando eu tocava uma música e fazia alguma coisa errada, ele dizia “não é por aí, a nota é essa, o dedo é esse”, o ensinamento dele foi mais esse. Tenho um irmão mais velho, por parte de pai, que chegou a me ensinar alguns solos, passar algumas coisas, e já com 11 anos comecei a pegar aulas com Eliézio do Acordeom. Passei um ano com ele, meu pai conseguiu falar com ele e pediu que ele me passasse uma coisa a mais.

Vamos fazer um parêntese antes de continuar: pra ti o que significa Eliézio enquanto acordeonista? Pra mim um mestre do acordeom. Um cara incrível que chegava lá em casa e mostrava tudo o que sabia. Uma pessoa por quem tenho admiração, meu pai principalmente. Às vezes ele chegava quatro da manhã lá em casa e a gente tinha que acordar pra recebê-lo. Mas por que isso? Pela admiração que a gente tem por ele, pelo privilégio de tê-lo lá em casa, perto da gente. Meu pai fala que aprendeu muito com ele, só no olhar, só de vê-lo tocando.

Quem conhece Eliézio e te vê tocando percebe traços da sofisticação. É impressionante como a gente percebe aquele requinte que ele tem. Ele foi o cara em que eu me inspirei, me espelhei. Eu sempre busquei isso, sempre quis estar perto dele.

Você teve outros professores? Tive, mas na área harmônica, mais pra parte de teclados, Silvano, Jecivaldo, apesar de ser guitarrista, Israel Dantas, mais a parte teórica.

Você estudou na Escola de Música? Passei um ano lá, mas não deu para conciliar com o trabalho. Fiz um ano com Zezé Alves [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013] e a professora Kátia [Salomão, violoncelista].

Parece um caminho meio natural, quem toca sanfona tocar teclados, piano. Você tem preferência por um instrumento ou por outro? Eu digo que meu grande amor é a sanfona, e a paixão é o piano, devido a harmonia, a delicadeza que o piano tem, o sentimento, que a sanfona também com certeza tem. Minha preferência é o acordeom, foi ali que eu comecei. Se me perguntarem se eu considero sanfoneiro ou pianista, com certeza sanfoneiro.

Como foi o início de tua carreira em São Luís? Você participou de grupos, além do Choro Pungado? Quando pequeno, participei de um grupo chamado Trio Mirim, que era desse meu tio, Nunes do Acordeom. Depois a gente foi crescendo e virou Ronaldo e seus cabra. Teve outro grupo que eu participei, esse já tocando sanfona, antes eu tocava triângulo e cantava, o Pimenta de Cheiro. Daí por diante, meu pai começou a trabalhar com alguns artistas daqui, mas ele não se adaptava, não se sentia bem, e me colocou. Eu comecei praticamente com Gabriel Melônio, aos 13 anos de idade. Depois as pessoas foram vendo, ligando, aí eu comecei a participar de quase todos os shows de artistas daqui.

Hoje tu tens a agenda sempre muito cheia, és o preferido de 11 a cada 10. [Gargalhadas]. Sempre muito cheia, graças a Deus! A gente se empenha, eu me empenho muito pra fazer um bom trabalho.

Além de instrumentista, você desenvolve outras habilidades na música? Como eu montei um home studio, eu tive que me empenhar em arranjar músicas, então eu tou correndo atrás disso, desse lado arranjador. A parte mais difícil da música é essa: ali é sua identidade, sua assinatura. Eu tou estudando pra desenvolver esse lado. O lado compositor ainda não consegui encaixar. Eu acho difícil compor. Qual a área que você vai? Chorinho, forró, baião, jazz. Eu tou buscando o elemento crucial pra poder compor, pra diferenciar, uma linha.

Mas a gente tem ouvido coisas tuas, o Baião de doido [música de Rui Mário gravada pelo Choro Pungado em um disco demonstrativo do grupo]. O Baião de doido eu fiz como tema para abertura de um show do [cantor e compositor] Chico Viola. Então eu fiz aquele início e começou dali, “dá pra terminar”, comecei a desenvolver.

Você se considera um chorão? Não. Eu me considero um admirador do choro. Chorão, eu imagino assim, aquele cara que vivencia, onde tem choro, tem que estar lá, onde está a turma do choro tem que estar junto. Eu não sou desse jeito, eu sou muito caseiro. Eu não me considero chorão por isso.

Um momento muito importante do choro recente aqui no Maranhão é o Choro Pungado. Você se saiu com bastante desenvoltura e competência entre os chorões. Ali foi um tempo muito bom, eu acho que aquela época do Clube do Choro [Recebe] a gente gostava de estar ali, o público prestava atenção. O mais gostoso era isso, você fazia e tinha a resposta do público. A gente se empenhava, estudava.

No Brasil a sanfona, sobretudo depois de Luiz Gonzaga, ficou muito atrelada ao forró, a ritmos nordestinos. A gente conhece um episódio envolvendo o Radamés [Gnattali, maestro e pianista gaúcho] e o Chiquinho [do Acordeom, que depois viria a integrar grupos de Radamés], de início por certo preconceito de Radamés com a sanfona, por não gostar do som do instrumento, por achar que a sanfona não era instrumento de choro, superado depois que ele ouviu Chiquinho tocar. A gente te ouvindo em disco ou em show, percebe que tua sanfona cabe em choro, [bumba meu] boi, rap, no que vier. Você já sofreu algum tipo de preconceito por conta do instrumento? Não. Inclusive eu mesmo já fui um que disse, em determinada ocasião, que achava que a sanfona não cabia ali. Mas o cara por querer, por achar bonito o som do instrumento, insistiu. E tava certo. A sanfona é um instrumento universal, cabe em qualquer tipo de música.

Você já tocou em discos de Cesar Teixeira [compositor, Shopping Brazil, 2004], Josias [Sobrinho, compositor, Dente de ouro, 2005], Lena [Machado, cantora, Samba de minha aldeia, 2010], Gildomar [Marinho, compositor, Olho de boi, 2009], Joãozinho [Ribeiro, compositor, o inédito Milhões de uns, gravado ao vivo no Teatro Arthur Azevedo em novembro de 2012], quer dizer, grandes compositores, grandes intérpretes. O que significa, pra ti, participar destes registros? Ah, eu fico muito satisfeito, por que você trabalha pra ter um espaço e ser reconhecido. Quando pessoas desse nível te chamam para participar de um cd, você percebe que o seu empenho, no seu instrumento, na música, deu certo, você tira por esses chamados. Eu me sinto orgulhoso, fico muito satisfeito.

Tem algum disco preferido entre os que você já participou? Eu gosto muito daquele cd do Cesar Teixeira, gosto muito dos arranjos. Outro cd que eu gosto muito, uma coisa mais moderna, é o da Lena, esse último, arranjado pelo Luiz Jr., bem moderno. São dois cds que eu gosto muito.

Tem algum artista com quem tu gostaria de tocar em show ou disco e ainda não o fez? Tem um artista que esse ano, eu tava correndo atrás, era o Papete. Esse ano eu tive a honra de tocar com ele no São João, e participar do disco dele [Sr. José… de Ribamar e Outras praias, 2013].

Rui, uma vez você recebeu um elogio de Dominguinhos… Ah, isso foi… [emocionado] Eu estive com Josias Sobrinho em Porto Alegre, um festival do Sesc, algo assim, um evento do Sesc, e a gente encontrou lá com Dominguinhos, uma pessoa humilde, conversou com a gente, a gente passou o dia no hotel conversando. Quando foi no dia do show, a gente tocou antes dele, foi quando ele entrou, tocou três, quatro músicas, e ele me anunciou lá: “rapaz, aqui nesse evento tem um pessoal do Maranhão, e tem um sanfoneiro que tá com eles, filho de um amigo meu, Raimundinho, lá do Maranhão, que tá tocando muito bem, e eu vou chamar ele aqui pra tocar uma comigo”. Eu fiquei sem chão. Foi bom demais, lembrei demais do meu pai, queria que meu pai estivesse lá. Foi emocionante.

Qual a importância do choro, na tua opinião? Como você percebe o choro? Qual o papel que o choro cumpre na música brasileira instrumental? O choro, na minha vida, fez e faz parte da minha formação musical. Eu considero o choro um estilo musical que exige muito do instrumentista. Em todos os aspectos, o cara tem que ter muita velocidade, percepção, improviso, então, o choro é a raiz da nossa música brasileira, é o princípio. É um estudo, um aprendizado, uma escola.

Você tem acompanhado o desenvolvimento do choro no Brasil hoje? Percebe diferença nessa nova geração? Com certeza! Uma mudança incrível! Um nível jazzístico, apesar de o choro ser mais antigo, uma praia diferente. Eu aceito isso por que traz novos músicos, pessoas jovens a gostar do choro. Concordo com essa mudança, abrindo mais.

Durante muito tempo o acordeom sofreu preconceitos, como já abordamos. Hoje ele ganhou mais autoestima, mais juventude? Sim, mais juventude. Acho que a tecnologia ajudou muito. Antigamente a gente não via quem tocava, quem tava se destacando. Hoje em dia muitos jovens tão tocando, “poxa, esse cara tá tocando muito”, aí as pessoas se dedicam.

Quem são os grandes nomes do acordeom no Brasil hoje que a gente tem que ouvir? Primeiramente Dominguinhos. Aí Sivuca, Oswaldinho… O engraçado de Oswaldinho, apesar de eu ouvir muito Dominguinhos quando criança, o Dominguinhos mudou a história do choro, ele pegou a linha do choro e passou pro baião, ele criou isso; ele sempre foi muito mais tema, aquela coisa mais elaborada. Oswaldinho fazia o tema, mas no meio da música ele improvisava. Quando eu pegava o vinil para ouvir, era sempre primeiro o Oswaldinho, pra poder escutar o improviso dele.

E dessa nova geração de acordeonistas, quem te chama a atenção? Cesinha, Mestrinho, Chico Chagas. Linhas diferentes. Cesinha e Mestrinho a mesma linha de Dominguinhos, já o Chico Chagas, uma coisa mais clássica, mais pro [Toninho] Ferragutti.

Em que linha tu te encaixarias? Ainda não me achei [gargalhadas]. Eu gosto muito do clássico, eu corro muito atrás disso, talvez por escutar muito Sivuca, mas também amo Dominguinhos, e tento buscar um pouco ali dele. Eu tento mesclar.

E do choro? Escapando do fole? Aponta um nome da antiga e um da nova geração que te faz parar para ouvir com prazer. Ernesto Nazareth. O acordeonista Orlando Silveira, muito bom também. Da nova geração o Hamilton de Holanda, o Trio Madeira Brasil.

E o choro no Maranhão, como é que tu tens observado? Com Hamilton de Holanda, como ele modificou um pouquinho o choro, isso atrai os jovens para essa área, pro choro. Eu acredito que tem crescido, nós temos Robertinho [Chinês, bandolinista e cavaquinhista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013], Wendell [Cosme, bandolinista e cavaquinhista], tem o grupo do Wendell, o Quarteto Cazumbá. Eu acredito que se aqui tiver mais incentivos, vai pra frente.

Como é tua relação com as tecnologias, seja operar softwares no estúdio, seja, por exemplo, e-mails, redes sociais, a internet em geral para divulgar teu trabalho? A tecnologia eu uso mais para trabalho. Eu tento me sair o máximo dessa tecnologia de rede social, de colocar minha imagem para todo mundo ver, eu sempre fico muito apreensivo com isso. É claro que eu uso, eu tenho que usar. Você arruma contratos para trabalhos, eu corro mais atrás disso do que [expor] a minha vida pessoal.

Os músicos em São Luís se ressentem da falta de um palco, depois do Clube do Choro Recebe. Como você enxerga o mercado para o músico em São Luís, sobretudo para quem toca na noite? Acho que cresceu. Antigamente você não via os bares com música ao vivo, inclusive com músicos daqui. Era muito difícil. Apesar de a música não ser “a” música, mas acho que cresceu o mercado pro músico aqui no Maranhão.

Se você tivesse que eleger um músico maranhense? Posso dizer meu pai? Meu pai eu admiro demais. Ele não teve o que a gente tá tendo. Tecnologia realmente. Antigamente era rádio. Tocava uma música uma vez numa rádio e ele já tinha que pegar. Ele não pergunta. Ele aprende ouvindo. É um músico indo e voltando, autodidata, improvisador, é uma coisa dele mesmo.

Além dele, algum outro? [O contrabaixista] Mauro Sérgio, um cara que se destacou nacionalmente, [o violonista] Luiz Jr., Robertinho Chinês e [o guitarrista] Israel Dantas são os caras que eu admiro.

Chorografia do Maranhão: Osmar do Trombone

[O Imparcial, 23 de junho de 2013]

Osmar do Trombone está prestes a lançar seu disco de estreia, gravado em Belo Horizonte/MG. Para o nono entrevistado da série Chorografia do Maranhão, falta apoio para a consolidação da cena choro em São Luís

Osmar do Trombone, o “pequeno gigante”

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Técnico em eletrotécnica, Osmar Ferreira Furtado enverga dois apelidos. Um, o nome artístico, Osmar do Trombone, que ganhou após escolher o instrumento de sopro para chamar de seu; o outro, “pequeno gigante”, que faz jus, primeiro por sua altura física, segundo pelo que se torna quando sopra seu instrumento.

Osmar nasceu em 1º. de junho de 1950 em uma família de músicos. Não à toa, sua composição mais conhecida, inicialmente intitulada Quatro gerações, foi rebatizada Cinco gerações depois de ele descobrir mais um avô que tocava.

Sua mãe, a grajauense Julieta Pereira Furtado, 87, sempre cantou acompanhando seu pai, José Antonio Furtado, 92, ainda hoje soprando “seu saxofonezinho de vez em quando, dentro das limitações”. Osmar não poderia fazer trocadilho com seu sobrenome, portanto não se furtou a herdar-lhes a aptidão musical.

Hoje divide o tempo que sobra de curtir a aposentadoria entre a música e a Pizzaria Lauletas (ex-Stop, Cohab). Acabou de gravar seu disco de estreia em Belo Horizonte, a capital mineira para onde viajou para visitar o filho Osmarzinho, saxofonista que o acompanhou no grupo Os Cinco Companheiros, o grupo de Osmar que toma emprestado nome de clássico de Pixinguinha.

O nono entrevistado da série Chorografia do Maranhão recebeu os chororrepórteres no restaurante que Chico Canhoto mantém – embora sem espaço para um retorno do Clube do Choro Recebe – nas imediações do Aririzal. Ele nasceu em Barro Vermelho, à época povoado de Cajari, quando a cidade ainda pertencia à Penalva. É lá que se inicia a trajetória de Osmar, abordada nesta entrevista, que se inicia justo por sua vinda para a capital.

Então se empregaria aquela frase que dá título à música de Josias [Sobrinho, compositor], você veio de Cajari pra capital? Também, né? Primeiro de Cajari pra Pindaré, e de Pindaré pra capital.

Teve escala, né? Teve escala. Em Pindaré city [risos].

Como era o universo musical, em casa, na tua cidade? Quando tu começaste a se envolver com música? Que tipos de estímulos recebia? Tu nasce no meio musical, tu já fica… [chora. Continua depois de uma longa pausa] Tu já fica contagiado. Aí papai começou a me ensinar música com oito anos de idade. Tinha a bandinha, lá tinha banda, eu fui tocar aquela trompinha, o apelido do instrumento na banda era cachorra, a cachorrinha, aquela de marcação, de contraponto, fazia “pom, pom” [imita o som do instrumento com a boca]. Todo dobrado, valsa, tudo era no contraponto. Aí eu toquei na banda, a gente viajava pra várias cidades, Penalva, Pindaré Mirim…

Tu gostavas? Ah, adorava. Sempre no meio dos músicos. Isso por muitos anos. Até 14 anos, nós morávamos em Cajari, quando papai recebeu uma proposta de Pindaré, de um amigo dele, um cara que é conhecidíssimo lá, o Chico Devora, era festeiro, aquele cara que aparecia, que só andava de linho branco, dançando, era o pé de valsa da cidade, todo elegante. Ele convidou papai. “Cajari não dá, o meio musical da cidade, vam’bora pra uma cidadezinha mais adiantada”. Aí papai disse “eu vou”. Mas quem influenciou mesmo foi mamãe: “nós temos que ir, Zé Furtado, ele está convidando, lá a gente vai…” Aí mudamos pra Pindaré em 1964. Só que em Pindaré eu fiquei só de junho a dezembro. Foi quando minha mãe fez uma carta para minha irmã que morava aqui em São Luís e disse que não queria os filhos dela lá no interior, que iam ficar só pescando, que aquilo não era vida. Mamãe já tinha uma visão de crescer, que os filhos fossem alguém na vida, que viessem pra São Luís estudar. Aí eu vim, peguei aquela lanchinha lá, tradicional, de Pindaré, passando por Cajari, Viana, fazia escala, Penalva e São Luís. Passava dois, três dias viajando. Cheguei em 64, fui morar no pensionato com minha irmã e aquela vontade de estudar na escola. Fiz exame de admissão, passei.

Em que escola? Na Escola Técnica Federal do Maranhão, na época. O sonho era tocar na banda da escola. Na época era o… o nome dele eu não recordo, mas era conhecido como o velho Dó, o maestro. Logo depois foi o João Carlos Nazaré [maestro, pai da cantora Alcione], o nosso mestre.

Além de teu pai, quais foram teus principais mestres? Quem mais te orientou na formação musical? Importante na minha formação foi João Carlos Nazaré e mestre Nonato [do grupo Nonato e Seu Conjunto]. Além de meu pai foram estes dois músicos, estes dois maestros, que me orientaram. Depois que eu saí da escola, e mesmo quando eu estava lá, já trabalhando, fui bancário, antes de ir pra Cemar [Companhia Energética do Maranhão], eu já era convidado pra tocar em vários grupos de música. Toquei na Banda Reprise, Banda O Peso, Banda Reluz, Mákina du Tempo, e outras. Nessa época não tinha a influência do choro aqui em São Luís, a não ser aqueles velhos chorões. Eu não tava no meio musical, mas já ouvia falar, [o multi-instrumentista] Zé Hemetério tocava choro, Agnaldo Sete Cordas [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 17 de março de 2013]. Quando eu já estava tocando no Barrica, aí eu encontrei [o violonista sete cordas Gordo] Elinaldo, e comecei a despertar para o choro, comecei a curtir. Peguei um vinil do grupo Chapéu de Palha, no qual [o trombonista] Zé da Velha tocava. Silvério [Pontes, trompetista], acho que tava molequinho ainda. Eles tocando sambas bonitos. Tem um chapéu na capa, acho que ainda tenho o vinil. O choro mesmo chegou pra mim depois que eu larguei o Boi Barrica, ainda toquei em alguns grupos de bumba meu boi, foi o tempo que me aposentei da Cemar, aí eu gostei mais de choro.

Nestes grupos que você citou eram tocadas mais músicas de baile, não é? Sim, músicas de baile. Mas também samba, muito samba, gafieira.

E na tua experiência anterior, ainda lá na baixada, Cajari, Pindaré? Ah, tocava muito com meu pai. Tocava sambas, maxixe, bolero, tudo na festa de meu pai. Cheguei a tocar até tuba. Quando faltava o contrabaixista, ele: “meu filho…”, ele ficava com pena. O instrumento era muito grande, eu apoiava num tijolo, nove quilos e meio.

E como é que se deu a escolha do trombone? A partir do quê você definiu que era seu instrumento? O trombone, tudo é assim: você focar. É tipo torcer por um time. É tipo o cara quando nasce e vai crescendo, o pai diz “meu filho, torce pelo Flamengo”…

Não dá certo! [risosMas só que eu torci pelo Flamengo. O filho disse; “não, eu não quero torcer pelo Fluminense, eu quero é pelo Flamengo” [o anfitrião Chico Canhoto acompanha a entrevista vestido numa camisa do tricolor carioca]. Então o instrumento, quando eu olhei uns alunos de meu avô, Antonio Cacete, Lupércio, eu achava a sonoridade muito grande. Meu pai foi um grande trombonista.

Teu pai tocou trombone? Ave Maria! O primeiro instrumento de meu pai na orquestra de meu avô foi o cavaquinho. Depois ele gostou, tocou trombone. Então meu pai era um instrumentista que quando dizia assim “faltou trompete”. Aí meu avô dizia assim: “Zeca, dá pra ti tocar trompete?” Aí ele ia lá e tocava trompete. “Dá pra ti tocar não sei o quê?”. Então ele saía tocando tudo. Tocou trompete e hoje toca sax, ainda, dentro das limitações. Aí eu comecei a ouvir a sonoridade. Quando eu cheguei na Escola Técnica, eu já tocava. O trombone de vara não era muito comum. Mandaram buscar quatro trombones de vara. Tocava eu, João Carlos Filho [filho de João Carlos Nazaré], Zé Américo [Bastos] tocava bombardino.

Você já viveu de música? Nunca! A música fazia a feira, comprava a cervejinha.

Tu estás aposentado da Cemar? Sim, aposentado da Cemar.

No trombone, quem é tua grande referência? Hoje existem grandes trombonistas, mas minha referência é o Raul de Barros. Quando eu o ouvi tocar Na Glória [de Ary dos Santos, Felipe Tedesco e Raul de Barros], eu pensei: “esse é o cara! Isto é o choro!”, aquela sonoridade linda do Raul. Hoje tem o Vittor Santos, o próprio Zé da Velha. Zé da Velha superou todo mundo, com aqueles contrapontos.

Como está o processo de gravação de teu disco? Graças a Deus terminamos. Está concluindo a mixagem. Osmarzinho [saxofonista, filho de Osmar] me ligou essa semana, minha sobrinha está fazendo a arte da capa. Tem que ter muito cuidado pra fazer a coisa. Sempre o segundo sai melhor, mas o primeiro a gente tem que dar uma caprichada pra sair legal.

É um disco solo? Solo.

Autoral? Autoral.

Todo autoral? Não, só cinco músicas.

E as demais? Uma de Antonio Vieira, O samba é bom, a de Josias é Terra de Noel, a de Joãozinho Ribeiro é Saiba, rapaz, e as duas de Cesar, eu não poderia deixar Cesar Teixeira de fora, Das cinzas à paixão e Rayban.

Todo instrumental? Todo instrumental. Eu sou suspeito pra falar, mas tá uma maravilha. Os músicos lá, não que a minha cidade não tenha grandes músicos, mas foi a oportunidade que me deram pra gravar isso, sem custos, sem patrocínio.

Sonho realizado? Sonho realizado. Tive um grande carinho dos músicos, professores da UFMG. [O trombonista] Marcos Flávio, um dos melhores do Brasil, um cara que tem referência internacional, que já tocou com [o trombonista] Raul de Sousa, com grandes músicos fora do país, gravou com uma simplicidade. Tranquilo! É professor de Osmarzinho em uma cadeira lá de chorinho. Ele me ouvia, cara. E me dizia: “Osmar, todo músico é bom naquilo que ele faz. Eu já ouvi tu tocar, tu é um talento nato”, ele falou pra mim. Não tem como não se emocionar.

Na entrevista anterior Zezé Alves [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013] comentou a felicidade de saber que tu tinhas gravado o disco em Minas. Parece que foi por acaso, já que tu foste à Minas visitar um filho, não gravar um disco. Como é que foi esse processo? Osmarzinho foi em algumas rodas de choro. Toda vez que ele ia numa roda de choro, ele dizia “papai vem aí, papai toca trombone”. Tem um dia que acontece, que dá tudo certo, aí eu viajei pra Belo Horizonte. Geralmente no Bar Mosteiro, que fica na Savassi, lá em Belo Horizonte, é o point, é o point do choro, é a elite do choro de Belo Horizonte. É só músico bom, só músico talentoso! Osmarzinho disse assim: “papai, eu vou lhe levar primeiro lá no Mosteiro, depois eu te levo no Salomão, no Pastel de Angu, no Bolão”, e eu “tudo bem”. Quando eu entrei, já com trombone e tudo, que a galera olhou, rapaz, tem um pandeirista superengraçado, fora de série, ele levantou a cabeça e disse assim “pode tirar logo, que eu já sei que é pai de Osmarzinho”. Aí eu disse pra Osmarzinho, “e se eu não tocasse? Eu tava ferrado” [risos]. Uma coisa que eu achei muito legal é que o músico que toca em roda de choro é impecável. Uma vez Silvério me falou isso: “Osmar, a música não é brincadeira. A brincadeira tá no meio da música. Mas quando você tá tocando, tem que ter responsabilidade pra tocar certo, fazer tudo pra tocar tudo certinho”. Eu fiquei maravilhado com aquilo que ele me disse. Eu fui sentir lá em Belo Horizonte a capacidade da execução dos músicos. Quando eles perguntaram que música eu ia tocar, eu perguntei qual a música eles queriam que eu tocasse. Altamente sugestivo [risos], sugesta na manha. Mas eu sabia que eu poderia dizer que tava brincando, mas disse “olha, eu vou tocar o hino do trombone”. Eles perguntaram qual era, e eu disse “olha, na minha concepção é Na Glória, é uma música que eu acho que todo chorão tem que saber tocar, e vou tocar um choro que eu compus, chamado Cinco gerações [Osmar do Trombone]”. A paixão pelo choro foi instantânea. Os amigos do choro, tem uma turma lá, que é carteirinha, toda sexta-feira, juízes, advogados, engenheiros, profissionais liberais, aquela galera, alguns que já trabalharam em São Luís, perguntando como estão as praias, “ah, estão ótimas, poluídas, mas estão boas” [risos]. Eu toquei outras músicas, vários choros.

Você listou uma série de grupos de que já participou, mas não falamos ainda de grupos de choro. O que significaram pra ti? A pessoa quando tem na alma a música, qualquer música, soando bem em seus ouvidos, você toca, gosta de tocar. O choro, eu não sei por que, já há uns anos eu me identifico mais com choro e samba, é uma linguagem fantástica, aquela malícia, aquela malandragem da melodia, aquelas armadilhas, aquelas coisas que só a música pode falar por si. Os Cinco Companheiros tem mais de oito anos, foi no bar de meu amigo Chico Canhoto que teve a repercussão de grandes grupos de choro aqui de São Luís, e a gente fica muito feliz de participar, de ter a música na vida da gente, de ter a música como um elemento da vida da gente.

