a arquitetura de maranhão

ontens

quando meus pais se separaram, fui morar com mamãe e meus irmãos em uma casa na rua de santaninha, centro. chico maranhão morava, à época, na rua da viração, esquina próxima à casa onde morávamos, entre aquela e alecrim. cheguei a, por vezes, jogar bola com um filho dele, cujo nome e feições se perderam nas esquinas de minha memória. uma vez visitei a casa de chico (ele não estava) e fiquei encantado (eu tinha entre 11 e 12 anos) com o bom gosto da decoração. o lado fã sempre falando mais alto.

quando da missa de sétimo dia da finada dona roxa (mãe de lurdimar, madrinha de meu irmão), dentro da igreja dos remédios, ao final, minha irmã, guria, cantou uma música de chico para ele ouvir. não lembro se era o refrão de pastorinha ou de quadrilha, esta recém lançada no lp quando as palavras vêm (1991), estávamos em 1992.

com coisa de 13, 14 anos, uma equipe do sesi, onde eu estudava, deveria escolher um tema para tratar de cultura. “por que não falamos de chico maranhão?”, foi a minha apaixonada sugestão. “quem é chico maranhão?”, a equipe discordou.

corta.

francisco fuzzetti de viveiros filho (nome de batismo de chico maranhão) lança hoje (27) o livro urbanidade do sobrado: um estudo sobre a arquitetura do sobrado de são luís, fruto de sua tese de mestrado em desenvolvimento urbano pela universidade federal de pernambuco (ufpe). a noite de autógrafos acontece a partir das 19h no espaço caixa (rua portugal, praia grande), um dos sobrados analisados pelo autor, na obra. o livro custa r$ 50,00 e traz encartado um cd com duas composições inéditas de chico: sobrado e sobrados e trapiches.

rewind.

23 de novembro de 2005. eu estava no quarto período de comunicação social (jornalismo) da faculdade são luís e pautei uma entrevista com chico maranhão para a disciplina de jornalismo em revista, ministrada pela professoramiga ana patrícia choairy, hoje minha orientadora de monografia.

com a entrevista, construí o texto a vida de seu francisco, obtive uma boa nota na disciplina, publiquei o trabalho em página inteira no diário da manhã (onde eu escrevia à época) e republiquei-o no overmundo.

chico fala à vontade, talvez minha inexperiência, minha inocência (a ingenuidade de que chico fala ao longo da entrevista) expliquem, ou o fã falando mais alto mais uma vez (preciso tomar cuidado para que isso não aconteça, ao menos não tão descaradamente, na monografia).

bom, sem mais, que meus poucos-mas-fiéis leitores devem ler isso aqui antes do lançamento (ou perde-se um pouco, mas só um pouco, do sentido) e chico fala um bocado sobre arquitetura, música e lances de agora e sempre. abaixo, a íntegra da entrevista.

*


[o compositor-arquiteto: a arquitetura por detrás do violão. foto: divulgação]

entrevista: chico maranhão

zema ribeiro – passei os olhos na casa e vi uma coisa diferente do que se costuma ver em são luís [à época, a casa misturava a sala à garagem; o carro estacionado dividia o espaço com estantes recheadas de livros e uma escrivaninha, onde se amontoavam mais livros; a não-divisão entre os compartimentos aumentava o espaço útil da residência]. essa casa é um projeto teu?

chico maranhão – sim, é uma adaptação. a casa é uma casa do século passado, da década de 50 e eu reformei. na verdade, o que acontece é que a cidade de são luís ‘tá toda muito alterada, com o conceito de modernidade. há uma quantidade de asfalto para a qual ela não foi projetada e isso muda tudo na cidade. há quarenta anos, são luís tinha uma temperatura à noite de dez graus. a cidade cresceu, então as casas em são luís são casas inadaptadas. toda planta, toda estrutura de uma porta-e-janela, hoje, como essa casa aqui era, ela está alterada. se não você não consegue viver por causa do calor. então eu tive que quebrar algumas paredes, adaptar, para poder criar um ambiente saudável.

