Subversão, um balanço

No mês que hoje finda fui escalado pela direção da Rádio Timbira AM para substituir o jornalista e historiador Marcus Saldanha no semanal História em debate, apresentado por ele aos sábados, às 10h.

Acompanho com entusiasmo a trajetória do colega na emissora desde pelo menos o Timbira Debate, que ele conduzia diariamente pelas manhãs, noutra época – certa vez cheguei a ser o entrevistado do programa, então na condição de presidente da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), já se vão alguns anos.

Disse e repeti, à direção da emissora, ao próprio Marcus Saldanha, e várias no ar, durante o desenrolar de meu papel, ao longo dos últimos cinco sábados: “difícil e honrosa missão” a de substituí-lo. Sou jornalista como ele, mas não sou historiador; e isto, para o História em debate, faz toda diferença.

Quem não tem cão caça como gato, diz o dito popular. Era preciso subverter, não a história, como querem alguns, não a verdade, como querem os mesmos. Desafio posto, eu precisava encarar (acabei, por tabela, assumindo também a vaga da Rádio Timbira AM na bancada do Giro Nordeste, às quintas-feiras). O jeito foi nadar em minha praia.

Tentei trazer, para o História em debate, ao longo do mês, a experiência acumulada em cinco anos de Balaio Cultural, com Gisa Franco, e o aproximadamente ano e meio que fizemos, eu e Suzana Santos, o Radioletra, um extinto programete semanal de 15 minutos em que basicamente entrevistávamos escritores/as.

O programa poderia ter passado a se chamar, ao menos temporariamente, Literatura em debate: conversei com seis escritores nos cinco programas, li mais de 800 páginas (dos livros mais recentes dos autores) para produzi-los, e costurei, a partir de suas obras, uma conversa que tentava perpassar a história do Brasil (e do mundo), entre temas como a ditadura militar brasileira, o governo neofascista de extrema-direita (não sei sinceramente se isto é uma redundância) de Jair Bolsonaro e sua política continuada de destruição e lesa-humanidade, o holocausto da Alemanha nazista, a pandemia de covid-19, assunto inevitável etc.

Passaram pelo História em debate, nos últimos cinco sábados, o escritor mato-grossense Joca Reiners Terron, que lançara recentemente a distopia “O riso dos ratos” (Todavia, 2021); o jornalista e escritor cearense Xico Sá, um dos textos mais elegantes do jornalismo brasileiro, o homem que encontrou no exterior PC Farias, o foragido tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor; Gustavo Pacheco e André Nigri, que organizaram o belo volume “O conto não existe” (Cepe, 2021), reunindo entrevistas e ensaios de Sérgio Sant’Anna (1941-2020); a jornalista e escritora portuguesa Isabel Lucas, que lança semana que vem (3 de agosto) “Viagem ao país do futuro” (Cepe, 2021), um exercício ousado de tentar entender o Brasil através de sua literatura; ela passa uma temporada no Brasil, percorrendo paisagens e vidas de personagens dos lugares em que se passam livros de Euclides da Cunha, Machado de Assis, Miró da Muribeca e Dalton Trevisan, entre outros; e hoje (31), fechando, com chave de ouro, a paulista Noemi Jaffe, filha de imigrantes sobreviventes dos campos de concentração da Alemanha nazista, cujo livro mais recente, “Lili – novela de um luto” (Companhia das Letras, 2021), é uma declaração de amor à sua mãe, falecida ano passado.

Foram conversas inspiradoras e de muito aprendizado. A quem acompanhou ou deseja rever/reouvir as conversas, deixo a seguir os vídeos, agradecendo a confiança dos que me delegaram a missão e o carinho da audiência. A trabalheira intensa vale muito a pena por vocês. Com o fim do mês acabam as férias de Marcus Saldanha e, com o titular absoluto de volta ao gramado, o reserva recolhe-se ao banco, de onde seguirá espectador atento e colaborador eventual.

As Independências do Brasil

Toque de avançar – Destino: Independência. Capa. Reprodução

Às vésperas dos 200 anos da proclamação da independência do Brasil, o jornalista e escritor Flávio Paiva publica “Toque de avançar – Destino: Independência” [Armazém da Cultura, 2020, 120 p.], em.que remonta a história brasileira se valendo, aqui e ali, das tintas da ficção. 

Paiva parte do acontecimento histórico para investigar a origem do lugar onde nasceu, em 1959: o município de Independência, no Ceará.

Numa prosa que transforma referências bibliográficas, frutos de extensa pesquisa do autor, em relatos soprados à sombra de oiticicas. As aventuras têm o som do pife como trilha sonora – a parceria de Paiva com o compositor paulista Edvaldo Santana, filhos de nordestinos, na faixa homônima, trilha do livro, está disponível para audição nas plataformas de streaming.

Paiva transforma-se num herói sem nome, que, munido de seu instrumento musical, curiosidade e bravura, narra e participa dos feitos que levaram a adesões tardias à independência na região – além do Ceará, a história se passa também no Piauí e Maranhão.

As ilustrações de Válber Benevides, em acrílica aquarelada e nanquim sobre tela, são um espetáculo à parte, nesta obra multimídia em essência, que revela que a independência do Brasil foi um processo para além do grito de Dom Pedro às margens do Ipiranga, imortalizado no famoso quadro de Pedro Américo, fartamente reproduzido em livros escolares.

Com gingado, Lira Neto conta histórias do samba

[O Imparcial, ontem]

Inaugurando nova trilogia, Uma história do samba: volume I (As origens), novo livro do autor das biografias de Padre Cícero e Getúlio Vargas, conta as histórias do início do samba e sua consolidação como gênero musical brasileiro por excelência

Uma história do samba: volume I (As origens). Capa. Reprodução
Uma história do samba: volume I (As origens). Capa. Reprodução

 

Autor das bem sucedidas biografias de Padre Cícero [Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão; Companhia das Letras, 2009] e Getúlio Vargas [Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930); Companhia das Letras, 2012; Getúlio: do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945); Companhia das Letras, 2013; e Getúlio: da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954); Companhia das Letras, 2014] – trilogia que vendeu 250 mil exemplares – o escritor Lira Neto se põe agora a contar as histórias do samba em Uma história do samba: volume I (As origens) [Companhia das Letras, 2017, 342 p.; R$ 64,90], primeiro volume de uma nova trilogia.

Lira Neto acerta ao usar o artigo e o plural no título de seu novo livro: trata-se de uma história, sua versão, digamos, das origens do brasileiríssimo gênero musical, do qual até hoje é impossível falar no singular.

De quando o samba ainda era uma denominação comum para festas, em vez de designar um gênero musical, até o início do primeiro governo de Getúlio, o autor passeia por diversos momentos e nomes fundamentais para a consolidação do samba como essa espécie de atestado de brasilidade em que se configurou.

Sem se pretender dono da verdade, o autor tem a ginga e a malemolência para entrecruzar diversos episódios e contar várias histórias deliciosas. Não é, no entanto, um livro menos sério, fruto de árdua pesquisa – notas e fontes somam quase 40 páginas.

O livro começa com o convite de Heitor Villa-Lobos, então diretor do Departamento de Música da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal – à época ainda o Rio de Janeiro – a Zé Espinguela para o resgate de um cordão carnavalesco.

Passa pelas parcerias inaugurais do maranhense Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, pela fundação das primeiras escolas de samba, como a Deixa Falar – que viria a dar na Estácio de Sá – e a Estação Primeira de Mangueira, por Cartola, Carlos Cachaça e companhia, pela gravação de diversos músicos e músicas populares brasileiros a bordo de um navio, numa jogada de marketing e política de boa vizinhança americana, entre os quais estavam Cartola e a santíssima trindade da música brasileira: Pixinguinha, Donga e João da Baiana.

Uma história do samba: volume I (As origens) visita também a polêmica em torno de ter sido (ou não) o maxixe Pelo telefone [1916], de Donga, o primeiro samba – a música é considerada marco inaugural do gênero e em torno de sua data de gravação celebrou-se, ao longo de 2016, prolongando-se por este ano, o centenário do samba.

Conta deliciosas histórias sobre Noel Rosa – que trocou a medicina pelo samba, até morrer tuberculoso aos 26 anos –, outro nome fundamental para a popularização e “urbanização” do samba, Ismael Silva, Francisco Alves e Mário Reis – estes, dois dos maiores cantores de sua época, ganharam fama também como “comprositores”, isto é, pagavam para ter seu nome em parcerias em que não puseram nada além da voz, uma espécie de pedágio ou jabá, antes de esta acepção ter sido inventada.

Lira Neto foge da enfadonha linearidade, escreve como se sambasse, e, qual um passista na avenida, leva o leitor a Paris com Os Oito Batutas, naturalmente liderados por Pixinguinha, passeando depois pelas agruras que o grupo enfrentou em turnê pela vizinha argentina. Lembra ainda Sinhô, autor de Jura, tido como o Rei do Samba, que faleceu na miséria, vítima da tuberculose que venceu tantos artistas, além das primeiras competições entre as escolas de samba cariocas, organizadas pelo efêmero Mundo Sportivo, jornal comandado por Mário Filho – que viria a batizar o estádio do Maracanã.

Com pitadas de indispensável bom humor, Lira Neto acompanha as evoluções do samba neste curto período inaugural. Merecem atenção do leitor também o destacado papel da crítica e o racismo vigente à época. Ao fim da leitura, impossível não ansiar pelo/s próximo/s volume/s da trilogia Uma história do samba. Este primeiro já se configura obra imprescindível, não só sobre a história do samba, mas sobre a história da música (popular) brasileira.

A poética geografia do cangaço

Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Capa. Reprodução
Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Capa. Reprodução

 

Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou [Vento Leste, 2016, 104 p.] é um encontro único: as elegâncias das fotografias de Márcio Vasconcelos e do texto de Frederico Pernambucano de Melo, a exuberância das paisagens, a grandeza dos personagens e o imenso legado cultural deixado pelo bando liderado por Virgulino Ferreira da Silva.

O maranhense Márcio Vasconcelos embrenha-se na geografia sui generis do Nordeste para refazer os caminhos percorridos por Lampião e seus cangaceiros, da invenção do bando à execução de seu líder, em 1938, na Grota do Angico, em Poço Redondo/SE, ao lado de Maria Bonita e outros nove homens.

Apenas duas fotos não são de sua autoria, espécie de tributo ao fotógrafo Benjamim Abraão, que retratou o bando de Lampião em vida, saga contada por Paulo Caldas e Lírio Ferreira em Baile perfumado [1996], com imagens do acervo do fotógrafo sírio-libanês e trilha sonora puxada pela turma do manguebit.

A trilha por que o fotógrafo nos conduz ao longo das páginas do livro, finalista do prêmio Conrado Wessel de Fotografia 2011 e vencedor do XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, passa por cinco estados e entre os personagens que ele encontra estão Dona Minó (1923-) – filha de Zé Saturnino, tido como o inimigo número um de Lampião –, Elias Matos Alencar (1914-2013) – membro da volante do Tenente João Bezerra, responsável pela execução de Lampião e seu bando –, e Manuel Dantas Loiola, vulgo Candeeiro (1916-2013), cangaceiro do bando de Lampião, além de atuais habitantes dos lugares.