Tu tens quantas composições? Gravada, escrita, tem cinco. Mas já tenho outros seis choros prontos para passar para partitura. E eu pretendo fazer o próximo cd só com músicas minhas. Essas cinco que já estão no primeiro mais essas seis novas, que já estão praticamente prontas, faltando alguns acertos de melodia, algumas notinhas que ficam o tempo todo querendo mudança.

Quanto tempo você demorou para dar o disco por pronto? Olha [pensativo]… em novembro de 2011 a ideia, mas começou mesmo em maio de 2012, então tá com um ano. Sempre com cuidado.

Isso envolveu várias viagens. Cada viagem era uma história. Uma história de conhecer outros grupos, outras rodas de choro.

Dentro do que depende só de ti, tu pretendes colocá-lo na rua, fazer um show de lançamento em São Luís, quando? Depois que o cd estiver pronto eu quero convidar o meu amigo Ricarte para ser o intermediador dessa ideia de fazer um show de lançamento. Ele que tem muita experiência nisso aí, eu quero que ele me mostre o caminho. “Olha, fica melhor por aqui, em ambiente tal”, eu sou todo ouvidos. Foi a primeira pessoa em que eu pensei.

Mas tua ideia é fazer isso quando? O cd estará pronto agora, fim de junho, começo de julho. Eu gostaria de fazer em agosto, por que em setembro já está agendado para eu fazer lançamento em três casas de choro lá em Belo Horizonte: o Bar Mosteiro, o Pedacinho do Céu e o Salomão.

Além deste disco tu tens participação em outros discos? Tem. Na Companhia Barrica, participei de uns dois discos. Participei do cd dOs Foliões, Antonio Vieira ao vivo no Teatro Arthur Azevedo [O samba é bom, 2001], Vagabundos do Jegue, o cd do Fuzarca [grupo carnavalesco que reúne os cantores Cláudio Pinheiro, Inácio Pinheiro, Fátima Passarinho e Rosa Reis], o de Isaac Barros, Cabeh [o póstumo Esquina da solidão].

Você falou que despertou para o choro um pouco depois. O que significa o choro, pra ti, hoje? Ave Maria! É a música! O choro é a música! Não tem outra música. Aprendo muito tocando choro, a cada dia tu tem um ensinamento diferente, é um acorde, é uma maneira, um improviso.

Você gosta de tocar com essa geração mais nova? Adoro! Tem uma galera aí muito legal. Em São Luís, eu não sei, é meu ponto de vista, eu não sei se é falta de formação, de mostrar que choro é uma música legal, tem muita gente nova que não está tocando choro. Por exemplo, Daniel Miranda, que é trombonista do Quinteto de Metais, eu digo “Daniel, tu tem uma sonoridade legal, aprende a tocar choro”, ele não toca. Tocou uma vez, tu lembra, que um quarteto de trombones tocou o Tororoma [Saudades do Tororoma, música de Osmar do Trombone que homenageia um riacho de sua região de origem] lá no Clube do Choro Recebe?

Você ainda participa de algum grupo de choro em São Luís? Só free lance, quando me chamam eu toco.

E Os Cinco Companheiros? Os Cinco Companheiros toca de vez em quando. O problema maior é que não tem onde se tocar, não tem uma casa fixa. Todos os componentes dOs Cinco Companheiros tocam em outros grupos.

Você está vindo de Belo Horizonte, onde pode sentir a efervescência da cena, várias casas, vários grupos, e viveu também a experiência do Clube do Choro Recebe, no Chico Canhoto. A gente via, naqueles três anos em que o projeto existiu, um público cativo. Por que esse público não vai para outras casas, ver outras apresentações, de outros projetos? Eu acredito que pela inconstância. Deixaram de acreditar. Eles acreditavam tanto naquele projeto no Chico Canhoto, que aquilo ali era como se ir pra igreja todo domingo, rezar, já sabiam que sábado tinha. Eu encontro pessoas, “rapaz, era tão bom, por quê que acabou aquilo?” Um dia arrumaremos outra casa.

Como tu tens observado a cena choro, o desenvolvimento do choro no Brasil hoje? Tem muitos grupos no Brasil hoje tocando muito choro. Pode acessar a internet aí que tu vê. Nos Sescs, cada instrumentista fantástico. Tem muita coisa boa. Aqui tem grandes músicos.

Quais os chorões que tu mais gostas, que mais te tocam? Pra te ser sincero, Zé da Velha e Silvério Pontes, musicais, alegres. Tenho cds de [o clarinetista] Paulo Moura, que tá lá no outro andar, grande instrumentista, Yamandu [Costa, violonista sete cordas] tem um cd de samba e choro do Paulo Moura com o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, o Cliff Korman [Gafieira Jazz, 2006]. Aquilo ali é uma maravilha, cara!

E no Maranhão, quem é que te enche os ouvidos? Tem uma pessoa aqui em São Luís, que já tocou comigo em vários grupos, que tocou no Osmarmanjos comigo em São João e Carnaval, e participou também de roda de choro, que é Daniel Cavalcante, toca trompete. Juca é excelente cavaquinhista, o [cavaquinhista] Rafael Guterres, [o violonista] João Soeiro, tem o Domingos Santos, o sete cordas, Solano [o violonista sete cordas Francisco Solano, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 26 de maio de 2013] é maravilhoso tocando aquele sete cordas dele, parece que ele tá é navegando, não tá tocando. Serrinha de Almeida [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013] é um cara supertalentoso, concentrado, não é aquele músico de muita firula. Na última comemoração do Dia do Choro [23 de abril de 2013, na Associação Atlética Banco do Brasil, Serra de Almeida foi homenageado em evento anual que reúne diversos chorões de São Luís] eu achei fantástica, impecável a apresentação de Serrinha. [O flautista] João Neto é um excelente músico. Então, pra não ser indelicado com alguns que eu não lembre, aqui tem muitos músicos, estamos bem servidos. Falta é apoio, principalmente dos poderes maiores, culturais, que nós não temos. A sede do Clube do Choro ficou só no papo de político, ninguém fez nada por aquilo.

Com tudo isso que você fala, é possível prever um bom futuro para o choro no Maranhão? Como tou te falando: só se tiver apoio. Eu não digo nem do poder público, mas da iniciativa privada. Vamos investir, vamos patrocinar o músico.

Mas você não acha que falta iniciativa dos músicos, perceberem a capacidade de gerar essa movimentação? Sim, tem essa carência, essa falta de pulso, de chegar e tomar a frente da coisa. A inviabilidade, às vezes, é até pela forma de retorno financeiro. Tem muita gente que vai tocar choro, vai numa roda de choro, e não tem retorno. A cidade não tem grandes empreendimentos para você ter um salário digno. O músico, geralmente, se ele viver só de música, já é precário. Faltam políticas públicas, oportunidades, incentivos. O músico pode se mexer, mas ele tem que ter pra onde se mexer.

Chorografia do Maranhão: Zezé Alves

[O Imparcial, 9 de junho de 2013. Cá no blogue um tantinho maior

Oitavo entrevistado da série Chorografia do Maranhão, Zezé da Flauta tornou-se Zezé Alves e investe na formação para a continuidade da cena.

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Estavam enganados os que pensavam que uma cirurgia cardíaca diminuiu a atividade e/ou a intensidade musical de Zezé Alves: ele apenas mudou o foco, trocando os palcos pelas salas de aula. Trocando, não, que o professor já dava aulas enquanto o artista apresentava-se nos bares e bailes da vida.

É o próprio músico, nascido no Maracanã, em São Luís, em 8 de dezembro de 1955, “dia de Nossa Senhora da Conceição”, ele emenda à data, quem faz a distinção entre o Zezé Alves de hoje e o Zezé da Flauta de outrora. Filho do paraibano José Alves da Nóbrega e da doméstica Inês Alves da Costa, ele chegou a morar em Bacabal, onde lembra de ter ouvido choro pela primeira vez na vida, ainda criança: “Palito, mestre Palito, José de Brito, que era dono de um conjunto em Bacabal. Saxofonista, dono do Brito Som Seis. Chegou a ser um dos maiores do nordeste. Era meu vizinho, morava de frente a minha casa. Eu saía, chegava na porta, ele estava tocando Saxofone, por que choras? [de Ratinho].

Sua mãe “fazia aqueles reisadinhos, aqueles autos, tocava cabaça, gostava muito de cantar, talvez esta seja a origem familiar”, afirma, sobre sua musicalidade. “Sempre fui muito musical”, continua. “Quando comecei, criança, eu cantava, eu era cantor, cantava Waldick Soriano. Talvez a coisa da minha musicalidade seja a seguinte, tem uma história muito interessante. Quando eu era criança eu era muito fraquinho das pernas, cheguei a ir a médicos, tomar remédios, pra ficar mais forte. E tinha um rádio e eu ficava sentado debaixo desse radio, num caixotezinho, um banquinho, um tamborete, ouvindo todas as músicas do rádio da época, da década de 1950, virando pra 60, Orlando Silva, Waldick Soriano, eu repetia todas essas músicas”, começa a contar antes mesmo da primeira pergunta.

Além de flauta, Zezé toca violão, para compor e estudar harmonia. Depois de ter ajudado a formar muitos músicos que hoje tomam conta da cena local, o professor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo considera-se uma espécie de “Bota pra Moer”, apelido de Antonio Lima, folclórico personagem ludovicense que carregou uma bandeira numa passeata contra o governador Eugênio Barros, em 1951. “Até aqui eu vim, mas daqui pra frente arranjem outro que seja mais doido do que eu”, teria afirmado, conforme relata Lopes Bogéa no raro Pedras da Rua (1988).

Zezé Alves recebeu os chororrepórteres em casa. Isto é, na Sala Leny Cotrim Nagy, na EMEM, a mesma que serviu de cenário para uma das fotografias do encarte de Choros Maranhenses, disco de estreia do Instrumental Pixinguinha. Estudantes de música em aula em duas salas contíguas garantiram a boa trilha sonora da conversa.

Além de músico, qual a tua outra profissão? Eu fui criado por outra família e essa família não queria que eu fosse músico, pois o pai desse pai que me criou não se deu bem, era saxofonista. Eles não queriam, eu tive que sair de casa. Eu comecei a tocar, tocar mesmo, com 22 anos já. Mas eu só vivia cantando. Na realidade me formei em contabilidade, sou contador, técnico em contabilidade. A outra profissão seria essa, por que eu trabalhei com meu pai por muito tempo num comércio, eu sei muito de comércio.

Você exerceu a profissão? Não, não exerci a contabilidade. Mas trabalhei junto no escritório dele muito tempo, ajudava nessa área. Aqueles irmãos do Six [o cavaquinhista Francisco de Assis Carvalho da Silva] eu conheci todos do Banco do Brasil por que eu ia pagar as duplicatas do comércio do meu pai e os via lá.

Quando tu falas que começaste a tocar com 22 anos, isso tu falas profissionalmente? É, por que eu cantava, eu já arranhava um violãozinho, tocava Eu só quero um xodó [de Dominguinhos e Anastácia, sucesso na voz de Gilberto Gil], tocava flauta doce, pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo [repete enfatizando]. Quando chega em 77, em 76 eu saí de casa, em 77 é que aí eu digo que é o meu marco: eu participei de um show chamado Boca do Lobo, de [o compositor] Sérgio Habibe. Esse show foi o primeiro com características de show, com banda, com [o violonista] Joaquim Santos, [o compositor] Ronald Pinheiro, e eu na flauta começando. Por que na realidade, meu professor de música, meu primeiro mestre de música, é o Sérgio Habibe, é meu mestre mesmo! Quando [o violonista] João Pedro [Borges, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] volta à São Luís, em 97, eu já o conhecia, ele de certa forma passou a ser o meu mestre, me convidou para trabalhar no Musiceuma junto com ele, aí foi que eu comecei a reforçar mais a ideia de ser educador musical. Ele reforçou isso. Eu comecei essa carreira, de 77 pra cá, comecei no show dele [de Sérgio Habibe], ele trouxe uma flauta do Rio de Janeiro, daqui a pouco eu tava tocando com todo mundo. Eu é que fui o “Bota pra Moer”, até enquanto surgiu o [flautista João] Neto, Paulinho, Lee Fan. O que eu quero agora é a função de educador. Até por que eu gosto de ensinar, sempre gostei de ensinar, eu ficava dando aula em mesa de bar [risos].

Se tu pudesses citar três músicos que foram bem influentes pra ti, do começo até agora… Palito foi o primeiro cara que eu ouvi tocar. Mas, claro: Sérgio Habibe, Chico Maranhão e João Pedro Borges. Por que Chico Maranhão também influenciou muito na minha vida, estive em São Paulo, acompanhando-o no Lances de Agora [1978]. As pessoas às vezes dizem [imita um cochicho] “ah, por que Chico Maranhão é um cara chato” [volta ao tom normal], quem é amigo dele não acha. Eu sou amigo dele, de ele ligar “vem comer aqui um tabule comigo”.

Esses três nomes que tu citaste, de João Neto, Lee Fan e Paulinho, seriam os nomes de destaque, na flauta, hoje, no Maranhão? Sim, sim. A gente não pode negar o Serra [de Almeida, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013], o grande Serra, pelo tempo, pela história dele, aquela qualidade que ele tem de tocar, lembrando Copinha, lembrando Carrilho, inclusive o Sérgio me disse isso uma vez, “Zezé presta atenção, toca igualzinho”.

Você vive de música? Vivo de música como professor de música. Sou funcionário do Estado e hoje, depois de uma pós-graduação, estou professor substituto na UEMA. Como instrumentista, o que eu ganhava era pra pagar a passagem no outro dia e tomar uma e tal. Então, sobrevivo de música, como professor, dou aulas particulares.

Tu tens uma preocupação muito grande com o registro da obra de chorões, seja no disco [Choros Maranhenses, de 2006] do Instrumental Pixinguinha, seja no Caderno de Partituras [2012]. A gente percebe que o registro ainda é uma fraqueza, mesmo com todas as tecnologias hoje disponíveis. A que tu creditas essa pobreza de registro? O pouco registro se deve a certo descaso nosso mesmo. Nós admiramos muito o que é dos outros, muita besteira. Se você ver pessoas como Cleômenes [Teixeira, compositor], Tomaz de Aquino, eram grandes professores, saxofonistas, mas não houve nenhum registro. As condições técnicas não havia, agora é que estão surgindo gravadoras com nível, mas na década de 70 não havia onde, edição de partituras era raridade. Agora é que a Escola de Música vai ter um banco de partituras, quer dizer, quase 40 anos depois [da fundação da EMEM]. O Rabo de Vaca foi um grupo que eu sempre disse que é uma escola, muita gente passou por ele: Ronald Pinheiro, [o compositor] Josias Sobrinho, [o compositor] Beto Pereira, [o contrabaixista] Mauro Travincas, todo mundo passou, mas tem pouco registro. Josias deve ter uns k7s. A gente não ligava para registrar, não havia recursos tecnológicos, nem apoio.

O Rabo de Vaca foi importante para o desenvolvimento da música do Maranhão. De que outros grupos você participou? O mais importante foi o Rabo de Vaca. O Rabo de Vaca é a cabeça de Josias. Ele tinha saído do Laborarte e eu entro no Laborarte, era muito amigo de Nelson Brito [ator e diretor teatral, ex-diretor do Laborarte], que trabalhava numa loja de discos de um tio dele, tava todo mundo debandando, e havia um departamento de artes, eu entrei, o período em que fiquei no Laborarte, Josias saiu, mas o [a peça] Cavaleiro do Destino ainda estava sendo encenado. Eu entrei para tocar violão nas peças. Em outubro [de 77] o Aldo Leite monta uma peça chamada Os Saltimbancos, e se não me engano, foi o segundo lugar em que foi feito com músicos ao vivo. No Rio de Janeiro era feito com músicos, depois no Maranhão. Nos outros lugares era playback. Na do Maranhão o Aldo Leite convidou Josias, “monta um grupo”, e se fez ao vivo. Josias convidou Beto Pereira, Mauro Travincas, acho que [o percussionista] Manoel Pacífico e Vitório Marinho, um cara que pouca gente fala, um moço cego que tocava violino. A gente tinha público. Foi um grupo muito importante para a música maranhense. Depois disso, Beto Pereira fez um grupo para tocar música maranhense em barzinhos, tocou muito, o Amor de Canela, era eu, [o percussionista] Carbrasa, Mauro, [o percussionista] Jeca e Beto, o banda líder [aportuguesa o band leader]. E no Maçaroca [1986], disco dele, ele gravou uma música nossa [Campo Cidade, parceria de Zezé Alves e Paulinho Lopes]. Depois teve outro grupo, eu, Omar Cutrim, Fazendo Mel, que era uma música dele…

E o [Instrumental] Pixinguinha? Aí sim, aí é que vem o Pixinguinha. A gente já era professor da Escola de Música, eu, Marcelo [Moreira, violonista], [o bandolinista] Raimundo Luiz, quando [Francisco] Padilha chegou, começou a ser diretor da Escola, teve essa ideia, junto com Marcelo, que era carioca, a escola precisava criar um núcleo de música popular, criaram a Big Band junto com Tomaz e Marcelo encabeçou, de certa forma, a criação de um grupo de choro. Por que um grupo de choro? Por que é a nossa música, com raiz no samba. Por que Instrumental Pixinguinha? Por que foi o maior arranjador e não sei o quê e não sei o quê. O Instrumental Pixinguinha vingou, tocamos em muitos lugares, fez um trabalho belíssimo, aquele cd, Choros Maranhenses, pioneiro, que esse caderno [aponta para o Caderno de Partituras] é uma continuidade dele, aqueles dez choros e mais alguns. Pra não falar dos compositores que eu acompanhei. Com [o cantor, compositor e violonista] Chico Nô e Lazico [o percussionista Lázaro Pereira] a gente teve um trio chamado Trio Tom, tocávamos Bossa Nova, é outro grupo de que participei. Toquei muito no Cacuriá de Dona Teté. De início era só caixa, depois tiveram a ideia de botar flauta, depois eu fiquei tocando, viajei o Brasil todo por conta do Cacuriá de Teté.

E atualmente? Atualmente eu sou titular, fundador do Pixinguinha. Emérito [risos]. Atualmente o que eu quero mesmo é essa coisa de educador musical.

Quando tu começaste a dar aulas na Escola de Música? Essa coisa da Escola de Música é interessante. Teve um governo, na época da Olga Mohana, ela foi ao Rio de Janeiro, e alguém escolheu para ela, uma porção de professores. Estes professores moravam no Seminário Santo Antonio, ela era irmã do padre João Mohana. Os caras ganhavam uma grana, na época coisa de 10 salários mínimos. Nós tivemos Watanabe, grande violinista, Emanoel Martinez, hoje regente do coral de Curitiba, Mércia Pinto, Cidinho Ornelas, então foi um naipe incrível. De repente foi todo mundo embora. Dessa leva o cara que ficou e hoje é uma figura importante é o Marcelo Moreira. Quando Padilha chega, pegou os alunos mais avançados e transformou em professores. Era eu, Raimundo Luiz e alguns outros.

Uma das críticas recorrentes à Escola de Música é a erudição, o distanciamento da pulsação de São Luís, uma coisa mais de cultura popular. Isso parece que vem sendo equacionado nos últimos anos. Vem sim. A Escola, quando ela foi lançada, na época da professora Olga, ela foi pensada nesses moldes, de formar músicos de orquestra. Ela era meio mãe, e dizia “tu vai estudar viola e tu vai estudar piano”, ela era quem dizia. Por um bom tempo ela ficou nisso, ficou nessa insistência. A primeira aluna formada aqui, grande pianista, com [o então governador do estado] João Castelo entregando diploma e tudo, foi a professora Rosimary Fontoura. Hoje em dia se forma muito aluno na área popular, violonista, baterista, cavaquinhista. Quando chega a música popular na escola, que é quando a direção chama Jayr [Torres] pra dar aula de guitarra, Diógenes pra dar aula de contrabaixo, Jeca chegou a dar aula de percussão, abriu concurso, hoje em dia Rogério Leitão é professor de bateria da casa. Essa vertente, chamada núcleo de música popular, ainda hoje em formação, com isso a escola se tornou uma coisa mais popular, encheu. O Jayr Torres faz toda sexta uma coisa chamada Sexta Musical, Sexta Jazz, enche. 90% dos alunos da escola são evangélicos. Isso mudou, se não a escola estaria do mesmo jeito.

Tu tocaste em alguns discos importantes, como Lances de Agora, Pedra de Cantaria [disco coletivo gravado em Belém, reunindo diversos compositores maranhenses, entre eles Chico Maranhão, Josias Sobrinho e Giordano Mochel], Maçaroca, Choros Maranhenses. Eu queria que tu lembrasses outros discos que têm tua flauta. O de Fátima [Passarinho, Voos, 2007] eu fiz uma flauta lá. Com Joãozinho Ribeiro eu participei daqueles shows do Samba da Minha Terra [temporada de 18 shows em bairros ludovicenses produzida por Vanessa Serra] e agora da gravação do Milhões de Uns [estreia de Joãozinho Ribeiro em disco, gravado ao vivo no Teatro Arthur Azevedo, a ser lançado em breve], em que ele gravou uma parceria nossa [a música Rua Grande, interpretada por Lena Machado]. De Sérgio eu nunca toquei em nenhum disco dele, ele gravava quase tudo no Rio. Fiz pontas em outros.

O que é o choro pra ti? Que importância tem para a música feita no Brasil? A visão que eu tenho é a que todo mundo tem: o choro como raiz dessa música popular urbana. Tem essa história toda que vocês já conhecem, da década de 30 pra cá, com Noel Rosa, com Pixinguinha. Como raiz dessa música, a mistura do batuque com a música que veio com o colonizador europeu, que criou a escola nacional, tocaram juntos com os músicos que vieram nas caravelas, e daí, teve o momento de renascimento, a partir do momento em que os caras vão estudar em Berkeley, depois a chegada da Odete Ernst Dias, que é uma mãe de todos os flautistas. O choro, a importância dele é inconfundível, inegável. Tem que estudar o choro para compreender a música brasileira. Aquela máxima de que tudo é choro, de repente vale, tudo é choro, tudo é baião. Luiz Gonzaga quando chegou no Rio, chegou tocando choro. Aliás, Gonzaga é nosso primeiro músico pop.

Como tu observas o choro hoje? Já está começando a se universalizar. Já está tendo outras influências, já estão fazendo choros mais modernos. Se você pegar o [violonista] Guinga, já faz choros mais elaborados, com a influência do jazz – Influência do Jazz [Carlos Lyra] é o nome de uma música da bossa nova [risos] – ele não tá parado, ele tá evoluindo. A pessoa hoje em dia já não estuda choro só pra tocar choro como antigamente. Ele está enriquecendo. O cara pega, estuda, vai atrás, vai fazer uma boa música.

Que nomes tu destacarias nessa cena? Gostei muito do [saxofonista] Eduardo Neves. Alguns que eu nunca mais ouvi falar, mas são muito interessantes, o [saxofonista] Zé Nogueira, o [saxofonista Mauro] Senise, assim, que eu conheço mais. Atualmente, que eu conheço, o Guinga, que a gente pode considerar um cara do choro. Tem aqueles já mais tradicionais, [o trombonista] Zé da Velha, [o trompetista] Silvério Pontes. É tanta gente que não dá para dizer um ou dois só, tem muita gente fazendo choro.

Tu disseste que tua obra como compositor é pequena. Saberias precisar em números? Quantas composições? Ah, poucas. Por que na realidade eu fiz esse choro, Candiru [parceria com Omar Cutrim gravada em Choros Maranhenses], tenho duas músicas só, mais, assim. O resto tudo tá no baú, eu toco quando me lembro. Choro é só essa. O resto são baladas, são músicas seis por oito. Com Paulinho Lopes eu tenho umas coisas que nunca foram gravadas.

Independentemente de compor choro, tu te consideras um chorão? [Pensativo, demora a responder] Não. Não. Essa resposta é meio doída, mas eu não me considero um chorão, não. Por que eu me interessei pelo choro quando foi criado esse grupo que eu tive que aprender a tocar, a mergulhar. Por que com o Rabo de Vaca eu tocava era os bois da gente, os baiões, frevo, xote, xaxado. Quando era criança, o primeiro cara que eu ouvi tocando Saxofone, por que choras?, mestre Palito, todos aqueles discos de Pixinguinha, Altamiro Carrilho na banda do Palhaço Carequinha, tudo aquilo eu ouvia.

Como tu observas o atual momento do choro no Maranhão? O choro no Maranhão, se for pegar na raiz, a gente tem sempre os antigos, por que eles tocavam choro mesmo, todo mundo tocava, tocou-se muito choro. Se você pegar, todo mundo, Cleômenes, Palito, seu Raimundo Amaral. Aqui em São Luís, a referência que eu tenho é o [Regional] Tira Teima, é Ubiratan [Sousa, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013], Paulo Trabulsi. O Pixinguinha foi o segundo grupo. Depois do Tira Teima e do Pixinguinha, não demorou muito, o Pixinguinha reinou um pouco, aí começaram a surgir, por exemplo, o Chorando Callado, com Tiaguinho [o saxofonista e clarinetista Tiago Souza], hoje tem Wendell [Cosme, bandolinista e cavaquinhista], que tá um figura, indo gravar em Brasília, São Paulo, tem esse menino do bandolim, o Robertinho Chinês [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013], tem o João Eudes, os filhos de Osmar, tem Osmar [do Trombone], que eu fico muito feliz por ele, foi visitar o filho, os colegas adoraram, ele virou estrela, está gravando o disco lá em Minas. Quer dizer, continua aquela coisa, Clube do Choro sem sede, o povo se reunindo aqui, aqui, ali, mas tem uma geração boa tocando. Meus alunos, quando eu falo, dou o caderno pra todo mundo, “ah, tocar choro” e tal. Tá todo mundo tocando choro.

