Luiz Jr. Maranhão homenageia Papete em show

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Repertório prestigia músicas que se tornaram clássicas na voz do artista, mas vai além; apresentação terá participações especiais de Josias Sobrinho, Djalma Chaves, Ribinha de Maracanã, dj Pedro Sobrinho e convidado surpresa

O cantor, compositor e multi-instrumentista Luiz Jr. Maranhão. Foto: Ton Bezerra. Divulgação

O legado de Papete será lembrado em show em homenagem ao artista, falecido em 2016. O bacabalense José de Ribamar Viana, seu nome de batismo, é considerado um embaixador da cultura popular maranhense, que ele ajudou a tornar mais conhecida mundo afora. Em 1978 lançou o elepê “Bandeira de aço” (Discos Marcus Pereira), considerado um divisor de águas na música popular brasileira produzida no Maranhão.

O show “Canta Papete”, do cantor, compositor e multi-instrumentista Luiz Jr. Maranhão acontece neste sábado (4), às 21h, no Estaleiro Gastrobar (Rua do Trapiche, Praia Grande, próximo à Praça dos Catraieiros e Casa do Maranhão). O repertório, além dos clássicos do “Bandeira de aço” – assinados por Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe –, passeia por outros compositores gravados por Papete em sua discografia, por músicas que ele gravaria (caso de “Matraca matreira”, de Joãozinho Ribeiro) e por homenagens (“Terreiro”, que Luiz Jr. Maranhão compôs em homenagem a Papete e gravou em seu disco com a participação do homenageado).

“O repertório consiste nas músicas consagradas pelo Papete, começando pelo “Bandeira de aço”, mas eu dei uma atualizada, fazendo um exercício de pensar também em músicas que Papete poderia ter gravado, músicas atuais da cultura popular do Maranhão, além de três músicas autorais, “Saudade de São João”, que eu lancei o videoclipe ano passado, “Zabumbada na ilha” e “Boizinho guerreiro”, que eu fiz em parceria com Celso Borges”, antecipa Luiz Jr. Maranhão.

Luiz Jr. Maranhão (violão sete cordas, guitarra e viola caipira) será acompanhado por Dark (bateria), Marquinhos Carcará (percussão), Cleuton Silva (baixo), Edinho Bastos (guitarra), Murilo Rego (teclado), Danilo Santos (saxofone e flauta) e Hugo Carafunim (trompete). O show contará ainda com as participações especiais do dj Pedro Sobrinho e dos cantores e compositores Josias Sobrinho, Djalma Chaves e Ribinha de Maracanã, além de uma participação surpresa.

Os ingressos custam R$ 50,00 (individual), R$ 90,00 (casadinha) e R$ 250,00 (mesa) e podem ser reservados ou adquiridos antecipadamente pelo telefone/whatsapp (98) 99112-5481 (Tatiana Ramos). A produção é da RicoChoro Produções Culturais.

Serviço
O quê: show “Canta Papete”
Quem: Luiz Jr. Maranhão e banda. Participações especiais: Josias Sobrinho, Djalma Chaves, Ribinha de Maracanã, dj Pedro Sobrinho e convidado surpresa
Onde: Estaleiro Gastrobar (Rua do Trapiche, Praia Grande; próximo à Praça dos Catraieiros e Casa do Maranhão)
Quando: dia 4 (sábado), às 21h
Quanto: R$ 50,00 (individual), R$ 90,00 (casadinha) e R$ 250,00 (mesa)
Informações, reservas e vendas antecipadas: (98) 99112-5481 (Tatiana Ramos).
Produção: RicoChoro Produções Culturais.

Os cinco melhores álbuns imaginários brasileiros de todos os tempos

É ideia que me persegue há algum tempo, e só agora a falta do que fazer na quarentena, por força da pandemia de coronavírus (covid-19), me permite por no papel – ou melhor, aqui nos bits e bytes da internet.

Falta do que fazer é modo de dizer: tenho conseguido sobreviver à reclusão forçada graças às minhas coleções de discos (reais) e livros (idem), além de serviços de streaming, da internet em geral e, obviamente, da companhia dela.

Mas há tempos penso nestes discos que muito provavelmente nunca serão gravados e consequentemente lançados. Se um dia forem, certamente farão a alegria de muita gente.

Uma vez, numa edição da Aldeia Sesc Guajajara de Artes, dedicaram uma noite ao choro. Consultado sobre a programação, sugeri dois espetáculos, que acabaram acatados pela curadoria e aconteceram: a Praça Nauro Machado, na Praia Grande, foi palco de uma (quase) reedição do Recital de música brasileira, com Célia Maria (voz) e João Pedro Borges (violão); e do encontro, no mesmo palco ao mesmo tempo, dos grupos Instrumental Pixinguinha e Regional Tira-Teima. Lembro-me da história para dizer que certas ideias, às vezes, podem se concretizar, por mais malucas que possam parecer.