zr – a música entra muito cedo em tua vida com o incentivo e a influência de tua mãe [a professora camélia viveiros] e a arquitetura entra na tua ida para são paulo, com a necessidade de estudar lá…

cm – de certa forma, sim. quem mora numa cidade como são luís tem a arquitetura na alma, queira ou não queira, por que a cidade é uma cidade muito bem projetada, muito bem feita pelos mestres do século xviii. eu nasci num sobradão, um sobrado tradicional de arquitetura portuguesa. então, quem mora num sobrado avarandado, que, como diz olavo pereira, “a frente é a metrópole, e o fundo, a colônia”. quem mora numa casa dessas tem que ter pendores para a arquitetura, não tenha dúvida. então, eu não fui conhecer arquitetura só com a minha ida para são paulo, eu já convivia com um arquitetura belíssima, como você convive. a minha música tem muito a ver com arquitetura. tenho um amigo, um jornalista em são paulo, que diz que eu sou um arquiteto-músico. o chico de assis, outro amigo meu, diz que arquiteto é uma profissão em disponibilidade, isto é, uma profissão que qualquer coisa, ela se adapta, então, uma hora ele faz música, outra hora ele faz poesia, outra, arquitetura, outra, projeto de tráfego, outra, escultura. então, o profissional está sempre disponível. de fato, a formação do arquiteto é uma formação mais criativa. na verdade, sou um criador, não me coloco nem como arquiteto nem como músico, sou um homem criador, o que eu faço eu vou fazer com criatividade, com qualidade.

zr – o personagem de a vida de seu raimundo [música de fonte nova (1980)], é daqui?

cma vida de seu raimundo foi uma música feita quando houve a morte do [jornalista wladmir] herzog [torturado e morto em 1975]. compus essa música no rio. o herzog tinha sido morto e eu conheci a família dele, a esposa dele, muito superficialmente, e nesse período, os nossos temas eram realmente esses, a música popular brasileira passou a ser um instrumento de defesa das nossas posições ideológicas, nesse momento de ditadura. a gente trabalhava muito, todos nós compositores, todos nós da minha geração, tínhamos essa intenção. foi uma música feita com um personagem que mistura o herzog e pega também o homem do povo, como essas pessoas que são massacradas na rua, hoje pelo tráfico, pessoas que são mortas, naquele período havia também, de certa forma, isso. então a música mistura essa coisa do herzog com os acontecimentos comuns da rua, o homem que é baleado, que é jogado no fundo do quintal. na verdade, essa música tem a violência que me impressionou na morte do herzog.

zr – você recentemente se apresentou com o renato teixeira [sambafo: onde tudo começou. show com chico maranhão e renato teixeira. abertura: sérgio habibe. dia 5 de novembro de 2005, na concha acústica da lagoa da jansen, em são luís/ma] e o teu disco de estréia é um brinde da [gravadora] marcus pereira, com renato de um lado e você do outro, que assinava, à época, apenas como maranhão. esse disco inaugura a marcus pereira como gravadora.

cm – só eu e renato tivemos esse privilégio, um disco dessa natureza. nenhum dos outros compositores grandes têm. você poderia ter um disco desse com caetano e gil. não tem.

zr – como é que tu vê isso? tu inauguraste a marcus pereira e o lances de agora, que é um disco fabuloso, e o bandeira de aço, que é outro disco importante para a música brasileira teve reedição em cd e o lances de agora não. como é que tu vê isso?

cm – são destinos diferentes, são dois discos, dois caminhos diferentes. o bandeira de aço, por mais que seja um disco da marcus pereira, tinha um cuidado especial que o papete deu ao disco, que o papete trabalhou. papete fez esse disco, pegou essas músicas [de cesar teixeira, josias sobrinho, sérgio habibe e ronaldo mota] em são luís, levou para são paulo e montou o disco. eu, não. meu disco é muito mais amador do que o dele. meu disco é muito mais romântico do que o dele. meu disco é muito mais descompromissado com o mercado do que o dele. nós não queríamos compromisso com o mercado. nós queríamos reagir à posição globalizante, na época, da globo, sabe? isso é um dado de idéia do marcus pereira que, de certa forma, eu paguei um preço. com muito orgulho. mas há um preço aí muito pesado que ainda será ressarcido, vamos dizer assim, esse preço, ainda será reconhecido na frente, quem sabe?, que é ter sido um disco que foi negado pela mídia, por não ter qualidade para tocar na mídia do momento, por que o disco se dispunha a isso. o disco pretendia um público que não era o da novela do momento da rede globo, o interesse era pegar outro público, era formar outra mentalidade, era mostrar cada vez mais que a música naquele momento, ela se valorizava pela sua qualidade intrínseca de criação, menos técnica.