Nesse processo de pesquisa para o Caderno de Partituras, quais foram as principais dificuldades? Não houve muitas dificuldades. As 10 partituras do disco eu já tinha. Minha ideia foi recolher mais uma de cada. Eu editei, fui nos autores pra corrigir. Escolhi algumas que achava muito importantes. Cesar Teixeira não podia deixar de ter. Algumas partituras eu escrevi, mas a maioria os autores já me deram.

Quem são os teus compositores preferidos da música popular no Maranhão? Aí vão entrar as paixões. A ordem é aquela mesminha: Sérgio Habibe é um cara maravilhoso, o Chico, Josias, tem um cara que eu tenho lembrado muito dele agora, por causa dessa história do Bandeira de Aço, que é o Mochel. Cesar Teixeira inegavelmente, tem características muito próprias, de samba, tem aquela consciência política dele muito forte. É um cara muito especial.

Quais os teus próximos projetos no campo da música? Me aprofundar mais. Fazer um mestrado, se der. Aprofundar.

Qual é a diferença entre o Zezé da Flauta e o Zezé Alves? O Zezé da Flauta surgiu a partir do momento em que eu peguei uma flauta e comecei a tocar em shows, com todo mundo. É a história do “Bota pra Moer”, eu chegava e o pessoal, “olha Zezé!”, e eu onde chegava tirava, e tocava, de graça, toquei muito, tava aprendendo, toquei muito romanticamente. Esse é o Zezé da Flauta. O Zezé Alves é o educador, que começa a racionalizar mais as coisas. Todos dois são legais [risos]. As pessoas me chamam de Zezé da Flauta, gente que me reencontra depois de não sei quantos anos. As pessoas que me conhecem hoje já me chamam de Zezé Alves.

Essa distinção entre um Zezé e outro tem a ver com o consumo de álcool? Não. Por que Zezé Alves ainda bebeu pra poxa [risos]. Todo mundo que passa por essa cirurgia do coração muda muito. Eu acho que é por que o cara vai lá e volta [risos]. Mas não tem a ver não.

Você vê algum futuro para o choro no Maranhão? Não só para o choro. Teu programa [o Chorinhos e Chorões que Ricarte Almeida Santos apresenta aos domingos, às 9h, na Rádio Universidade FM, 106,9MHz], uma iniciativa como a do Alê Muniz, lembrar os 35 anos de um disco [o show em que o projeto BR-135 homenageou o Bandeira de Aço no Teatro Arthur Azevedo]. A música do Maranhão precisa se organizar. Elizeu Cardoso, Bruno Batista, há uma moçada nova muito boa, são mais organizados. A gente era mais romântico.

Tu hoje estás mais concentrado na função de professor. Mas o que te tiraria de casa para um palco ou um estúdio? O convite de grandes amigos, participar de um projeto interessante, com minha turma. Mas mesmo para pessoas de hoje eu não me nego. É só me ligar e marcar que eu vou.

Chorografia do Maranhão: Francisco Solano

[O Imparcial, 26 de maio de 2013

Sete cordas do Tira Teima é o sétimo entrevistado de Chorografia do Maranhão: acaso ou destino?

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Francisco Solano Rodrigues Neto nasceu em 1º. de fevereiro de 1953, no centro de São Luís do Maranhão, filho do bioquímico José de Ribamar Nina Rodrigues, falecido, e de Helena Simões Rodrigues, prendas domésticas. Aprendeu a tocar violão ainda criança, por influência do pai, que gostava de tocar em casa e sonhava montar um conjunto com os filhos, para confraternizações caseiras, sem quaisquer pretensões profissionais. Os dois – ele e o pai – chegaram a ser colegas de aula na Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo.

Técnico em equipamento médico, hoje empresário do ramo, Solano é músico por hobby, como ele mesmo afirma. Não sabe precisar a data em que passou a integrar o Tira Teima, mais antigo grupamento de choro do Maranhão em atividade, atualmente às voltas com a gravação de seu primeiro disco.

Atual presidente do Clube do Choro do Maranhão e titular do violão sete cordas do Tira Teima, o músico recebeu a equipe de O Imparcial/ Chorografia do Maranhão no terraço do Brisamar Hotel (Ponta d’Areia), palco do regional às sextas-feiras. A dança dos coqueiros ao vento e o vai e vem da maré fizeram parte da paisagem perfeita para a conversa, descontraída, regada a cerveja e camarões empanados. Era uma noite de terça-feira de clima agradável em São Luís.

Apesar da agenda musical intensa – com o Tira Teima Solano toca ainda às quintas-feiras no Barulhinho Bom (Lagoa) e aos sábados no Restaurante Tai (Calhau) – o músico confessou sua saudade do projeto Clube do Choro Recebe.

Como era teu universo musical familiar? Quem mais te influenciou em casa? Em casa foi meu pai. Ele tocava violão e começou a me ensinar um pouquinho, eu pegava o violão dele. Depois ele começou a tocar flauta, e a gente tocava choro, eu no violão, ele na flauta. Em casa! Fora de casa ele não tocava em lugar nenhum. Antes de eu sair pra tocar fora, de procurar aprender, foi essa minha realidade, só em casa. Ele gostava muito de [o flautista] Altamiro [Carrilho]; e no violão, de Dilermando [Reis]. Ele estudou na Escola de Música [do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo], nós estudamos juntos. Nós saímos quando o [ex-diretor da EMEM e ex-secretário de Estado de Cultura do Maranhão Francisco] Padilha resolveu colocar uma prova para ver em que lugar cada um estava. Por que tinha gente que estava no último período e não sabia nada, e tinha gente que estava no começo e sabia muito. Eu estava no terceiro ano, fizeram a prova e não deixaram eu voltar mais [risos].

Altamiro e Dilermando eram os preferidos dele. Era de quem ele mais comprava discos? De choro ele comprava tudo o que encontrasse, mas também gostava muito de samba, de jazz, tinha de tudo, música internacional e nacional, era música boa [risos].

Tua escolha pelo violão se deve a quê? Meu pai queria que nós tocássemos. Queria que a gente fizesse um grupo. Então ele incentivou meu irmão a tocar violão, ele ia tocar flauta e me incentivou a tocar acordeom. Aí ele comprou pra mim uma sanfona de 120 baixos, eu tinha 10 anos de idade. Contratou um professor ali no fundo do [extinto cinema] Eden [hoje loja Marisa, na Rua Grande], e eu morava na rua de Santana no fundo da [extinta loja de departamentos] Lobras. Pra eu carregar esse acordeom até a casa do professor eu acabei com a caixa, arrastando. E não aprendi nada [risos]. Resultado: larguei o acordeom, meu irmão não quis saber do violão e eu peguei o violão.

Até então seis cordas? Seis cordas, Del Vecchio.

Tinhas mais ou menos que idade? 10 anos, 11 anos… Não houve nenhuma evolução disso aí. Casei, larguei tudo, e fui retomar o violão, já com mais de 30 anos, 33 anos. Foi uma viagem que fiz ao Rio de Janeiro e lá eu conheci o Élcio do Bandolim, e ele me levou para assistir a um ensaio deles. Aí eu me invoquei pelo [violão de] sete cordas.

Teu pai tinha vontade de que vocês tocassem, isso na década de 1960. Não havia aquela preocupação com o estereótipo do músico? Boêmio, vagabundo, o preconceito da época? Tinha. Ele gostava, considerava que a coisa da música a gente levasse a sério, mas sem pensar em profissionalismo. Se desse, tudo bem. Mas a música como um motivo para a gente confraternizar, a finalidade que ele imaginava era essa.

Além de teu pai, quem foram os teus principais mestres no aprendizado do violão? Marcelo [Moreira, violonista, professor da EMEM; Solano se confunde com as datas em que tomou aulas com ele, inicialmente chutando a década de 70], anos 90.

Depois daquela viagem ao Rio? Sim. Foi em 1983 a viagem.

O fato principal de tua retomada à música foi essa viagem ao Rio?Brenha Neto tinha muita amizade com Raul [do Cavaco], com [o percussionista] Mascote. Eles se encontravam todo sábado, eles chamam de Navio, [um bar] ali perto do Nhozinho Santos. Eles começaram a me levar e isso mexeu comigo. Aprendi muita coisa ali. Eu conheci Raul lá. Eu tinha uma viagem para o Rio e ele pediu que eu levasse o cavaquinho dele para consertar. Era um Do Souto, eu nem sabia o que era isso. Levei, fui lá na Bandolim de Ouro [famosa luteria carioca], e conheci o Élcio. Aí é que foi a história!

Você nunca viveu exclusivamente de música? Pra te ser sincero, a única coisa que eu fiz com recurso de música foi comprar um violão. Eu fui convidado por Juca [do Cavaco] e [o cantor e percussionista] Zé Costa pra fundar o [grupo] Amigos do Samba. Nós estávamos ensaiando nessa época na minha firma, eu, [o bandolinista] Jansen, [o percussionista] Carbrasa, querendo fazer um trabalho. E Juca apareceu, querendo fundar, eles tinham saído do [grupo] Sambando na Praia. Eu resolvi aceitar. Eu disse: “olha, eu tenho um projeto aqui, que é de comprar um violão “João Batista”. Eu vou tocar até pagar meu violão, no dia que eu pagar, acaba”. Foi um ano certinho [risos], a gente tocando no Caneco [choperia na Rua do Norte, centro, hoje dedicada às serestas de teclado], samba. Aqui e acolá tinha um choro.

Tu estás no [Regional] Tira Teima desde quando? Não tenho a data assim bem definida. Eu comecei no Tira Teima por que Gordo [Elinaldo] sempre foi muito ocupado. Ele que era o violão do Tira Teima [antes de Solano], e ele arranjava os contratos e não ia. Aí ligava pra mim: “Solano, vai lá!”. Aí eu ia, quando estava pra terminar, ele chegava. Mas o violão era ele. Essa situação, nas reuniões ele não estava, aí o pessoal resolveu me assumir [risos]. Ele mesmo abandonou, muito trabalho, Boi Barrica, viagens. Não ficou definida a minha entrada na história.

Você conviveu com [o compositor e instrumentista] Zé Hemetério? Quem era ele? É um de nossos maiores nomes do choro do Maranhão? Convivi. Eu mesmo posso dizer que aprendi muita coisa com ele. Foi um dos maiores músicos que conheci. Era profissional de música. Tocava violino com uma técnica apurada, veio da Baixada [maranhense], estudou com os padres. Era um músico completo, lia partitura, tocava violino. Instrumento de corda ele tocava tudo: bandolim, violino, cavaquinho, violão… É realmente uma grande referência! E principalmente às pessoas a quem ele passou conhecimento. Gordo foi um discípulo de Zé Hemetério. Eles tinham um repertório monstruoso, tudo ensaiadinho.

Qual a outra grande referência para vocês, dessa geração, dos anos 70 pra cá? [Os violonistas] João Pedro [Borges, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013], Joaquim Santos. A Escola de Música pra mim foi muito importante pelos encontros. A gente tinha muita oportunidade de trocar, de conversar. Foi muito importante, pra me trazer o que é a coisa do meio da música. Outra referência muito importante é o Tira Teima. O próprio Gordo, Paulo Trabulsi. O que eu consegui desenvolver com a minha pouca tendência musical eu devo muito ao Tira Teima, muito a Zeca [do Cavaco], muito a Paulo, Gordo. Essa troca, sem ser aquela coisa de sala de aula, a vivência. Isso pra mim foi a minha consolidação.

Tu consideras a roda de choro uma grande escola? Eu acho que é a maior. A escola do choro é a roda. Você pode ir para escola de música desenvolver técnica, mas a escola do choro é a roda, não tem outro caminho. É você sentar e o músico jogar o choro na tua cara e tu ir atrás. O choro nasceu assim e só tem valor se for assim, no meu entender.

Tu estavas na gravação do Tributo a Zé Hemetério [música de Gordo Elinaldo registrada pelo Tira Teima no disco Na palma da mão, estreia do grupo Serrinha & Cia]. Comente um pouco do clima. Eu estava fazendo seis cordas e Gordo sete. Ali eu vi uma coisa que eu já sabia de Gordo, o talento dele, a sensibilidade para dirigir em estúdio. Fiquei impressionado com a competência, era uma experiência que eu não sabia que ele tinha, dirigindo até os cantores.

De que outros grupos musicais tu fizeste parte? O [Instrumental] Pixinguinha foi o primeiro grupo que nós criamos. Fomos nós quem fundamos: eu, Jansen, Marcelo, aí nós convidamos [o violonista] Domingos [Santos] para fazer seis cordas. Nós fizemos um espetáculo tocando a Suíte Retratos [de Radamés Gnattali]. Antes disso nós fizemos o programa de Gabriel Melônio no canal 2, Teclas e cordas. Gravamos Estrela [de Joãozinho Ribeiro] num disco de Rosa Reis. Depois disso acabou o Pixinguinha, deixamos de ensaiar [o grupo existe hoje, com outra formação].

Além do de Serrinha, com o Tira Teima, e o de Rosa, com o Pixinguinha, tu participaste da gravação de outros discos? Toquei em quatro faixas do Memória [Música do Maranhão, 1997]. Botei violão no disco [Esquina da solidão] do Cabeh [Carlos Alberto de Sá Barros], que foi o primeiro diretor da Rádio Universidade FM. Ele deixou só a voz guia, morreu antes do disco ficar pronto. Botei violão em algumas faixas desse, ele queria que eu tocasse em todas, mas achei melhor não, e gravei também num outro disco dele.

Na entrevista anterior da série, Ubiratan Sousa [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013] revelou estar em São Luís para trabalhar no disco de estreia do Tira Teima. Como está esse processo? Nós estamos pleiteando recursos, projeto. A intenção inicial era fazer um disco caseiro, até mesmo buscar um estúdio só para ter qualidade, mas fazer uma coisa nossa mesmo. O próprio Ubiratan conversando com Paulo sugeriu que a gente fosse atrás dos recursos.

Além de instrumentista você desenvolve alguma outra habilidade na música? Tive uma experiência de arranjador naquele show do Pixinguinha.

E composição? Uma música, por acaso o primeiro nome dela era Lembrando Élcio, que eu fiz baseado numa harmonia que ele me ensinou no Rio. Depois eu fiz duas partes e mudou o nome para Companheiro e Paulo fez uma terceira parte. É um choro que vai estar no disco [do Tira Teima].

O repertório dessa estreia do Tira Teima será autoral ou a regravação de clássicos? A nossa ideia é gravar nossas músicas. Há possibilidade de a gente ir buscar alguma coisa fora. Paulo tem três, fora essa que a gente tem em parceria, Serra [de Almeida, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013] tem quatro. A gente quer tocar alguma coisa de Cesar Teixeira, mas tudo música maranhense.

Qual a formação atual do Tira Teima? Hoje é eu, Zé Carlos [percussão], Paulo [cavaquinho], Zeca [cavaquinho e voz] e o João [Neto] tá fazendo a flauta. [O flautista] Serra está um pouco afastado, às vezes por problemas de saúde, cansaço. Mas a gente faz questão que ele participe do disco, embora ele não esteja tocando direto com a gente.

Como tu estás observando o movimento do choro no Brasil hoje? No Rio deu uma esfriada. Em São Paulo deu uma crescida. Brasília, acho que continua a mesma coisa, muita gente nova estudando, muita coisa que motiva. Em São Paulo há uma disputa entre os músicos, muito jovem tocando. É incrível, tudo lotado. É realmente impressionante. Eu acho que aqui deu uma melhorada agora, ultimamente. A gente mede por nós mesmos, mas a frequência de público é muito pouca. Eu acho que a gente tem que falar da época do Clube do Choro Recebe, realmente ali foi o auge. Nossa experiência hoje é lembrar daquilo. Com relação à meninada, aos que tocam choro hoje, devem àquela época.

Mas essa melhorada de que tu falas é na época do Clube do Choro Recebe [2007-2010] ou herança do projeto? O Clube do Choro, não só o Clube do Choro Recebe, desde a época que era na [Associação do Pessoal da] Caixa, estimulou muita coisa. Meninos novinhos tocando, da Escola de Música. Houve um estímulo. Você vai estudar um estilo de música pra fazer o quê com ela? A gente criou um palco, as pessoas podiam tocar, choro começou a dar dinheiro. Essa meninada que toca hoje, esses meninos que tocam muito, como [o cavaquinhista e bandolinista] Robertinho [ChinêsChorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013], [o violonista sete cordas] João Eudes, João Neto, todos se estimularam muito com aquelas apresentações do Clube do Choro Recebe. Era um palco disputado, as pessoas tinham um cachezinho. Então eu acho que isso foi um negócio marcante para a situação atual do choro no Maranhão. Nós estamos numa entressafra, embora eu acredite que estejamos próximos de uma virada.

Qual o principal sete cordas da história chorística brasileira? E qual a grande referência pra ti, hoje, em vida? Pra mim a grande referência foi uma pessoa que eu tive o prazer de conversar, de ele me dizer muita coisa, que foi Dino. O Dino é a grande referência para o sete cordas. Eu acho que só existe sete cordas por causa dele, a forma de tocar sete cordas foi criação dele. Vivo nós vamos ter que dividir as coisas. Eu estive semana passada com Carlinhos, que é o luthier que recuperou esse violão, e ele me disse, “Solano, a gente fabricava 100 violões seis cordas para fabricar um sete cordas. Hoje em dia ninguém quer seis cordas”. Todo mundo vai pro sete. Meninos que estão estudando violão clássico estudam no sete cordas. Faz tudo o que o seis faz e mais alguma coisa. Tem meninos novos aí que eu gosto muito: Gian Correa, de São Paulo, o Rogério Caetano, uma monstruosidade, Zé Barbeiro, Luiz Filipe [de Lima], maravilhoso, o Carlinhos [Sete Cordas], que é mais pra samba. Se a gente for olhar, hoje, eu acho que o violão mais tocado no Brasil é o sete cordas. Pra onde você vai tem um tocando, e muita gente muito boa.

Além de trazer essa nova geração, de criar um palco para os chorões do Maranhão, que outra coisa importante tu observaste no Clube do Choro Recebe, em quase três anos de atividades? Foi um dos movimentos mais importantes musicalmente falando, com a grata satisfação de ser o estilo que eu gosto. Aquilo ali foi um negócio muito sério! A gente não podia ter deixado aquilo… a gente tinha que ter dado um jeito de continuar.

Que instrumentistas tu observas que merecem destaque do Maranhão? Eu vou ter que começar com minha casa: Serra, Paulo Trabulsi, esse tem espaço em qualquer lugar, eu conheço pouca gente que conhece choro como Paulo. Juca, eu adoro tocar com ele, é uma festa, a gente sai de lá alegre. A gente tem que falar de Robertinho, [o cavaquinhista e bandolinista] Wendell [Cosme] é muito bom. Tá enveredando por fora do choro, mas é um grande instrumentista. João Eudes é muito bom, tem futuro, já dominou o instrumento, é uma questão de evolução, de crescer. [O sanfoneiro] Rui Mário pra mim é um dos melhores, toca qualquer coisa.

O que tu achas que falta para o choro do Maranhão? A princípio falta a gente retomar o Clube do Choro Recebe, reabrir o Clube do Choro, retomar nossos projetos. Isso é o primordial. Estou terminando de regularizar a documentação [do Clube do Choro], a gente precisa retomar as nossas reuniões, para que surjam as ideias, debatermos e retomarmos essa situação.

Consolidar uma cena aqui passa necessariamente pela gravação de discos. Na criação do Clube do Choro, no estatuto, uma das coisas principais, é o Clube do Choro como selo musical. É um negócio interessante, se aproveitar essa situação, pegar toda essa moçada que está produzindo, dar uma orientada. Nós temos gente com experiência. Um dos melhores trabalhos, foi um marco, o disco Memória, mostrou a capacidade de João Pedro Borges [direção musical e arranjos], um trabalho totalmente isento, ele não quis nem tocar. Uma coisa que a gente poderia fazer, que é feito no Clube do Choro de Brasília, é gravar os shows, gravar tudo o que acontece no palco.

Tu fazes música por esporte. Dentro do que tu pretendes, tu te consideras um cara realizado? Não.

O que falta? Eu tenho um conceito: a pessoa que gosta de qualquer tipo de arte e se considera realizado é o que já morreu. Eu tou sempre insatisfeito com o que eu tou fazendo.

Chorografia do Maranhão: Ubiratan Sousa

[O Imparcial, 12 de maio de 2013]

Fundador do Regional Tira-Teima e autor de mais de 700 composições, Ubiratan Sousa participou de capítulos definitivos da música do Maranhão

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

“O Maranhão é o estado do Brasil que mais bate palma para quem vem de fora e mais renega o seu talento. Aqui não se dá valor para o artista da terra”, afirma Ubiratan Sousa, que revela não ter nenhum tipo de mágoa ou ódio, embora seja um crítico ferrenho da mídia. Cantor, compositor, arranjador, regente e multi-instrumentista, o maranhense nascido na Rua das Hortas, no centro de São Luís, está radicado em São Paulo desde o início da década de 1980, quando atendeu à recomendação de Dércio Marques.

“Ubiratan, tu não podes ficar aqui. Tu tens que ir pra São Paulo”, disse-lhe o menestrel mineiro, em cujo Fulejo (1983), Ubiratan chegaria a tocar e arranjar. Namorada do cangaço (Cesar Teixeira), naquele disco, é dedicada a Chico Maranhão. “Um grande talento, esquecido no Maranhão, como tantos outros bons que temos”, lamenta o sexto entrevistado da série Chorografia do Maranhão.

Tendo tocado e feito arranjos em Lances de Agora (1978) e Fonte Nova (1980), ele cita Chico Maranhão como “um dos maiores letristas do país”. “De letra, é o nosso melhor”, afirma; “somando música e letra, é Mochel”, com quem tocou e para quem escreveu arranjos em Boqueirão (1994).

Ubiratan Campos de Sousa nasceu em 11 de setembro de 1947, filho de José de Ribamar Guimarães de Sousa, comerciário comerciante falecido, e Vinólia Campos de Sousa, doméstica do lar. “Ambos cantavam, meu pai cantava muito bem, minha mãe canta muito até hoje, 90 anos de idade, muito lúcida, uma dádiva, um presente de Deus”, afirma o artista que trocou uma promissora carreira de professor universitário pela música. “Foi um chamado. Passei alguns anos de fome em São Paulo, mas não desisti”, revela ele, que desde então vive de música. “Hoje estou muito bem, graças a Deus”.

Discos fundamentais da música do Maranhão têm as digitais de Ubiratan Sousa, a exemplo dos já citados Lances de Agora e Fonte Nova, de Chico Maranhão, ambos lançados pela Discos Marcus Pereira, Boqueirão, de Mochel, o homônimo de Célia Maria (2001), Pregoeiros (1988), de Antonio Vieira e Lopes Bogéa, Cristóvão Alô Brasil (1999), que reúne parte da obra do sambista madredivino Cristóvão Colombo da Silva, Visitação (2012), de Biné do Banjo, Velhos Moleques (1985), que reuniu Agostinho Reis, Antonio Vieira, Cristóvão Alô Brasil e Lopes Bogéa, e a estreia de Chico Saldanha (1988), além dos primeiros discos do Bicho Terra (Guizos, 1984) e Boizinho Barrica (O Boizinho Barrica, 1982; Baiante, 1983; Barrica, brincadeira de rua, 1984; e Barrica, Bumba Brasil, 1985). Entre seus discos destacam-se Tempo Certo (1984), Rosa Amor (1987), Choro de Pássaros (1990), Capital do Boi (1994), A Alegria do Boi Bunininho (1996) e Bruxaria (2003)

Ubiratan Sousa conversou com O Imparcial/ Chorografia do Maranhão no ECI Museum, na rua 14 de Julho, Praia Grande, ao lado da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo. A chororreportagem aproveitou a passagem do músico pela Ilha, que ele visita para trabalhar no projeto do sonhado, aguardado e, nunca é tarde, primeiro disco do Regional Tira-Teima. Era uma tarde chuviscosa em São Luís e um reggae tocado em alto volume, oriundo da vizinhança, entrava pelas janelas do segundo andar da edificação.

Além de músico qual a tua outra profissão? Eu prefiro me concentrar na música. Eu trilhei outro caminho, mas quando a gente coloca o outro lado, as pessoas minimizam, eu prefiro dizer que sou músico. Honrado, vivo de música, eu prefiro dizer isso.

Mas tu chegaste a dar aula no curso de Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão. É, fiz, formei, dei aula na área de psiquiatria, mas eu prefiro esquecer esse lado, vamos concentrar na música. A música é o meu mundo.

Qual era o universo musical da tua infância, em casa, o que tu ouvias, que estímulos recebia? Aos 14, 15 anos, meu irmão, Sousa Neto, poeta, parceiro, saudoso, faleceu ano passado, ele me colocou um violão na mão. Foi aquela paixão. Com esse violão eu fui estudando, fui desenvolvendo e fui buscando outros instrumentos, cavaquinho, contrabaixo. E o ambiente em casa era música, meu pai cantava, minha mãe, principalmente, cantava. Depois nós fomos buscando amigos, como João Pedro Borges, que morava ali na Rua de Santaninha, na época eu já estava na Rua de São Pantaleão, e fomos trocando ideias, informações, ele caminhando mais para o lado erudito, e eu, um pouco de erudito, mas cambando para a parte de música popular, e trocamos informações.

Quem foram os teus mestres do violão? Na verdade eu fiz um caminho como o que Hermeto Pascoal fez: do autodidatismo. Eu não tive propriamente nenhum professor. A única coisa que eu tive na formação foi um curso com Ian Guest, que é um papa. 80% da classe artística brasileira, dos compositores, passou por ele. Ele deu um curso aqui em São Luís e eu me destaquei muito nesse curso, ele me deu o diploma por antecipação. Eu sou uma pessoa que observo. Algumas coisas observei de João Pedro, Turíbio [Santos], Jodacil [Damasceno], mas nunca tive assim um cara que me desse aula; eu sempre pesquisei, fui um autodidata.