Capa imaginária de disco imaginário. Desenho de Zema Ribeiro
Capa imaginária de disco imaginário. Desenho de Zema Ribeiro

Arari Irará, de Tom Zé e Zeca Baleiro – O maranhense nasceu em São Luís mas passou a infância em Arari, anagrama de Irará, cidade natal de Tom Zé. A primeira é famosa por sua melancia e O abacaxi de Irará mereceu até música do baiano (faixa de Se o caso é chorar, de 1972). A capa do disco evoca a banana de Andy Wahrol na capa do clássico The Velvet Underground & Nico (1967).

Metonímia, de Odair Cabeça de Poeta e Paulinho Boca de Cantor – A figura de linguagem que toma a parte pelo todo, como ensinam os livros de gramática, intitula o álbum dividido pelos baianos, menos conhecidos do que deveriam. Cabeça de Poeta é parceiro de Tom Zé e com o Grupo Capote uniu forró e rock (forrock) antes de Alceu Valença; Boca de Cantor integrou (e integra, nas eventuais voltas que o grupo dá) os Novos Baianos.

Lances de aço (ou Bandeira de agora) – Em 1978, Papete e Chico Maranhão fizeram história ao lançar, pela gravadora Discos Marcus Pereira, discos considerados divisores de água na música popular produzida no Maranhão. O primeiro, com Bandeira de aço, em que cantava composições de Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe; o segundo, com Lances de agora, de repertório completamente autoral. Lances de aço (ou Bandeira de agora) reúne Chico Maranhão e os quatro “compositores do Maranhão” (como grafado na capa de Bandeira de aço) em releituras das 20 faixas que somam os dois álbuns.

Os Novos Novos Baianos, de Pedro Baby, Betão Aguiar, Davi Moraes, Bem Gil e Moreno Veloso – Pedro Baby (filho de Baby do Brasil e Pepeu Gomes), Betão Aguiar (filho de Paulinho Boca de Cantor), Davi Moraes (Moraes Moreira), Bem Gil (Gilberto Gil) e Moreno Veloso (Caetano Veloso)  se unem em um disco coletivo, relendo criações de baianos como os pais, além de Tom Zé, Dorival Caymmi, Riachão, Batatinha, Roque Ferreira e João Gilberto.

Roberto Carlos canta Sérgio Sampaio, de Roberto Carlos – Dois dos mais ilustres filhos de Cachoeiro do Itapemirim (os outros são Rubem Braga e Luís Capucho), no Espírito Santo, unidos em um mesmo álbum. 26 anos após o falecimento do autor de Eu quero é botar meu bloco na rua, finalmente o Rei realiza o sonho do fã: é conhecida por todos a vontade de Sampaio ser gravado por Roberto, para quem compôs Meu pobre blues, que abre o tributo.

No rastro do Bandeira de aço

[O Imparcial, ontem]

Como o LP de Papete tentou ser imitado por uma geração, que acabou presa a um rótulo-sigla e a herança às novas gerações

ZEMA RIBEIRO

Bandeira de aço. Capa. Reprodução
Bandeira de aço. Capa. Reprodução

No rastro da repercussão do LP Bandeira de Aço [Discos Marcus Pereira, 1978], em que Papete interpretava composições de quatro compositores maranhenses, elementos da cultura popular do Maranhão foram definitivamente absorvidos pelas classes médias e elites locais. Antes, era “folclore” de um lado e música erudita ou popular para outro.

As primeiras experiências de hibridização vieram justo de um grupo de artistas que, alguns anos antes, fundou o Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão (Laborarte) e mergulhou na pesquisa de nossas raízes. Como se as missões folclóricas de Mário de Andrade passassem pelo Maranhão com 50 anos de atraso.

O compositor Josias Sobrinho. Foto Fafá Lago
O compositor Josias Sobrinho. Foto Fafá Lago

“Quando me incluí no grupo, no primeiro semestre de 1973, a turma já estava integrada. O trabalho girava em torno do teatro, mas cada um de nós compositores fazia sua parte, em sua busca individual de um trabalho próprio. A reação do público tinha os componentes do momento histórico: cenário político, preconceito social, de gênero, de pele, de cultura. Por minha parte ouvi algumas vezes que essas músicas não eram adequadas”, relembra Josias Sobrinho, autor de quatro faixas do Bandeira de aço.

No rastro, toda uma geração acreditou estar ali uma fórmula para o sucesso, apesar de o ex-publicitário Marcus Pereira não produzir com a cabeça no mercado. “A impressão que eu tenho é de que a geração do Bandeira de aço é uma espécie de Clube da Esquina desunido, sem continuidade”, provoca o músico Pablo Habibe, sobrinho de Sérgio Habibe, outro dos compositores gravados por Papete.

“O mercado aqui ainda é pequeno e devia ser insignificante na época. Gosto de pensar que o Bandeira de aço poderia ter sido grande nacionalmente se eles agissem como os mineiros e lutassem juntos pelo disco, divulgando no sul do país e tudo mais. Quem sabe, um Bandeira de aço II poderia ter saído. Tio Sérgio, Chico Maranhão [compositor não gravado em Bandeira de aço, mas que lançou no mesmo ano, também pela Marcus Pereira, o igualmente antológico Lances de agora], Josias e Papete, juntos, como uma banda, teria sido incrível”, continua.

