CELSO BORGES**
Por que escrever apenas dos 16 aos 20 anos? Virar pelo avesso a poesia ocidental e depois abandonar a literatura e rumar para a Abissínia em busca de algumas moedas de ouro? Assim fez o poeta Jean Nicolas Arthur Rimbaud, que ao lado de Charles Baudelaire forma a dupla mais importante da poesia moderna, nascida na França na segunda metade do século 19. “Não penso mais nisso”, diria mais tarde Rimbaud ao amigo Delahaye quando questionado sobre literatura.
O enigma da renúncia do bardo francês atravessa gerações e permanece sem resposta. No caso de Rimbaud, essa deserção tem um caráter mais agudo, pelo curto espaço de tempo que escreveu e pela importância de sua obra para a poesia de seu tempo e além. Para poetas como eu, que carregam a palavra por todo o corpo e nunca pensaram em abandoná-la, a atitude de Rimbaud traz desconforto e alguma angústia. Um lado meu procura compreendê-lo. O outro, chora a perda de um cúmplice e sente o golpe. Como uma traição.
Rimbaudemônio é um grito e um exercício de imaginação contra os fugitivos da literatura, além de uma afirmação da poesia. É um texto de raiva e revolta contra Rimbaud, ainda que dê a ele chances de se defender. Narra um encontro imaginário entre o poeta e o demônio. Depois de beber inspiração no cálice satânico para escrever alguns dos versos mais belos de sua época, Rimbaud abandona a poesia. Antes, porém, sente-se no dever de comunicar isso ao seu grande mestre e para isso vai visitar o diabo no inferno, que se revolta contra ele.
O inferno, aqui eleito como fonte de desregramento, delírio e rebeldia, é resultado de uma idealização romântica, ou mesmo de uma falsa idealização. Na educação cristã que recebi na infância, a presença de um Deus punitivo e de um juízo final implacável sempre foram mais presentes do que a figura do diabo e do fogo do inferno. Mais tarde, revoltei-me contra essa simbologia do medo. Rimbaudemônio é também, por isso, uma reação, mas sobretudo uma provocação contra esse universo. Para isso, investi num conceito de transgressão que tivesse origem na figura do demônio e no cenário de fogo regido por ele. É dentro dessa concepção que nascem a beleza e a rebeldia de Rimbaud.
Cinco tradutores do poeta francês alimentaram a construção deste texto: Augusto de Campos [Rimbaud Livre], Ivo Barroso [Arthur Rimbaud – Poesia Completa], Lêdo Ivo [Uma Temporada no Inferno & Iluminações], Maurício Arruda Mendonça e Rodrigo Garcia Lopes [Iluminuras – Gravuras Coloridas], além dos ensaios Rimbaud e Jim Morrison – Os Poetas Rebeldes [Wallace Fowlie]; A Hora dos Assassinos [Henry Miller]; O Castelo de Axel [Edmund Wilson]; Diabo – Uma Biografia [Peter Stanford]; e inspirações libertárias do Gênesis, de Roberto Piva, dos Pequenos Poemas em Prosa e da obra completa de Charles Baudelaire, e do clássico Simpathy for the Devil (Jagger/Richards), do Rolling Stones, relido pela lente do cineasta Jean Luc Godard.
Sem Lêdo Ivo, o primeiro tradutor de Rimbaud no Brasil, não haveria Rimbaudemônio. Devo muito deste trabalho à sua tradução de Uma Temporada no Inferno & Iluminações, que me trouxe de volta a rebeldia do poeta. Li esse livro há mais de 20 anos e confesso que somente na releitura, no início de 2008, percebi com mais lucidez o impacto de seus versos sobre a poesia moderna.
Lêdo Ivo está fora de minha lista de poetas/tradutores preferidos, talvez por ser um ícone da Geração 45, com a qual não me identifico em razão de sua excessiva e equivocada rejeição ao modernismo de 22 e aos seus desdobramentos. Mas devo reconhecer que bebi do seu entusiasmo no pequeno ensaio que assina no prefácio do livro. Durante a leitura dos versos de Uma Temporada no inferno & Iluminações, esse entusiasmo cutucou minha inspiração e estimulou alguma raiva contra a renúncia do poeta francês. Daí nasceu a ideia de construir um diálogo entre Rimbaud e o demônio.
Outra tradução mais recente, Iluminuras – Gravuras Coloridas, de Rodrigo Garcia Lopes e Mauricio Arruda Mendonça, foi essencial como diálogo com a tradução de Lêdo Ivo. Sobretudo pelos ensaios curtos e luminosos do posfácio, que me ajudaram a compreender um pouco mais o alcance da obra de Rimbaud e mudaram meu olhar, de certa forma ainda ordinário, sobre os truques e trovões rítmicos do poeta de Ardennes.
É importante destacar, no entanto, que Rimbaudemônio está longe dos primeiros experimentos com a técnica cut-up do norte-americano William Burroughs, quando usou trechos das Iluminações (ou Iluminuras, como preferem os tradutores Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça). Aproxima-se muito mais do método detournement (desvio, descaminho, roubo ou rapto, em francês) criado por Lautreamont, cujo objetivo é modificar frases existentes pela troca de algumas palavras ou pela adição de outras cuidadosamente escolhidas. “O plágio é necessário. O progresso exige” (Lautreamont).
*Este texto foi originalmente distribuído aos meios de comunicação junto do release da peça. ** Celso Borges é poeta e jornalista.