Com quantos anos tu consideraste que tocava? Ah, eu evoluí rapidamente. Acho que com dois anos eu já estava preparado e comecei a dar aula. Eu dei aula para uma geração aqui, acho que 80% dos colegas passou pelas minhas mãos. Ensinei, acredito, mais de duas mil pessoas, entre profissionais, muito menos, e pessoas que têm outra profissão, tocam por diletantismo, ensinei muita gente, tanto aulas particulares como na Escola de Música. Lecionei muito.

Observando fichas técnicas de vários discos que tu produziste, que tu tocou, a gente vê teu nome fazendo várias coisas, tocando violão, percussão, cavaquinho, contrabaixo. Não quero dizer que o violão não bastava, mas o que te levou a buscar outros instrumentos? A musicalidade dentro de mim sempre foi muito grande. Lembro que quando meu irmão me entregou esse violão, eu não parava, eu ficava mais de 10 horas por dia em cima desse violão, tentando descobrir.  Houve a necessidade de descobrir outros instrumentos, por que eu estava descobrindo a minha capacidade de arranjador, e pra isso eu precisava conhecer outros instrumentos, pra poder escrever pra esses instrumentos, e comecei a estudar o cavaquinho, o contrabaixo, e comecei a utilizar profissionalmente, no conjunto Samanguaiá Boys, da Prefeitura, que eu toquei, naquela época, nos anos [19]60, 70, depois o Big Nove, conjuntos de baile. E aí você vai aprendendo mesmo pra valer, repertório em cima da hora, pedido em cima da hora, aí fui desenvolvendo com Zé Américo Bastos, ele tocava acordeom, às vezes João Pedro tocava o baixo e me passava a guitarra ou vice-versa. O que me levou foi a necessidade de ser arranjador.

E a tua ida para São Paulo? É preciso fazer um retrospecto: fomos eu, [o compositor Giordano] Mochel, [o compositor] Tião [Carvalho] já estava lá, [os percussionistas] Manoel Pacífico e Erivaldo [Gomes]. Formamos um grupo, fizemos muitos shows, no [teatro] Lira Paulistana, no SESC.  A gente fez esse trabalho e começou a sentir necessidade de produção. Quando a turma começou a ver as produções que eu fiz para Dércio Marques, Chico Maranhão, a turma começou, “esse rapaz tem alguma coisa pra dizer”, e começou a me suscitar para fazer esse lado de arranjo. Fizemos [arranjos] para Alcione, Dominguinhos, Leci Brandão, e fomos abrindo, e pra pessoas que não estão na mídia, de trabalhos importantes, como a Morena, uma cantora pernambucana que tem um disco belíssimo. E fomos fazendo também para pessoas que não eram conhecidas. E entra Barrica, entra Bicho Terra, entram muitas histórias nesse trabalho de arranjador, e entra o chorinho também. Sorte não existe, existe plantar e colher, mas vamos usar essa palavra. Formei o Regional Madeira de Lei, formado por grandes músicos, expressões nacionais, como [Antonio] Carrasqueira na flauta, Isaías no bandolim, um chorão de alto nível, da geração antiga, Edmilson Capelupi, um grande violonista e arranjador, Gentil do Pandeiro, um museu da história do choro, e Haroldo Capelupi, pai de Edmilson, no cavaquinho, uma grande mão direita, uma capacidade muito grande do chorinho. Fizemos mais ou menos 35 músicas, onde 15 eram músicas minhas, e 20 músicas eram clássicos como Brasileirinho [de Waldir Azevedo] e Noites Cariocas [de Jacob do Bandolim], com arranjos modernos, segundo eles, mais avançados que Radamés Gnattali. Esse grupo existiu durante um ano, mas não existia muito espaço para coisas avançadas: era o choro tradicional, que é uma predominância hoje em dia. Alguém disse que o Brasil é conservador. Eu culpo a mídia. Não quero citar o povão como baixo nível cultural, isso é até desagradável. Eu culpo a mídia: a mídia é formadora de opinião, ela vem invertendo o processo, fazendo a lavagem cerebral através do jabá. É dificílimo mudar isso. Mas voltando, a gente imprimia esse caráter avançado, quando eu cheguei a São Paulo, eu fui muito afoito na história do choro, fui muito afoito pra fazer uma revolução. Eu não me conformava com Brasileirinho tocado do mesmo jeito, Noites Cariocas com a mesma introdução, aí eu quis inovar. Não cheguei com cautela e aconteceu o seguinte: houve uma rejeição inicial, quase eu fico discriminado como um cara esdrúxulo, até metido, no começo, e não era a minha intenção. Eles chegaram a fazer cartazes [risos], em que eles me desenhavam em cima de um jumento e diziam “Bira, volta pro Maranhão, tu tá trazendo coisas muito complexas”. Aí eu fiz o seguinte, eu disse que a minha proposta era aquela, mas mostrei choros tradicionais, eu tinha valsas, polcas, maxixes, coisas da linguagem tradicional, e comecei a mostrar, e fiz algumas músicas com nomes interessantes como Esses vocês gostam, Como vocês querem, aí eles perceberam que eu era um chorão. Quando eles viram que eu fazia também o que eles faziam, aí eles entenderam. Há um depoimento no Youtube do Luizinho Sete Cordas falando sobre isso. “Vocês pensam que o que o Bira faz é só encrenca? Realmente não é fácil, mas tem beleza”. Eu tive o cuidado de procurar ser aceito, hoje em dia eles me consideram um chorão, mas que eu extrapolo, como Hermeto extrapolou. Existem três caminhos na música: aquele que utiliza a música em benefício próprio, para sua sobrevivência, ou para o ego, sua promoção pessoal; existe aquele que trabalha pela música, aquele que promove, que briga com a mídia, que briga com a injustiça, que fala dos colegas, que promove; e existe o terceiro aspecto, aquele que é a música: Hermeto é a música! Eu se fosse me rotular, me rotularia no segundo nível: que ama a música, que luta pela música, que fala dos colegas, que promove.

Tu também tiveste participação na origem dos grupamentos de choro por aqui. Qual foi a tua contribuição no choro daqui? Eu fui fundador do Tira-Teima. Muitas pessoas participaram: Domingos [Santos], no violão de sete cordas, [o cavaquinhista] Paulo [Trabulsi], Pitoca, no clarinete, aquele pandeirista, daqui a pouco eu vou lembrar o nome dele [Carbrasa, ele informaria depois, por e-mail], Adelino Valente, no bandolim, Jansen, no bandolim, [os percussionistas Antonio] Vieira e Arlindo [Carvalho]. Houve muita mudança. Eu tive a felicidade de fundar o Regional Tira-Teima e imprimir esse caráter: de não tocar as mesmas coisas do mesmo jeito. O Brasileirinho da mesma forma é lindo, eu não quero menosprezar, mas há a necessidade de progredir, como [o bandolinista] Hamilton de Holanda faz, como [o violonista] Yamandu [Costa] faz, e outros grandes chorões fazem, [o bandolinista] Luis Barcelos, tem muita gente fazendo, é interessante. Tudo o que havia de choro eu tava lá no meio, um cara que ama o choro, e luta, e por isso fico feliz de ter vocês como uma grande força de propulsão do choro no Maranhão.

Na condição de membro do Tira-Teima, na época, participaste de um momento lendário da música do Maranhão, o disco Lances de Agora, de Chico Maranhão, até hoje um disco infelizmente mais falado do que ouvido, por conta da aura mística que se criou em torno dele, da gravação na Igreja do Desterro, além de sua perspectiva chorística. Fale um pouco desse capítulo. Se tratava de um disco gravado ao vivo. A produção era aquela que nós tínhamos, eram poucos músicos. Eu tinha que fazer mais ou menos aproveitando os elementos da terra, de acordo com a capacidade, com a experiência e a vivência dos músicos. Naquela época, não só pelo envolvimento que eu tinha com o choro, mas a própria música do Chico já conduzia a isso, não vinha só de mim, como arranjador ou produtor. Não havia grana para uma grande produção, mas foi interessante por que foi feito ao vivo, na marra, naquela época, com um gravadorzinho pequeno, de poucos canais, se se errasse era complicado, tinha que estar bem treinado. Não teve muito mistério.

Além do Madeira de Lei em São Paulo e, antes, do Tira-Teima, em São Luís, tu chegaste a participar de outros grupos musicais? Não, eu não entrei em outros grupos. Eu toquei muito em rodas de choro, mas não participei de outros grupos. Desenvolvi em alguns discos o choro, vocês vão ver que eu misturo músicas cantadas com músicas instrumentais.

Mas na tua juventude tu não participaste de grupos ligados à beatlemania, à jovem guarda? Claro! A jovem guarda, o Samanguaiá Boys, da Prefeitura, do [Epitácio] Cafeteira, tocamos na TV Difusora, cantávamos Roberto Carlos, Erasmo Carlos, enfim. A nossa atividade aqui, se a gente for relatar, acaba a entrevista. Eu tou concentrando no choro, por que vocês são chorões [risos]. Mas sendo sintético, eu entrei na área do vocal, fiz um quinteto que cantava especificamente os Beatles, com os irmãos Saldanha, Chico, que é médico em Brasília e João Pedro no violão. Era metendo os Beatles na linguagem do [conjunto vocal] Os Cariocas. Depois eu formei um trio, eu, Ubirajara e Sousa Neto, os Timbira Boys, cantávamos na rádio Timbira uma vez por semana. Depois Sousa Neto saiu e entrou o falecido Jafir.

Quantas composições tu tens? Mais de 700, em vários estilos: música regional, chorinho, samba, frevo, maracatu, jazz, fox, valsa, é uma diversidade muito grande.

Tu lembras com quantos anos fez a primeira? De 15 pra 16 anos, é um prelúdio, o Prelúdio nº. 1.

Em tua vasta vivência musical, como tu definirias e o que significa o choro pra ti? O choro, não só pra mim, tem importância pra todo músico, trabalha numa linguagem ampla, complexa, que exige dedicação para o entendimento da sua forma e da sua execução. As peças exigem um nível de capacidade técnica muito alto, e isso dá uma formação muito grande ao músico, principalmente ao músico, não só ao compositor. Qualquer solista de choro tem que ter uma habilidade técnica alta, se não ele não vai conseguir tocar. É uma música alegre, que leva felicidade às pessoas, contagiante, envolve um ritmo gostoso, mistura, se aproxima do samba, é uma coisa impressionante, são melodias belíssimas.

Que mensagem tu deixaria para quem ainda acha que choro é música de velho? Primeiramente a gente precisaria saber quem está dizendo isso. Se for um jovem que gosta de rock, da dança, que está nas baladas, ele pode achar, por que ele não vai encontrar talvez aquela coisa eletrizante, embora ele possa até dançar. Mas eu prefiro dizer o seguinte: não está sob a ótica da mídia, não está sendo enaltecido pela mídia, e as pessoas vão atrás do que a mídia diz. A gente sabe que, por exemplo, as novelas criam moda, penteados, roupa, até a forma de agir, as vinganças que são propagadas nas novelas. A mídia faz uma lavagem cerebral. Quando a pessoa vê que o choro não está na mídia, ela relega. Essa pessoa que diz que choro é coisa de velho vai dizer que o samba de raiz também não presta e vai bater palmas para o pagode, por que a mídia bate palma. Hoje em dia o artista é medido não por sua capacidade, não por seu trabalho, mas por sua conquista, ou seja, o cara que não toca nada, não compõe nada, mas tá na mídia, esse é considerado o bam bam bam da história: há uma inversão de valores.

Como tu tens observado o desenvolvimento do choro nas últimas décadas? Uma coisa impressionante, alvissareira, uma coisa que nos joga pra cima, nos dá alento, nos fortalece, dignifica a profissão de músico no Brasil. Eu estive em 2000 participando de um festival nacional no Museu da Imagem e do Som [no Rio de Janeiro] e pude constatar garotos de 14, 15, 16 anos tocando muito bem o choro, da Escola Portátil de Luciana Rabello. Aquilo ali foi uma demonstração. Você vai a Brasília, você vê muitos jovens tocando, São Paulo, o Brasil todo. Aqui mesmo teve o Choro Pungado, uma proposta bacana, antes do que eu fiz [a mistura de choro com ritmos da música popular do Maranhão] no disco [Visitação] de Biné [do Banjo].

Quem é o grande instrumentista do choro, hoje? Eu não diria só do choro, mas tem um instrumentista e compositor muito bom, quer dizer, tem vários, mas tem um que quando eu vejo ele compor ou tocar, principalmente tocar, não dá mais vontade de eu pegar o instrumento. Ou o contrário: eu tenho que estudar 12 horas por dia. Chama-se Yamandu Costa. Aquilo não existe, é uma coisa 100 anos à frente. Como nasceu um Pelé no futebol, nasceu um Yamandu na música. Eu não tenho mais nem superlativos para usar.

Tu já participaste de vários discos, compondo, tocando, arranjando. Que discos tu destacaria como mais importantes dessa discografia? Todos. Cada disco é uma história. Todos têm sua importância. Todos foram momentos de alegria, satisfação, de dever cumprido.

Chorografia do Maranhão: Robertinho Chinês

[Mais uma entrevista com “bonus track”; essa saiu um pouquinho menor nO Imparcial de 28 de abril de 2013]

Robertinho Chinês foi saudado como garoto prodígio do cavaquinho e bandolim ao tocar, de igual pra igual, com grandes mestres do choro no Maranhão. Detalhe: o quinto entrevistado da Chorografia do Maranhão acabara de deixar a infância 

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Robertinho ou Robertão? Eis uma pergunta que Chorografia do Maranhão não fez a Jorge Roberto da Silva dos Reis, revelado há alguns anos como garoto prodígio do instrumento que deu sobrenome a mestres como Carrapa, Índio, Jair, Juca e Zeca. Tinha de 13 para 14 anos quando começou a frequentar as rodas do Clube do Choro Recebe. Não demorou muito a enveredar pelo bandolim de mestres como Evandro, Jacob, Reco e Ronaldo, para ficarmos também naqueles a quem o instrumento deu sobrenome artístico.

Robertão ou Robertinho?, vice-versa, a pergunta não feita se justificaria: Robertinho, o diminutivo de seu nome de batismo, o nome artístico herdado do sobrenome artístico do pai; Robertão por sua estatura: 1,92 de altura. O talento e o discernimento e a modéstia, faltam fita ou régua pra medir – Robertinho conversa feito gente grande (e aqui não estamos falando da altura física).

Nascido em São Luís em 16 de setembro de 1993, Robertinho Chinês é filho da assistente social Nivalna Justo da Silva e do contabilista Rosanil Carlos dos Reis, percussionista do grupo Espinha de Bacalhau, mais conhecido no universamba da Ilha por Chico Chinês, uma das grandes influências e incentivadores do filho.

Robertinho Chinês não bebe nada alcoólico – ao fim da conversa secou uma garrafa de água. Conversou com os chororrepórteres no Bar do Léo, que tem seu disco no vastíssimo acervo. Feitiço da vila, de Noel Rosa e Vadico, foi a música que o garoto escolheu para encerrar a conversa em uma tarde de sábado chuviscosa.

Qual o teu universo musical familiar? Sempre teve música na tua casa, na tua família? Além de teu pai, tua família tem outros músicos? Meu pai foi o grande influenciador, por sempre gostar muito de samba. O samba sempre esteve muito presente na minha vida. Minha família, de modo geral, é muito ligada à música, apesar de não ter tantos músicos assim. Mas a música sempre foi muito presente na minha casa.

Quando tu foste descoberto como garoto prodígio da música no Maranhão, por ter começado a tocar cavaquinho muito novo, numa entrevista ao jornalista baiano Iuri Rubim, tu disseste que, depois de tocar, o que tu mais gostavas era de estudar. Isso continua? Continua. Não como eu gostaria que fosse, pela escassez de tempo, da correria do dia a dia, mas o estudo dos instrumentos, da música, e das outras coisas ainda está muito presente.

Tu começaste pelo cavaquinho. Por que a escolha pelo bandolim? Eu comecei a tocar bandolim por insistência do [violonista] Luiz Jr. Ele falava, “ah, bicho, cavaquinho tu já tá tocando o que tem pra tocar. Tu precisa ter um instrumento que te dê uma amplitude maior, te dê um novo horizonte”. Daí ele insistiu tanto, passaram uns dois, três anos, eu fiquei mais próximo dele, e consegui um bandolim. O primeiro bandolim que eu tive foi graças a ele, ao [pianista] Carlinhos Carvalho [irmão de Luiz Jr.], que se juntaram com mais alguns amigos e me deram um bandolim de presente. Ele foi o grande incentivador para que isso acontecesse, pra eu tocar bandolim hoje.

Foi a escolha correta? Meu instrumento mesmo é o cavaquinho. Bandolim até hoje eu ainda estou aprendendo. Eu não posso dizer que eu toco, é um instrumento bastante difícil de tocar. A maior dificuldade que eu tenho até hoje é querer tocar bandolim bem, que eu ainda não consegui.

Cavaquinho tu toca com maior tranquilidade. Não é bem tranquilidade, mas eu tenho uma segurança maior tocando cavaquinho que bandolim. Não que eu domine nenhum dos dois, mas o cavaquinho eu acho que eu consigo desenvolver um pouco melhor.

Qual a diferença básica entre o cavaquinho e o bandolim, para os leigos? A diferença, de cara, é a afinação. O bandolim tem a afinação tenor, mi, lá, ré, sol. No caso do [bandolim de] 10 cordas, tem um par a mais, que é o dó. No cavaquinho é ré, sol, si, ré. E o número de cordas, obviamente.

As possibilidades no cavaquinho são mais limitadas? Muitos falam que sim, mas depende do que a pessoa entenda como limitado, por que hoje a gente vê cavaquinho de cinco cordas, o [cavaquinhista] Márcio Marinho, o [cavaquinhista] Arley Henrique, lá de Minas, os caras tão fazendo no cavaquinho o que ninguém imaginou, tocando coisas bastante difíceis, tocando lances de melodia e harmonia que nunca tinham existido na história do instrumento. Eu acho que não é tão limitado quanto o pessoal diz.

Tu tens preferência por um instrumento ou outro? Tu vieste para a entrevista e trouxe o bandolim, não o cavaquinho. Na capa do disco apareces empunhando o bandolim, e não o cavaquinho. Preferência não existe, mas hoje, pela necessidade, eu tenho que estudar mais o bandolim. Mas os dois instrumentos são grandes paixões na minha vida.

Você é muito instigado pelo bandolim, parece que ele te move, que ele te desafia, não é? É a necessidade de estar buscando sempre algo novo, ter que estar desenvolvendo algo no instrumento. É muito complexo. Se eu passar um dia sem pegar, no outro dia parece que é a primeira vez que eu tou triscando no instrumento, pelo grau de dificuldade que ele tem.

Tu começaste a tocar com quantos anos? Comecei a estudar música, se eu não me engano, foi com oito, nove anos, lá no Monte Castelo, com Joãozinho [posteriormente indagado sobre o sobrenome do professor, Robertinho disse que não sabia. “Bota Joãozinho do Monte Castelo que todo mundo sabe quem é”]. Fiz aula com ele um bom tempo, depois fui pra Escola de Música [do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo], aprendendo nas rodas de choro, de samba.

Além de Joãozinho, quem mais foram teus mestres? De instrumento mesmo foi o Joãozinho. Mas o [o professor] Juca [do Cavaco] teve uma influência boa na minha formação como solista de cavaquinho, o [cavaquinhista] Paulo Trabulsi também contribuiu bastante. Eles eram minhas referências de cavaquinho aqui. Tem o Waldir [Azevedo] também, que não precisa nem falar, mas aqui eram eles, e hoje ainda são. Os caras têm uma contribuição muito importante pra música daqui, pro choro.

Tu citas o Waldir como grande instrumentista. Quem são os teus instrumentistas preferidos, restringindo ao cavaquinho e ao bandolim? Cavaquinho posso dizer que é o Waldir Azevedo. Atualmente é o [cavaquinhista] Pedro Vasconcelos, sem dúvidas, foi importantíssimo pra mim. É meu amigo particular, professor lá em Brasília, tem o Márcio Marinho, que eu sou bastante fã. De bandolim minha maior escola é o Jacob [do Bandolim], mas aí tem também o Ronaldo [do Bandolim, do Trio Madeira Brasil], Joel Nascimento, Pedro Amorim. Atualmente é o Hamilton [de Holanda], que eu acho que foi de grande influência na minha música e é influência até hoje, pra muita gente, nesse instrumento.

Por que ele tem uma levada mais jovem e você acaba se identificando muito com isso, não é? Costuma se dizer que a história do bandolim tem o antes do Hamilton e o depois do Hamilton. Por que o que ele vem fazendo por esse instrumento, acho que vai demorar muito tempo pra aparecer outra pessoa com a mesma importância. Ele conseguiu mudar aquela visão do bandolim como apenas um instrumento específico do choro e do samba, como era antigamente. Ele mostra que não é só isso, que a gente pode ir muito além, com os lances de bandolim solo, das formações que ele vem fazendo, tocar com banda, trio, duo, enfim.

Teus pais sempre te apoiaram na tua vocação musical? Meu pai sempre apoiou bastante. Minha mãe no começo tinha certo receio de eu ser músico. Ela gostava que eu estudasse música, mas tinha aquela preocupação, por que músico é sempre mal visto, o lance da boemia, ela tinha preocupação com esse lance de bebedeira, da farra. Mas eles sempre deram todo apoio e suporte que eu precisei, na medida em que eles podiam fazer pra mim. Tudo o que eles puderam fazer, eles fizeram.

Tu estás fazendo faculdade de música? Ou outra faculdade? Estou fazendo o curso superior, licenciatura em música, na UFMA.

Tem uma pressão de alguém da tua família, ou de fora, para tu teres uma carreira paralela? Tipo, se a música não der certo, vai ser advogado, vai ser médico, por que é isso que dá dinheiro. Pode até existir, mas nunca ninguém chegou e falou isso pra mim. O pessoal da minha família, em geral, não só meu pai, minha mãe, meus irmãos, o povo lá de casa, todo mundo sempre apoiou bastante. Lutaram junto comigo pra que isso acontecesse. Se eu sou músico hoje eu devo muito a eles.

Você começou a estudar música com oito anos. Quando foi que se considerou ou que começou a atuar como músico, profissionalmente? Até hoje eu não me considero músico profissional, por conta das minhas limitações. A gente vive em constante aprendizado. É difícil a gente falar que é músico profissional com essa gama de músicos que tem hoje espalhado em todo canto. Pra gente falar que toca um instrumento é bem complicado. Prefiro dizer que eu tou aprendendo todo dia esses dois instrumentos que eu tento tocar.

Quando foi que tu ganhaste teu primeiro cachê com música? Lembra o que fez com o dinheiro? Eu acho que foi numa roda de samba. Foi engraçado. Meu pai ia tocar num samba lá na Fonte do Ribeirão, eu tava aprendendo a tocar cavaquinho. Levei o cavaquinho numa sacolinha [risos], aí chegou lá, parece que o pessoal da harmonia faltou, só tinha o Cacá [do Banjo] tocando banjo. Eu sempre levava, pra ir pegando, praticar o que eu estudava. Nesse dia eu fiquei sentado, quando me espantei já tava tocando na roda com o pessoal. No final já rolou um cachê, mas eu não lembro exatamente quando foi. O que eu fiz com o dinheiro não recordo agora, não.

O primeiro cachê deve ter sido motivo de muita alegria pra ti. É, por que estar estudando e já estar ali tocando, com os caras que eram referência pra mim, aí pegar ali cinquentinha, sei lá quantos contos, era um mundaréu de dinheiro [risos].

De lá pra cá já se vão anos, veio o Choro Pungado, veio muita coisa na tua vida, tu participando de vários grupos de samba, tocando com grandes nomes do samba nacional. Tu moras com teus pais, depende deles. Mas dá para viver de música hoje? Tuas necessidades hoje poderiam ser supridas por tua atividade musical? Hoje o mercado da música em São Luís permite a um músico da tua qualidade viver de música? Dá sim. Eu moro com meus pais, mas se eu quisesse morar só, dava para viver tranquilo. Tem muita gente que vive exclusivamente da música, eu digo que é operário da música. Dá pra viver. Mas acontece uma coisa bem chata. A gente vê muitos músicos bons aqui na cidade que acabam não tendo pra onde correr e tendo que viver da música comercial. Não tão fazendo aquilo que eles realmente gostam de fazer, que é tocar música instrumental, samba de qualidade, não desmerecendo o samba midiático, mas muita gente hoje se reclama disso, bastante músico, até da minha geração.

Tu tens que fazer isso de vez em quando? Tenho. Pela necessidade, pela falta de opção. Aqui a gente sofre de um problema cultural muito sério, vocês sabem disso, como é a realidade. Infelizmente não temos para onde correr. Espero bastante que mude um pouco esse cenário um dia.

Tu participaste de um acontecimento muito importante na história do choro recente do Maranhão: o grupo Choro Pungado. O que significou estar tocando com aquela turma? Foi importantíssimo. Eu bem novinho, com 13, 14 anos. Na verdade era o Quartetaço, a primeira formação deles. Aí o Ricarte disse “vai lá, vai ter uma formação legal, eu te boto pra dar canja com os meninos, lá no [projeto] Clube do Choro [Recebe]”. Aí Ricarte e Luiz Jr. botaram o pé na parede pra eu participar do grupo. Foi uma escola muito grande, não só de choro, mas de música instrumental, os caras são referência pra muita gente. Luiz Cláudio, Luiz Jr., Rui Mário, João Neto, todos eles são importantíssimos pra música daqui da nossa cidade, do estado, e também pra música brasileira, pela história deles e pela musicalidade particular de cada um.

