Uma vida em quadrinhos

A solidão de um quadrinho sem fim. Capa. Reprodução

Como olhar para o próprio umbigo sem soar pedante ou vaidoso? Em “A solidão de um quadrinho sem fim” [Nemo, 2020, 162 p.; R$ 69,80] Adrian Tomine responde com elegância a esta questão. O quadrinhista americano realiza uma graphic novel autobiográfica valendo-se do lado nada glamoroso de sua profissão. Graphic novel é um jeito chique de dizer quadrinhos para adultos, ele mesmo tira onda a certa altura

Tomine reconta o bullying sofrido na escola, sua dificuldade para relações sociais e o sonho desde menino em se tornar um quadrinhista famoso – não como Walt Disney, mas como John Romita. A partir daí narra, com doses generosas de sarcasmo e autoironia, as diversas gafes, humilhações, episódios de desprezo, constrangimento e as críticas que enfrentou, até realizar seu sonho: tornar o hobby de infância sua profissão.

Sua HQ é ao mesmo tempo um tributo a grandes nomes da nona arte e um mergulho nos bastidores da indústria dos quadrinhos, com suas feiras, sessões de autógrafos, aeroportos, quartos de hotel, vaidades e artificialidades. Tomine equilibra-se habilmente entre as dores e as delícias do ofício e tudo o que o envolve.

Em paralelo ao desenrolar dos acontecimentos da carreira artística, revela o homem por trás do quadrinhista, com o casamento e a paternidade. Quando alguns sintomas obrigam-no a visitar um pronto socorro, Tomine se pega fazendo um balanço de sua própria vida. Pensa em tudo o que conquistou, o valor das coisas, o que poderia ter sido feito de modo diferente. Aquele filme que passa pela cabeça de todo moribundo – ou pelos menos dos hipocondríacos que se consideram como tal.

Seria o autor um felizardo? Afinal de contas não é todo mundo que consegue, além de pagar as contas, obter fama e prestígio fazendo o que gosta. É justamente quando se pega pensando no iminente fim que ele decide contar sua própria história fazendo aquilo que sabe: desenhando.

Com seu traço aparentemente simples, embalado em caprichado projeto gráfico, que simula os cobiçados sketchbooks – talvez um jeito chique de dizer caderno de rascunhos –, o resultado é uma obra bem humorada, honesta, indispensável para apreciadores de quadrinhos e para aqueles que sonham um dia se tornar um desenhista famoso. Talvez como Adrian Tomine.

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Leia um trecho de “A solidão de um quadrinho sem fim”:

Alma e sentimentos

Uma irmã. Capa. Reprodução

 

Uma irmã [Une soeur; tradução: Fernando Scheibe; Nemo, 2018, 212 p.; R$ 55,00; leia um trecho] é uma metáfora para falar de amizade e das descobertas da adolescência. O francês Bastien Vivès conta a história de Antoine e Hélène, que se encontram durante um período de férias e passam a fazer tudo juntos – apesar de Titi, irmão mais novo dele.

É um período de grandes curiosidades e descobertas, em que álcool e fumos (no plural) se juntam ao desejo de desobediência aos pais, aventuras em que o par de protagonistas mergulha junto, com mais ou menos experiência.

Antoine e Hélène são, um para o outro, o grande achado daqueles dias, iniciados com uma tragédia e encerrados com outra. Entre os dois adolescentes, lições de companheirismo, confiança e cumplicidade.

Belo e delicado, o traço de Vivès tem um quê de abstrato, como se o autor quisesse captar e passar aos leitores a alma e as sensações de seus personagens – no que atinge seu objetivo. É uma graphic novel bastante sensual, nunca vulgar.

Os sentimentos que povoam os personagens de Vivès são absorvidos por seus leitores, comovidos cúmplices.

Contra a discriminação

A marcha. Capa. Reprodução

 

A graphic novel A marcha [título original: March: book one; 2018, 128 p.; R$ 45], cuja primeira parte (de três) foi recentemente publicada no Brasil pela Nemo, poderia ser apenas uma espécie de publicidade travestida de história em quadrinhos.