As paisagens remontam à rima involuntária beleza/pobreza, com vantagem para a primeira, eterna sina de grande parte do Nordeste e sua população. É particularmente comovente uma sequência de fotos em que uma mulher comum chora a morte de um jumento, abraçando-o como a um ente querido. A devoção (sobretudo a Padre Cícero, mas não só) também é elemento importante ao olhar de Márcio Vasconcelos.

O trunfo do encontro entre palavras e imagens está justamente em umas não quererem explicar as outras: enquanto o fotógrafo percorre hoje caminhos pisados por Lampião há quase um século, Frederico Pernambucano de Mello, historiador, membro da Academia Pernambucana de Letras, reivindica ao ícone do cangaço o status de artista: “pelo orgulho, pela sobranceria, pela vaidade, pelo desassombro da imagem ostensiva, pela força de formação de uma subcultura à base de derivações nada desprezíveis na música, na poesia, na dança, na culinária, no artesanato, na medicina, nos costumes, na moral, na religiosidade, na arte militar intuitiva e mesmo na arte de expressão plástica, a partir da herança pastoril, o cangaço sumaria, aos olhos do brasileiro de hoje, a franja de todas as insurgências, sua saga confundindo-se com a própria ideia de resistência contra poderosos”, anota.

Outra grandeza que merece destaque é não quererem tirar conclusões. Muito já foi dito sobre o cangaço e particularmente Lampião é fartamente biografado. “Os cangaceiros não foram heróis nem bandidos. Foram homens que disseram não à situação”, anota Vasconcelos na legenda da foto da Grota do Angico.

Veja algumas imagens do livro. Para mais acesse o site de Márcio Vasconcelos.

Casa de dona Jocosa. Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Márcio Vasconcelos. Reprodução
Casa de dona Jocosa. Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Márcio Vasconcelos. Reprodução

 

Um dos habitantes atuais dos lugares por onde Lampião passou há quase um século. Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Márcio Vasconcelos. Reprodução
Um dos habitantes atuais dos lugares por onde Lampião passou há quase um século. Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Márcio Vasconcelos. Reprodução

 

A devoção a Padre Cícero. Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Márcio Vasconcelos. Reprodução
A devoção a Padre Cícero. Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Márcio Vasconcelos. Reprodução

 

A grota do Angico, onde Lampião, Maria Bonita e outros nove cangaceiros foram executados em 1938. Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Márcio Vasconcelos. Reprodução
A grota do Angico, onde Lampião, Maria Bonita e outros nove cangaceiros foram executados em 1938. Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou. Márcio Vasconcelos. Reprodução

 

Serviço – Márcio Vasconcelos lança Na trilha do cangaço – o sertão que Lampião pisou hoje (27), às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2073 – Piso do Teatro, SP).

Sambira

Retrato: Zema Ribeiro
Retrato: Zema Ribeiro

 

Raimundo Nonato Lopes da Silva tem 63 anos e nasceu em Guarimã, povoado de São Benedito do Rio Preto/MA, onde mora até hoje.

Ganhou o apelido de Sambira numa pelada jogada na juventude, num campo de futebol ainda existente e em uso na comunidade. Então goleiro, fez uma defesa e caiu abraçado à bola. “Parece uma mambira!”, gritaram alguns, de sua equipe e da adversária, comparando-o a uma espécie de tamanduá – ou gambá.

“Eu sou é a mãe bira, a mãe de vocês!”, retrucou o alcunhado, cuja reação e zanga inicial bastaram para que o apelido fosse mudado e pegasse para sempre.

Sambira é filho de dona Sebastiana, 83, a moradora mais antiga da comunidade centenária, cujos mais de 400 hectares são agora requeridos por uma suposta proprietária em ação de reintegração de posse. Basta uma visita e um passeio rápidos pela área para perceber quem são os verdadeiros donos da terra, os homens e mulheres-árvores, há tanto tempo ali enraizados.

Mael, um sobrinho de Sambira, está se formando em História e tem pronta uma monografia, que defenderá por estes dias, em que remonta a ocupação da área, desde o século XIX.

Um misto de Charles Bukowski, Pepe Mujica, Gabriel Garcia Marquez e Urtigão, o bronco barbudo da Disney, não necessariamente nessa ordem, nos lembrou sua feição, aos colegas de trabalho e a este cronista improvisado – viajei com outra tarefa, já cumprida, mas desde que o vi, ouvi e fotografei, a vontade de escrever sobre o personagem ficou me martelando o juízo.

Sambira vive da venda de peixes que cria em quatro tanques. Apesar da iminente ameaça de despejo, não perde o bom humor. O ótimo humor, eu diria. Riu e nos fez rir bastante ao longo da tarde em que passamos no local, tratados qual paxás, a peixe frito e juçara farta.

Ao ver um dos colegas passar por trás de uma jumenta e fazer um gesto, talvez por medo dum coice, mandou, para gargalhada geral: “esse aí é acostumado a pegar jumenta. A bichinha quando olha para ele já pergunta: “por que é que tu não veio onte, oooonte, oooooooonte!””, a corruptela do pretérito tornando-se onomatopeia do zurrar da fêmea do equus asinus.

Entre diversas outras – vez por outra me pego rindo sozinho –, contou ainda a história de um advogado que soltou dois presos em Chapadinha. Os apelidos dos liberados, que garantem a graça da história, são impublicáveis aqui, mas o causo foi recontado várias vezes ao longo da viagem, ou entre nós, ou pelo próprio Sambira, inclusive a secretários de Estado.

Sambira é daqueles que devolve a palavras como “gaiatice” e “molecagem” a nobreza que merecem, aquela porção menino que nós adultos deveríamos guardar para sempre.

Muito além da fundação

FLÁVIO REIS*

Foto: Edgar Rocha
Retrato: Edgar Rocha

 

A professora Maria de Lourdes Lauande Lacroix é a patrona e grande homenageada do ano na Feira do Livro de São Luís. Geralmente o lugar tem sido ocupado por nomes conhecidos da literatura e, por este lado, não deixa de ser surpreendente a escolha. Mas, por outro, trata-se de uma historiadora cujos trabalhos possuem forte identificação com a cidade, sua história e seus costumes.

Graduada em Direito e História, Lourdinha aliou durante mais de 20 anos as atividades de funcionária da Previdência Social e professora da UFMA em regime parcial, onde se destacou principalmente no ensino de História Contemporânea, com grande ênfase na revolução industrial e na revolução francesa, durante muito tempo seu maior interesse de estudo. No início da década passada, já aposentada, integrou o quadro de docentes da UEMA, encarando um concurso para as áreas de História Antiga e Medieval, num momento em que o curso de história ainda lutava com grandes dificuldades para se fixar. Lá ficou quase por dez anos, só saindo na compulsória.

A sala de aula foi seu espaço preferido, compromisso preparado com zelosa antecedência, onde consolidou o perfil de uma professora exigente, dinâmica e alegre, às vezes mesmo empolgante, sem nunca ter sido considerada propriamente intelectual brilhante. Com uma personalidade forte e muito prática, a consciência disto não lhe causou nenhum problema e ainda lhe seria de grande valia, quando resolveu escrever sem muitas preocupações acadêmicas.

A fundação francesa de São Luís e seus mitos. Capa. Reprodução
A fundação francesa de São Luís e seus mitos. Capa. Reprodução

Apesar da publicação da dissertação de mestrado no início dos anos 1980, um estudo sobre a educação na baixada maranhense no período imperial, seu trabalho significativo de escrita é recente, com cinco livros publicados nos últimos 15 anos, um deles com três edições bem diferentes, que funcionou na verdade como detonador dessas possibilidades, o conhecido e polêmico A Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos.

Impresso no final de 2000, mas lançado apenas em julho de 2001, a primeira edição deste estudo era um livrinho quase inacreditável, com menos de 80 páginas, uma escrita leve e, em certas passagens, até ligeira, mas estruturado em três passos fundamentais que vale frisar.

Primeiro, uma observação arguta: a fundação francesa de São Luís não consta nos relatos dos cronistas portugueses e historiadores regionais até o final do século XIX, mantendo-se uma distinção entre o forte e a cidade, acentuando a ascendência portuguesa. Segundo, uma pergunta incômoda: o que teria acontecido, então, com a memória histórica da cidade, com os franceses passando de “invasores” a inquestionáveis “fundadores”? Terceiro, uma hipótese provocativa: a entronização da fundação francesa seria fruto da ação de intelectuais a partir do final do século XIX e passou a constituir, junto com a imagem da Atenas Brasileira, a identidade da cidade no século XX.

O livro foi recebido com certa estupefação e até incredulidade, sendo tratado por quase todo mundo como um mero engano entre fundação e urbanização ou entre fundação e colonização ou, até mesmo, desconhecimento de evidências históricas óbvias. A reação foi principalmente do que poderíamos chamar de establishment cultural, no arco que vai das academias e institutos tradicionais, passando pela mídia impressa, com intervenção de figuras diversas, conhecidas e desconhecidas, desaguando na aparente indiferença com que foi recebido em círculos universitários.

Em contrapartida, trazia um prefácio ousado, escrito por Flávio Soares, um de seus melhores ex-alunos. A indagação dirigida à historiografia colocava as relações entre as nossas elites e o legado português no processo de constituição de sua identidade. Em uma palavra, a identificação buscada no final do período colonial e em parte do Império, transforma-se em um sentimento ativo de rejeição e, através de uma operação de sublimação já verificada na exaltação da Atenas Brasileira, volta-se para a idealização de suas origens, constituindo o mito fundador.

Ele se permitiu ainda raciocinar para além do que sugeria o texto, mostrando como aquele ângulo propiciava toda uma gama de observações sobre algumas características nucleares não apenas da nossa historiografia, como, principalmente, de “camadas nervosas, aparentemente invisíveis da memória e, mais que isto, talvez da psiché da cidade”.

A polêmica estava relançada e exigiria da professora atenção crescente durante quase toda a década. Logo em 2002, lançou a segunda edição, ampliada com outro ensaio, “A Criação do Mito”, trazendo um levantamento mais circunstanciado do problema, sobretudo com a localização de Ribeiro do Amaral e seu livro A Fundação do Maranhão, lançado no rol das comemorações de 1912. Ele seria o primeiro autor a entronizar o 8 de setembro como data da fundação da cidade, remetendo à missa de tomada de posse da região descrita no livro do capuchinho Claude d’Abbeville. Um enfoque que ficaria cristalizado no livro de Mário Meireles, A França Equinocial, de 1962.

A terceira edição, que ela considera a definitiva, sairia apenas em 2008. Além de novas revisões e ajustes, traz quatro artigos selecionados entre cerca de 10 saídos na imprensa durante o período e um tratamento do belo painel tríptico A Fundação de São Luís, obra de Floriano Teixeira, encomendada pelo governo do estado e entregue em 1972, reproduzida no livro integralmente e em detalhes. Antes, porém, publicou dois outros trabalhos.

