O sonho (não) acabou

[Quintal Poético, na 7ª edição do Almanaque J P Turismo, já nas bancas]

Depois da enésima ligação do diretor de redação, o cronista finalmente caiu na real e resolveu sentar-se em frente ao micro e escrever a crônica para a próxima edição da revista. Não gostaria de ser responsável por qualquer atraso. Mesmo sem idéias, abriu uma long-neck e sentou-se, em frente à tela em branco. O word, parecia piscar-lhe os olhos, dizendo “escreve em mim!”. Mas sobre o quê? Era sempre esse pavor quando ia começar. Ficção era sempre cruel para ele. Gostava mesmo era de poesia, por mais que sofresse para escrevê-la, já que sempre traduzia ali, nos poemas, as dores que lhe corroíam a alma. Ou as raras felicidades que vivia. Como não tinha um tema pré-estabelecido, tudo tornava-se ainda mais difícil. Era muita responsabilidade. Podia escrever sobre qualquer coisa, isso o assustava. Pensou em pedir ajuda aos leitores, nestes tempos de messengers, orkuts, gazzags, blogues e similares. Não, isso não adiantaria. Acabaria traindo alguém fazendo isso. Lia bastante, mas não conseguia inspiração. Gostaria de escrever como João Antonio, captando a alma das ruas. Impossível, julgava, e desistia antes da primeira linha. Pensou em escrever sobre a felicidade de ter companhia para agradáveis passeios de mãos dadas. Sim, o cronista agora estava namorando. Sério. “Do mal, será queimada a semente. O amor será eterno novamente”. Lembrou-se dos versos de Nelson Cavaquinho. Pôs o disco e serviu-se de mais uma cerveja. Não poderia escrever sobre isso. Sua namorada não se sentiria bem com tanta exposição. Embora ela soubesse que a vida do cronista era um livro aberto. Quando o telefone tocou novamente, lembrou-se de Jorge Ben (à época ainda não Jor): “o telefone tocou novamente, fui atender e não era o meu amor”. Até poderia ser, mas preferiu não atender, imaginando alguém da redação, do outro lado da linha, cobrando a crônica. Um toque no mouse desfazendo a proteção de tela e lá estava o word, ainda completamente em branco. As unhas iam se desgastando, como um tira-gosto do nervosismo para as cervejas que iam sendo retiradas da geladeira. Tela branca. Um branco de idéias. Pensou em escrever sobre alguma aventura etilírica, vivida no passado. Mas logo castrou a idéia: o tema já estava por demais batido e haviam escritores que faziam isso melhor que ele. Abriu a pochete em busca de algo. Guardanapos amassados, riscados de canetas. Idéias para poemas. Apenas poemas. Nada servia, nada o salvava. Desligou o computador. Foi até uma das várias estantes abarrotadas de livros, “servem só pra quem não sabe ler”, lembrou Raul, serviu-se de um, de outro, procurava algo, nada. Cochilou. Dormiu. Sonhou. Despertou no meio do sonho. Acordou, idéia na cabeça. Iria contar o sonho aos leitores na próxima crônica.

diga lá! não precisa concordar com o blogue. comentários grosseiros e/ou anônimos serão apagados