O Choro Pungado tinha uma proposta muito interessante que era mesclar o choro aos ritmos da cultura popular do Maranhão. Ele foi formado dentro da ideia do Clube do Choro Recebe, de estabelecer o diálogo dos chorões com artistas da música popular, da música cantada. O que tu acha que foi responsável pela vida curta do grupo? Houve alguma briga nesse processo de separação? É complicado trabalhar em grupo por que cada um pensa de um jeito, cada um acredita numa coisa diferente. Foi bom o tempo que durou, foi um aprendizado pra todos nós. Acho que foi importante o que a gente fez, por que eu acredito que nunca ninguém tenha feito o que o Choro Pungado fez na época, juntar os ritmos de nossa cultura popular com clássicos do choro, clássicos da música brasileira. Não houve briga, não. Foi pela falta de tempo de alguns, outros já não acreditavam mais no trabalho.

De que outros grupos musicais você já participou como integrante? Participei do Espinha de Bacalhau, dOs Madrilenus, uma temporada de seis meses, Farinha d’Água, que eu fiz um tempo com João Neto e João Eudes; do Argumento.

Antes de falarmos nele, além de teu disco solo, de que outros discos já participaste? O disco da Lena Machado [Samba da Minha Aldeia, 2010], o da Célia Maria que vai sair agora, produzido e dirigido por Luiz Jr. Teve o do Gildomar Marinho [Olho de Boi, 2009], com participação da Ceumar [na faixa Alegoria de Saudade, samba-choro de Gildomar Marinho], discos de carnaval, festival, gravação de São João, eu sempre tou muito envolvido nessas épocas.

Além de instrumentista, que outras habilidades tu desenvolves na música? Eu tento forçar um pouco esse lance da composição. Tou tentando partir agora pra esse lado do arranjo, tentar desenvolver um pouco mais da musicalidade, que é importante também. Não só tocar um instrumento, mas ver a música um pouco mais na frente.

O que te inspira pra compor? Vai muito do momento, das coisas que eu tou passando. Engraçado é que eu sempre componho quando estou muito triste, ou sozinho em casa ou aconteceu algo muito sério. Sempre foi assim, a maioria [das composições] sai assim.

Quantas músicas tu tens? Não tenho muita coisa não. Acho que tem umas cinco no disco, minhas ou em parceria, com Jr., com Pipiu. Tem umas agora que eu tou compondo, teve umas duas que eu fiz de bandolim solo, cavaquinho solo, mas acho que não deve passar de umas 15 músicas, por que muita coisa do que eu faço eu gosto no momento, mas depois eu deixo de mão, por que eu não acho mais legal.

Qual a tua experiência com outros ritmos que não choro e samba? Já toquei algumas coisas diferentes em shows, não é uma coisa que eu busquei. Admiro muito, mas não tenho esse conhecimento. É de grande importância para o instrumento, para a técnica, mas ainda não tenho. Pretendo chegar um dia a estudar, conhecer um pouco mais, a ter domínio dessa área.

Pra você, o que é o choro? E qual a importância do choro para a música brasileira? Tem toda importância. As principais referências da nossa música são da escola do choro. O choro eu costumo dizer que é a festa do brasileiro: em todo canto que a gente vai vê ali um grupo de choro tocando, num barzinho ali, ou num show grande acolá, vê grandes instrumentistas hoje tocando choro, ou que saíram daquela escola de choro, e vê muita gente nova se interessando por esse gênero.

Tu te consideras um chorão? É complicado a gente se intitular alguma coisa. Mas eu tento buscar conhecer bastante do que é produzido no choro, não só de hoje, mas do pessoal mais antigo, dos primórdios.

Como é que tu ouves música? Pelo seguinte: temos entrevistado pessoas mais velhas, que se lembram do rádio, de como era difícil conseguir vinis. E tu estás na era do download. Baixar música, comprar cd, como é que tu faz? Pela carência da gente em encontrar disco aqui fica quase inevitável a gente não ter que baixar música, discos. Sempre que posso e encontro, compro. Agora mesmo eu estive lá no Rio [de Janeiro], passei uma semana lá, entrava nas lojas feito doido. Gastei mais dinheiro comprando disco do que passeando na cidade. Sempre que eu posso eu compro bastante cds, dvds.

Quando tu vais ao Rio, tu manténs contato com os músicos de lá? Em Brasília sabemos que sim. O Rio foi a primeira vez que eu fui, agora no começo de março. Eu conhecia algumas pessoas de lá, cantores com que eu tinha trabalhado aqui, acompanhado, também alguns músicos, que vieram de lá pra cá fazer shows, criou-se uma amizade. Eu ‘tive lá agora, fiz contato com alguns, liguei pra Julieta [Brandão], primeira cantora de lá que eu acompanhei. Ela disse “ah, legal que tu tá vindo. Vou te botar pra fazer uns shows aqui comigo”. Chegando lá ela arrumou uns trabalhos, apareceram uns negócios pra dar canja, lá pela Lapa. Foi importante ver que a coisa é mais séria do que a gente imagina.

Como é que tu tens observado o desenvolvimento do choro em todo o Brasil? Há um grande desenvolvimento, sempre. Até os caras que são de outras áreas a gente vê buscando o choro, gente que não tocava choro e tá tocando choro hoje.

E o movimento choro em São Luís do Maranhão? Sinceramente tá uma coisa bem triste. Teve época que a gente tinha música instrumental aqui de segunda a segunda. Chegava no [bar e restaurante] Antigamente [então na Praia Grande], segunda-feira tinha lá o [cavaquinhista] Roquinho tocando com o [grupo] Um a Zero, terça tinha o Juca tocando com o [Instrumental] Pixinguinha no lá no [bar] Por Acaso [Lagoa da Jansen], quarta-feira tinha o [Regional] Tira-Teima não sei aonde, sábado o Clube do Choro Recebe, que era famosíssimo. Hoje a gente quase não vê choro acontecendo. Uma coisa bem triste é chegar no [bar] Barulhinho Bom [Lagoa], quinta-feira, o Tira-Teima, os caras que são referência do choro, tocando pra duas mesas. A cena está bem complicada, embora pudesse estar bem melhor diante do que já foi.

A que tu credita essa desarticulação? Nós, músicos, temos uma parcela de culpa grande nisso, mas o problema maior é a questão cultural, do pessoal absorver o choro como música, não só o choro, mas a música de boa qualidade, por conta da mídia em si, que tem compromisso com a propaganda.

Mesmo nesse terreno meio árido, é possível observar o surgimento de novos valores? Tem muita gente boa surgindo. A gente vê [o bandolinista e cavaquinhista] Wendell [Cosme] tocando bandolim, ele é respeitado no Brasil todo. O pessoal vê ele tocando no youtube, nessas coisas aí de internet, os caras ficam doidos. Aí fora, o pessoal que é referência do choro dá valor; aqui, ninguém quer dar valor.

Que outro instrumentista tu destacarias como alguém que merece atenção? Um cara que pra mim é uma referência muito grande e que eu acho que não tem o valor que merece aqui, como muita gente, é o [sanfoneiro e pianista] Rui Mário, um instrumentista fora do sério. Pra mim ele é um dos principais de nossa cena instrumental.

Luiz Jr. te dirigiu em teu disco. Como tu o observas? É um bom músico, com ideias bastante boas e interessantes. Tenho um respeito grande por sua música.

Como foi o processo de seleção de repertório de Made in Brazil [seu disco de estreia]? Foi uma correria danada. Esse disco surgiu por culpa do [músico Arlindo] Pipiu. Tinha aberto o edital [da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão], ele me ligou, eu gravava bastante com ele. Nisso, ele já saiu ligando pra [os compositores] Josias [Sobrinho], Cesar [Teixeira], “vamos pegar música, dá uma música aí pro Roberto gravar”. Tem música do Pipiu também. Teve muita gente com que não se conseguiu contato de imediato e o prazo já estava vencendo e faltava parte do repertório. Aí eu tive que compor algumas, eu só tinha uma música pronta. Fiz no calor do momento pra fechar o repertório do disco.

Já estás pensando no segundo? Eu tou pensando em gravar um disco novo, mas eu fico muito preocupado, por conta da qualidade dos discos instrumentais que estão saindo hoje em dia. Pela quantidade de bandolinistas que eu tou conhecendo, alguns com quem eu já tenho amizade, é uma coisa muito séria. Eu achei legal ter feito este disco, foi um aprendizado, mas me preocupo bastante em fazer disco novo. A vontade sempre tem, o lance de a gente estar botando em prática o que a gente estuda, o que a gente está vivendo.

Uma pergunta clichê: que discos tu levaria para uma ilha deserta? Os discos do Hamilton, com certeza. Tem os discos do [Trio] Aquário, que eu sou fã. Tem muita gente que não gosta do trio do Pedro Vasconcelos, [o violonista] Rafael dos Anjos e o Eduardo Belo, contrabaixo. Esse disco [Primeiro, 2010] eu acho que vai ficar pra história da música instrumental, uma coisa particular, de gosto. A maioria dos que escutam fica de cara com a maneira que eles interpretaram aquilo ali, um disco basicamente de canções, mas o que eles fizeram ali nos seus instrumentos, vai ser difícil aparecer outro disco para ser tocado com aquele sentimento, com aquela expressão. Acho que eles foram bastante felizes.

Qual foi o choro mais bonito que tu já ouviu? É complicado. Pra mim todo choro é bonito, principalmente os que eu gosto de tocar. Eu tou numa coisa agora de tentar pegar a maior possibilidade de choro que eu puder. Pela falta de estar tocando choro constante, acaba que a gente vai esquecendo as músicas que estudou, que tirou. Se a música é boa, independente de estilo, gênero.

Mas tem alguma música que te marca, tipo, “poxa, essa música eu gostaria de ter feito”? Uma música que eu gostaria de ter feito é o Flor da vida [do disco 01 byte 10 cordas, 2005], que o Hamilton compôs e também o Virtude de esperança [Brasilianos 2, 2008]. São músicas fantásticas, ele foi bastante feliz quando compôs essas músicas.

Fora do universo do choro e do samba, o que te interessa? Eu me interesso por todo tipo de música de qualidade que é produzida. Eu sou fã da boa música.

Na entrevista com [o violonista e professor] João Pedro Borges [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] ele citou teu nome como alguém que lhe enche os olhos. O que significa agradar uma figura como ele? Eu fico surpreso com uma coisa dessas. João Pedro é uma escola universal do violão. Em todo canto que a gente chega, a gente ouve falar dele. Só não aqui, que o povo não dá valor a nada que é daqui. Em todo lugar que eu chego o povo fala, “ah, o João Pedro Borges lá do Maranhão”. Eu fico muito feliz pela história dele, ele é um músico muito classudo, tem um bom gosto musical incrível. Ele me citar numa entrevista, eu fico bastante feliz e emocionado.

Tu estás com 19 anos e é senhor de si nos instrumentos que tocas, embora tu tenhas uma modéstia em assumir ser um grande músico. Maria bandolim: tu és muito assediado por conta de tocar um instrumento? [Risos] Não sei, é complicado falar. Assédio, assédio, não. Mas existe o pessoal que se deslumbra com os instrumentos, tem aquela curiosidade. Assédio, pelo menos comigo não. Mas tem outras pessoas aí que são assediadas bastante. Não posso citar nomes para não comprometer [gargalhadas gerais].

Chorografia do Maranhão: João Pedro Borges

[O Imparcial, 14 de abril de 2013; aos poucos mas fieis leitores do blogue um bonus track: a versão abaixo traz algumas perguntas e respostas que ficaram de fora da edição do jornal, embora isso ainda esteja longe de ser a íntegra da deliciosa conversa que Ricarte Almeida Santos e este que vos perturba tivemos, fotografados por Rivânio Almeida Santos, com o mestre João Pedro Borges, um papo longo em uma noite de segunda-feira; o violonista fala como professor que é, fazendo questão de deixar tudo bastante explicado para que não restem dúvidas aos alunos; orgulho de ter aprendido essa lição.

Este post é dedicado a Maria Pepê, cunhada de Sinhô]

Quarto entrevistado da série, João Pedro Borges é um dos mais importantes nomes do violão, do choro e da música brasileiros. Seu talento é reconhecido internacionalmente

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

João Pedro da Silva Borges nasceu em uma vacaria, espécie de pequena fazenda, onde hoje fica o edifício Clara Nunes, “olha que grata coincidência”, no Apicum, região central da capital maranhense, em 23 de junho de 1947. O apelido Sinhô ganhou da avó: “Minha avó, mãe do meu pai, eu nascendo numa fazendinha, nasceu o Sinhozinho, nossa herança coronelesca. Era o Sinhô, Sinhozinho. Aí pronto, pra distinguir dos outros irmãos, que eram muitos [onze], era Sinhô e acabou-se”.

Filho de Raimundo Felipe Borges e Marina Silva Borges; a mãe, professora normalista, o pai, técnico em eletrônica, especialista em rádio e televisão, um empreendedor que chegou a ter gráfica, trabalhava com o avô na Livraria Borges, de propriedade da família, a maior da São Luís da época, quando o menino João Pedro nasceu.

Ele é um dos maiores violonistas brasileiros em todos os tempos e participou de um capítulo fundamental para a renovação do choro no Brasil: a Camerata Carioca do gaúcho Radamés Gnattali, com que o maranhense chegou a gravar discos e fazer diversas apresentações Brasil afora. Seu talento é hoje reconhecido internacionalmente e o disco mais recente, Clássicos Latino-Americanos, foi gravado em 2005, em uma igreja na França.

Wilson Marques concluiu recentemente um perfil seu para uma coleção que pretende publicar em breve. Para a construção do livro, entrevistou o próprio João Pedro Borges além de figuras próximas, como Chico Saldanha, Arlete Nogueira da Cruz e Sérgio Habibe, entre outros. “É ele contando a história dele, não é uma minuciosa biografia, mas sobretudo um registro de sua trajetória e da importância do trabalho dele para a música brasileira”, adiantou o jornalista.

João Pedro Borges conversou com O Imparcial/ Chorografia do Maranhão no Chico Discos, acompanhado, na decoração do ambiente, de diversas personalidades da música: algumas delas ele chegou a conhecer pessoalmente e são citadas por ele ao longo da conversa.

Quando foi que tu percebeste que teu negócio era a música? Eu sempre tive certos indícios de sensibilidade. Por exemplo, eu ganhei, por ocasião de um natal, um violãozinho de plástico, e aquilo era o brinquedo que mais me encantava. Então eu simulava cantar com aquilo, com o passar do tempo eu buscava alguma forma de afinação. Lembro que na minha infância passava um deficiente visual numa carroça puxada por um burro, conduzida por um ajudante que provavelmente era filho dele, e tinha a peculiaridade de que este senhor  tocava cavaquinho. Então, eu guardava dinheiro pra ter o que levar pra ele, por que quando a gente chegava, ele dizia “a pedido é mais caro”. Lembro que quando ganhei esse pequeno violão eu queria imitar um pouco o homem cego que passava lá na minha rua, quase que todos os dias. Mas só mais tarde [consegui], meu padrinho José Silva foi meu primeiro professor de violão. Ele fazia parte da velha guarda das pessoas que lidavam com o choro. Foi ele o meu vínculo com o choro, era violonista, compositor. Ele era irmão adotivo, por afinidade, do famoso professor Custodinho, Custódio Zaqueu Coelho, que eu considero o grande violonista do Maranhão, anterior a[o violonista] Turíbio [Santos], por exemplo, como geração. Era um violonista extraordinário. Cheguei a ter aulas com ele.

A tua escolha por ser músico contou com o apoio da família? De uma parte da família, que me incentivou. Tinham muitos saraus na minha casa. Sistematicamente tinham reuniões de violonistas, de músicos na minha casa, onde o repertório era basicamente choro de violão. Esse meu padrinho era um pintor de paredes, mas era um homem autodidata, de uma intelectualidade muito grande, tinha um conhecimento extraordinário. Ele foi a primeira pessoa que me falou da cultura musical brasileira. Os personagens que ele citava para mim eram Pixinguinha, Ernesto Nazareth, falou de Agustín Barrios quando passou aqui, ele era amigo do pai de Turíbio, que era seresteiro, e frequentava um pouco esse grupo, que a gente chamava os velhos, na época. Nessas reuniões meu padrinho notou meu interesse em ficar ouvindo aquilo. Aí ele perguntou se eu não queria tocar violão e eu disse “quero!” Ele disse “então eu vou te ensinar”, e me ensinou um choro. Eu não comecei por acordes, fazendo assim, ele botou a minha mão e me ensinou um choro chamado Mariazinha [toca trechos ao violão, não sabe dizer a autoria]. Esse choro tem uma peculiaridade formal [fala enquanto continua tocando]: é que ele tem três partes, todas no mesmo tema, ele é uma síntese da forma do choro.

O choro, durante muito tempo, os músicos tocavam por diletantismo. Tinham geralmente outra profissão e tocavam choro nas horas vagas para se divertir e às vezes, como desenvolviam muita capacidade, habilidades, acabam se tornando músicos conhecidos, consagrados, mas não eram profissionais da música. Você é um profissional da música, vive de música, sempre viveu de música?Isso faz diferença? Sim. Faz diferença. Quer dizer, em termos. Se a gente levar em consideração que Jacob do Bandolim era escrivão, César Faria trabalhava numa repartição, há que se levar em consideração aí que há um impulso por detrás desse aparente amadorismo. Quer dizer, eles tinham profissões que lhes davam sustentação, mas grande parte da atividade deles era exercida em torno do choro. A diferença é a seguinte: uma carreira de concertos não é uma carreira convencional, é algo que vive de oportunidades que se inventam, que são criadas. Por exemplo, os concursos de violão são uma forma de atrair a atenção para jovens, têm limite de idade. Eu fui por outro caminho alternativo, me beneficiei da companhia dos meus professores. Depois de um ano que eu estudava com Jodacil Damasceno, ele me tornou assistente dele, eu tive como alunos Dori Caymmi, Guinga, Marlui Miranda, Durval Ferreira, Miltinho do MPB-4. Depois Turíbio me convidou para montar um curso no Rio de Janeiro.

Eu queria que tu contasse um pouco de tua participação em uma banda cover dos Beatles. Tinha a vizinhança próxima com os Saldanha, na Rua de São Pantaleão, Ubiratan Sousa, que gostava muito de choro, foi quem me falou pela primeira vez da bossa nova, me mostrou uns acordes e aprendia comigo a linguagem do choro, aquelas baixarias, que eu era especializado por conta de meu padrinho, que era craque na área. Nessa época surge a televisão por aqui e os irmãos Saldanha, principalmente o mais novo, Nena, falavam bem inglês. E surgiu essa coisa da televisão e todo mundo encantado com a música dos Beatles. Então eles fizeram um conjunto em que eu era apenas o acompanhador. Eu não aparecia no vídeo, e ficava com um violão de cordas de aço poderoso que eu tinha, que parecia uma guitarra, e acompanhava só com esse violão todo mundo. Era Francisco Saldanha, Nena, o Antonio Saldanha, Benedito, que eu não lembro o sobrenome, estudava também no Liceu, Chico Linhares, o Francisco Linhares, que também morava na Rua de São Pantaleão, Edson, também não me lembro o sobrenome e eu acompanhando. Mudou essa formação. Entra Ubiratan nesse conjunto, que muda de nome, de The Five Gems para Os Rebeldes, e ficamos vinculados à televisão, inicialmente através dos programas de Reinaldo Faray. Tava começando a Difusora.

Depois tu ajudaste a fundar a Escola de Música do Estado, que surge no momento em que uma nova geração de artistas começava a produzir com base nas linguagens da cultura popular. E eles tinham a esperança de que a Escola de Música pudesse ser a continuidade de um processo de absorção dessas linguagens, numa escola de identidade mais maranhense? Tinha esse desejo? Como é que era isso na época? A responsável intelectual por todo esse movimento é [a poeta e ex-secretária de Estado da Cultura] Arlete Machado. Foi ela quem concebeu e encomendou o plano da Escola de Música. O que aconteceu foi o seguinte: os primeiros professores, quer dizer, eu vim em 1974, da África, diretamente para cá para São Luís do Maranhão. Criou-se essa escola de música, a primeira diretora é nossa melhor pianista de todos os tempos, Maria José Cassas Gomes, e o resto eram professores que vieram de fora. Era Clemens Hilbert, um alemão que dava cursos de extensão nos seminários de música da ProArte, lá por Teresópolis. Tinha outro professor chamado João Solano, que era um pianista que também estudava relações internacionais, queria ser diplomata. Veio daqui do Ceará um pianista chamado Flávio, não me lembro agora também do sobrenome dele, mas um excelente músico, pianista, e Gilles Lacroix, que chegou a dar aula de música, de teoria musical, tempo em que ele estava se decidindo a largar a batina. Nesse contexto a Escola de Música foi organizada, ali no Apeadouro, e os primeiros candidatos que surgiram, por exemplo, [o compositor] Sérgio Habibe, que trabalhou também um tempo como funcionário lá da escola. Então surgiu [o compositor Giordano] Mochel, Zé Martins, Josias [Sobrinho] e [o compositor] Cesar Teixeira, sempre a gente tendo aquele cuidado de que eu não queria descaracterizar o trabalho deles, mas eles estavam em busca de formação. Eu tinha um discurso de fundamentação. Dizia “até para você fazer bem essas coisas nossas, você precisa de recursos, de técnica”. Sérgio Habibe é um caso flagrante de ter mudado o nível de composição a partir do estudo, ele próprio reconhece isso. Josias Sobrinho foi o meu melhor aluno de harmonia, eu dei um curso pra ele de harmonia aplicada ao violão. Eram alunos dedicados. Eu forneci uma espécie de subsídio pra eles, mas sempre com a recomendação, dizendo “olha, vocês não têm que estudar pra serem músicos eruditos, nem nada, é pra melhorar o que vocês estão querendo fazer”. Naturalmente da parte deles devia haver certas expectativas políticas, por que o movimento pra eles não era só artístico. Pra mim era um movimento artístico, pra eles era político.

Lá no Rio você teve uma convivência com uma nova geração de chorões, com gente da antiga, e você vivenciou o momento de renovação do choro, ali da virada dos anos 70 para os anos 80, convivendo ali com nomes como Paulinho da Viola, com a Luciana [Rabello], com a turma dOs Carioquinhas, Radamés [Gnattali]. Conte um pouco dessa história. Eu passei a ser habitué de todos os saraus que o Jodacil participava. Tinha um amigo nosso chamado Tonzinho, que na realidade é Milton Borges, eu chamava até ele de parente, morava em Niterói, tinha sido amigo pessoal de Jacob, de Six e de Jonas, e através das idas de Six ao Rio de Janeiro nós fomos parar um dia na casa desse Tonzinho e lá ele reunia Abel Ferreira, Copinha, Arthur Moreira Lima passou por ali, Paulinho da Viola, tudo o que era do choro, Ronaldo do Bandolim com os irmãos. O Raphael Rabello, que eu conheci tocando junto com Turíbio, tinha 12 anos, travou logo amizade comigo, tocava, tinha uma formação bem consolidada de música e ele tinha o que eu gostava, tudo em quanto dizia respeito ao choro tava consolidado na cabeça dele, não tinha que aprender nada. Ele era herdeiro de toda a tradição do Dino [Sete Cordas] e do Meira [Jaime Florence], que foi o grande professor dele, professor do Baden [Powell]. O Raphael, um dia assim, disse “olhe, aniversário da Nara Leão, nós vamos lá na casa dela, e eu queria te levar por que eu tenho uma pessoa que eu quero te apresentar”. Aí me apresentou pro Joel [Nascimento], estávamos tocando, quando ele me viu tocar, disse “olha, nós estamos iniciando um trabalho”, não existia esse nome, Camerata [Carioca], isso veio depois, “de tocar uma suíte que o Radamés tá transcrevendo”, acho que nem todos os movimentos ainda estavam transcritos, só tavam os primeiros, “você não gostaria de participar?”, e eu “gostaria”. Marquei um ensaio com eles, acho que na minha casa, e me encantei com o trabalho, aí começamos a montar a Suíte Retratos. A partir dessa nova abordagem com o choro, os saraus começaram a mudar de feição, num determinado momento eles abriam espaço, “vamos ouvir a rapaziada”, e ficavam encantados com aquilo. E aí esse trabalho começou a chamar a atenção, por que a gente começou a montar um espetáculo chamado Tributo a Jacob do Bandolim, foi considerado o melhor espetáculo de 79 no Rio de Janeiro.

Tu tens uma vasta discografia, tocando, integrando a Camerata Carioca, fazendo Valsas e Choros [1979] e Choros do Brasil [1977]… [interrompendo] Com Turíbio eu tenho três discos. Choros do Brasil foi o primeiro, Valsas e Choros, depois tem o Violão Brasil [1980], que a gente fez para um projeto, por que nessa época, disco instrumental dependia também muito desses projetos que eram feitos pra dar brindes de empresas. Por exemplo, eu gravei a obra de Paulinho da Viola [A obra para violão de Paulinho da Viola, 1985], não quisemos nem eu nem Paulinho editar comercialmente, por que sabíamos que os acordos não iam ser bons, apesar de que eu tinha muita consideração com a [gravadora] Kuarup, Mário de Aratanha [idealizador e proprietário da gravadora] praticamente me lançou como produtor, eu ganhei cinco prêmios Sharp como produtor de discos, e editor, fazia aqueles acabamentos todos, tem discos nossos inclusive que ganharam também prêmio na Europa, foram lançados lá pelo Chant du Monde, gravadora que substituiu a Erato francesa. Eu fiz o meu primeiro disco de forma independente em 1977. Logo depois daquela ideia lançada pelo Antonio Adolfo, do disco independente, alguns músicos eruditos descobriram que podiam fazer aquilo. E Jodacil me disse “por quê que tu não faz um disco?” Aí eu decidi fazer também um disco, isso em 1977, concomitante com a ideia do Choros do Brasil, com Turíbio, eu fiz esse disco, sozinho, gravei no estúdio do Museu da Imagem e do Som. O segundo disco [João Pedro Borges Interpreta, 1983] já foi proposta da Kuarup, como eu fiz muitos trabalhos com a Kuarup, Mário disse “olha, a gente tava querendo fazer um disco teu”. Foi um disco dedicado a violonistas espanhóis e clássicos. Depois deste, A obra para violão de Paulinho da Viola, o quarto que eu fiz já foi na França [Clássicos Latino-americanos, 2005]. Eu também nunca me entusiasmei muito com a indústria do disco especificamente, por que eu era muito criterioso, a gente tinha aquele medo de ser explorado, mesmo tendo a compreensão de que um disco não era uma forma de ganhar dinheiro, era uma forma de divulgar o trabalho.