Em 2004, o livro sobre a Campanha da Produção, iniciativa dos grandes comerciantes integrantes da Associação Comercial na década de 1950, com vistas aos gargalos que emperravam a produção agrícola e seu escoamento para a capital. Um capítulo final do predomínio do complexo da Praia Grande na economia regional, visto através da análise dos relatórios da diretoria.

Em 2006, lançou outro trabalho enfocando a questão da fundação, um ensaio sobre a figura de Jerônimo de Albuquerque, tornado Maranhão após a vitória de Guaxenduba. Novamente vemos a combinação entre um veio forte de concepção da história como encadeamento de fatos em relação causal, herança da influência de Mário Meireles em sua formação, e outro, da história como determinada forma de construção coletiva da memória e, portanto, em transformação vinculada a determinantes de época.

Assim, depois de demarcar as especificidades da guerra colonial, híbrido de técnicas de guerra europeia e guerra indígena, terreno onde o mestiço Albuquerque estava à vontade, e acompanhar os fatos narrados por Diogo de Campos Moreno, traz novas observações interessantes de teor mais nitidamente historiográfico.

São as considerações dos três últimos capítulos, versando sobre: os condicionantes do próprio relato do militar português; a forma como a batalha de Guaxenduba foi enfocada no decorrer dos séculos; por fim, a vinculação entre Jerônimo de Albuquerque e a fundação da cidade de São Luís na historiografia regional, reafirmando a existência de um arco que vai dos cronistas portugueses a historiadores maranhenses do século XIX e mesmo do início do século XX.

Durante todos esses anos não descuidou do debate, sempre se ocupando nos artigos de responder com novos estudos às críticas que lhe dirigiam. Aos poucos, uma agressividade fora do tom, somada à incompreensão e à repetição dos argumentos, foi determinando seu afastamento da polêmica, que, no entanto, continuaria viva.

Um exemplo recente e bem eloquente dos equívocos que sempre acompanharam este debate pode ser visto no livro de Ana Luiza Almeida Ferro, intitulado 1612: Os Papagaios Amarelos na Ilha do Maranhão e a Fundação de São Luís, publicado no final do ano passado, mais de 600 páginas, anunciado com estardalhaço e repleto de autoglorificações, ao estilo da Atenas Brasileira. Estamos exatamente diante de um resgate do tipo de história feito por Mário Meireles e outros próceres da AML.

Após uma longa revisão das disputas entre as coroas em torno das terras do Novo Mundo e das primeiras tentativas de colonização do território, chegamos ao capítulo 7, intitulado emblematicamente “A Fundação da França Equinocial e da Cidade de São Luís”. Utilizando as descrições conhecidas do padre capuchinho, vai configurando a tentativa de implantação da França Equinocial, apoiada também no importante livro de Patrícia Seed sobre as cerimônias de posse levadas a efeito pelos europeus no continente americano.

A autora segue as descrições e análises de seus significados, mas, a certa altura, entra o que não estava lá: “O dia 8 de setembro de 1612 marca a condução de uma cerimônia gaulesa de tomada de posse da Ilha do Maranhão, contudo serve igualmente de marco de fundação da cidade de São Luís” (p.380). Ora, serve para quem e por quê? Este passo de identificação foi dado por Ribeiro do Amaral e o grupo de intelectuais oriundo dos Novos Atenienses. Não é outra coisa o que a autora vai encontrar no levantamento a que procede. Vejamos.

Se excluirmos a utilização equivocada do Pe. José de Moraes, que descreve a cidadela do forte como “cidade pequena”, observação já feita por Rafael Moreira, maranhense radicado há anos em Portugal e especialista reconhecido no estudo de fortes, o que a autora lista de novo são historiadores franceses do século XIX e do início do século XX, posteriores a Ferdinand Denis, nome principal e localizado nos trabalhos de Lourdinha, que, inclusive, frisou suas afirmações contraditórias sobre o tema, aqui silenciadas.

São os historiadores Léon Guérin, para quem “a França lançou os fundamentos de dois dos mais importantes estabelecimentos dos europeus no Brasil… aquele de Saint-Louis de Maranhão e aquele da baía do Rio de Janeiro” e Charles de La Ronciére, que se referiu a “uma cidade toda de madeira, tal foi Saint-Louis, a capital da França Equinocial” (p.273). Entre os autores regionais, o primeiro a aparecer é justamente Ribeiro do Amaral, ao qual se segue uma lista que no decorrer do século XX, como é sabido, se tornou amplamente majoritária.

Do outro lado, ela tem os autores que falam da fundação portuguesa da cidade, um arco que começa em Berredo (não lista Bettendorff), passa por Gaioso (não lista Prazeres e sua Poranduba Maranhense), João Lisboa, Cesar Marques, Barbosa de Godois, estes dois últimos em obras de referência geral, o famoso Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão e um compêndio para alunos secundaristas, a História do Maranhão. Inclui ainda outros autores mais recentes indicados por Lourdinha, José Moreira e Correia Lima, que foram membros do IHGM.

O que temos claramente, portanto, são duas linhagens interpretativas, uma que remonta aos cronistas coloniais, sendo predominante até o final do século XIX, e outra que surge aí, na esteira da revalorização da presença francesa na colonização das Américas, e se formaliza em 1912. Mesmo incluindo equivocadamente o Pe. José de Moraes, no séc. XVIII, ainda assim é visível que a associação entre os dois tópicos do seu capítulo só ocorre depois, quando a cerimônia de 8 de setembro é incorporada à narrativa como marco de fundação da cidade, tornando-se fato naturalizado, a forma como é, de resto, tratado em sua análise.

Por que a autora não se apercebe do que está indicado nos próprios dados recolhidos?  A resposta pode estar no tipo de concepção, de fundo verdadeiramente mítico, que determina desde o início a forma da investigação e pode ser observado num trecho como este: “Mesmo que admitamos a inexistência de qualquer menção literal de Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux à ideia de fundação de uma cidade, tal não significa que eles não tenham descrito, e com detalhes preciosos, a fundação de uma, no caso São Luís” (p. 602). Sim, aos olhos de quem lê e determina que a partir dali a cidade já estava fundada…

É o que leva igualmente um conhecedor dos livros de história do Maranhão e intelectual importante da AML, Jomar Moraes, a escrever sobre a fundação francesa de São Luís utilizando recorrentemente citações de Berredo, quando este afirma justo o contrário. Isto porque ele costuma citar trechos do capítulo ou livro II, quando o autor trata da tentativa de implantação da França Equinocial, seguindo o relato de Claude d’Abbeville sobre as cerimônias e as providências tomadas, e não do capítulo seguinte, justamente quando se reporta à fundação da cidade como fruto de uma decisão da corte em Madri. Em suma, a introjeção da identificação entre a missa de tomada de posse das terras e a fundação da cidade já está fixada e bloqueia qualquer indagação como absurda.

É por isto que a designação de mito, utilizada por Lourdinha de maneira puramente intuitiva, me pareceu sempre tão feliz. Segundo Roland Barthes, no Mitologias, os mitos modernos, como são estes criados na virada do século, constituem uma fala roubada e restituída, mas, “simplesmente, a fala que se restitui não é certamente a mesma que foi roubada. É esse breve roubo, esse momento fortuito de falsificação, que constitui o aspecto transido da fala mítica”. E mais: “O mito é simultaneamente imperfectível e indiscutível, o tempo e o saber nada lhe podem acrescentar ou subtrair”.

No caso, a fala relida e mitificada é a narrativa de Claude d’Abbeville, utilizada para constatar o que ela efetivamente não afirma. Nem verdade, nem mentira, o mito opera nas brumas, mas precisa fixar a cena. Ainda segundo Barthes, “é uma fala definida pela sua intenção muito mais do que pela sua literalidade; e que, no entanto, a intenção está de algum modo petrificada, purificada, eternizada”.

O tipo de comportamento reativo quando o livro apareceu foi efetivamente como se defendessem um mito. No afã de tornar natural ou evidente a fundação francesa, sequer admitia-se que esta noção tivesse uma historicidade. Tornou-se um fato naturalizado através do significado correlato atribuído à cerimônia de 8 de setembro. Neste aspecto, o trabalho de Ana Luiza Ferro apenas segue a crença, frise-se o termo, tornada comum: “Pouco importa se os portugueses agiram em conformidade com uma determinação expressa da Corte no sentido da fundação de uma cidade; eles não podiam fundar o que já fora fundado” (p. 602).

A autora tenta ainda inverter os termos da equação proposta por Lourdinha e fala, no capítulo 14, em um “mito da fundação portuguesa”, ao qual se contrapôs a verdade histórica da fundação francesa, a partir da revalorização das influências gaulesas no litoral brasileiro no processo da colonização e o conhecimento de textos que foram interditados, como o livro do padre Yves d’Évreux. Em linhas gerais, são ideias já defendidas em artigos pelo jornalista Antonio Carlos Lima, além de buscar algumas observações de Andréa Daher sobre as tentativas do português vencedor de impor a memória e “ocultar marcas”.

A questão é que os documentos e textos revelados não alteraram a descrição básica já existente sobre o arraial dos franceses, o forte e adjacências, constante seja no relato de Claude d’Abbeville, seja na correspondência oficial enviada ao reino ou firmada entre os capitães. A nova interpretação se baseia na conhecida História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas e surge não como contestação crítica, e sim constatação de algo que já estava lá desde sempre. A noção da fundação francesa se incrustou na historiografia maranhense como um mito. Foi isto que efetivamente o trabalho de Lourdinha mostrou.

Por outro lado, as observações sobre o forte como origem da cidade, tópico recorrente, são absolutamente pueris: “Incontáveis cidades mundiais, em distintas épocas de conquistas de território e guerras entre nações, nasceram de fortificações, a exemplo dos castelos. São Luís não foge a este padrão tão comum ao longo da história” (Idem, p. 264). Por aí não se vai longe.

Novamente as indicações feitas por Lourdinha em artigo intitulado “As Cidades no Brasil Colonial” (Caderno Alternativo, 18.05.2008), parecem mais frutíferas, mostrando, com base em estudo do urbanista Paulo Santos, que longe de serem simplesmente “espontâneas”, existiram cidades coloniais com planta prévia, fundadas por determinação expressa do Reino, entre as quais destaca Salvador, o Rio de Janeiro e São Luís.

As diretrizes para a fundação da primeira constavam do Regimento de Tomé de Souza e o mesmo se deu em São Luís, conforme o Regimento deixado por Alexandre de Moura a Jerônimo de Albuquerque. O plano de autoria do Engenheiro-Mor Francisco Frias de Mesquita seria o exemplo mais expressivo da adoção de traços de regularidade, talvez o primeiro realizado no Brasil, “mas sem a monótona repetição de quadrículos que se vê nas cidades de colonização hispânica”. Em seu núcleo regular rigorosamente projetado e preservado está a singularidade da cidade, muito mais que em sua mítica fundação francesa.