zr – essa postura se mantém até hoje dentro da tua obra, não? fazer música mais por prazer do que pelo compromisso de vender discos…

cm – um pouco, sim. coisa curiosa, acho que sempre será assim. acho que esse é o valor desse artista de quem estamos falando, essa é uma qualidade desse artista.

zr – te incomoda ouvir rádio hoje?

cm – não, não me incomoda não. eu ouço rádio analisando, compreendendo o que ‘tá se passando, vendo o que ‘tá no momento, o que ‘tá se tocando, não há nenhum desgosto, né? evidentemente que se ouve aquilo e não se tem prazer em ouvir.

zr – por exemplo, a gente sabe que tu tens uma obra melhor e não toca…

cm – é, mas é normal isso. não tem como você querer uma parcela grande desse bolo. numa situação dessa você tem que ter uma parcela pequena. você tem que se preocupar com a qualidade da parcela. a minha vida, cada vez mais, fecha mais a peneira e torna a qualidade essencial. eu tenho 63 anos [65 hoje]. sou um homem que me sinto com 25 anos, só por causa da qualidade da vida, tanto a vida cultural, como espiritual, econômica, o alimento. cada vez melhor e tem que ser assim. cada vez minha vida fica melhor, em termo de qualidade.

zr – qual a tua religião?

cm – eu sou católico.

zr – como é que tu vê a nova geração? quem tu tem ouvido e te agrada?

cm – de maneira geral, acho que a geração mais nova, em relação à minha, tem uma coisa que eu acho que é uma diferença básica. nós éramos ingênuos. a geração hoje não é tão ingênua. eu acho isso importante para o artista, ingenuidade é fundamental. a geração de hoje perdeu um pouco a ingenuidade. ela é decidida, autoritária no que quer, competente, competitiva, mas falta um pouco de inexperiência, de compreender que a inexperiência, a ingenuidade é importante. aquilo de olhar uma coisa e dizer: não, não compreendi e perguntar e se impressionar. a geração, hoje, a diferença, é que ela não se impressiona.

zr – ‘tá tudo muito banal…

cm – é, se banalizou tudo.

zr – e essa falta de ingenuidade que tu colocas, acaba gerando um pouco de falta de sinceridade na obra…

cm – uma falta de autenticidade. falta. como na minha geração faltavam coisas. faltava, por exemplo, a competitividade. eu não aprendi a ser competitivo com 22 anos de jeito nenhum. só fui colocar minha obra com competitividade, depois de homem feito, depois de 35, 40 anos de idade é que fui aprender a competir. e foi um processo difícil para mim por que eu não gosto de aceitar essa competitividade, nunca gostei, até hoje eu tenho um pé atrás com isso.

zr – mas há algum nome, na nova geração?

cm – o pessoal que faz rock, há muita gente boa, o [arnaldo] antunes é um cara muito bom. tem gente muito nova em são paulo. eu fiz um show agora em são paulo, com renato, e vi. o filho da tetê espíndola, um garoto de 17 anos tocou um negócio absolutamente novo, a mão direita dele é completamente nova. chama-se dani black. essas coisas existem. existe muita gente em são paulo, esse caldeirão já misturado.

zr – como é que tu vê, por exemplo, o movimento mangue?

cm – já passou, né? uma experiência interessante de nordeste, do nosso lado, daqui. tanto que quando fiz a ópera boi [o sonho de catirina, (1995)], o [tenta lembrar], o crítico, como é mesmo o nome, o crítico do jornal do brasil?

zr – o tárik?