Era o que eu ia perguntar: tem disco com a Camerata, com Paulinho da Viola, com Turíbio, tem disco em que tocas só em uma faixa, casos de Mistura e Manda [de Paulo Moura, 1983] e Shopping Brazil [de Cesar Teixeira, 2004], para citar apenas alguns. O que tu consideraria, ou por razões afetivas ou por razões de importância pra música do Brasil, uma discografia básica de João Pedro Borges? Pro pessoal ir atrás, baixar na internet. Tributo a Jacob do Bandolim [da Camerata Carioca, 1979], sem a menor sombra de dúvida. Por que na realidade eu era um mero componente, eu digo que fui testemunha privilegiada. O Hermínio Bello de Carvalho tinha a seguinte definição: “olha, essa Camerata vai dar certo por que tem o grande arranjador e compositor, tem o grande intérprete e tem o grande ensaiador”, por que eu tinha uma técnica de ensaio que nem Turíbio tem essa técnica, era tudo muito bem organizado, até Radamés eu enquadrava. O [jornalista] Aramis Millarch uma vez, num ensaio, eu discutindo com Radamés, mas discutindo assim numa boa, a gente tinha uma amizade muito grande, mas eu sabia o limite dele, já pela idade, ia até certo ponto, por que ele já queria sair para tomar chopp, comer alguma coisa, ele não tinha muita paciência de ficar ensaiando, como Turíbio também nunca teve, mas o resto do pessoal precisava de ensaio. Aí Radamés dizia “não, agora já tá bom”, e eu dizia, “não senhor, ainda não está bom, ainda tem uma partezinha que nós vamos limpar aqui”. Aí terminava o ensaio e eu dizia, “e aí, Radamés?”, “é, é, ficou melhor”, aí ele dava o braço a torcer.

Soubemos que você anda compondo. Eu fiz arranjos na época, na própria época do Valsas e Choros os arranjos eram assim coletivos, mas sempre prevalecia uma base. Como Turíbio tinha muita confiança em mim, sabia que eu tinha formação, lia música melhor do que todos os outros, eu dava muita colaboração nesse sentido dos nossos discos, assim a parte mais erudita. Agora a parte mais tradicional, mais dentro da linguagem do choro, imagine, com Jonas e Raphael, não dá nem… pelo contrário! Foi uma escola, foram meus mestres, o que aprendi com eles não tá no gibi. Aqui, depois que eu voltei à São Luís do Maranhão, minha amizade com [os poetas José] Chagas e Nauro [Machado], e as reuniões periódicas pra ouvir música, com Arlete [Nogueira da Cruz Machado, poeta, esposa de Nauro], o Chagas começou a me passar umas poesias dele não editadas. Me deu vários cadernos. E olhei aquilo, eu digo “rapaz, isso dá música!”.

Isso é recente? Mais recente, eu sempre tive minha ideia de compor, compor choro, compor valsa, sempre toquei valsas e choros que eu mesmo compus. Tem coisas que eu nem escrevi, que foi embora, Turíbio até brigava comigo por conta disso. Aí comecei a escrever essas canções de Chagas, musiquei dez poesias de Chagas, uma de Nauro e descobri mais recentemente, desse povo novo, que existe por aí, fora dessa geração, pra mim, na minha opinião, a melhor poeta que a gente tem chama-se Aurora da Graça Almeida. Ela me deu um livro, eu preciso dar esse livro pra vocês lerem. Ela me deu um livro e eu descobri coisas assim maravilhosas. Deixa ver se me lembro, sem compromisso [começa a dedilhar o violão]. Chama-se Mágoa. Um homem prevenido vale mais do que dois desprevenidos [abre o case e tira uma folha de papel em que o poema está anotado]. Olha a letra, diz assim [recitando]: “meu coração sem cor e sangue/ maldiz a mágoa renascida do tempo estilhaçado que vivi/ meu coração sem cor e sangue/ esconde a selva oculta do perdão/ esconde as palavras mais belas e fugazes que não disse/ no meu coração de veias seculares/ padece a solidão de antigamente/ maltrata-me a vida retalhada/ maltrata-me não ser o que eu queria/ maltrata-me deixar sem poesia/ os que previram minha dor, minha agonia/ meu coração sem cor e sangue/ repleto de veios de fervor/ resgata a duras penas o sentido/ de ser ao menos navegante nessa vida” [canta, acompanhando-se ao violão; ao final recebe aplausos dos chororrepórteres].

Ficou clara tua percepção sobre o cenário no Brasil, tanto no Rio como em Brasília, que são os dois focos. No Maranhão como é que tu observa a cena choro? Quais os fatos mais importantes, recentes? O choro tá presente desde o século XIX, a própria pesquisa que Maurício [Carrilho] e Luciana fizeram no acervo João Mohana, se identifica, desde quando nasceu no Rio, já existia choro aqui. Mas hoje, o cenário, pra onde aponta? O quê que tá faltando? Olha, o que acontece é o seguinte: eu digo que tem coisas que as brasas podem passar muito tempo só fumegando de leve mas não apaga completamente. Aqui sempre houve esse potencial, que fez surgir os primeiros conjuntos, tipo [o Regional] Tira-Teima, Rabo de Vaca, já com o advento da Escola de Música já surge a ideia do [Instrumental] Pixinguinha, todo mundo sempre com uma estética voltada inicialmente para a inovação. Aqui no Maranhão surgiu a ideia do Clube do Choro, todo mundo aqui foi testemunha do grande impacto que isso causou na sociedade. Eu vejo esse cenário que o choro se diversificou, atraiu o povo da nova geração, a gente vê agora o movimento Madre Deus, o movimento do Clube do Choro. Pra mim o grande impulso foi lá o Chico Canhoto, com o Clube do Choro Recebe, por causa da concepção inteligente, de compreender que o choro é mais do que ele aparenta ser, ele está presente nas coisas todas, está presente na música de Tom Jobim, Caetano Veloso fez choro, Chico Buarque faz choro, Cesar Teixeira. Então essa junção, primeiro da música instrumental com a música cantada, pra quebrar os preconceitos, e segundo, com o componente da música maranhense, foi a boa fórmula. Nós estamos vivendo ainda dos dividendos desse investimento, na minha opinião. Eu acho que está faltando o aspecto didático, ou melhor dizendo, pedagógico da coisa. O choro tem uma vertente de entretenimento, que ele agrada todo mundo, todo mundo vai, tem público sempre, quando a coisa é bem organizada, tem espaço; segundo, isso só não garante a subsistência do choro, os movimentos vão e vêm, as casas comerciais, os estabelecimentos, tem época que é moda aqui, tem época que é moda ali, tem muita oferta na cidade. Por isso que até hoje eu lamento que a ideia da casa lá [uma sede própria] do Clube do Choro não tenha dado certo, por que tinha um projeto social relevante envolvido.

Dessa nova geração tem alguém dos instrumentistas do choro que te enche os olhos, que tu vê como uma boa promessa? Tem. Robertinho [Chinês] eu acho que é um grande talento. Aliás, antes dele se projetar no choro, o pai dele me procurou na época da formação da Escola de Música do Município, quando a gente ainda tava dando aula lá naqueles camarins da [praça] Maria Aragão e o pai dele me procurou, são dois filhos, nem sei o que é feito do irmão. O que eu passei pra ele, na época, foi o seguinte: “olha, você tem que investir em formação. Teus filhos têm talento, mas eles têm que investir na formação, por que o que garante o desenvolvimento do talento, a formação é o adubo do talento, sem formação, sem você correr atrás do fundamento, se fundamentar, desenvolver”. Essa juventude, por exemplo, eles têm uma facilidade técnica pra tocar, mas isso só não garante. Eu vi muito menino prodígio que abandonou a profissão. Por que tem toda uma estruturação que é psicológica, por que na realidade você tá lidando com a própria vida. Às vezes ele pode se desenvolver no instrumento, absorver bem a coisa do choro e ser mais um chorão na cidade, muito bom. Mas é só isso?

Na tua entrevista diversas vezes tu citaste Turíbio. Na tua opinião, quem é Turíbio Santos? Turíbio Santos é o mais importante violonista brasileiro. Pra mim ele é uma espécie também de matriz fundadora. E é facílimo de explicar. Foi o primeiro violonista brasileiro que se destacou internacionalmente, o primeiro que ganhou um concurso que chamou a atenção pra profissão. Se Ronaldinho Gaúcho botou uma porção de meninos pra jogar futebol e querer ser Ronaldinho, Turíbio fez isso com o violão. A importância dele foi pelo seguinte: ele deu o exemplo, ganhou o concurso e projetou uma carreira internacional de respeito; segundo, foi o violonista brasileiro dessa geração mais generoso, montou curso de violão, criou movimentos sociais como ele fez lá com os Villa-Lobinhos, atraindo banqueiros para bancar a carreira de gente, tem gente que tirou a mãe do tráfico, da marginalidade, alugou apartamento, tá vivendo da profissão, toca na noite, estudaram lá graças a ele. O que pode se acrescentar à dimensão de um bom instrumentista é a dimensão social, o que ele faz em benefício dos semelhantes dele. Turíbio criou os dois cursos superiores, tanto na UFRJ como na UniRio. Foi o primeiro camarada que tirou o violonista de seu isolamento, por conta de criar a ideia de Orquestra de Violão, foi o primeiro violonista que pegou João Pernambuco e disse “isso aqui é música de qualidade”. Quer dizer, quem é o camarada que tá por trás de todos esses movimentos? São as ideias que ele gerou.

E a preocupação dele com a memória de Villa-Lobos, também, não é? Com a memória de Villa-Lobos. Que é um reconhecimento, por que Villa-Lobos projetou a carreira dele. A Mindinha Villa-Lobos [viúva de Heitor Villa-Lobos] quando encomendou dele os 12 estudos para violão talvez nem imaginasse a projeção que ia dar, foi o que facilitou a carreira dele lá fora, foi o primeiro violonista a gravar os 12 estudos de violão de Heitor Villa-Lobos.

Você ajudou fundar a Escola de Música, mas ajudou a fundar outras escolas, mostrando uma preocupação sua sempre com o processo de formação pedagógica. Ceuma, depois foi diretor da Escola de Música, fundou a Escola de Música do Município. Fale um pouco dessa tua preocupação com o processo da formação do músico. Eu acho que é uma questão de humanidade. Essa preocupação eu sempre tive. Eu raciocinei a seguinte coisa: se eu não tivesse tido certa ajuda, que me projetasse, que me ajudasse nos momentos em que eu precisei, numa família de 11 filhos, quais seriam as perspectivas que a gente teria aqui? É uma preocupação social, humana, de ver que a música pode ajudar uma pessoa a plantar ideias que podem mudar sua vida. Ela é uma porta de entrada, ela não é a solução pra tudo, mas ela é a porta de entrada. É como se você entrasse num ônibus e esse ônibus começasse a passar por paisagens que você não conhece e você pode nem saltar, mas você diz “olha, se eu quiser ir eu tomo esse ônibus e vou pra ali pra aquele lugar”, eu sempre tive essa preocupação. Quando eu digo que eu vim da África pra ser o primeiro professor, talvez as pessoas não dimensionem o que representou em termos de sacrifício pra mim. O caminho natural era ir pra França, e eu vim pro Maranhão. Uma coisa que eu fiquei consciente ao longo desse tempo: não dá pra fazer agora sacrifícios maiores esperando que as coisas que você constrói sejam mantidas se elas estiverem vinculadas ao processo político. A política é a coisa mais traiçoeira que pode existir na vida, por que uma hora tá, outra hora não tá, outra hora volta, outra hora não volta mais, não tem continuidade, esse é que é o grande problema.

Queria que tu deixasse registrada aquela história gostosa do carrinho de picolé. As lembranças que eu tenho da minha infância, eu vivia muito dentro de casa, por que minha família não me deixava sair muito. Nem pra praça, tinha a Praça da Misericórdia ali, minha mãe dizia que eu tinha que evitar “adjunto”. Antes mesmo de começar a estudar mais seriamente o violão, eu já tava começando, tinha um ouvido assim que apurava, eu gostava de ouvir rádio, meu pai consertava rádios, a gente dormia com aquele barulhinho de rádio, ele ouvia a BBC de Londres, A Voz da América, aquelas coisas, e eu gostava, tinha um rádio em casa, e de tarde, chegava da escola, almoçava, tirava uma sonequinha, e aquele calor danado, ficava esperando a hora do sorvete passar, picolé e sorvete, e tal. Antes era num tipo de carrocinha, que o sujeito abria, aquela coisa toda. E nesse dia, rapaz, um dia quente, eu ligo o rádio e tá tocando essa valsa de Nazareth [Coração que sente], na Rádio Ribamar, que coisa linda, e o cara do sorvete gritou, “sorvete!”, aí eu aumentei o volume pra não perder, e fui correndo, naquele calor, esbaforido, e disse “eu quero um sorvete de baunilha”, e ele disse “você mesmo escolhe, abre aí pra escolher”. Agora, você imagina a sensação de você sair de um calor danado, faz aquele esforço, eu nunca tinha olhado pro lado de dentro [do carrinho de sorvete], que eu abro, vem aquela brisa gelada, com todos os sabores que estavam ali dentro. Ai, que sensação maravilhosa. Peguei o sorvete, volto, continuei ouvindo a música. Passa-se o tempo, cada vez que eu ouço essa música, Coração que sente, Arthur tocando, o quê que vem no meu nariz?, no meu olfato? O cheiro de todos aqueles aromas e pode estar o calor que tiver que vem aquela brisa maravilhosa.

Chorografia do Maranhão: Biné do Banjo

[O Imparcial, 31 de março de 2013]

Terceiro entrevistado da série Chorografia do Maranhão é mais um de nossos talentos a estrear tardiamente em disco. Visitação, primeiro disco a registrar a obra de Biné do Banjo, foi lançado ano passado.

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Biné do Banjo mora uma residência pequena em uma rua apertada, onde o carro, uma vez lá tem que sair de ré, por falta de espaço para a manobra. Quando a chororreportagem chegou já o encontrou vestido de calça comprida, sapatos cuidadosamente engraxados, ainda sem camisa, como quem havia saído de um banho em meio ao calor abafado que caía sobre São Luís, coberta de nuvens a anunciar chuva para ainda aquele sábado. Ele penteava os cabelos como quem se arrumava para um compromisso mais sério, como se fosse encarar não uma entrevista, mas como se fosse subir a um palco, ou fosse reger a orquestra da igreja evangélica onde congrega-se atualmente.

Ao “boa tarde” respondeu em tom sério, com cara de poucos amigos. Imaginando-o de mau humor, Ricarte emendou: “Biné, é Ricarte, do Chorinhos e Chorões, vim te buscar pra nossa entrevista, lembra?”. Rasgou um sorriso que nem parecia o mesmo senhor sisudo de há tão pouco tempo. “Fala, Ricarte. Rapaz, é que meus olhos estão doendo demais, só vou pra essa entrevista porque já tinha marcado contigo”, disse o velho banjoísta, baixando os óculos escuros, deixando à mostra sua lacrimejante cegueira. 

Só então entendemos o justificado mau humor aparente, logo dissipado. À proposta de a equipe retornar outro dia, quando lhe fosse mais confortável, Biné recusou: insistiu em cumprir com a agenda. Tateou por sobre a mesa e por gavetas, procurando entre os objetos os medicamentos que precisava tomar. Rapidamente os localizou, provavelmente pelo formato das embalagens. Pingou colírio, tomou comprimidos, pôs a camisa vistosa e disse: “já podemos ir. Só quero te pedir uma coisa: que a gente não fosse para um bar. Eu agora sou protestante, não fica bem fazer essa entrevista nesses ambientes, as pessoas não vão entender”. Foi lembrado que já havíamos combinado de fazer nossa entrevista na praça. E assim, entramos no carro e saímos em marcha ré até o começo da rua, de onde rumamos à Praça da Saudade.

Seu problema na visão surgiu depois das “congestões”, como ele mesmo explica, quatro ao todo. “Na primeira, os olhos incharam e eu não liguei. Os caroços dos olhos incharam e eu tive que fazer cirurgias”. 

Benedito Etevaldo do Rosário, seu nome de pia, nasceu na Camboa, em 2 de agosto de 1939. Filho de Tolentino Nicolau do Rosário, barbeiro da penitenciária, “onde hoje é o Hospital Dutra”, e Marcolina Evangelista Costa, doméstica. Evangélico há 12 anos, se congrega no Fumacê. Uma manhã chegou bêbado à igreja, como conta, depois de tocar numa festa e amanhecer na farra. Foi convidado a entrar. Aceitou, depois de perguntar se não haveria de causar problemas a quem o convidava. “Se você não fizer escândalo, sem problemas. Promete ficar quietinho?, ele me perguntou. Prometo, respondi e entrei”. Perguntado se ainda enxergava quando compôs as músicas de Visitação, informa que as mesmas foram compostas entre 60 anos atrás – quando o músico tinha apenas 14 anos – até 1972. “Eu era bonzinho da vista”.

Conduzido pelos braços, Biné senta-se num banco sob um toldo desocupado àquela hora, depois de irritar-se rapidamente com o mau jeito da equipe. “Eu mesmo tenho que tatear o banco pra poder sentar”, explica. Ele mesmo começa a conversa, falando mais uma vez da igreja que frequenta.

Biné do Banjo – [dedilhando seu instrumento] Eu sou regente da orquestra da igreja. Toco banjo, toco até violão às vezes. Mas eu sou o que dirige, quem dá a direção das coisas lá. Teclado, tudo quem dirige sou eu. Me tornei solista por opção de um grande amigo meu, Manoel Madeira.

Quando o senhor fala que seu pai o abandonou, podia contar melhor essa história? Olha, quando ele me abandonou, eu tinha três anos de idade. Passei muita fome. Minha família é que ia tirar sururu e sarnambi e um ceguinho vendia e trazia o dinheiro pra gente. Aí a gente tomava merenda de sururu, sopa de sururu, café de sururu, doce de sururu com sarnambi… sábado e domingo saia um dinheirinho pra comprar um peixe, outra comida melhorzinha. E foi assim que eu fui criado. Agora, quem me botou instrumento na mão foi seu Manoel Madeira, o pai de Carlito, que era o dono do Boizinho Barrica. Ele ia tocar numa festa e o cara tava bêbado, só faltava 30 minutos. “Poxa, rapaz, agora que esse cara adoeceu”. Aí eu disse “rapaz, não terminou nada não, por que eu sei tocar isso daí”. Aí eu cheguei e fiz [imita o som da bateria com a boca]. Aí começaram a perguntar como se toca baião [imita o som da bateria com a boca no ritmo], como é que se toca bolero, samba [idem]. “Rapaz, esse menino vai terminar essa festa com a gente”. Toquei os 30 minutos e ganhei o dinheiro e ganhei seu Manduca. Foi assim que eu não fui embora daqui do Maranhão, que vieram me buscar várias vezes.

Além de músico, qual a tua outra profissão? Eu fui pedreiro, fui especialista em sapatos, aqueles sapatos MAC, do Mercado Central, aqueles sapatos de bico canoa, bico fino, aquilo era eu, Coló e Leonardo e Coioí da Madre Deus quem fazíamos, assim que era.

Na tua infância tu teve pouco contato com teu pai, mas na adolescência o convívio foi maior. Ele também te influenciou pra música? Foi. Por que ele era violonista e eu guardei na mente. Quando Manoel Madeira me fez músico e me preparou como compositor e solista, aí eu já passei a frequentar meu pai para ouvi-lo. Ele cantava uma, eu cantava outra, ele cantava uma, eu cantava outra, até que tem uma música que eu fiz assim pra ele [recitando]: “toda vez que eu pego o meu cavaquinho/ nasce logo em mim uma inspiração/ me faz recordar o meu saudoso paizinho/ quando estávamos a tocar e a cantar / ao som do seu violão/ este violão que por ele foi desprezado [“por que ele morreu”, interrompe-se para explicar]/ está aqui hoje ao meu lado/ sentindo a falta do seu tocador”, entendeu? Aí o resto eu já esqueci.

Como é o nome dessa música, lembra? Ah, eu não lembro. Eu não me lembro o nome da música, não. Pode botar um nome aí, “Saudação ao meu pai”, pode ser, né? “Saudação a Tolentino Nicolau do Rosário”.

O Madeira foi teu professor de música. Mas o que é que tu ouvia, na infância, na adolescência, em casa, na rua? O quê que a gente ouve na Madre Deus, me diz?

Samba. É só samba, marcha, boi, quadrilha, entendeu? E coco… tu tá sabendo quem foi sócio fundador do Boizinho Barrica? Fui eu. Que nesse [naquele] tempo era lelê. Eu saía daqui com [o compositor Zé Pereira] Godão pra São Simão [povoado de Rosário/MA], buscar lelê lá de São Simão, com Godão, [o compositor] Bulcão, esse pessoal todinho, [o poeta] Jeovah França, [o compositor] Wellington Reis, pra pegar esse pessoal. Aí nós sentamos numa praça e começaram a dizer, “temos que botar aqui e tal, vamos botar Boi Tonel. Pra botar aqui pelo carnaval”. Aí eu disse “Boi Tonel não, vocês já tão roubando o título alheio, que Boi Tonel foi quando eu comecei a fazer música na casa do velho Bertoldo, na Rua 1, que lá era cruzeiro, e o cruzeiro, a representação dele era um boizinho, numa vara, no feitio de um tonel. Como é que vocês querem botar Boi Tonel, querem roubar o nome dos outros? Então por que vocês não botam uma coisa parecida com o Boi Tonel? Eu viajo muito aqui pra contrabando com finado Ciríaco, com Aruanda, levar café e de lá eu trago tudo quanto é produto, perfume, todas as coisas de lá, inclusive nós trazíamos muito vinho engarrafado naqueles toneizinhos de vidro, que se dá o nome barrica, barrica de vinho. Por que tu não bota então o nome Barrica? É igualzinho um tonel”, aí ficou a sugestão Barrica.

Tu ouvia muito rádio? Escutava muito rádio.

Que tipo de música? Se ouvia muito marchinha, aquelas que vinham de São Paulo, que no Rio não tinha marcha carnavalesca. Era muito difícil. Era mais arretirado [sic] do Rio, já pro lado dos morros, Vila Isabel.

Que rádios tu escutava? Era sempre a rádio Globo. A rádio Globo, que se tornou Jovem Pan há muitos anos e até hoje continua como a melhor rádio do mundo, eu acho. Tu pode fazer uma pesquisa que não tem outra igual.

E o tipo de música? Boleros, sambas… Boleros, sambas, rock, pop, dava tudo.

Por que tu escolheu tocar o banjo como um instrumento associado a teu nome? Por que nesse banjo eu aprendi todo estilo de música.

Mas tu já tocava bateria, já tocava um monte de coisa. Sim, eu tocava bateria. Meu instrumento era bateria. Mas eu não te falei que Manoel botou o instrumento na minha mão e me fez banjista [banjoísta] dele? E aí ele me ensinou a tocar banjo e aí eu fui o quê? Banjista dele pra tocar com ele. Por que aí eu me tornei tocador de pastoral, de reisado, de comédia, procissão, ladainhas. Se eu pegasse qualquer outro instrumento, entendeu? [sola algo no banjo]. Eu tenho aqui [aponta para a própria cabeça] a escala na mente. Quando eu falho é pouca coisa.

Tu perdeu o tato, né?, nas mãos? Perdi. Essa mão aqui [mostra a mão direita] agora que tá começando a voltar, pegar a palheta. Eu comia com a mão dos outros, é muito triste. Com a congestão aí, quatro crises de congestionado. Foi por aí que foi feito meu cd. Veio [o compositor] Veloso, lá defronte e disse “rapaz, tu tá muito mal!”. Hoje eu ainda tou falando errado, eu falava assim, ó [mete um dedo na boca, de modo a dificultar a própria fala, emitindo sons difíceis de entender]. Veloso olhou e saiu correndo e foi lá onde Bulcão, Godão, Jeovah e Ubiratan Souza e Wellington Reis, aí vieram tudinho lá em casa. Aí chegaram lá em casa, eles se despediram, foram embora, e Ubiratan ficou comigo. Passou o dia comigo e no outro dia ele veio e disse: “olha, tu vai te lembrar de algumas outras músicas que tu fez e vai fazendo aí. Quando tu sentir que tu errou, tu para”. Aí eu comecei. E disse assim: mas qual é o chorinho que tu mais gostas aí que eu ainda não toquei aqui? Aí eu toquei esse aqui [dedilha no banjo uma melodia de sua autoria]. Essa é só a última parte. A primeira é assim [volta a dedilhar, após elogios dos chororrepórteres].

Tu lembra o nome desse choro? Ah… eu não me lembro mais.

Tu viveu de música? Música pra mim foi só pra beber umas cachaças. Eu vivia era de vender contrabando. Eu não tou te dizendo que eu fiz Aruanda, Carlos Mesquita, Titio, Ciríaco, Pedro Cara Cortada, esse pessoal todo ficou rico às minhas custas.

Tu vendendo contrabando pra eles? Por que eu que tinha a cabeça pensante. Eu chegava, olhava assim, eu ficava no porco, e dizia: dois quilos de pá, três quilos de não sei o quê, cinco quilos disso, dois quilos disso, separava logo a cabeça, cabeça não se metia, tripa, fussura, não se metia, e tantos quilos de banha. Aí os caras chegavam e diziam “mas isso é só porco”. E eu dizia: mas é porco carnudo, é porco de se vender. Hoje mesmo a gente começa a trabalhar, eu mato dez porcos desses, daqui pro amanhecer, e mando deixar pelos mercados, pelas partes, e o que ficar em casa a gente vende depressa. Os couros a gente salga pra dar pra comprador do sítio Piancó, do Justino. Eu nasci pra ajudar os outros, e nasci pra ficar rico disso, mas eu nunca fiquei rico. O que eu ganhava com uma mão eu enfiava tudinho num rabo de saia no outro dia. Eu não tinha pai nem mãe, minha mãe me deixou com 12 anos. Eu com 12 anos sustentei foi seis sobrinhos e duas irmãs, uma com três filhos e outra com três filhas.