Enquanto seus críticos continuaram relendo as descrições de Claude d’Abbeville e tecendo loas à França Equinocial, Lourdinha apareceu com outra grande surpresa em 2012, ano em que seriam comemorados os “400 anos” da fundação. Longe de continuar batendo na mesma tecla, publicou um alentado livro sobre a cidade, a expansão da sua malha urbana, a transformação dos costumes, enfocando traços do cotidiano, as festas religiosas e laicas, as manifestações artísticas.

Aqui se distanciou ainda mais da escrita com traços formais e, sem qualquer quadro teórico, nos termos acadêmicos comuns, costurou uma mistura de pesquisa e ensaio memorialístico livre, vivo, cheio de cores, sabores e odores. O título, São Luís do Maranhão, Corpo e Alma, aparentemente pretensioso, traduz o que efetivamente vamos encontrar, uma narrativa forte e descentrada, desenhando vasto painel histórico da cidade, com fundo sentimental e ligeiramente nostálgico, mas sem a costumeira exaltação afetada.

É um encontro quase literal com São Luís em suas ruas e becos, igrejas e praças, dividido em quatro partes, referentes aos quatro séculos: a cidade traçada; o início da expansão; a era do casario; crescimento e degradação. Não é uma história administrativa, tão ao gosto de Mário Meireles, por exemplo, nem um guia sentimental ou turístico, mas é um painel histórico que traz muito da sua longa vivência na cidade e do trânsito entre famílias antigas, expresso no conhecimento de episódios e figuras variadas da sociedade.

Com uma edição ricamente ilustrada, mesclando fotografias antigas com outras recentes, muitas da lavra do fotógrafo Edgar Rocha, associadas a registros de pinturas, dispostas numa dimensão não muito usual em obras de história, foi, ironicamente, talvez a melhor saudação que a cidade recebeu naquele ano de comemorações. É livro escrito com sofreguidão, salto sem rede de proteção, que se lê de um fôlego. Quanto mais as memórias, suas e de outros, se entrelaçam com a pesquisa e são atravessadas pelas imagens, mais o texto ganha em intensidade. Trabalho significativo de reunião de informações de campos variados, mas também fruto da arte de quem tem o dom de prender a atenção em meio à narrativa mais simples.

Se hoje, passados 15 anos, é possível dizer que o pequeno livro sobre a fundação vai tornando-se clássico, pois reviu os termos do debate, concorde-se ou não com suas posições, este volume sobre a cidade parece simplesmente ter nascido clássico, e da maneira mais silenciosa possível, já disputado e guardado com o zelo do livro raro, apesar de lançado há apenas três anos.

História da Medicina em São Luís. Médicos, enfermidades e instituições. Capa. Reprodução
História da Medicina em São Luís. Médicos, enfermidades e instituições. Capa. Reprodução

 

Sua mais nova realização veio à luz recentemente, o livro História da Medicina em São Luís: médicos, enfermidades e instituições, em outra edição caprichada, lançado no Conselho Regional de Medicina, com relançamento previsto para o dia de abertura da Feira (2 de outubro). Um tema árido e para ela até então desconhecido foi tratado com leveza e novamente as artes da sua narrativa prendem o leitor.

Desta vez, a cidade aparece nas malhas das nossas enfermidades, suas formas e locais de tratamento e, principalmente, na constituição da comunidade médica, em levantamento rico e humanizado, que traz imagens vívidas de figuras emblemáticas, num escopo que vai do tradicional médico de família, percorrendo residências, atendendo nos consultórios ou, mais comumente, nas farmácias, à formação das primeiras especialidades, desenvolvendo-se com o predomínio dos hospitais e clínicas.

Sem dúvida, estes trabalhos escritos em fase avançada da vida por uma professora aposentada que influenciou gerações através da sala de aula, devem ser o motivo da homenagem, mas para todos que a conhecem, seus numerosos amigos, ex-alunos, antigos colegas de trabalho e admiradores, trata-se de algo maior e mais importante, a saudação a uma figura humana rara e sua vinculação à cidade onde sempre viveu.

*Flávio Reis é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA. Publicou Cenas marginais (2005, ed. do autor), Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão (2007, ed. do autor) e Guerrilhas (2012, Pitomba/ Vias de Fato).

Agenda #9FeliS

Foto: Acervo Talita Guimarães
Foto: Acervo Talita Guimarães

 

Enquanto não sai oficialmente a programação completa da 9ª. Feira do Livro de São Luís, que volta à Praia Grande entre os próximos dias 2 a 11 de outubro, este blogue anuncia a participação de seu titular no evento. Medeio duas mesas:

5 (segunda), às 20h, “Uma historiadora ludovicense: a figura e a obra de Lourdinha Lacroix“, palestra do professoramigo Flávio Soares, no Auditório Lourdinha Lacroix (Casa do Maranhão) Mário Meirelles (Teatro João do Vale). Na #9FeliS, Maria de Lourdes Lauande Lacroix, professora, historiadora e patronesse desta edição da FeliS, lança História da Medicina em São Luís: Médicos, enfermidades e instituições, que tive o prazer e a honra de revisar; e

10 (sábado), às 17h, “Editoras alternativas: pedras no caminho do mercado“, debate-papo com Bruno Azevêdo (Pitomba!), Eduardo Lacerda (Patuá) e Bruno Brum, no Auditório Mário Meireles Espaço Café Literário Lourdinha Lacroix (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho).

Ilustra este post foto roubada da Talita Guimarães (ao centro, não lembro quem fez), após a mesa que, baita honra, dividi com Jotabê Medeiros na FeliS passada.

*

Veja a programação completa da #9FeliS.

Uma noite para entrar para a História

Gildomar Marinho homenageou Manoel da Conceição e botou o 24º. Fesmap na História. Fotosca: Zema Ribeiro
Gildomar Marinho homenageou Manoel da Conceição e botou o 24º. Fesmap na História. Fotosca: Zema Ribeiro

Estive em Pinheiro sexta-feira passada (25), quando assisti a íntegra da primeira noite do tradicional Festival de Música Popular do município.

Era, antes de e mais que jornalista, apenas um rapaz latino americano descansando, passeando, revendo amigos e tomando cerveja.

Destaco, de cara, que qualquer coisa que dure 24 anos no Maranhão – exceto a velha oligarquia que já atingiu o dobro disso – merece que tiremos o chapéu.

Fui passar o fim de semana na Baixada e, em sabendo que o parceiro Gildomar Marinho faria o show de abertura do 24º. Fesmap, resolvi esticar, aproveitando-me da nobreza do sogro, que sempre opta por ser o anjo da rodada.

No geral, achei o festival abaixo das expectativas. O público na praça era pequeno e o nível das músicas concorrentes, em geral, ruim. Na boa banda destacavam-se Rui Mário (sanfona) e Marcos Lussaray (violão e guitarra) e entre os intérpretes sobressaíram-se Anna Cláudia e Fernanda Garcia – vencedora da última edição do certame, ano passado.

O show de Gildomar foi curto e, tocando seu violão, ele foi acompanhado por remanescentes da banda que fazia a cama para os concorrentes, de improviso. Não fosse isso, ele faria o show sozinho, ao contrário do que eu havia lido em jornais e no material de divulgação do Fesmap – sempre rodeado de um sem número de logomarcas e nomes de patrocinadores e apoiadores, também fazendo-nos crer numa dimensão maior que a conseguida.

Radicado no Ceará, com participações em outras edições do Fesmap, inclusive já tendo sido jurado, Gildomar desfilou um repertório autoral, começando pelo martelo agalopado A metade que manda, seguida de Ensejo de blues – ambas de Tocantes, seu terceiro disco, lançado ano passado.

Mas a noite entrou mesmo para a História quando o maranhense lembrou-se de, em meio a Ladainha da remissão – de Olho de Boi (2009), seu primeiro disco –, usar de incidental A batalha do cerrado, belo carimbó elétrico de Pedra de Cantaria (2010), que ele fez em homenagem a Manoel da Conceição.

O líder camponês faria 80 anos no dia seguinte. Um dos mais ferrenhos opositores à oligarquia Sarney e seu principal comandante, Mané – como gosta de ser chamado – foi homenageado em plena Praça José Sarney, na cidade em que nasceu o político ora em ocaso.

Desconheço os resultados do 24º. Fesmap. Mas pouco importa: esta edição já entrou para a História, de um modo bem particular.

Saudade de Pixixita (Ou: Um abraço em Nelsinho)

Contrariando o compositor baiano, Pixixita subiu há algum tempo para uma estrela colorida, brilhante. De lá, certamente continua cumprindo a missão que tinha cá na terra: legar às pessoas o amor pela música.

O saudoso José Carlos Martins, dono do apelido, com sua cara e jeito “de índio”, deixou uma legião de fãs e amigos. Seguidores, nestes tempos de redes sociais.

O homem é uma lenda. Quase todo mundo que tem algo a ver com música em São Luís conta alguma história envolvendo Pixixita. Ou foi seu aluno. Ou tomou uma com ele. Ou tirou um retrato, bonito como o preto e branco em que ele aparece com o também já saudoso Nelson Brito.

Durante muito tempo, aliás, pensei que meu amigo Nelsinho, muito provavelmente pelo sobrenome, fosse filho de Nelson Brito. Entre tantos afazeres, este herdeiro do espírito agregador de Pixixita tem por missão manter vivo o legado do pai: sua memória, o amor pela música, simpatia e o “um milhão de amigos pra bem mais forte poder cantar”, para citarmos outro compositor. Graças a estes, a missão de Nelsinho torna-se até fácil.

Seu pai não cheguei a conhecer, mas admiro-o já há algum tempo. Com o filho, este simpático professor de capoeira, já tomei umas tantas cervejas nesta vida e tanto mais pretendo fazê-lo.

Como sábado agora, quando os companheiros de tribo do saudoso pajé reúnem-se para mais uma festa ao redor das fogueiras acesas nos corações em nome do amor à música e à vida.

Bota Pra Moer

Antônio Lima era o nome próprio daquele pernambucano entroncado, de cor clara, cabeça a la Rui Barbosa, natural de Caruaru e do qual os maranhenses recordam muitas histórias. Devido a sua impressionante inteligência, logo que aqui chegou foi batizado pela plebe de “Bota Pra Moer” e essa alcunha o acompanhou até o fim de sua existência. “Bota Pra Moer” era simplesmente impressionante, um matemático como até então nunca tinha aparecido igual em São Luís. Para quem não teve o privilégio de conhecê-lo, basta dizer que “Bota Pra Moer” chegava para uma pessoa e perguntava o dia, mês, ano e hora em que aquela pessoa nascera. De posse destes dados e num rápido cálculo que fazia mentalmente, dali a minutos respondia quantos anos, meses, dias e horas aquela pessoa tinha vivido até aquele instante. Outra faceta impressionante deste personagem era ler (mas ler mesmo) um jornal de cabeça para baixo e ficava lendo com a maior naturalidade. Depois relatava tudo o que os jornais estavam noticiando.