É o que podem dizer os apressados ou adeptos de teorias da conspiração, sobretudo os que, cá no Brasil, parecem viver ainda no tempo em que se passa a história – entre as décadas de 1950 e 60. Explico: traduzida por Érico Assis, a graphic novel leva a assinatura de John Lewis, Andrew Aydin e Nate Powell.

Somente o terceiro é da área, romancista gráfico com um Eisner na bagagem, por Any Empire, Swallow me Whole. O primeiro é o deputado do subtítulo da história – John Lewis e Martin Luther King em uma história de luta pela liberdade – e o do meio, seu assessor.

O subtítulo diz perfeitamente do que se trata e terminam aí quaisquer especulações em contrário: a narrativa fluida e muito bem desenhada, toda em preto e branco, remonta às lutas pelo fim da segregação racial nos Estados Unidos, de que Lewis acabaria por tornar-se um líder (é deputado desde a década de 1980, justificando a confiança dos que lhes depositam os votos).

Nesta primeira parte da história, o deputado recebe crianças em seu gabinete, e reconta sua trajetória, da infância na pequena propriedade da família, em que sua relação com as galinhas e com a Bíblia já pareciam desenhar o futuro militante da não-violência.

Adiante, reconta os sit-ins que organizou: grupos de negros ocupavam balcões de lanchonetes que, à época, podiam escolher quem servir ou não de acordo com a cor da pele. Este tipo de protesto, inteligente e não-violento, levou à derrubada das leis Jim Crow, que institucionalizavam a segregação racial americana.

Revelada ao longo da graphic novel, sua inspiração foi a história em quadrinhos Martin Luther King e a história de Montgomery, publicada pela FOR [sigla de The Fellowship of Reconciliation, a Irmandade da Reconciliação], “que explicava os princípios da resistência passiva e da ação não-violenta como ferramentas para a dessegregação”.

130 anos depois de abolir a escravidão, o Brasil ainda não superou o ranço escravocrata e o racismo, embora não institucionalizado, segue vigente, sob camadas de hipocrisia disfarçadas de brincadeiras e/ou não alinhamento ao politicamente correto.

Uma leitura fundamental em um país em que a classe média adora papagaiar os norte-americanos e, sob a égide de um golpe, parece querer retroceder em se tratando de direitos humanos – expressão em geral deturpada.

Lennon no divã

Lennon. Capa. Reprodução

 

Como grupo ou individualmente a vida e a obra dos Beatles são por demais conhecidas em sucessivas edições, umas bem cuidadas, outras meros caça-níqueis. Até hoje, qualquer lançamento ou relançamento envolvendo os fab four rendem cifras incalculáveis, seja na música, literatura, teatro, cinema.

A graphic novel Lennon [tradução: Fernando Scheibe; Nemo, 2017, 151 p.; R$ 39,80; leia um trecho] aborda a trajetória de John Lennon sob um ponto de vista inusitado: sucessivas visitas do astro a uma analista.

Lennon se reencontra e enfrenta fantasmas do passado, desnudando-se no traço elegante de Horne Perreard e roteiro de Eric Corbeyran, baseados no texto original de David Foenkinos, autor do livro que deu origem à HQ.

Nada é novidade para beatlemaníacos médios – ok, a expressão é uma contradição em termos –, mas mesmo para estes, vale a pena conferir Lennon, narrado em primeira pessoa e de forma quase linear.

John Lennon revela a importância de Lewis Carrol para seu processo criativo, quando os desenhos de Perreard dão conta do onírico do autor, revela a podridão, mais que o glamour, do showbiz, e é ultrarromântico ao abordar o encontro de seu protagonista com Yoko Ono.

Em 18 sessões, um monólogo – só Lennon fala, nunca há a interferência de sua analista – dá conta da biografia daquele que, ao lado de Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, formou o mais importante grupo musical de todos os tempos e revolucionou para sempre a música pop.

Mesmo sem acrescer novos dados à biografia do ídolo, Lennon teria fecho perfeito se acabasse na 18ª. sessão. O epílogo é óbvio ao encerrar o álbum com o assassinato de John Lennon, quebrando o ritmo a que o leitor se acostuma logo nas primeiras páginas.