cm – o tárik de sousa fez uma matéria sobre meu disco e ele fez exatamente uma comparação, colocou dentro do padrão do [inverte o nome do movimento] beat-mangue, por falta de conhecimento. aproximou recife de são luís e considerou as coisas por aquela ótica. achei interessante, esse é o universo dele, ‘tá tudo certo. misturou um pouco com as idéias de hermeto pascoal, há uma música chamada canteiro de passarinhos, onde passarinhos cantam, e ele relacionou um pouco ao mangue de chico science.

zr – voltando um pouco à arquitetura, tu trabalhaste no escritório do niemeyer, né? como foi que tu entrou no magistério?

cm – quando eu fiz arquitetura em são paulo, havia uma intuição profissional, e era muito engraçado, eu sempre me liguei muito por onde me meti, e havia uma intenção de se expandir a profissão de arquiteto, de expandir mais, como se a gente sonhasse que o mundo precisasse de mais arquitetos e muitas escolas foram sendo criadas e nós nos dispúnhamos a dar aula de arquitetura e eu entrei nessa. dei aula na escola de santos recém-formado. quer dizer, eu sempre gostei, e isso aconteceu durante uns três, quatro anos em são paulo e ficou guardado na minha memória, esse prazer de ter contato com os mais jovens, com os colegas, de formar o arquiteto. aí passaram-se anos. quando aqui eu tive problemas com a ópera boi, que eu me desentendi com [o ex-diretor do teatro arthur azevedo, fernando] bicudo, resolvi dar um tempo para descansar, eu tava muito cansado, essa coisa toda veio com um stress muito grande, o próprio processo de fazer a ópera, e eu resolvi dar um tempo e descansar. como eu não gosto e não consigo ficar parado, imediatamente resolvi estudar arquitetura. fiz uma tese de mestrado, que eu me devia. essa tese virou livro, que estará sendo lançado agora, no final do ano, começo do ano que vem [mais tempo se passou], esse livro se chama urbanidade do sobrado e é um dos meus novos projetos. nesse processo eu comecei a me interessar a querer ver como estava a arquitetura em são luís, e aí acabei entrando no recém-formado curso de arquitetura do ceuma e eu prestei um exame, estava meio sem ter o que fazer com aquele material que eu tinha estudado, e passei no exame, com muita vontade de ver como é que ‘tava o pessoal mais novo. gosto muito de ter contato com os mais jovens.

zr – estás há quantos anos no ceuma?

cm – quatro anos. e aí eu comecei a mexer com isso. isso mudou muito a minha vida, de certa forma. tanto que eu não sou professor, eu estou professor. e aí é aquela coisa do verbo to be, da língua inglesa, de ser e estar, é mais ou menos isso. eu tive naturalmente que adaptar algumas coisas do meu modo de vida. eu tive, por exemplo, que escolher roupa para ir dar aula, eu não podia ir dar aula de bermuda, não posso ir para lá de sandálias. foi uma mudança social que tive que fazer, com muito prazer, e comportamental. uma aula é diferente de um show. toda aula é um show, mas a diferença é muito grande. o ensino, passar um conhecimento, é uma coisa científica, fazer um show é uma coisa mais criativa. é a arte e a ciência. e eu achei que seria muito importante eu mexer com a ciência, seria importantíssimo para a minha arte eu compreender e meter a cara na questão científica e hoje eu tenho uma idéia completamente diferente dessas duas posições. essas duas posições sempre estão muito ligadas, então a minha aula hoje, ela é artística e científica. a minha obra hoje é artística e científica. essas coisas se fundiram com essa experiência, isso tem sido muito bom e eu ‘tou muito feliz com isso, o processo ‘tá andando muito bem. não sei até onde isso vai, não sei até quando. quero fazer doutorado e o tempo não ‘tá dando. eu ‘tou com minha carreira como compositor em pleno desenvolvimento, há vários projetos, o dvd, o disco, o livro, songbook, há cinco produtos ali [aponta um quadro magnético na parede, onde há anotações com um marcador]. então, eu acordo geralmente muito cedo e trabalho muito até mais tarde, ‘tou levando as duas profissões. às vezes uma supera a outra. às vezes tenho que parar o violão e dar atenção para os alunos. aí fico escolhendo coisas, montando provas, aí preciso relaxar e vou compor. compor uma canção ocupa muito o cérebro da gente, mas o aluno também. [repete, enfático:] o aluno também. o aluno precisa muito do professor. e no maranhão, o aluno precisa muito mais. muito, muito, muito [repete, frisando]. por que eles chegam muito despreparados [ao curso superior] e é preciso prepará-los para seguir o caminho da arquitetura. eu pego o aluno no começo, eu dou plástica, que é a cadeira que abre a cabeça do aluno para as artes. é preciso ter cuidado, ter muito tempo para isso, muita dedicação. cada aluno para mim é um universo e eu trato especificamente com muito cuidado.