“Bota Pra Moer” usava sempre roupas de segunda mão que ganhava de famílias mais abastadas. Almoçava, jantava e, às vezes, dormia na residência do farmacêutico Garrido, proprietário da Farmácia Garrido, na Rua Grande. O farmacêutico não admitia que o chamassem pelo apelido e tinha, juntamente com sua esposa, uma estima muito grande pelo excêntrico matemático. Conta-se que, certa vez, “Bota Pra Moer” chegou à farmácia do seu Garrido e perguntou-lhe, num tom muito sério

“Seu Garrido, o senhor gosta de carne de boi?”

Garrido que estava muito atarefado, respondeu que sim, gostava de carne de boi. “Bota Pra Moer”, depois de algum instante, novamente tirou o farmacêutico de suas tarefas e perguntou-lhe:

“Seu Garrido, o senhor come carne de boi?”

Um pouco chateado, Garrido respondeu:

“É claro, Antônio, eu gosto e como carne de boi. E tu, não comes?”

Ao que “Bota Pra Moer” respondeu, ironicamente:

“Comer eu como, seu Garrido, mas é sentado…”

O farmacêutico caiu na gargalhada, diante daquela tirada de “Bota”.

Os bolsos de “Bota Pra Moer” viviam cheios de pão, que ele comia constantemente. Em outros bolsos guardava papéis e tocos de lápis para fazer seus cálculos. Às vezes era contratado por firmas para sair fazendo propaganda de casas comerciais. Nessas ocasiões andava pelas ruas com duas placas, uma na frente e outra atrás, anunciando os produtos e preços da firma comercial que o contratara. E como ficava feliz e sorria quando os transeuntes paravam para olhar as placas que conduzia!

“Bota Pra Moer” gostava também muito de crianças, sempre tinha alguma coisa para oferecer aos petizes que o cercavam. Um de seus hábitos era fazer casinhas de papelão que vendia para as crianças, a preços módicos, porque, para ele, o importante era fazer felizes aqueles pequeninos seres. Outra mania do nosso personagem: colecionar nos bolsos bolinhas de gude. Quando encontrava alguém disposto fazia aposta de como era capaz de engolir aquelas bolinhas e quase sempre ganhava, trazendo-as de volta na hora em que fazia as necessidades fisiológicas. Tirava as bolinhas da “massa fecal” e limpava, guardava-as novamente nos bolsos, à espera de novos apostadores.

São Luís é conhecida como “Ilha Rebelde” devido à célebre greve de 1951, quando o povo se revoltou contra a posse no governo do Sr. Eugênio Barros. Um dia os grevistas entregaram a “Bota Pra Moer” a bandeira nacional e o colocaram à frente, numa marcha rumo ao Palácio dos Leões. Os grevistas se autointitularam de “Soldados da Liberdade”. Quando a turba chegou à Praça Pedro II e “Bota Pra Moer” viu aquele monte de policiais em frente ao Palácio, com as armas em ponto de bala, prontamente entregou a bandeira para o primeiro que apareceu, afirmando:

“Até aqui eu vim, mas daqui pra frente arranjem outro que seja mais doido do que eu…”

Outros fatos pitorescos que se conta de “Bota Pra Moer”:

Certa vez telefonaram da residência do Sr. João Pereira, avô do Dr. Gabriel Cunha (que morava na Rua das Hortas) pedindo que fosse com urgência com determinado medicamento para uma pessoa da família que estava passando mal. Nessas ocasiões, o farmacêutico sempre pedia a “Bota Pra Moer” para fazer tais entregas. E foi o que aconteceu naquele dia. Seu Garrido tirou o remédio da prateleira, chamou “Bota” e deu-lhe o medicamento, instruindo-o quanto ao endereço onde deveria entregá-lo.

“Bota Pra Moer” chegou à porta da casa do Sr. João Pereira e bateu. Não foi atendido, tornou a bater e nada. Insistiu mais uma vez e ninguém dava sinal de vida. Vendo uma janela aberta, “Bota” pulou a referida janela, foi até a varanda da casa, deixou o remédio em cima de uma mesa, voltou a pular a janela e retornou para a farmácia. Ao chegar àquele estabelecimento, seu Garrido perguntou-lhe:

“Como é, Antônio, deixaste o remédio lá onde eu te disse?”

“Deixei, seu Garrido. Não tinha ninguém na casa e eu coloquei em cima de uma mesa.”

A essas alturas, na residência do Sr. João Pereira, estava todo mundo estupefato, sem saber como aquele precioso remédio fora parar em cima da mesa, sem que ninguém tivesse aparecido. Já estavam considerando um verdadeiro milagre, quando Garrido telefonou e contou a presepada de “Bota Pra Moer”.

Em outra ocasião, o então Presidente Dutra estava em visita a São Luís, trazido pelo Senador Vitorino Freire. Como parte da programação, Dutra e Vitorino foram para o Estádio Santa Isabel, onde o Presidente deveria dar o pontapé inicial de uma partida entre Sampaio e Moto. Quando as autoridades adentravam ao gramado (como dizem os locutores esportivos) lá atrás ia o “Bota Pra Moer”, muito na dele, jogando ioiô de tampa de panela. Nas arquibancadas e gerais a gritaria era infernal, todos se deliciando com o feito do “Bota”…

Pouco antes de “Bota Pra Moer” deixar este mundo, foi protagonista de outro episódio interessantíssimo. Tocava uma valsa numa das casas comerciais da Praça João Lisboa e nosso personagem, desinibido como era, apanhou a esmoler conhecida por Tiririca e com ela saiu valsando pelo calçadão existente em frente ao Moto Bar. Foi um acontecimento! Muita gente parou para ver aquele casal dançando feliz em plena praça, deixando de lado as tristezas da vida.

“Bota Pra Moer” costumava banhar-se numa lagoa infecta que se formava na Rua Paulo Frontin (no hoje bairro Retiro Natal) e que na época estava sendo aterrada. Aquela lagoa era, para o “Bota”, uma espécie de piscina, de rio ou de mar. Numa dessas vezes, vitimado por um mal súbito, “Bota Pra Moer” pereceu naquela lagoa e seu corpo foi encontrado no dia seguinte por populares que ali transitavam.

O corpo de “Bota Pra Moer”, depois de autopsiado, foi entregue à Faculdade de Medicina, onde os acadêmicos dele fizeram uso para seus estudos. Mesmo morto, o conhecido matemático foi útil – ou continua sendo útil – para os maranhenses…

*

Lopes Bogéa no raro Pedras da Rua [São Luís, 1988, 320 p.], cuja capa desenhada por Elvas Ribeiro, vulgo Parafuso, abre-ilustra este post. No livro o saudoso compositor dedica-se a perfilar estas “figuras populares”,  “gente simples de São Luís”, merecedoras de “nosso respeito e o nosso carinho”, como alerta o autor no preâmbulo da obra.

Chorografia do Maranhão: João Pedro Borges

[O Imparcial, 14 de abril de 2013; aos poucos mas fieis leitores do blogue um bonus track: a versão abaixo traz algumas perguntas e respostas que ficaram de fora da edição do jornal, embora isso ainda esteja longe de ser a íntegra da deliciosa conversa que Ricarte Almeida Santos e este que vos perturba tivemos, fotografados por Rivânio Almeida Santos, com o mestre João Pedro Borges, um papo longo em uma noite de segunda-feira; o violonista fala como professor que é, fazendo questão de deixar tudo bastante explicado para que não restem dúvidas aos alunos; orgulho de ter aprendido essa lição.

Este post é dedicado a Maria Pepê, cunhada de Sinhô]

Quarto entrevistado da série, João Pedro Borges é um dos mais importantes nomes do violão, do choro e da música brasileiros. Seu talento é reconhecido internacionalmente

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

João Pedro da Silva Borges nasceu em uma vacaria, espécie de pequena fazenda, onde hoje fica o edifício Clara Nunes, “olha que grata coincidência”, no Apicum, região central da capital maranhense, em 23 de junho de 1947. O apelido Sinhô ganhou da avó: “Minha avó, mãe do meu pai, eu nascendo numa fazendinha, nasceu o Sinhozinho, nossa herança coronelesca. Era o Sinhô, Sinhozinho. Aí pronto, pra distinguir dos outros irmãos, que eram muitos [onze], era Sinhô e acabou-se”.

Filho de Raimundo Felipe Borges e Marina Silva Borges; a mãe, professora normalista, o pai, técnico em eletrônica, especialista em rádio e televisão, um empreendedor que chegou a ter gráfica, trabalhava com o avô na Livraria Borges, de propriedade da família, a maior da São Luís da época, quando o menino João Pedro nasceu.

Ele é um dos maiores violonistas brasileiros em todos os tempos e participou de um capítulo fundamental para a renovação do choro no Brasil: a Camerata Carioca do gaúcho Radamés Gnattali, com que o maranhense chegou a gravar discos e fazer diversas apresentações Brasil afora. Seu talento é hoje reconhecido internacionalmente e o disco mais recente, Clássicos Latino-Americanos, foi gravado em 2005, em uma igreja na França.

Wilson Marques concluiu recentemente um perfil seu para uma coleção que pretende publicar em breve. Para a construção do livro, entrevistou o próprio João Pedro Borges além de figuras próximas, como Chico Saldanha, Arlete Nogueira da Cruz e Sérgio Habibe, entre outros. “É ele contando a história dele, não é uma minuciosa biografia, mas sobretudo um registro de sua trajetória e da importância do trabalho dele para a música brasileira”, adiantou o jornalista.

João Pedro Borges conversou com O Imparcial/ Chorografia do Maranhão no Chico Discos, acompanhado, na decoração do ambiente, de diversas personalidades da música: algumas delas ele chegou a conhecer pessoalmente e são citadas por ele ao longo da conversa.

Quando foi que tu percebeste que teu negócio era a música? Eu sempre tive certos indícios de sensibilidade. Por exemplo, eu ganhei, por ocasião de um natal, um violãozinho de plástico, e aquilo era o brinquedo que mais me encantava. Então eu simulava cantar com aquilo, com o passar do tempo eu buscava alguma forma de afinação. Lembro que na minha infância passava um deficiente visual numa carroça puxada por um burro, conduzida por um ajudante que provavelmente era filho dele, e tinha a peculiaridade de que este senhor  tocava cavaquinho. Então, eu guardava dinheiro pra ter o que levar pra ele, por que quando a gente chegava, ele dizia “a pedido é mais caro”. Lembro que quando ganhei esse pequeno violão eu queria imitar um pouco o homem cego que passava lá na minha rua, quase que todos os dias. Mas só mais tarde [consegui], meu padrinho José Silva foi meu primeiro professor de violão. Ele fazia parte da velha guarda das pessoas que lidavam com o choro. Foi ele o meu vínculo com o choro, era violonista, compositor. Ele era irmão adotivo, por afinidade, do famoso professor Custodinho, Custódio Zaqueu Coelho, que eu considero o grande violonista do Maranhão, anterior a[o violonista] Turíbio [Santos], por exemplo, como geração. Era um violonista extraordinário. Cheguei a ter aulas com ele.