Tu tocou em vários grupos de jazz. Lembra o nome deles. Eu toquei no Jazz Céu Azul, que era de seu Manduca. Toquei no Jazz Irakitan, que era do tenente Pedrão, da Polícia. Toquei no Vianense, os músicos eram todos contratados pelo tenente Gregório, da banda da Polícia, eram uns três grupos, todos de gente da polícia.

Quando tu tocava tu recebia algum pagamento? Eu era contratado pelo mestre da banda. Deixa eu te dizer. Nesse tempo um soldado ganhava, parece que três mil e pouco, quatro mil, cinco mil. Cinco mil que eu tou dizendo assim por que eu não lembro mais qual era o dinheiro daquele tempo, se era cinco mil réis, cruzeiros, cruzados, era um dinheiro assim dessas coisas. Eles ganhavam esse dinheiro pra tocar o mês todinho com a banda. E eu ganhava no mínimo de 18 e no máximo de 21 pra tocar contratado com a banda. Como é que eu ia largar de ganhar esse dinheiro contratado? Tu sabe quantas pessoas morreram tuberculosas naquele tempo, que não tinha cura? Muitos músicos, tudo de Viana. Só teve um cara que não era de Viana, era aqui do interior, eu não me lembro de onde era, se era de São Vicente, chamava ele Zé Leôncio. Grande saxofonista! Se inscreveu no exército e passou no primeiro lugar no exército como clarinete, entendeu? Aí ele foi pra banda de Brasília tocar clarinete lá. Quando fui um dia ele tava lá tocando aquelas coisas tudinho no pistom, tirando aqueles agudos, com brincadeira, baixinho. Aí o mestre da banda chegou e disse: “ah, é tu, não?” Tu hoje vai ser a minha segunda pessoa, de hoje em diante. Eu vou reunir todo mundo, chamar o presidente, o governador, que o presidente chamava-se João Goulart, esse pessoal aí do governo, ministro, essas coisas tudinho, chamou e decretou: “esse aqui é que vai reger a banda no meu lugar”, é maranhense, daqui do interior.

Tu, além de instrumentista de banjo, de bateria, que outras funções tu também tem na música? Compositor, arranjador, que tipo de outras habilidades tu desenvolve ou já desenvolveu? De música eu nunca desenvolvi nenhuma, a não ser só as que eu já te falei. Compositor e dom divino, graça divina de Deus, baterista, solista de banjo. De pau e corda eu já toquei todos os instrumentos. De pau e corda, que seja, baixo, violino, rabecão. Rabecão eu aprendi a tocar com Vital, que era o dono da melhor orquestra do Maranhão. Sabe onde foi que eu comecei a tocar? Na Rua Grande, num cinema que tinha lá chamado Éden. Pelo carnaval tinham os assaltos, começavam nove horas da manhã e terminavam uma da tarde. Quando terminava tava cheinho pras pessoas assistirem o filme.

Tu sempre morou aqui na Madre Deus? Eu morei pouco tempo lá onde eu tou te falando, na Camboa. Me mudei de lá com seis anos, vim pra cá, aqui foi que eu cresci.

Tu conseguiria fazer um comparativo, tipo, a Madre Deus já foi um celeiro de samba, de música popular, tu acha que hoje é melhor, pior? Deixa eu te dizer uma coisa: não tá nem melhor nem pior. As coisas foi que se desenvolveram tecnologicamente, pelo facebook, internet, essas coisas, que qualquer criança de cinco anos, sabe internet melhor do que tu e eu. Isso foi que cresceu e se desenvolveu de uma maneira tão grande. Por que Deus disse: “crescei-vos e multiplicai-vos”, e que o homem ia crescer e multiplicar em todos os sentidos.

Deixa ver se melhoramos a pergunta: a gente sabe, pela história, que se chegássemos aqui na Madre Deus, na década de 1970, iríamos encontrar uma roda, várias rodas, uma turma fazendo samba, criando. Hoje tu vais encontrar um porta-malas aberto, tocando um forró da pior qualidade. Nem só forró: funk, pop, rock, reggae. É conforme o local. Tem gente que adora chegar, principalmente onde tem local que se compra gasolina. O cara chega pertinho, compra tudo quanto é dinheiro de gasolina e bota o som dele que ele quer lá em alto volume. Aí chega outro, daqui a pouco tem dez, cada qual com um reggae diferente. Aí tem hora que tem reggae, tem pagode, tem forró, essas coisas todas. Mas aqui na Madre Deus também tem gente nova que gosta de um sambinha, de forró, pagode, chorinho, meninos novos. Tem criatividade pra tudo aqui na Madre Deus. Se tu vier de qualquer outro lugar e não vier na Madre Deus, tu não veio em São Luís, não veio no Maranhão [passa um veículo com o som em alto volume]. Olha aí, ó: eu tou te falando, eu tou mentindo? [risos] Eu conheço tudo aqui.

Quantos discos tu já gravou? Só aquele teu? Foi só esse que eu gravei, naquelas circunstâncias que te falei. Se não fosse a minha dificuldade, tu sabe quem era o responsável de eu ser lembrado? Foi que meu primo, Agostinho Santos, que tocava pandeiro com Mascote. Ele tocava com Hidelbrando, Agnaldo [Sete Cordas, segundo entrevistado da série Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 17.03.2013].

Visitação é teu primeiro disco solo, com tua obra, mas na condição de músico, tu não chegou a participar da gravação de outros discos, como por exemplo, o Barrica, no começo? Gravei com esse banjo aqui onde teve um Festival Viva, aqui na Praça Deodoro.

Qual era a música? Música de Godão, que fala na praia [cantarola:] “lá ri rá rá, na Beira da Praia, da maré vazante, lá rá, aquele amor”, esse foi o único cd que eu gravei foi esse cd.

Biné, que artistas tu admira? Instrumentistas? Instrumentista que eu admiro, que sempre admirei aqui na Madre Deus, foi Nazino, que eu tocava uma peça, ele tocava outra, eu uma, ele outra, daqui a pouco ele me beijava na cabeça e dizia: “Biné, eu não sou ninguém perto de ti. Tu és um monstro sagrado, o único tarado do banjo da Madre Deus”. Ele tocava banjo também. A munheca de ouro, tinha a munheca muito mais do que a minha, mas o meu repertório era maior que o dele, eu passava a noite todinha sem repetir. O outro músico chamava-se Amilar Costa Ferreira, que levou mais de 60 músicas minhas para Manaus, mandou a mulher dele vir me buscar, mandou a passagem para eu ir embora e eu não fui. E ele ficou mestre de banda lá, gravou, e a mulher dele é quem toma conta de tudo, que ele já morreu.

Em Visitação, quase todas as músicas são choros. É a música que tu mais gosta de compor? É, cresci foi aqui na Madre Deus, então chorinhos foi o dom que deus me deu para fazer. Por que eu era fã dos ritmos de nossa terra. Essa é a originalidade da minha vida. Então, cada música minha eu colocava um tipo de solo. Esse solo aqui dá pra tal ritmo, esse aqui dá pra [o bumba meu boi de] costa de mão de Cururupu, esse aqui dá pro boi de Iguaíba, boi da Maioba, esse aqui dá pro boi de Pindaré, esse aqui dá pro boi de Viana, cacuriá, com os ritmos da cultura do Maranhão.

Na tua opinião, qual a importância do choro como música? É a única coisa que é nato, que é nossa, criação nossa. Brasileira, não: maranhense. Samba é criação do Maranhão. Depois é que esse pessoal veio buscar aqui e pegar e inventar a nossa batucada, como Zeca Pagodinho e outros mais. Pega uma música de Zeca Pagodinho? [imita o som do batuque com a boca] Essa batucada é daqui da Madre Deus, da Turma do Quinto, do Príncipe da Folia, no Caldeirão, no comando de Zé Garapé, de Marciano. Isso é ritmo nosso, é coisa nossa!

Tu acha que no Rio de Janeiro, naquele universo todo, morros, favelas, eles não criaram também? Eles criaram, sim, mas com outro estilo. Cada terra com seu buraco, com cada um. Martinho da Vila só passou a ganhar depois que começou a entrar no samba total, entendeu? Que é daqui do Maranhão, sambinha nosso estilo [torna a imitar a batucada com a boca. Em seguida cantarola:] “minha caixinha de fósforo/ também é pandeiro/ eu não troco por qualquer pandeiro nosso/ nela acompanhando passo o dia inteiro/ quando eu encontro um bom violão/ aproveito logo a minha vocação/ se formo logo um sambinha ligeiro/ a minha caixinha de fósforo aqui é pandeiro/ os sambas cariocas são patenteados/ é inegável, é sem comparação/ os seus ritmos são bem organizados/ e a minha caixinha de fósforos é quem faz a imitação”. Eu sou bairrista, meu cumpade!

Quem é o chorão que tu mais gosta, dos grandes solistas brasileiros? Quem são os instrumentistas que tu mais gosta? Olha, dos grandes solistas brasileiros, quem eu gosto é Sivuca, da sanfona, Jacob do Bandolim, e o meu amigo que foi daqui do Maranhão, antes de Sinhozinho [o violonista João Pedro Borges] foi um outro.

Turíbio? [O violonista] Turíbio Santos. Esses são os monstros sagrados.

Tu gosta do Sinhozinho? Rapaz! Toquei muito com ele. Eu, Sinhozinho e Ubiratan. Esse negócio de [o compositor] Josias [Sobrinho], que canta, que veio de lá da Ponta d’Areia [a música De Cajari pra Capital], ele tocava pra gente, era eu quem fazia o solo. [O compositor] Cesar Teixeira também me acompanhou muito e Josias aprendeu muito com a gente. Outro que eu gosto muito é Dilermando Reis, esse é o monstro sagrado do violão.

Tu está tocando na igreja? Toco. Quer ouvir uma música minha? Vou tocar uma pra ti ver. Essa aqui foi a primeira que eu fiz lá [canta, se acompanhando ao banjo]: “sozinho eu sei que não vou conseguir/ sozinho eu não vou a nenhum lugar/ sem ler a Bíblia triste será meu fim/ mas como ler a Bíblia se eu não posso enxergar?/ meu Deus, o que será de mim?/ como subir sem ter alguém pra me guiar?/ por isso faça alguma coisa por mim/ oh, meu Jesus, antes da porta da graça fechar/ para que eu possa ter direito à salvação/ e receber das tuas mãos/ a chave do meu eterno lar/ ó doce lar/ estes lares que por ti foram preparados/ para os remidos, sem pecado/ entre eles eu quero estar”.

Chorografia do Maranhão: Agnaldo Sete Cordas

Lenda viva do instrumento que lhe deu sobrenome artístico, o ludovicense Agnaldo Sete Cordas, 85, é o segundo entrevistado da série Chorografia do Maranhão.

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

A entrevista com Agnaldo Sete Cordas começou de maneira descontraída – e assim se manteve até o final. Ele já contava causos antes mesmo de ligarmos o gravador e acionarmos o botão da máquina fotográfica. Nós quatro – ele, o fotógrafo e os dois chororrepórteres – em pé, aguardando Chiquinho [o proprietário do bar] com as chaves do Chico Discos (Rua 13 de Maio, 389-A, altos, esquina com Afogados, Centro), onde a entrevista aconteceu num sábado à tarde, horário em que o bar normalmente não abre e o foi exclusivamente para a ocasião.

Agnaldo Sete Cordas é uma lenda viva do instrumento que acabou por lhe emprestar o sobrenome artístico, tendo tocado com diversos artistas de sucesso nacional, quando de suas passagens pela ilha. Não por acaso, poucos dias antes de receber a ligação convidando-o a dar um depoimento à série Chorografia do Maranhão, ele havia começado a rabiscar em um caderno suas memórias. Uma espécie de “fique por dentro” particular, em que, a caneta, em papel pautado, lembra “histórias, curiosidades, manias de antigos e novos chorões”. Gente com quem tocou, formação de bandas, orquestras e regionais, rodas, farras, datas e causos em geral engraçados – que em parte ele repesca na entrevista, às vezes recorrendo ao caderninho de anotações.

Entre estas últimas lembra quando Cardoso [lenda entre os seresteiros do Maranhão] ia batizar uma filha sua e Six [o cavaquinhista Francisco de Assis Carvalho da Silva, lenda entre os chorões] – ambos já falecidos – chegou e mandou dispensar o padrinho. Foram todos para a igreja, aberta mediante o pagamento do último ao padre. O batizado aconteceu em meio a uma roda de choro. “Meu compadre era um bom companheiro”, disse, referindo-se a Six.

Agnaldo de Jesus Sousa, seu nome de pia, nasceu no Desterro, em São Luís, em 1º. de janeiro de 1928, filho do clarinetista Benedito Sousa, professor de música, e Sabina Martins Sousa. Tem 13 filhos, 13 netos e um bisneto. “O choro é uma música que não se acaba”, vaticina, pouco antes de atender ao celular: era [o bandolinista] Raimundo Luiz, diretor da Escola de Música do Estado Lilah Lisboa, convidando-o para uma roda. No toque do celular do jovem senhor, Odeon, de Ernesto Nazareth.

Agnaldo, o Sete Cordas e o caderno de memórias

Além de músico, qual tua outra profissão? Eu nunca tive profissão assim. Era empregado numa firma, a Francisco Aguiar e Cia. Entrei lá em junho de 1942. Era office-boy, como se diz hoje em dia, levava os telegramas para os Correios. Entrei lá de calça curta [risos]. Passei 17 anos lá. Depois saí, passei uns anos fora e depois, em julho de 1961, eu me empreguei na Companhia de Água e Esgotos. Naquela época era água e luz junto. O governador da época, Newton Belo, foi quem separou água para um lado e luz para outro, eu fiquei na parte da água. Me aposentei em 17 de fevereiro de 1993.

Com quem tu aprendeste a tocar? Eu aprendi a tocar esse instrumento, sem ser esse aqui, foi um violão de seis cordas. O namorado da minha irmã tinha um e deixou o violão lá em casa, aí eu fui pegando quando ele saía e aquilo foi me dando vontade de tocar, de aprender. E de repente mudou-se lá pra casa um vizinho, que era de Caxias e eu soube que ele tocava violão. E a gente ficava até tarde da noite, ele passando as notas. Depois apareceu outro moço que tocava muito bem violão, o nome dele era Ricarte, morava no Monte Castelo [os entrevistadores espantam-se com a coincidência]. Ele ia lá pra casa, levava o violão e eu ficava manjando aquelas notas. Quando ele saía eu ia fazer e não acertava. Pensei em largar de mão. Mas o tempo foi passando e eu fui pegando gosto pelo instrumento.

E depois substituiu pelo sete [o violão de sete cordas]? O sete foi o seguinte: depois de passar muito tempo nesse violão de seis, eu passei pela guitarra, por que pra tocar nos grupos que tinha em São Luís, eu fui fundador do Nonato e Seu Conjunto, pra tocar em grupos assim eu passei pra violão elétrico, depois eu peguei guitarra, mas eu não sabia tocar guitarra, por que eu tocava com dedeira. Para este violão foi da seguinte forma: muitos anos, eu tocava no Lira, e ia para casa descansar, e dia de domingo eu ia para o barzinho lá defronte lá de casa, tomar aquela cerveja com os amigos. Num domingo eu tava sentado lá quando chegou Six, seu Dega, irmão dele, Carlinhos [Leite], Jonas [Pereira da Silva], aquele que tocou com Jacob [do Bandolim, no Conjunto Época de Ouro]. Seu Dega quando me olhou, disse “olá, meu compadre! Olha quem tá aqui! Esse aqui é o Carlinhos, o violonista que toca com Jacob do Bandolim”. Ele tava com o violão de sete cordas, eu com o de seis, ele me deu o instrumento, mas eu não acertei uma nota, entreguei o instrumento pra ele [risos]. Mas nessas alturas eu não estava com o grupinho. Estava eu, Careca no bandolim, sentou Carlinhos com o sete cordas, tinha um menino com um tamborim pra fazer ritmo, Six no cavaquinho e finado Marreta com um gravador Philips. Aí o samba começou. Essa música foi tocada lá, aquele dia, um choro de Waldir Azevedo por nome Contraste [parceria com Hamilton Costa]. Essa música eu tenho gravada numa fita, acompanhada pelo Carlinhos. Aí depois, nessas alturas, a farra começou. Cantou [Léo] Spirro, cantou Seu Dega.

Na tua juventude, de que modo vocês ouviam música? Nós ouvíamos rádio que nós mesmos fabricávamos. Esse mesmo rapaz que me ensinou violão, Mizael, ele enrolava motor de avião, de compressor, essas coisas, era inteligente. Ele enrolou umas bobinas e disse que íamos captar uns sons da PRJ-9, Rádio Difusora do Maranhão. Funcionava ali defronte o Mercado Central, no prédio do SIOGE [o Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado, hoje abandonado]. Ela entrava no ar e quem tinha rádio ouvia. Então nós fizemos um tal de rádio galena. Era feito com uma bobina de fio, um telefone antigo, pegava só o fone, fazia adaptação, pegava chumbo com enxofre, botava numa colher no fogo. Aquilo quando diluía, ficava aquela pedra brilhante. Através daquela pedra amarrava uma agulha na pontinha do fio, botava o fone no ouvido e sintonizava a estação. Só tinha essa aqui no Maranhão. Eu ouvia longe… Eu me lembro tão bem de uma música que Isaurinha Garcia cantava, [cantarola:] “aquele aperto de mão não foi um adeus” [Aperto de Mão, de Jaime Florence, Augusto Mesquita e Dino 7 Cordas], parece que era essa música. E eu ouvia aquele violão e “meu Deus, o meu não dá esse som”. Aí foi que aconteceu, quando Carlinhos chegou lá na Cohab com aquele violão, aí eu me envaideci pelo som do instrumento. Fiz uma carta pra minha mãe, que morava no Rio de Janeiro, pedindo pra ela me dar um violão, que tinha visto um violão aqui, e tinha vontade de tocar num de sete cordas. Fiz sem esperança. Um dia de sábado eu tava em casa com a mulher, quando parou o carro do Correio lá na porta. “Olha, Marilene”, minha mulher, que tava lá, “é bem roupinha de menino que mamãe tá mandando pros netos”. Quando eu abri, era um violão sete cordas, Del Vecchio, já afinado. Quando eu peguei esse violão, a notícia correu rápido. Fui inaugurar esse violão e a aporrinhação dos colegas, “tu nãos sabe tocar nem de seis, quanto mais de sete”. Eu pensava em tirar a sétima corda, não tava acertando. Foram quatro anos, me dediquei, fui acertando. Uma vez aquele Biné, irmão de Bastico, disse “Agnaldo, esse violão tem que falar grosso”, e ele me gozava com isso. Fui lutando, Deus foi me ajudando, fui entrando nos grupos. Aí apareceram uns seguidores, que se envaideceram pelo instrumento também. Mascote, Bastico, Chiquinho, eu tenho o nome deles aqui [aponta o caderno], se metiam e largavam por que não acertavam. Entre o grupo que se interessou ficou [Francisco] Solano, Elinaldo, o mais competente, foi quem pegou com mais facilidade, Domingos [Santos]. O resto desistiu. Toquei muito nas noitadas por aí.

Teu pai dava aulas de música e tocava no exército. Ele de alguma forma influenciou o senhor a ser músico ou havia um desencorajamento, que músico naquele tempo era vagabundo, mal visto. Como era essa relação? Naquela época violonista era vagabundo, era mal visto. Ele não sabia, eu pegava esse violão escondido. Ele queria que eu estudasse telegrafia, o código Morse, ele me passava para estudar. Ele não queria negócio de violão, nem bola, o caso era estudar, e era o que eu não gostava.

Você chegou a jogar bola? Eu jogava bola. Até quebraram minha clavícula, aí eu larguei logo.

O senhor fundou o Nonato e Seu Conjunto. No ano de 1962, num daqueles bancos, defronte o Lítero, na praça João Lisboa. Eu tava trabalhando no DAES [Departamento de Água e Esgotos], chegou um colega que tocava comigo na rádio, Rafinha, e Osmaro contrabaixista. Ele disse que não tinha mais nenhum grupo tocando, o que Nonato tava tinha acabado, por causa de molecagem dos músicos. Aí eu disse “vamos convidar Nonato”. Eu peguei folga no serviço e fomos os três. Nonato tava lá em cima tocando piano. Quando desceu a gente disse: “Nonato, nós estamos formando um grupo pra tocar, tu não queres tomar parte?”. De cara ele disse que não. Aí a gente conversou, ele disse que dava a resposta amanhã. Voltamos no mesmo horário e eu combinei com a turma: “se Nonato aceitar, o nome vai ser Nonato e Seu Conjunto, a gente bota uns papeizinhos em um copo, Nonato e Seu Conjunto, o que ele tirar vai dar Nonato e Seu Conjunto” [risos]. No outro dia ele tava ensaiando uma música. Quando ele desceu, “como é, Nonato, resolveu?”, e ele “é, eu vou aceitar”. A gente, êêê, aquela comemoração. Vambora escolher logo o nome do grupo, já tava combinado. Ele meteu a mão no copo, deu Nonato e Seu Conjunto. Daí ficamos. Eu já tinha meu instrumento, eu tinha meu violão elétrico, o baterista tinha a bateria dele, o contrabaixista tinha o baixo, o pistonista tinha o pistom, o saxofonista, que é Nero, já tinha o sax, o cantor era Murilo Oliveira. Depois passou a ser Cardoso. Aí fizemos o grupo, começamos a ensaiar. De repente pegamos o contrato para tocar as tertúlias do Lítero, que começava às oito da manhã. Começava oito, terminava dez. Durou bastante tempo. Aquilo era uma brincadeira, a gente tocava na base da brincadeira, pegava um cachezinho pra levar pra casa. Aí passamos a pegar contrato pra festas de casamento, colação de grau, tocávamos lá no Casino [Maranhense], que era na [avenida] Beira Mar. E o grupo foi tomando frente e só tínhamos nós na praça. Depois foi que surgiu o CurtiSom, Os Colegiais, Os Fantoches. Mas de início éramos só nós, tanto aqui na cidade quanto no interior. Essa baixada toda nós tocamos, e também do outro lado, a gente pegava Vargem Grande, Itapecuru, Chapadinha.

Quem foi o músico que mais te influenciou no começo da carreira? Era o Careca, que tocava bandolim e cavaquinho. Tinha os olhos gateados. Era exímio músico. Tocava violão também. Ele pegava o violão dele, lá no João Paulo, ele vendia pastel numa cesta desse tamanho [gesticula com as mãos]. Quando ele chegava com o violão dele lá no João Paulo, aí faziam a roda, ele cantava até um samba assim [cantarola:] “violão amigo/ venha ouvir meus ais”. Ele cantava essa música, toca violão, aí a canalha fazia a roda e ele vendia o pastel todinho. Quando passava pro cavaquinho, foi quando surgiu aquele choro que o Jacob fez por nome Flamengo [de Bonfiglio de Oliveira], esse era o começo [toca a introdução]. E o Careca tocava isso e chamava a atenção. Aí eu fiz amizade com ele. Eu estudava no Teixeira Mendes, onde é a Caixa Econômica hoje, e eu saía do colégio e passava pra brincadeira. Mamãe falava, “meu filho, vai pra casa”, e eu tava atrás do instrumento.

Você já viveu só de música, a música já te sustentou? Já vivi. Sustentei a família muito tempo na música. Eu tinha um patrão muito agressivo, uma vez ele me passou um carão na frente de Mascote, lá no balcão. Eu já tinha mais de 10 anos da empresa e ele perguntou se eu tinha vontade de sair da firma. “Então faça o seguinte: o que você vai levar de indenização, dá para abrir um negócio para você”, ele disse. E me orientou a, quando me perguntassem o porquê de eu deixar a firma, eu devia responder que era de livre e espontânea vontade. Assim fiz, era 1958 ou 59. Não recebi nada. Passei dois anos vivendo apenas com o ordenado que eu ganhava na rádio Timbira, como violonista do regional. E tocava por fora pra levar pra casa.

Você chegou a gravar discos com Nonato? Ele gravou, mas eu não tava mais no grupo. Quando ele gravou, tava [Arlindo] Pipiu, Zé Américo, Chico do Zuca, saxofonista, Garrincha. Nonato adquiriu um empréstimo no Lítero e foi à São Paulo comprar um instrumental novo. Nosso baixo não tinha trastes, era gavetão. Quando Nonato veio de São Paulo trouxe um contrabaixo elétrico, mas sem trastes, trouxe bateria nova. No dia da inauguração desses instrumentos, foi uma coisa gozada. Nós fomos tocar no Clube Alvorada, ali no Tirirical, um clube da Força Aérea Brasileira. Garrincha antes de chegar já tinha enchido a cara. Na hora que começou a festa, só dava Nonato, o clube cheio de gente, Garrincha cheio do pau, a gente foi tocar uma música [faz o ritmo com a boca], na hora em que ele foi fazer uma frase, estourou os dois tambores, rasgou de meio a meio. Nonato com aquela calma terminou a música e o show na bateria. Garrincha continuou no grupo, mas aprontou muito das suas.

O senhor teve algum estudo formal de violão? Não. Aprendi na raça. O pouquinho que aprendi foi só pra me divertir.