zr – tu colocas para os alunos, por exemplo, essa tua relação com o niemeyer e o fato de tu seres compositor? pergunto por que a gente sabe que quem não se interessar em saber quem é chico maranhão não vai saber nunca, por que a mídia não diz. tu te apresentas, tipo, aula inaugural, “além de professor eu sou compositor”, algo assim?

cm – essa relação, com alguns alunos, é difícil. com certos alunos, essa relação se conflitua. em sala de aula eu tenho muito cuidado para ser professor. às vezes eu relaxo.

zr – a minha pergunta é mais no sentido de que recentemente tu fizeste um show com renato e no começo do ano com zeca e cesar teixeira [brincadeiras de viola, show de chico maranhão, cesar teixeira e zeca baleiro, dia 21 de janeiro de 2005, na concha acústica da lagoa da jansen, são luís/ma]. então, na aula seguinte não acontece um “professor, fui ao seu show e tal”?

cm – comenta-se brevemente e depois disso vamos para a aula. às vezes sinto que eu preciso controlar mais a situação, explicar melhor, dar mais tempo. às vezes os alunos querem saber como é o show, o quê que acontece, mas depois de uns cinco minutos, vamos para a aula, para o conhecimento, para a plástica. e eu preciso administrar isso, para que isso não atrapalhe a aula. uma tática minha é andar um pouco apressado, fugir um pouco. não fico na escola além do tempo necessário que tenho da função como professor. não fico um minuto no corredor conversando abobrinhas, isso não é possível, isso não dá certo. entro, dou a aula, trato dos assuntos, resolvo o problema dos alunos, ensino, passo a matéria, muito obrigado, até logo, tchau. isso eu tive que aprender.

zr – vamos para a experiência do sambafo, que era uma reunião de estudantes para fazer música.

cm – nós não estávamos preocupados absolutamente com nada. não havia um pensamento de competição, esse espírito. quem ia para o sambafo queria batucar, fazer um bom samba, cantar e se divertir. aquilo que aconteceu no show com renato. felizmente naquele dia, tanto eu como renato ficamos muito felizes com esse show. o show foi desprogramado como o sambafo era. quer dizer, o show ainda foi programado demais perto do que era o sambafo. ainda tinha sérgio [habibe, que fez a abertura do show], eu e renato, havia um mestre de cerimônia, havia um que começa e um que termina. não conseguimos ser mais próximos ao sambafo. a desprogramação era fundamental, mas nós não sabíamos disso, isso é uma reflexão de hoje.

zr – chico buarque participava do sambafo. como é tua relação hoje com chico?

cm – a gente é amigo, mas não se vê. a vida levou cada um para um lado. é a mesma coisa. não tem outra história não. ele era um dos comandantes do sambafo. não só ele, mas eu, toquinho, nós puxávamos o violão, não tínhamos diferença, éramos jovens estudantes, éramos amigos, brincávamos, brigávamos, bebíamos cachaça… tudo junto. chico buarque era o carioca, eu era o maranhão.

zr – ismael silva…

cm – quando ismael silva apareceu por lá…

zr – mas nem todos eram estudantes de arquitetura, eram?

cm – a maioria. mas com o tempo foi chegando gente de fora. na verdade, essas pessoas, o próprio toquinho, o renato, começaram a chegar, já tava acontecendo. a gente tocava junto, tinha as idéias. na rua maria antonia, que a maranhão ‘tá na esquina [ruas próximas à faculdade de arquitetura e urbanismo (fau) da universidade de são paulo (usp)], são esquinas universitárias, era um centro cultural muito bom. o sambafo envolvia tudo isso, a gente trilhava por ali. é que nem a praia grande, a gente rola pr’um lado, rola pro outro, toca várias coisas, essa vida…

zr – boêmia?