A tua escolha por ser músico contou com o apoio da família? De uma parte da família, que me incentivou. Tinham muitos saraus na minha casa. Sistematicamente tinham reuniões de violonistas, de músicos na minha casa, onde o repertório era basicamente choro de violão. Esse meu padrinho era um pintor de paredes, mas era um homem autodidata, de uma intelectualidade muito grande, tinha um conhecimento extraordinário. Ele foi a primeira pessoa que me falou da cultura musical brasileira. Os personagens que ele citava para mim eram Pixinguinha, Ernesto Nazareth, falou de Agustín Barrios quando passou aqui, ele era amigo do pai de Turíbio, que era seresteiro, e frequentava um pouco esse grupo, que a gente chamava os velhos, na época. Nessas reuniões meu padrinho notou meu interesse em ficar ouvindo aquilo. Aí ele perguntou se eu não queria tocar violão e eu disse “quero!” Ele disse “então eu vou te ensinar”, e me ensinou um choro. Eu não comecei por acordes, fazendo assim, ele botou a minha mão e me ensinou um choro chamado Mariazinha [toca trechos ao violão, não sabe dizer a autoria]. Esse choro tem uma peculiaridade formal [fala enquanto continua tocando]: é que ele tem três partes, todas no mesmo tema, ele é uma síntese da forma do choro.

O choro, durante muito tempo, os músicos tocavam por diletantismo. Tinham geralmente outra profissão e tocavam choro nas horas vagas para se divertir e às vezes, como desenvolviam muita capacidade, habilidades, acabam se tornando músicos conhecidos, consagrados, mas não eram profissionais da música. Você é um profissional da música, vive de música, sempre viveu de música?Isso faz diferença? Sim. Faz diferença. Quer dizer, em termos. Se a gente levar em consideração que Jacob do Bandolim era escrivão, César Faria trabalhava numa repartição, há que se levar em consideração aí que há um impulso por detrás desse aparente amadorismo. Quer dizer, eles tinham profissões que lhes davam sustentação, mas grande parte da atividade deles era exercida em torno do choro. A diferença é a seguinte: uma carreira de concertos não é uma carreira convencional, é algo que vive de oportunidades que se inventam, que são criadas. Por exemplo, os concursos de violão são uma forma de atrair a atenção para jovens, têm limite de idade. Eu fui por outro caminho alternativo, me beneficiei da companhia dos meus professores. Depois de um ano que eu estudava com Jodacil Damasceno, ele me tornou assistente dele, eu tive como alunos Dori Caymmi, Guinga, Marlui Miranda, Durval Ferreira, Miltinho do MPB-4. Depois Turíbio me convidou para montar um curso no Rio de Janeiro.

Eu queria que tu contasse um pouco de tua participação em uma banda cover dos Beatles. Tinha a vizinhança próxima com os Saldanha, na Rua de São Pantaleão, Ubiratan Sousa, que gostava muito de choro, foi quem me falou pela primeira vez da bossa nova, me mostrou uns acordes e aprendia comigo a linguagem do choro, aquelas baixarias, que eu era especializado por conta de meu padrinho, que era craque na área. Nessa época surge a televisão por aqui e os irmãos Saldanha, principalmente o mais novo, Nena, falavam bem inglês. E surgiu essa coisa da televisão e todo mundo encantado com a música dos Beatles. Então eles fizeram um conjunto em que eu era apenas o acompanhador. Eu não aparecia no vídeo, e ficava com um violão de cordas de aço poderoso que eu tinha, que parecia uma guitarra, e acompanhava só com esse violão todo mundo. Era Francisco Saldanha, Nena, o Antonio Saldanha, Benedito, que eu não lembro o sobrenome, estudava também no Liceu, Chico Linhares, o Francisco Linhares, que também morava na Rua de São Pantaleão, Edson, também não me lembro o sobrenome e eu acompanhando. Mudou essa formação. Entra Ubiratan nesse conjunto, que muda de nome, de The Five Gems para Os Rebeldes, e ficamos vinculados à televisão, inicialmente através dos programas de Reinaldo Faray. Tava começando a Difusora.

Depois tu ajudaste a fundar a Escola de Música do Estado, que surge no momento em que uma nova geração de artistas começava a produzir com base nas linguagens da cultura popular. E eles tinham a esperança de que a Escola de Música pudesse ser a continuidade de um processo de absorção dessas linguagens, numa escola de identidade mais maranhense? Tinha esse desejo? Como é que era isso na época? A responsável intelectual por todo esse movimento é [a poeta e ex-secretária de Estado da Cultura] Arlete Machado. Foi ela quem concebeu e encomendou o plano da Escola de Música. O que aconteceu foi o seguinte: os primeiros professores, quer dizer, eu vim em 1974, da África, diretamente para cá para São Luís do Maranhão. Criou-se essa escola de música, a primeira diretora é nossa melhor pianista de todos os tempos, Maria José Cassas Gomes, e o resto eram professores que vieram de fora. Era Clemens Hilbert, um alemão que dava cursos de extensão nos seminários de música da ProArte, lá por Teresópolis. Tinha outro professor chamado João Solano, que era um pianista que também estudava relações internacionais, queria ser diplomata. Veio daqui do Ceará um pianista chamado Flávio, não me lembro agora também do sobrenome dele, mas um excelente músico, pianista, e Gilles Lacroix, que chegou a dar aula de música, de teoria musical, tempo em que ele estava se decidindo a largar a batina. Nesse contexto a Escola de Música foi organizada, ali no Apeadouro, e os primeiros candidatos que surgiram, por exemplo, [o compositor] Sérgio Habibe, que trabalhou também um tempo como funcionário lá da escola. Então surgiu [o compositor Giordano] Mochel, Zé Martins, Josias [Sobrinho] e [o compositor] Cesar Teixeira, sempre a gente tendo aquele cuidado de que eu não queria descaracterizar o trabalho deles, mas eles estavam em busca de formação. Eu tinha um discurso de fundamentação. Dizia “até para você fazer bem essas coisas nossas, você precisa de recursos, de técnica”. Sérgio Habibe é um caso flagrante de ter mudado o nível de composição a partir do estudo, ele próprio reconhece isso. Josias Sobrinho foi o meu melhor aluno de harmonia, eu dei um curso pra ele de harmonia aplicada ao violão. Eram alunos dedicados. Eu forneci uma espécie de subsídio pra eles, mas sempre com a recomendação, dizendo “olha, vocês não têm que estudar pra serem músicos eruditos, nem nada, é pra melhorar o que vocês estão querendo fazer”. Naturalmente da parte deles devia haver certas expectativas políticas, por que o movimento pra eles não era só artístico. Pra mim era um movimento artístico, pra eles era político.

Lá no Rio você teve uma convivência com uma nova geração de chorões, com gente da antiga, e você vivenciou o momento de renovação do choro, ali da virada dos anos 70 para os anos 80, convivendo ali com nomes como Paulinho da Viola, com a Luciana [Rabello], com a turma dOs Carioquinhas, Radamés [Gnattali]. Conte um pouco dessa história. Eu passei a ser habitué de todos os saraus que o Jodacil participava. Tinha um amigo nosso chamado Tonzinho, que na realidade é Milton Borges, eu chamava até ele de parente, morava em Niterói, tinha sido amigo pessoal de Jacob, de Six e de Jonas, e através das idas de Six ao Rio de Janeiro nós fomos parar um dia na casa desse Tonzinho e lá ele reunia Abel Ferreira, Copinha, Arthur Moreira Lima passou por ali, Paulinho da Viola, tudo o que era do choro, Ronaldo do Bandolim com os irmãos. O Raphael Rabello, que eu conheci tocando junto com Turíbio, tinha 12 anos, travou logo amizade comigo, tocava, tinha uma formação bem consolidada de música e ele tinha o que eu gostava, tudo em quanto dizia respeito ao choro tava consolidado na cabeça dele, não tinha que aprender nada. Ele era herdeiro de toda a tradição do Dino [Sete Cordas] e do Meira [Jaime Florence], que foi o grande professor dele, professor do Baden [Powell]. O Raphael, um dia assim, disse “olhe, aniversário da Nara Leão, nós vamos lá na casa dela, e eu queria te levar por que eu tenho uma pessoa que eu quero te apresentar”. Aí me apresentou pro Joel [Nascimento], estávamos tocando, quando ele me viu tocar, disse “olha, nós estamos iniciando um trabalho”, não existia esse nome, Camerata [Carioca], isso veio depois, “de tocar uma suíte que o Radamés tá transcrevendo”, acho que nem todos os movimentos ainda estavam transcritos, só tavam os primeiros, “você não gostaria de participar?”, e eu “gostaria”. Marquei um ensaio com eles, acho que na minha casa, e me encantei com o trabalho, aí começamos a montar a Suíte Retratos. A partir dessa nova abordagem com o choro, os saraus começaram a mudar de feição, num determinado momento eles abriam espaço, “vamos ouvir a rapaziada”, e ficavam encantados com aquilo. E aí esse trabalho começou a chamar a atenção, por que a gente começou a montar um espetáculo chamado Tributo a Jacob do Bandolim, foi considerado o melhor espetáculo de 79 no Rio de Janeiro.

Tu tens uma vasta discografia, tocando, integrando a Camerata Carioca, fazendo Valsas e Choros [1979] e Choros do Brasil [1977]… [interrompendo] Com Turíbio eu tenho três discos. Choros do Brasil foi o primeiro, Valsas e Choros, depois tem o Violão Brasil [1980], que a gente fez para um projeto, por que nessa época, disco instrumental dependia também muito desses projetos que eram feitos pra dar brindes de empresas. Por exemplo, eu gravei a obra de Paulinho da Viola [A obra para violão de Paulinho da Viola, 1985], não quisemos nem eu nem Paulinho editar comercialmente, por que sabíamos que os acordos não iam ser bons, apesar de que eu tinha muita consideração com a [gravadora] Kuarup, Mário de Aratanha [idealizador e proprietário da gravadora] praticamente me lançou como produtor, eu ganhei cinco prêmios Sharp como produtor de discos, e editor, fazia aqueles acabamentos todos, tem discos nossos inclusive que ganharam também prêmio na Europa, foram lançados lá pelo Chant du Monde, gravadora que substituiu a Erato francesa. Eu fiz o meu primeiro disco de forma independente em 1977. Logo depois daquela ideia lançada pelo Antonio Adolfo, do disco independente, alguns músicos eruditos descobriram que podiam fazer aquilo. E Jodacil me disse “por quê que tu não faz um disco?” Aí eu decidi fazer também um disco, isso em 1977, concomitante com a ideia do Choros do Brasil, com Turíbio, eu fiz esse disco, sozinho, gravei no estúdio do Museu da Imagem e do Som. O segundo disco [João Pedro Borges Interpreta, 1983] já foi proposta da Kuarup, como eu fiz muitos trabalhos com a Kuarup, Mário disse “olha, a gente tava querendo fazer um disco teu”. Foi um disco dedicado a violonistas espanhóis e clássicos. Depois deste, A obra para violão de Paulinho da Viola, o quarto que eu fiz já foi na França [Clássicos Latino-americanos, 2005]. Eu também nunca me entusiasmei muito com a indústria do disco especificamente, por que eu era muito criterioso, a gente tinha aquele medo de ser explorado, mesmo tendo a compreensão de que um disco não era uma forma de ganhar dinheiro, era uma forma de divulgar o trabalho.