Além de Nonato e Seu Conjunto, de que outros grupos musicais você participou? Primeiro nós tínhamos o Grupo Difusora. Nós tocávamos em aniversário, éramos eu e Zé Cantanhede, dois violões de seis cordas, Careca no bandolim e violão tenor, que ele tocava que era uma beleza, Racinha na maraca e no pandeiro, ele era canhoto, Maneco baterista, Osmaro contrabaixo, Antonio Rodrigues sax tenor e Toinho acordeom. Aconteceu que até uma vez a Dalva de Oliveira se apresentando no Teatro Arthur Azevedo, aquela música [cantarola:] “Ave Maria, lá rá ri” [Ave Maria no morro, de Herivelto Martins], rapaz, nós ensaiamos a música e Rodrigues antes de começar a função era uma dor de cabeça e não teve jeito de ele descer para tocar e quem fazia o solo era ele. Quando chegou na hora dessa música, ele veio de lá, mesmo com a dor de cabeça, ninguém esperava isso dele. Na hora do solo, o saxofone saiu de detrás da cortina, a coisa mais linda, todo mundo aplaudiu. Depois eu passei seis anos com Nonato, tocando no Lítero, festa de carnaval, aquelas músicas que até hoje em dia se toca. Nonato depois que criou asas começou a dar ordens dentro do grupo. Aí ele dizia: “só fica no grupo quem ensaiar”. Eu era empregado, não podia ensaiar, Cardoso, do Banco do Brasil, também não podia ensaiar. Ninguém podia deixar o trabalho para ensaiar. Aí ele já queria botar Oberdan e Pitomba no grupo, eu fui me aborrecendo e larguei. Quando eu saí do grupo, uma noite eu tava em casa, quando recebi um convite para uma seresta na Rua Oswaldo Cruz. Foi a última vez que eu toquei com Nonato, foi na inauguração dessa boate. Depois eu entrei nos Fantoches, em 1968, na vaga de Sinhô, [o violonista] João Pedro Borges. Passei oito anos nos Fantoches. Raimundo Sebastião Coelho, sargento do exército, era o chefe. Tínhamos três pistons, três saxofones, botijão de gás tocado com dois vergalhões, aquilo fazia uma zoada, “taca-taca, taca-taca, taca-taca” [imita o som percussivo do botijão com a boca].

E regional de choro, em quais tu tocou? Regional de choro, não teve assim um seguro. Eu me unia com [o flautista] Serra [de Almeida, primeiro entrevistado da série Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3/3/2013], a gente tocava umas pisadas em ritmo de choro, o repertório todo de Altamiro Carrilho.

Só vocês dois ou tinha mais gente? Às vezes tinha um pandeirista, às vezes não.

Tinha nome essa formação de vocês? Não, não tinha.

Vocês tocavam em vários lugares, no Hibiscos [bar da época, o entrevistado localizou-o nas proximidades do Detran, Castelão]? No Hibiscos nós tínhamos grupo. Era eu, Serra, Spirro, Zé Branco e Juca [do Cavaco]. Não tinha nome o grupo. Depois do Hibiscos foi que nós fomos para a Caixa Econômica [a Serenata Caixa Alta, na Associação do Pessoal da Caixa – APCEF].

Você compõe, faz arranjos? Não. Às vezes eu crio uma ou outra coisinha diferente [improviso na execução de uma música], pra não ficar bitolado.

Já participou da gravação de discos? Não.

Mas acompanhou grandes nomes nacionais. Dalva de Oliveira, no Casino Maranhense. Quem mais me deu trabalho foi a Maysa Matarazzo.

Deu trabalho por quê? Ela botava um pó na bebida. Pelo menos, no dia em que nós fomos ensaiar, fomos eu, o rapaz do ritmo e o acordeonista, ela tava no Hotel Central. Quando nós chegamos lá, ela tava no banho. Ficamos esperando. Ela saiu do banho toda de roupão, bonita, nos cumprimentou, os olhos bonitos. Ela cantou uma música, passou uns 10 minutos, disse que não queria mais ensaiar. “Eu não quero mais ensaiar, tá tudo bom”. Lá no [Teatro] Arthur Azevedo, estavam tocando artistas locais, a atração era ela, e o teatro cheio de gente. A caminhonete chegou com ela e nos chamaram, estava na hora. Quando subiu ao palco ela disse que não queria cantar com o regional, começou a cantar só. Tinha outro contrato pra mesma noite, no Casino. Ela também se recusou a tocar acompanhada pelo regional e mandou chamar Mascote, um violonista muito bom de que ela tinha ouvido falar. Depois ela se negou a cantar também com ele, o povo já ensaiando uma vaia, quando ela começou a cantar Meu mundo caiu. No outro dia, nos jornais, foi um escândalo.

E outros nomes? Dóris Monteiro, Linda e Dircinha Batista, Ademilde Fonseca, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Nora Ney, Dalva de Andrade, Alcides Gerardi, Orlando Dias, Blecaute, Genival Lacerda, Cauby Peixoto, Silvio Silva, Altemar Dutra, Carlos Gonzaga, Nelson Gonçalves, Anísio Silva, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Conceição de Oliveira, Orlandira Matos, Suely, Maria Diniz, Célia Maria, Naná Ramires, Ivone Mendes, Elza Lopes, Lourdinha Costa, Sérgio Miranda, Bico Doce, Roberto Müller, Cardoso, Moacir Neves, Escurinho do Samba, Álvaro Duarte, Joaquim Fernandes, Nilton Vieira, José Penha.

O que significa o choro pra ti? Eu considero uma das melhores músicas. É o gênero que eu abraço, é o que eu gosto. E o choro, eu vou te dizer uma coisa: só toca o choro quem sabe. É uma música difícil. Não pode ter erro, de jeito nenhum.

Quem é o artista que você mais admira dentro do universo do choro? Aqui em São Luís eu gosto bastante do Serra. Gosto do Juca. Fomos companheiros de muito tempo. Quando ele começou a tocar cavaquinho, eu disse: “esse menino vai dar um bom cavaco”, e não me enganei. Nacionalmente, um nome que eu admiro é Jacob, o estilo de Jacob.

Tu falaste em vários espaços em que havia música ao vivo. Como tu vê São Luís hoje, em termos de espaço para a apreciação de boa música, choro? Tens saído para ver isso? Se eu passar e escutar um ritmo de choro ou sambas canções, eu paro para ouvir. Mas se eu passar e escutar uma pagodada doida, mal tocada, com três cavaquinhos, um banjo fazendo aquele centro doido, dando umas notas que não tem na música, eu não paro pra ouvir isso aí.

Tu estás escrevendo tuas memórias, né? Umas coisas que fui lembrando de minha juventude e fui anotando. O tempo em que militei na Zona do Baixo Meretrício, eu tocava por lá, apreciava as noitadas, toquei com muita gente. A zona era conhecida, tinha as [pensões] de luxo e tinha as vagabundas.

Quando foi que o senhor teve a ideia de registrar as memórias? Foi semana retrasada, eu não tou fazendo nada, vou me lembrar das coisas aqui que eu passei e comecei a escrever.

O senhor pretende publicar esse material? Publicar isso aqui? [risos]. Eu não sei, comecei a fazer para mostrar pros colegas. Parafuso [o sonoplasta Elvas Ribeiro] se lembra dessas pessoas todas. Onde eu botei aqui o regional [que tocava na ZBM na época]? [Lendo um trecho das anotações] Eu ainda recordo, apesar do tempo, as casas que tinham música ao vivo: Casa Branca, Maroca, Lili, Zilda Preta. O grupo que tocava era assim: Vital, baterista, Jorge Cego, trombone, Haroldo, banjo, Santinho, pistom, Seu Riba, pistom, Amilar, bandolim, Roque, rabecão, Zé Hemetério, violino. Outros músicos davam canja: Osvaldo, baixo, Apolinário, banjo, Mr. Jones, bateria, Padilha, violino. Nome das pessoas que animavam o salão do Bar Hotel Central, do senhor Maia: Vital, baterista, Lauro Leite, violino, Pajebinha, sax alto, Haroldo, banjo, Zé Hemetério, violino, Chaminé, acordeom, Cunha, pianista, Roque, rabecão, Santinho, pistom, Seu Riba, pistom [continua lembrando outras formações, que tocavam em outros espaços]. Olha como eu botei aqui [continua a leitura]: a casa de Lili era frequentada por pessoas mais escolhidas. Não tinha bagunça. Quando acabava o movimento das outras casas, nós, digo, Zequinha de Jagunço, Amilar, Agnaldo, Zé Penha, Xereta, irmão de China, que era amigo de Cleres… Zequinha de Jagunço se dava com a dona da pensão, a Lili, por isso ele nos levava para tocar até de manhã, e eu ia por que sempre eu ficava com uma puta [gargalhadas gerais]. Ora se eu ia pra lá pra ficar de graça? Amanhecia lá.

[O Imparcial, 17 de março de 2013]

Chorografia do Maranhão: Serra de Almeida

[Primeira entrevista da série Chorografia do Maranhão, publicada em O Imparcial, 3/3/2013]

 

 

O flautista Serrinha inaugura série de entrevistas com grandes instrumentistas do Choro maranhense. Chorografia do Maranhão será publicada quinzenalmente aos domingos em O Imparcial.

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Mais conhecido pela alcunha de Serrinha, Serra de Almeida é um senhor tranquilo e elegante. Naquela tarde quente, típica de São Luís, estava mais à vontade, de bermuda, camisa e boné. E flauta em punho, tocada em alguns momentos do bate-papo, a ilustrar musicalmente a conversa, acontecida no bar e restaurante Cumidinha de Buteko (Cohajap, São Luís/MA). Sua imagem, uma espécie de Copinha timbira, contrastava o senhor de camisa e calça sociais, sempre muito bem alinhadas, quando de apresentações em espaços como a Serenata Caixa Alta, o Clube do Choro Recebe e as mais recentes rodas com o Regional Tira-Teima que têm ocupado as sextas-feiras do Hotel Brisa Mar.

Aos 76 anos, diz ser um velho sem muito tempo dedicado ao choro – para ele a música maior. Isso apenas para explicar que passou a maior parte da vida trabalhando com petróleo. Mas só no Tira-Teima já está há quase um quarto de século.

José Serra de Almeida nasceu em São Bernardo/MA, em 13 de novembro de 1936, filho de Francisco Coutinho de Almeida, comerciante que chegou a prefeito do município, flautista diletante, e da dona de casa Maria Magnólia Serra de Almeida. Ainda na infância o menino se apaixonou pela música. A seguir, os melhores momentos da entrevista.

Fale um pouco de suas experiências profissionais, além da música, com o petróleo e hoje trabalhando em cartório. Nesses 70 e poucos anos que eu tenho, já fiz muita coisa. Mas o trabalho que eu perdurei mais na vida foi quando eu fui petroleiro, petrolista, não sei como é que chama. Eu era auxiliar técnico de petróleo. A empresa investiu muito em mim, fiz vários cursos de petróleo: refinaria, terminal. Houve uma época em que eu passava muito tempo naqueles navios.

Você trabalhava no Maranhão? Não. Eu trabalhei na Bahia, todo esse tempo. 21 anos. De fevereiro de 1960 até 1980. Voltei novamente ao Maranhão, aí saí da empresa. Eu digo 21 anos, mas incompletos.

E quando o senhor saiu do ramo do petróleo, foi fazer o quê? Vim pra cá, fui ser comerciante, comércio de madeira, exploração de madeira, aqui em São Luís. A maior burrice que já fiz. Peguei um ramo errado na minha vida. Foi onde eu gastei quase tudo o que eu ganhei na minha vida, lá na Bahia. Terminei indo à falência. Aquela recessão de 1983, 84, eu comprei uma serraria ali no Anil. A maior serraria de São Luís era a minha, mas eu não tinha experiência. Passei a vida toda trabalhando na Petrobrás, cheguei aqui, fui me meter nisso, arranjei um sócio quebrado, meu irmão, o mais novo, que me induziu a esse tipo de coisa. Sempre muito humilde, eu aceitava tudo aquilo. Nunca tive a impressão que aquilo estivesse errado, sempre tocava pra frente, pagava tudo à vista, pagava os impostos rigorosamente como manda a lei, tinha empregados além do que precisava. Se eu precisava de oito, eu tinha 16. Tinha um caminhão trucado que eu puxava tora do interior pra cá, pra serrar.

E hoje, está aposentado? Eu tive que me aposentar. Foi aí que eu comecei minha vida de novo. Essa flauta aqui [está com o instrumento nas mãos], que eu tocava muito fraco [tinha pouco conhecimento] nesse tempo, ainda, que me ajudou a manter inclusive meus filhos no colégio.

Você se tornou um flautista respeitado em São Luís. Teu pai era flautista. Além do teu pai, qual era o universo musical de tua cidade? Tu conviveste com bandas? Como era o universo musical na tua infância e adolescência? Isso aí sempre teve muita influência por que eu era apaixonado por música. O padre de lá, Padre Nestor, que mataram lá em São Bernardo, não sei se você soube dessa história, ele era formado em música e conseguia tudo pra lá, instrumentos, tudo. A banda tocava em festas, em cidades vizinhas. Lá, só tinha mais do que em São Bernardo, só em Brejo. Brejo sempre foi uma cidade muito musical, histórica. Teve uma época que teve o Pedro Ambrósio, um grande músico, nascido em São Luís, que era muito amigo desse padre.

Havia algum músico, além desse padre, do Pedro Ambrósio, que tu observava em São Bernardo e tinha admiração por ele? Tinha. Não só um, mas vários. Tinha Chico Vaz, que tocava clarinete, o Assis, que tocava trompete e trombone, o Elpídio tocava cavaquinho, o Péricles tocava violão. Essa turma toda, eu menino ainda, convivia com eles. Eles gostavam muito de mim, eu só andava pelo meio.

O fato de tu ter um pai flautista foi o que te levou pra flauta? Nunca teve vontade de aprender outro instrumento? Em parte foi. Em parte foi essa herança de meu pai. A flautinha dele era uma flautinha de ébano, de sete chaves.

E ele foi quem te deu as primeiras aulas? Não, pelo contrário. Eu depois que comprei uma flauta na Bahia, que eu trouxe uma flauta dessas, ainda dei umas aulas para ele [risos].

Tu tinha que idade? Eu já era coroa, já tinha mais de 40 anos.

Teus pais, então, nunca apoiaram, essa iniciativa de tocar? Meu pai nunca desapoiou. Pelo contrário, ele gostava demais disso. Agora, ele não tinha bagagem assim, pra me ensinar. Ele foi aluno desse padre, do maestro Pedro Ambrósio, e lia música. Melhor do que eu. Eu leio muito mal.

O rádio teve alguma influência? Muita! Eu gostava daqueles programas americanos, jazz, aquele Benny Goodman, eu era louco por aquele cara. Eu tenho um dvd em casa que a maior parte é com ele. É um tributo a Louis Armstrong que parece muito com aquela época. A Orquestra Tabajara. Severino Araújo saiu aqui da Paraíba muito novo, mas já formado.

Fora esses, quem são os músicos que te influenciaram, flautistas ou não, brasileiros ou não? Depois que eu comecei a tocar flauta, Altamiro Carrilho. Minha maior referência sempre foi Altamiro Carrilho. Onde eu via qualquer coisa dele eu comprava. Até hoje é assim. Tudo o que passa [na tevê] dele eu gravo. O bom humor dele. Eu tenho um programa que eu gravei já perto de ele morrer, em que ele começava a tocar [imita o som da flauta com a boca] Mozart, um arranjo que ele fez [toca o trecho de abertura na flauta]. Isso ele começou a tocar e no meio da música parece que faltou alguma coisa na memória. Aí ele botou a flauta assim [põe a flauta no colo] e “quiá, quiá, quiá” [imita], caiu na gargalhada [risos]. Aí ele voltou e começou a explicar que a paixão dele era Mozart.

E hoje tu estando aposentado e tendo mais tempo para te dedicar à música, dá para dizer que tu vive ou já viveu de música. Ou é só prazer? Como aposentado eu não tenho muito tempo para música. Já tive. Mas aí eu saturei e tive que arrumar algo para fazer, se não ia ficar estressado, ia adoecer. Há muito tempo vinham me oferecendo uma vaga no cartório, e eu resolvi pegar, já tinha trabalhado com isso. Ele [o proprietário] morreu e eu assumi um compromisso com a filha dele. Sobre a questão de me sustentar com música, isso só nessa época que te falei, que a flauta me ajudou. Eu tava quebrado mesmo. Mas eu, pela ajuda de Deus, eu tive muita sorte, e na Caixa Econômica [Associação do Pessoal da Caixa] tinha uma seresta [Serenata Caixa Alta], e quem fazia, não deu certo. Paulo Trabulsi, Sadi, esse pessoal, não deu certo. Aí eu entrei. Entrei e como eu sempre respeitei muito tudo aquilo que eu pego pra fazer, eu não gosto de falhar, eles não ligavam para nada e eu comecei a mostrar que eu tinha interesse pela coisa. Aí os diretores me chamaram. “Serra, você é que vai ser o chefe do grupo”. E eu digo, “mas rapaz, Paulo é meu amigo”. “Não senhor, é você quem é o chefe do grupo, ou então nada feito”. Me encostou na parede, né?

Como era o nome do grupo? Era Chão de Estrelas. Anos 80. Durante três anos aquilo ali foi dinheiro. Era organizado. Sempre vinham grupos de fora. Eu conheci muita gente boa. Dominguinhos, por exemplo. Sempre que chegava gente, me diziam: “toma conta desse cara”. Aí eu ia andar com Dominguinhos, com outros.

De que grupos musicais você já fez parte? Você disse ainda há pouco que já tocou com Agnaldo [Sete Cordas, lenda vida do instrumento em São Luís]. Agnaldo era do grupo lá da Caixa. Paulo, cavaquinho, Agnaldo, violão [não consegue lembrar de outros nomes]. Ivone cantava, muito boa, Paulo deve ter alguma coisa dela gravada…

Esse era o Chão de Estrelas. Antes, tu já tinha tocado em outro regional? Antes disso aí eu tocava com Paulo mesmo. Era eu, Paulo e Zé Carlos [percussão]. Era esse trio.

Tinha nome esse trio? Não. Era o Tira-Teima mesmo. Por que ele [o regional Tira-Teima] varia muito a formação. O único original que ainda está no grupo é Paulo.

De que grupo você participou por mais tempo? O Tira-Teima mesmo. Do Chão de Estrelas foram quatro anos. No Tira-Teima eu estou desde 89.

Qual a sua opinião sobre o Tira-Teima? O que você acha desse grupo? É muito cheio de caracol, é muito enrolado [risos]. Mas pra mim, não é por que eu participo do grupo não, mas pra mim ainda é um dos grupos que toca tudo. Tudo o que você pensar o Tira-Teima toca. É um grupo genuinamente de choro, o nosso forte é choro, mas se você quiser valsa, baião, música clássica, se toca. Esse que eu toquei agora é um clássico. De Mozart. Minueto do divertimento, o nome dele.

Além de instrumentista, você desenvolve outros tipos de habilidades na música? Compositor, arranjador… Eu me meto a tudo, a compor, a arranjar, a ler música, que eu não sei. Mas quando eu quero eu faço. Faço e escrevo. Paulo fica admirado: “rapaz, como é que tu escreveu isso?” Quando eu tinha tempo, né? Agora…

Tu tens quantos choros, quantas composições? Três. Dom Chiquinho, um choro amaxixado. Eu fiz um choro, e eles [os músicos do Regional Tira-Teima] mudaram. Zé Carlos, com a batida dele, terminou ficando um maxixe. Tem o Choro nobre, que é o segundo. E tem Chorinho embolado, um choro muito bonito [toca um trecho na flauta]. Por aí você já vê que é um choro bonito. Mas mais bonita é a terceira parte [toca novamente; e a pedido de Ricarte, um trecho de Dom Chiquinho]. Eu comecei a cismar com ele [o choro Dom Chiquinho] por que quando eu fiz esse choro eu não conhecia um choro chamado Cheguei [de Pixinguinha], e a segunda parte dele tem muito disso aqui [toca um trecho de Cheguei]. Tem alguma coisa diferente, mas é quase todo igual. Parece demais! Mas eu nem conhecia esse choro. Depois que eu conheci, eu comecei a querer aleijar o Dom Chiquinho, mas já tinha pegado.

Serra, tu já participou da gravação de algum disco? Já. Tem um disco aí, Na palma da mão [verso de Uns e alguns, de Jorge Aragão, que dá título ao primeiro disco do grupo Serrinha & Companhia], que eu participei, no Tributo a Zé Hemetério [outra faixa do disco, de Gordo Elinaldo, executada pelo Regional Tira-Teima, em participação especial] e em Das cinzas à paixão [de Cesar Teixeira, cantada no disco por Zeca do Cavaco, membro do Tira-Teima; Serra de Almeida toca um trecho na flauta]. No cd de Anna Cláudia, num do Festival da Caixa na Paraíba, tem até uma música de Paulo [Trabulsi].

Quem são os compositores do Maranhão que tu mais admira? Da música em geral. Aqui do Maranhão Cesar Teixeira para mim é o melhor. Gosto muito de Ubiratan [Souza], também é um cara muito inteligente.

Na tua opinião, qual a importância do choro para a música brasileira? O choro é a única música brasileira, genuinamente brasileira. Se não fosse tão boa não era tão admirada lá fora. Não era invejada. Causa inveja em algumas partes do planeta. Alemanha, França, Espanha. E difícil! O choro é isso: ninguém consegue dominar com facilidade.

Tu acha que o choro, enquanto linguagem, influencia a música popular brasileira? Não deixa de influenciar. O samba, por exemplo.

Você tem acompanhado o desenvolvimento do choro no Brasil? Tem desenvolvido demais. Pelos contatos que tenho, alguns amigos, televisão, a gente vê. O [clarinetista brasiliense] Fernando Machado me conta muita coisa sobre a evolução do choro lá em Brasília, as novas gerações, todo mundo, os jovens entusiasmados tocando choro. Esse Dom Chiquinho ele levou a partitura. Depois esteve aqui e disse: “Serra, teu choro tá sendo tocado lá pelos garotos”.

Isso te alegra? Não deixa de me alegrar, né? Eu já tou mais pra lá do que pra cá e vou levar uma coisa que eu sei que agradou alguém.

Tu participou daquele show de Zé da Velha e Silvério Pontes [lançamento do cd Só Pixinguinha, da dupla, no Circo da Cidade, em 2006, produzido por Ricarte Almeida Santos, com participação de diversos nomes da cena local]. O que foi pra você dividir o palco com aquelas figuras nacionalmente reconhecidas? Foi um verdadeiro banho de orgulho, por estar tocando ali. Aquilo foi um orgulho pra mim. Esse orgulho que tenho não me diminui, não faz mal. Acho que sou capaz de fazer algo semelhante ao que eles fazem.

Eles disseram isso. Compararam com Copinha, que é um dos maiores. Isso também Turíbio Santos já me disse. “Rapaz, você até parece com o Copinha!” Apesar de eu não zelar como devia, pela desenvoltura ao instrumento. Se eu pegasse todo dia no instrumento, como músico tem que fazer.

Tu acha que o choro hoje é diferente de antigamente? Houve algumas modificações, mas em se tratando de choro, na essência, é a mesma coisa. Isso aí ninguém pode mudar.

Qual a tua avaliação do choro praticado no Maranhão hoje? Eu vejo muito pouca coisa. No Maranhão nós somos poucos. Destaque tem você [Ricarte], que é um homem que se dedica, tem que respeitar. Depois tem grupos como o nosso [o Regional Tira-Teima], o [Instrumental] Pixinguinha. Tem muita gente aí que toca choro, mas não é com a alma. Não é como nós, que tocamos e admiramos outras músicas, mas o choro é a principal.

Tu acha que falta, no Maranhão, um espaço de valorização da cultura do choro? Fora o programa de Ricarte [Chorinhos e Chorões, aos domingos, às 9h, na Rádio Universidade FM, 106,9MHz], o [projeto] Clube do Choro Recebe, que aconteceu no bar do Chico Canhoto. Eu acho. O negócio vai mudando muito devagar. Não é como em Brasília que a gente vê o entusiasmo. O Chico Canhoto foi importante, mas o vento levou. Aquilo deixou um resultado. A gente [o Regional Tira-Teima] tá tocando no Hotel Brisa Mar [Ponta d’Areia], toda sexta-feira, de sete e meia às 10 e meia da noite. O rádio tá divulgando, de vez em quando chega gente que era de lá [frequentadores do Chico Canhoto].

Quem são os maiores instrumentistas de choro no Maranhão hoje? Essa pergunta é um pouco difícil. Flauta, eu e João Neto. João Neto é um músico que toca choro. Eu sou chorão. Eu toco choro por prazer, não troco por nada, não desisto. João Neto não é um entusiasta do choro. A pessoa que eu admiro tocando choro aqui é Paulo Trabulsi. Ele é um entusiasta do choro. E não é por que seja meu colega, não.

O Tira-Teima é o mais antigo grupamento de choro em atividade no Maranhão. O grupo não já devia ter um disco gravado? O que falta para isso? Sim. Isso é um descaso. Uma falta de responsabilidade nossa, até. Falta unificar o pensamento e o interesse do grupo. Eu nunca perdi o ânimo, continuo na esperança de a gente gravar um disco. Quando o negócio tá pra se encaminhar, todo mundo esquece. Não é falta de condição financeira, é falta de responsabilidade mesmo.

Tu arriscaria dar um chute sobre como estará a cena daqui a alguns anos? Eu faço votos de que a gente esteja muito melhor. Nomes novos estão surgindo, mas não é a essência do choro. Eles mudam as coisas. Outro dia eu ouvi o Luizinho [Sete Cordas, músico paulista] dizendo: “gente, vamos respeitar o choro! Vocês estão querendo colocar o carro adiante dos bois”. É isso mesmo!

“Chorografia do Maranhão” estreia amanhã (3) em O Imparcial

Ideia acalentada há um tempinho, a série Chorografia do Maranhão chega amanhã ao papel. Mais precisamente às páginas do jornal O Imparcial, onde será publicada quinzenalmente aos domingos.

Este blogueiro e Ricarte Almeida Santos entrevistam chorões maranhenses, fotografados por Rivânio Almeida Santos. O objetivo principal é registrar as histórias e memórias destes grandes mestres. Depois de publicadas no jornal, Chorografia deve virar um livro, talvez algo mais.

A jornalistamiga Patrícia Cunha fez uma bela matéria nO Imparcial de hoje (2), divulgando a iniciativa. Continue Lendo ““Chorografia do Maranhão” estreia amanhã (3) em O Imparcial”