cm – a vida, a vida [tenta lembrar e enfático:] a vida é uma festa! [o projeto semanal do multi-artista zémaria medeiros], vai num bar não sei aonde, vai não se o quê. você não viveu o tempo do baixo leblon [bar outrora famoso], né? mas era como o baixo leblon, era um centro onde tudo acontecia. na verdade a música paulista nova aconteceu ali, ali na nossa mão. chico, caetano, gil, milton, eu, renato teixeira. eram compositores mesmo, não tinha outros nomes. tinham, mas menos expressivos. se você quiser botar edu [lobo], edu tava no rio. era diferente, a formação clássica da música, era outra coisa, outra história. nós não tínhamos isso. não tinha esse negócio. não tínhamos conhecimento nenhum de violão. e nem queríamos, eu tinha medo de estudar violão e perder minha originalidade, minha intencionalidade, minha pureza, que é uma bobagem, mas é isso que dava o diferencial. é por isso que eu sou o maranhão. eu tinha uma qualidade que era minha, como o buarque tinha a dele, o renato tinha a dele, o maninho, que é um percussionista que as pessoas quase não falam, tinha a dele; ele acabou tocando uma queixada de burro com o vandré [na gravação de disparada, parceria de vandré com théo de barros], era um artista, um criador. então, éramos nós. mesmo gil e caetano, não eram estudantes da fau, então eram um pouco fora, não eram freqüentadores, eles seguiram uma linha. na verdade era mais o comando do chico buarque, que era o cara que era mais expressivo, mais barulhento. e eu que despontei também, de repente haviam grupos de foco. eu criei gabriela. chico tomou outro caminho, fez sucesso, foi pro rio. ficou eu, aí cuidei comigo e acabou. também tomei meu caminho, ele tomou o dele.

zr – eu ‘tava vendo aquela lancheira ali [aponto para uma lancheira sobre a escrivaninha] e me disseram que tu levas ela para o ceuma.

cm – eu levo essa lancheira, eu dou aula com essa lancheira. tem um propósito. no começo as pessoas reagiram um pouco, mas depois acostumaram. a reação dos alunos. o quê que tem aí? materiais que eu dou aula, é muito confortável essa lancheira. eu sou um artista que vai dar uma aula, não sou apenas um professor. isso é para quebrar essa barreira entre professor e aluno. não há conhecimento se não houver liberdade, se não houver uma comunicação clara entre as duas pessoas. só se grava uma coisa quando tem função. só serve para você aquilo que tem função para você. fora isso você não quer saber. então o professor tem que saber o que dizer para o aluno, o que ensinar para o aluno. essas coisas são interessantes, tudo isso se mistura, com uma dosagem muito boa.

zr – chico, outro dia eu consegui comprar o vinil de lances de agora.

cm – ‘cê achou?

zr – achei.

cm – onde?

zr – no chico discos, ali na fonte do ribeirão. raro, fiquei muito contente por ter conseguido comprar, barato. e eu vi coisas interessantes na contracapa do disco: o texto do marcus pereira, o fato de ter sido gravado em três dias na sacristia da igreja do desterro e os músicos que participam. como foi, na época, reunir esse time? de quem foi a idéia de gravar dentro da igreja?