Era o que eu ia perguntar: tem disco com a Camerata, com Paulinho da Viola, com Turíbio, tem disco em que tocas só em uma faixa, casos de Mistura e Manda [de Paulo Moura, 1983] e Shopping Brazil [de Cesar Teixeira, 2004], para citar apenas alguns. O que tu consideraria, ou por razões afetivas ou por razões de importância pra música do Brasil, uma discografia básica de João Pedro Borges? Pro pessoal ir atrás, baixar na internet. Tributo a Jacob do Bandolim [da Camerata Carioca, 1979], sem a menor sombra de dúvida. Por que na realidade eu era um mero componente, eu digo que fui testemunha privilegiada. O Hermínio Bello de Carvalho tinha a seguinte definição: “olha, essa Camerata vai dar certo por que tem o grande arranjador e compositor, tem o grande intérprete e tem o grande ensaiador”, por que eu tinha uma técnica de ensaio que nem Turíbio tem essa técnica, era tudo muito bem organizado, até Radamés eu enquadrava. O [jornalista] Aramis Millarch uma vez, num ensaio, eu discutindo com Radamés, mas discutindo assim numa boa, a gente tinha uma amizade muito grande, mas eu sabia o limite dele, já pela idade, ia até certo ponto, por que ele já queria sair para tomar chopp, comer alguma coisa, ele não tinha muita paciência de ficar ensaiando, como Turíbio também nunca teve, mas o resto do pessoal precisava de ensaio. Aí Radamés dizia “não, agora já tá bom”, e eu dizia, “não senhor, ainda não está bom, ainda tem uma partezinha que nós vamos limpar aqui”. Aí terminava o ensaio e eu dizia, “e aí, Radamés?”, “é, é, ficou melhor”, aí ele dava o braço a torcer.

Soubemos que você anda compondo. Eu fiz arranjos na época, na própria época do Valsas e Choros os arranjos eram assim coletivos, mas sempre prevalecia uma base. Como Turíbio tinha muita confiança em mim, sabia que eu tinha formação, lia música melhor do que todos os outros, eu dava muita colaboração nesse sentido dos nossos discos, assim a parte mais erudita. Agora a parte mais tradicional, mais dentro da linguagem do choro, imagine, com Jonas e Raphael, não dá nem… pelo contrário! Foi uma escola, foram meus mestres, o que aprendi com eles não tá no gibi. Aqui, depois que eu voltei à São Luís do Maranhão, minha amizade com [os poetas José] Chagas e Nauro [Machado], e as reuniões periódicas pra ouvir música, com Arlete [Nogueira da Cruz Machado, poeta, esposa de Nauro], o Chagas começou a me passar umas poesias dele não editadas. Me deu vários cadernos. E olhei aquilo, eu digo “rapaz, isso dá música!”.

Isso é recente? Mais recente, eu sempre tive minha ideia de compor, compor choro, compor valsa, sempre toquei valsas e choros que eu mesmo compus. Tem coisas que eu nem escrevi, que foi embora, Turíbio até brigava comigo por conta disso. Aí comecei a escrever essas canções de Chagas, musiquei dez poesias de Chagas, uma de Nauro e descobri mais recentemente, desse povo novo, que existe por aí, fora dessa geração, pra mim, na minha opinião, a melhor poeta que a gente tem chama-se Aurora da Graça Almeida. Ela me deu um livro, eu preciso dar esse livro pra vocês lerem. Ela me deu um livro e eu descobri coisas assim maravilhosas. Deixa ver se me lembro, sem compromisso [começa a dedilhar o violão]. Chama-se Mágoa. Um homem prevenido vale mais do que dois desprevenidos [abre o case e tira uma folha de papel em que o poema está anotado]. Olha a letra, diz assim [recitando]: “meu coração sem cor e sangue/ maldiz a mágoa renascida do tempo estilhaçado que vivi/ meu coração sem cor e sangue/ esconde a selva oculta do perdão/ esconde as palavras mais belas e fugazes que não disse/ no meu coração de veias seculares/ padece a solidão de antigamente/ maltrata-me a vida retalhada/ maltrata-me não ser o que eu queria/ maltrata-me deixar sem poesia/ os que previram minha dor, minha agonia/ meu coração sem cor e sangue/ repleto de veios de fervor/ resgata a duras penas o sentido/ de ser ao menos navegante nessa vida” [canta, acompanhando-se ao violão; ao final recebe aplausos dos chororrepórteres].

Ficou clara tua percepção sobre o cenário no Brasil, tanto no Rio como em Brasília, que são os dois focos. No Maranhão como é que tu observa a cena choro? Quais os fatos mais importantes, recentes? O choro tá presente desde o século XIX, a própria pesquisa que Maurício [Carrilho] e Luciana fizeram no acervo João Mohana, se identifica, desde quando nasceu no Rio, já existia choro aqui. Mas hoje, o cenário, pra onde aponta? O quê que tá faltando? Olha, o que acontece é o seguinte: eu digo que tem coisas que as brasas podem passar muito tempo só fumegando de leve mas não apaga completamente. Aqui sempre houve esse potencial, que fez surgir os primeiros conjuntos, tipo [o Regional] Tira-Teima, Rabo de Vaca, já com o advento da Escola de Música já surge a ideia do [Instrumental] Pixinguinha, todo mundo sempre com uma estética voltada inicialmente para a inovação. Aqui no Maranhão surgiu a ideia do Clube do Choro, todo mundo aqui foi testemunha do grande impacto que isso causou na sociedade. Eu vejo esse cenário que o choro se diversificou, atraiu o povo da nova geração, a gente vê agora o movimento Madre Deus, o movimento do Clube do Choro. Pra mim o grande impulso foi lá o Chico Canhoto, com o Clube do Choro Recebe, por causa da concepção inteligente, de compreender que o choro é mais do que ele aparenta ser, ele está presente nas coisas todas, está presente na música de Tom Jobim, Caetano Veloso fez choro, Chico Buarque faz choro, Cesar Teixeira. Então essa junção, primeiro da música instrumental com a música cantada, pra quebrar os preconceitos, e segundo, com o componente da música maranhense, foi a boa fórmula. Nós estamos vivendo ainda dos dividendos desse investimento, na minha opinião. Eu acho que está faltando o aspecto didático, ou melhor dizendo, pedagógico da coisa. O choro tem uma vertente de entretenimento, que ele agrada todo mundo, todo mundo vai, tem público sempre, quando a coisa é bem organizada, tem espaço; segundo, isso só não garante a subsistência do choro, os movimentos vão e vêm, as casas comerciais, os estabelecimentos, tem época que é moda aqui, tem época que é moda ali, tem muita oferta na cidade. Por isso que até hoje eu lamento que a ideia da casa lá [uma sede própria] do Clube do Choro não tenha dado certo, por que tinha um projeto social relevante envolvido.

Dessa nova geração tem alguém dos instrumentistas do choro que te enche os olhos, que tu vê como uma boa promessa? Tem. Robertinho [Chinês] eu acho que é um grande talento. Aliás, antes dele se projetar no choro, o pai dele me procurou na época da formação da Escola de Música do Município, quando a gente ainda tava dando aula lá naqueles camarins da [praça] Maria Aragão e o pai dele me procurou, são dois filhos, nem sei o que é feito do irmão. O que eu passei pra ele, na época, foi o seguinte: “olha, você tem que investir em formação. Teus filhos têm talento, mas eles têm que investir na formação, por que o que garante o desenvolvimento do talento, a formação é o adubo do talento, sem formação, sem você correr atrás do fundamento, se fundamentar, desenvolver”. Essa juventude, por exemplo, eles têm uma facilidade técnica pra tocar, mas isso só não garante. Eu vi muito menino prodígio que abandonou a profissão. Por que tem toda uma estruturação que é psicológica, por que na realidade você tá lidando com a própria vida. Às vezes ele pode se desenvolver no instrumento, absorver bem a coisa do choro e ser mais um chorão na cidade, muito bom. Mas é só isso?

Na tua entrevista diversas vezes tu citaste Turíbio. Na tua opinião, quem é Turíbio Santos? Turíbio Santos é o mais importante violonista brasileiro. Pra mim ele é uma espécie também de matriz fundadora. E é facílimo de explicar. Foi o primeiro violonista brasileiro que se destacou internacionalmente, o primeiro que ganhou um concurso que chamou a atenção pra profissão. Se Ronaldinho Gaúcho botou uma porção de meninos pra jogar futebol e querer ser Ronaldinho, Turíbio fez isso com o violão. A importância dele foi pelo seguinte: ele deu o exemplo, ganhou o concurso e projetou uma carreira internacional de respeito; segundo, foi o violonista brasileiro dessa geração mais generoso, montou curso de violão, criou movimentos sociais como ele fez lá com os Villa-Lobinhos, atraindo banqueiros para bancar a carreira de gente, tem gente que tirou a mãe do tráfico, da marginalidade, alugou apartamento, tá vivendo da profissão, toca na noite, estudaram lá graças a ele. O que pode se acrescentar à dimensão de um bom instrumentista é a dimensão social, o que ele faz em benefício dos semelhantes dele. Turíbio criou os dois cursos superiores, tanto na UFRJ como na UniRio. Foi o primeiro camarada que tirou o violonista de seu isolamento, por conta de criar a ideia de Orquestra de Violão, foi o primeiro violonista que pegou João Pernambuco e disse “isso aqui é música de qualidade”. Quer dizer, quem é o camarada que tá por trás de todos esses movimentos? São as ideias que ele gerou.

E a preocupação dele com a memória de Villa-Lobos, também, não é? Com a memória de Villa-Lobos. Que é um reconhecimento, por que Villa-Lobos projetou a carreira dele. A Mindinha Villa-Lobos [viúva de Heitor Villa-Lobos] quando encomendou dele os 12 estudos para violão talvez nem imaginasse a projeção que ia dar, foi o que facilitou a carreira dele lá fora, foi o primeiro violonista a gravar os 12 estudos de violão de Heitor Villa-Lobos.