Inusitado e emocionante

Graphic novel de estreia de Fabien Toulmé traz abordagem sui generis da síndrome de down a partir da experiência real do autor

Não era você que eu esperava. Capa. Reprodução
Não era você que eu esperava. Capa. Reprodução

Não era você que eu esperava [Ce n’est pas toi que j’attendais. Tradução de Fernando Scheibe. Nemo, 2017, 254 p.; R$ 44,90], de Fabien Toulmé, é a mais emocionante graphic novel que leio em muito tempo. O traço aparentemente simples dá conta de repassar, com riqueza de detalhes, a história verídica do desenhista e os dramas em torno de uma filha com síndrome de down.

A história acompanha a vida aventureira do francês Toulmé e sua esposa brasileira Patrícia, com a filha Louise, da gravidez aos três primeiros anos de sua segunda filha, Julia, e aborda a situação com um delicioso misto de bom humor e crueldade (desde o título) – humano, demasiadamente humano.

Toulmé morou no Brasil, onde iniciou o pré-natal de Julia. Chega a criticar o sistema brasileiro de saúde pública no auge de sua revolta com “o que o destino lhe reservou” – o que ele só descobriria após o parto, apesar de todos os exames e o excessivo zelo ao longo da gestação.

Não era você que eu esperava é bastante didático sobre a síndrome de down, com este aprendizado incorporado à trama, no que Toulmé é bastante hábil: o que aprendemos é pelo relato das buscas dele por mais informações após o diagnóstico da condição de sua filha. Duas lições básicas, de cara: quem quer tranquilidade não visita fóruns de internet sobre estes temas (ou quaisquer outros); e não adianta se preocupar muito com o futuro: de um jeito ou de outro, ele virá.

De alguém completamente inábil em lidar com pessoas com deficiência – o álbum abre com uma cena de bullying – a alguém que passa a se revoltar com piadas envolvendo o tema, Toulmé aborda esta sua formação sem hipocrisia, numa estreia monumental.

Uma obra-prima

Frida Kahlo: Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?. Capa. Reprodução
Frida Kahlo: Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?. Capa. Reprodução

 

É uma verdadeira obra de arte a graphic novel Frida Kahlo: para que preciso de pés quando tenho asas para voar? [Frida Kahlo: pourquoi voudrais-je des pieds puisque j’ai des ailes pour voler?, tradução: Fernando Scheibe; Nemo, 2016, 128 p.; veja as páginas iniciais], de Jean-Luc Cornette (texto) e Flore Balthazar (desenho e cores).

A HQ biográfica acompanha Frida, seu marido Diego Rivera, então um muralista mais conhecido que ela, e Leon Trotsky, de quando o casal recebe no México o intelectual marxista forçado ao exílio até sua morte, menos de quatro anos depois.

A rima é pobre, mas Frida sempre usou suas cores para superar suas dores, e uma palavra-chave deste álbum – como de resto em qualquer relato biográfico acerca da pintora – é traição, no amor, na amizade e na política.

Mulher livre, Frida viveu um polígono amoroso que é aqui exposto sem escamoteação, tampouco sem tirar a atenção para aquilo que verdadeiramente importa: sua obra, sua força, sua atualidade.

Num contexto de criação da Quarta Internacional, da perseguição a Trotsky pelo NKVD (o Comissariado do Povo para Assuntos Internos, na sigla em russo, espécie de Ministério do Interior) e de discussões acerca do rótulo de surrealista que André Breton quis impor à protagonista, o enredo de Frida Kahlo é urdido com bom humor.

Um glossário de perfis, por Jean-Luc Cornette, acompanha a trajetória dos personagens após 1940, ano da morte de Trotsky. Também ao fim do volume, as referências apontam, entre livros, filmes, reportagens, museus, exposições e murais de Diego Rivera, obras “que foram essenciais para nós e nos permitiram realizar esta graphic novel com o maior rigor possível”, no dizer dos autores.

A quem conhece minimamente a biografia de Frida, ao menos a partir do filme homônimo [2002], de Julie Taymor, baseado em Frida: a biografia [Globo, 2011], de Hayden Herrera, esta HQ não acrescentará novidades. Mas merece ser contemplada como obra-prima que é. Aposto que Frida aprovaria a bela homenagem.