cm – a época era outra, os valores eram outros. reunir [mestre antonio] vieira tocando afoxé, sérgio [habibe] tocando flauta, zezé [alves, hoje professor da escola de música lilah lisboa – emem] aluno de sérgio aprendendo, [o percussionista] arlindo [carvalho]. era um grupo de meninos que ‘tava começando. não havia ainda essa situação que tem hoje. ‘tava tudo muito à mão, nós andávamos em bando. eu tinha vindo de são paulo, com a experiência do sambafo e de certa forma isso se reproduziu aqui e eu toquei o barco assim, com essa gente. o que aconteceu foi o seguinte: eu não sei explicar tudo, é uma coisa de sensibilidade mesmo, eu sai procurando espaço para fazer o disco, queria o museu [histórico e artístico do maranhão] da rua do sol, que ‘tava começando, o teatro [arthur azevedo] não cedia, então não sei por que que surgiu a idéia de fazer dentro da igreja. eu tinha a idéia de fazer dentro de um espaço sagrado. eu queria um espaço sagrado, cheguei lá ‘tava vazia, fechada. aí o marcus pereira chegou de avião com toda a tecnologia, microfone, mesa, caixa e tínhamos que botar num lugar. e ele ficou impressionadíssimo, por que o produto era completamente novo, ele não conhecia a maioria das músicas. algumas sim, cirano, a paixão dele. quando ele ouviu mulher ele chorou. ele fala alguma coisa assim na contracapa, continuo me surpreendendo com o compositor, coisa assim. é isso.

zr – tens alguma idéia de reeditar lances de agora?

cm – como disco, assim, não. eu acho que esse disco tem que permanecer assim. a não ser que isso seja uma proposta que não vá surgir de mim. cada vez mais eu me torno mais artista da minha obra, cada vez mais eu me distancio da produção.

zr – isso é uma dificuldade no maranhão, não é?

cm – [continua a resposta anterior, sem dar atenção à pergunta] deveria ser o contrário. hoje nós estamos na época em que o artista faz a produção de sua obra. eu, cada vez mais, vendo menos a minha música. sou meio maluco por esse lado. cada vez mais, faço minha obra e me distancio da divulgação dela. cada vez que você me olhar num programa de televisão, com meu violão, eu ‘tou integralmente divulgando a obra. isso é um processo pessoal, personalístico meu. cada vez que você me olhar com o violão, eu ‘tou competindo mais, mas eu não tou vendendo a música, eu não vendo música, eu vendo cds. agora, se você entra numa estrutura, por que o mundo é assim, você é pinçado, as forças. eu ‘tou aqui e chega um cara e me chama para fazer determinada coisa, eu sou escolhido para fazer aquilo, eu vou e executo.

zr – a minha pergunta sobre a reedição do lances de agora em particular se dá pelo seguinte: antes de conseguir comprar o vinil, eu tinha uma cópia em cd, uma transcrição do vinil, mal-gravada, que era continuada com a transcrição do fonte nova (1980). eu tomei a liberdade de fazer três cópias e presentear amigos. um amigo no paraná, chorou quando ouviu aquilo, outro se impressionou bastante também. as pessoas para quem eu tenho mostrado, têm gostado. charles gavin tem relançado discos de walter franco, tom zé, secos & molhados e muitos outros em cd.

cm – não há tempo [para se preocupar com ou priorizar reedições]. você pensa que há tempo, mas não há. eu ‘tou aqui dando essa entrevista, estamos conversando, mas às cinco horas [olha para o relógio na parede, que se aproxima de 17h] tenho que estar no ceuma. eu ‘tou produzindo muito, acabei de compor uma música sobre sobrados, que faz parte do disco que vai ser publicado no livro, então são vários projetos.

zr – então, a gente já ta meio em cima da hora, vamos para os projetos.

cm – os projetos em que estou trabalhando são o cd, o dvd, o livro…

zr – o dvd será uma espécie de documentário?

cm – [continua respondendo a pergunta anterior] quem ‘tá comandando é o livro. é o carro-chefe. não era, passou a ser. o projeto se chama sobrado, puxado pelo livro. o dvd vem em função do livro, o cd vem em função do livro, o songbook são cem canções. então, são quatro produtos e uma série de shows. aí, tanto em são luís quanto fora.

zr – a idéia do songbook seria mostrar cem canções do começo da carreira até agora, uma retrospectiva?

cm – independentemente disso, talvez as cem canções com as harmonias originais, do jeito que eu toco, do jeito que eu compus, da forma mais original possível, sem interpretação de maestro e estudiosos. se tem uma coisa que ‘tá meio desafinado vai desafinado. isso é hoje. pode ser que daqui a pouco a idéia mude.

2 respostas para “a arquitetura de maranhão”

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