Você ajudou fundar a Escola de Música, mas ajudou a fundar outras escolas, mostrando uma preocupação sua sempre com o processo de formação pedagógica. Ceuma, depois foi diretor da Escola de Música, fundou a Escola de Música do Município. Fale um pouco dessa tua preocupação com o processo da formação do músico. Eu acho que é uma questão de humanidade. Essa preocupação eu sempre tive. Eu raciocinei a seguinte coisa: se eu não tivesse tido certa ajuda, que me projetasse, que me ajudasse nos momentos em que eu precisei, numa família de 11 filhos, quais seriam as perspectivas que a gente teria aqui? É uma preocupação social, humana, de ver que a música pode ajudar uma pessoa a plantar ideias que podem mudar sua vida. Ela é uma porta de entrada, ela não é a solução pra tudo, mas ela é a porta de entrada. É como se você entrasse num ônibus e esse ônibus começasse a passar por paisagens que você não conhece e você pode nem saltar, mas você diz “olha, se eu quiser ir eu tomo esse ônibus e vou pra ali pra aquele lugar”, eu sempre tive essa preocupação. Quando eu digo que eu vim da África pra ser o primeiro professor, talvez as pessoas não dimensionem o que representou em termos de sacrifício pra mim. O caminho natural era ir pra França, e eu vim pro Maranhão. Uma coisa que eu fiquei consciente ao longo desse tempo: não dá pra fazer agora sacrifícios maiores esperando que as coisas que você constrói sejam mantidas se elas estiverem vinculadas ao processo político. A política é a coisa mais traiçoeira que pode existir na vida, por que uma hora tá, outra hora não tá, outra hora volta, outra hora não volta mais, não tem continuidade, esse é que é o grande problema.

Queria que tu deixasse registrada aquela história gostosa do carrinho de picolé. As lembranças que eu tenho da minha infância, eu vivia muito dentro de casa, por que minha família não me deixava sair muito. Nem pra praça, tinha a Praça da Misericórdia ali, minha mãe dizia que eu tinha que evitar “adjunto”. Antes mesmo de começar a estudar mais seriamente o violão, eu já tava começando, tinha um ouvido assim que apurava, eu gostava de ouvir rádio, meu pai consertava rádios, a gente dormia com aquele barulhinho de rádio, ele ouvia a BBC de Londres, A Voz da América, aquelas coisas, e eu gostava, tinha um rádio em casa, e de tarde, chegava da escola, almoçava, tirava uma sonequinha, e aquele calor danado, ficava esperando a hora do sorvete passar, picolé e sorvete, e tal. Antes era num tipo de carrocinha, que o sujeito abria, aquela coisa toda. E nesse dia, rapaz, um dia quente, eu ligo o rádio e tá tocando essa valsa de Nazareth [Coração que sente], na Rádio Ribamar, que coisa linda, e o cara do sorvete gritou, “sorvete!”, aí eu aumentei o volume pra não perder, e fui correndo, naquele calor, esbaforido, e disse “eu quero um sorvete de baunilha”, e ele disse “você mesmo escolhe, abre aí pra escolher”. Agora, você imagina a sensação de você sair de um calor danado, faz aquele esforço, eu nunca tinha olhado pro lado de dentro [do carrinho de sorvete], que eu abro, vem aquela brisa gelada, com todos os sabores que estavam ali dentro. Ai, que sensação maravilhosa. Peguei o sorvete, volto, continuei ouvindo a música. Passa-se o tempo, cada vez que eu ouço essa música, Coração que sente, Arthur tocando, o quê que vem no meu nariz?, no meu olfato? O cheiro de todos aqueles aromas e pode estar o calor que tiver que vem aquela brisa maravilhosa.

A alegria já vem

O diretor chileno Pablo Larraín é autor de outros dois filmes em que aborda a ditadura militar de seu país. Em No, conta a história do referendo convocado por Augusto Pinochet, diante das pressões internacionais, com que o ditador pretendia legitimar seu mandato.

Sim e não, as opções, teriam, cada uma, 15 minutos diários nos televisores da população, por onde as mentiras do regime invadiam os lares – muitos acreditavam que o referendo seria mera formalidade, que o “sim” venceria independentemente do resultado das urnas. O tiro saiu pela culatra, a história é conhecida: ainda que o resultado tenha sido apertado, o “não” a Pinochet e à ditadura por ele comandada venceu no Chile em 1988.

A história é centrada em René Saavedra (Gael García Bernal), um publicitário que em uma das primeiras cenas da película aparece tentando convencer a direção de uma empresa de refrigerantes sobre um comercial por ele produzido.

Baseado em O plebiscito, de Antonio Skármeta, em No, como na história por ele documentada, o publicitário joga com as armas do inimigo: o que Saavedra vende são sonhos e promessas, embaladas pela alegria e pelo colorido de quem sonhava com um futuro melhor – e democrático – para o país.

Merece destaque a montagem do filme: ao espectador é difícil afirmar com precisão o que foi filmado para No e o que são imagens de arquivo da época do plebiscito.

Talvez o trunfo da campanha vitoriosa tenha sido justamente não explorar a podridão do massacre perpetrado pelos militares que comandavam o Chile, as torturas, desaparecimentos e assassinatos promovidos por Pinochet e cia. Justo por que grande parte da população enxergava nos militares bons e eficientes governantes.

Qualquer semelhança com o Brasil – país-palco da mais longeva ditadura militar sul-americana – não seria mera coincidência, mas elas param por aí: enquanto o Chile não tardou a punir seus agentes da ditadura, aqui justiça e verdade ainda engatinham, a anistia geral e irrestrita ainda protege carrascos e agentes de pijama zombam da Comissão Nacional da Verdade.

No é um filme inspirador. Didático sem ser chato, aborda um período difícil da história recente, sem recorrer tão somente ao seu lado mais trágico e cruel. No fundo, sua principal mensagem é a da esperança: tomei o título emprestado de um jingle da campanha vitoriosa.

Serviço: No está em cartaz no Cine Praia Grande (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande). Sessões: 16h, 18h e 20h. Ingressos: R$ 12,00.

“Chorografia do Maranhão” estreia amanhã (3) em O Imparcial

Ideia acalentada há um tempinho, a série Chorografia do Maranhão chega amanhã ao papel. Mais precisamente às páginas do jornal O Imparcial, onde será publicada quinzenalmente aos domingos.

Este blogueiro e Ricarte Almeida Santos entrevistam chorões maranhenses, fotografados por Rivânio Almeida Santos. O objetivo principal é registrar as histórias e memórias destes grandes mestres. Depois de publicadas no jornal, Chorografia deve virar um livro, talvez algo mais.

A jornalistamiga Patrícia Cunha fez uma bela matéria nO Imparcial de hoje (2), divulgando a iniciativa. Continue Lendo ““Chorografia do Maranhão” estreia amanhã (3) em O Imparcial”

Um passeio historiográfico por São Luís do Maranhão

Maria de Lourdes Lauande Lacroix lança amanhã (30) São Luís do Maranhão: Corpo e Alma

De tão importante, a obra – em especial A fundação francesa de São Luís e seus mitos (2001) – de Maria de Lourdes Lauande Lacroix , professora aposentada dos Departamentos de História das Universidades Federal (UFMA) e Estadual do Maranhão (UEMA), mereceu destaque em Guerrilhas, festejado terceiro livro que Flávio Reis lançou este ano (tendo disponibilizado-o para download desde o final de 2011).

Aquele título dela (e suas reedições) merece(m) nada menos que cinco dos 20 artigos da coletânea dele, que já a havia reverenciado como uma “marca de formação”, ao dedicar a ela, a Luciano Martins e ao saudoso José de Ribamar Chaves Caldeira seu Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão (2007).

A dedicação de Flávio Reis – que foi seu aluno e assina as orelhas daquela obra da ludovicense Lourdinha, como a tratam os íntimos – é justa e merecida. A fundação francesa de São Luís e seus mitos problematiza o que parecemos ter de mais caro, o epíteto de “única capital brasileira fundada pelos franceses”, como apregoava um apresentador de tevê local.

Às vésperas das festividades – quiçá justaposição de “festival de vaidades” – oficiais, Maria de Lourdes Lauande Lacroix presenteia-nos, a nós ludovicenses e/ou seus habitantes e a esta capital, com um mergulho em São Luís do Maranhão: Corpo e Alma, passeio, como entrega o título, na cidade em que ninguém nasce e vive impunemente, como cravou certeiro o publicitário Marcus Pereira, na contracapa de um antológico disco de Chico Maranhão.

A nova obra da professora, realizada com patrocínio da Alumar, contou com projeto gráfico de Flávio Reis (que também assina a coordenação editorial) e Nazareno Almeida (que também assina a diagramação e o tratamento de imagens), além de fotografias de Edgar Rocha, de arquivo, reproduções de obras de acervos particulares, além de atuais, feitas especialmente para o livro. São 578 páginas, 170 ilustradas.

Mais não posso dizer, pois o belo volume chegou-me às mãos apenas ontem, com uma emocionante e inusitada dedicatória. O blogue voltará ao assunto em breve, mas não podia se furtar de convidar seus poucos mas fieis leitores para o lançamento: amanhã (30), às 19h30min, no Quality Grand São Luís Hotel (Praça Pedro II, ao lado da Igreja da Sé).

A história de joelhos

RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO – Biógrafos, editores, juristas e demais interessados na liberdade de expressão reuniram-se ontem na Biblioteca Nacional para apoiar o projeto de lei do deputado federal Newton Lima Neto (PT-SP) propondo-se a corrigir os artigos 20 e 21 do Código Civil, que agridem justamente essa liberdade garantida na Constituição. Pelos ditos artigos, que pretendiam proteger as pessoas simples de exposições indevidas, as figuras públicas, inclusive as mortas, ganharam poder de autorizar ou não os livros que contam suas histórias.

Conheço bem essas “autorizações”. Uma semana antes da publicação de “Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha”, em 1995, o advogado das herdeiras do jogador -sem ter lido o livro- telefonou para ameaçar a Companhia das Letras com um processo por danos morais e falta de autorização. “Mas”, acrescentou, “tem acordo…”. Que consistia no pagamento de US$ 1 milhão, na época, R$ 1 milhão.

Significa que, com uma “autorização” desse valor, podiam-se praticar quantos danos morais se quisessem e, no caso, o biografado fosse lamber sabão. Para não abrir um precedente fatal, a editora preferiu o processo, o qual resultou na proibição do livro por um ano, arrastou-se por outros 11 e foi danoso para todos, inclusive para as pobres filhas de Garrincha. Pela ferocidade do processo, que assustou muita gente, o craque deixou de inspirar muitos subprodutos que poderiam beneficiá-las.

Uma biografia se compõe do protagonista, de uns 20 personagens secundários e de 200 ou 300 terciários. Com a interpretação que a Justiça dá hoje aos artigos 20 e 21, qualquer um desses, por mais insignificante, pode alegar que “não autorizou” sua participação ou a de seu pai ou avô no livro, e partir para a extorsão.

A cada “autorização” pedida por um biógrafo, é a história do Brasil que rasteja e se humilha.

[Folha de S. Paulo, Opinião, hoje]