O fato é que, aprisionados pelo rótulo da “Música popular maranhense” e a sigla bastarda MPM, nenhum disco lançado por um artista ou banda no Maranhão, ao longo dos próximos quase 20 anos alcançaria o nível estético de Bandeira de aço, não à toa eleito o melhor disco da música produzida no Maranhão em todos os tempos em enquete realizada pelo jornal Vias de Fato.

Pablo Habibe aposta em uma explicação. “Enquanto o pessoal do Bandeira de aço tem bossa nova, folclore, Clube da Esquina, incluindo uma inconfessável dose de rock progressivo e Beatles, a MPM era voltada para a ideia de fazer sucesso no rádio pela imitação imediata da programação. Eles atiravam pra todo lado: ora faziam reggae, imitavam Alceu Valença e sua trupe, voltavam para João do Vale, músicas românticas que soavam de novela… Tinham e têm todo o direito de fazer isso e conseguiram produzir algumas músicas bem bacanas, mas quero dizer que é uma geração, a da MPM, marcada pela perseguição do sucesso e não por uma estética musical especifica. O foco era outro”, defende.

Curiosamente, as coisas só parecerão mudar de figura quase 20 anos depois, com as estreias fonográficas de dois maranhenses que rumaram para o eixo Rio-SP, caminho natural de quase todos os maranhenses que alcançaram alguma repercussão nacional: Zeca Baleiro e Rita Ribeiro [hoje Benneditto], que em 1997 lançaram Por onde andará Stephen Fry? e Rita Ribeiro, respectivamente, ambos pela MZA Music, de Marco Mazzola, lenda viva da indústria fonográfica nacional.

Alê Muniz e Luciana Simões convergiram suas estradas musicais quando juntos inventaram o duo Criolina, hoje com dois discos e um EP gravados, responsáveis por tributos ao LP Bandeira de aço ocorridos desde 2013, quando o LP completou 35 anos, reunindo seus compositores (exceto Ronaldo Mota, o único que mora no Rio de Janeiro) e a nova geração, de nomes como Afrôs, Bruno Batista, Dicy Rocha e Madian e o Escarcéu. Hoje vivendo em São Luís do Maranhão, o casal Criolina é responsável por uma importante movimentação da cena autoral a partir do Festival BR-135, sucesso de público, crítica e intercâmbio – e frisamos o último aspecto pelo fato de o festival tanto trazer artistas de fora para deleite do público maranhense quanto servir de vitrine para artistas locais que, a partir dele, acabam conquistando outros palcos.

O cantor e compositor Tiago Máci. Foto Carla Pedraça
O cantor e compositor Tiago Máci. Foto Carla Pedraça

Onde e em quê isso vai dar, difícil responder. O jovem compositor Tiago Máci aponta, entre as principais diferenças entre aquela e sua geração, fatores como o mercado. “O mercado é uma coisa que mudou totalmente e isso acaba mudando todo o contexto de plateia, formação de plateia, não o talento ou a qualidade musical”, aponta.

“Isso de MPM talvez tenha trancado um pouco a própria música daqui, regionalizando uma coisa que na verdade é universal. Tanto que outros produtos musicais que talvez não se enquadrassem na MPM não é considerado MPM mesmo sendo feito aqui ou por gente daqui: Zeca Baleiro, Rita Ribeiro, Alcione. É uma coisa que parece que, saindo daqui, já não é mais regional, ficando aqui é regional”, confunde Máci, artista confessadamente influenciado por Cesar Teixeira, autor da faixa-título de Bandeira de aço.

Entre outras influências, Máci comenta: “o mais massa é que geralmente nossos ídolos de referência estão quase todos mortos, como Sérgio Sampaio, Noel [Rosa], Gonzaguinha. E [Marcos] Magah é um desses [ídolos], mas com ele eu tomo um café, compomos juntos, e ainda diz que é meu fã [risos]. E não menos que isso: está vivo [mais risos]”. A recíproca é verdadeira.

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Ouça o disco Bandeira de aço:

Bandeira de aço: documentário sobre o disco é disponibilizado no youtube

No dia 28 de maio de 2013 vários artistas subiram ao palco do Teatro Arthur Azevedo para celebrar os 35 anos de Bandeira de aço, antológico disco de Papete, lançado pela gravadora Discos Marcus Pereira, em 1978. A iniciativa era do Festival BR 135, capitaneado pelo casal Criolina, leia-se, Alê Muniz e Luciana Simões.

No disco, vencedor de enquete do jornal Vias de Fato, Papete cantou nove músicas, os primeiros registros fonográficos das vastas, importantes e belas obras de Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe.

Por ocasião do espetáculo, um documentário foi exibido, contando a(s) história(s) do disco, destacando sua importância, e botando o dedo em feridas. O filme tem depoimentos dos quatro compositores e do intérprete, além de nomes como Chico Saldanha (compositor que fez chegar a fita com as canções às mãos e ouvidos de Marcus Pereira) e Zeca Baleiro, entre outros.

Com roteiro de Celso Borges e Andréa Oliveira, o documentário (finalmente) foi disponibilizado pela produção, na íntegra, no youtube. Assista:

Depois da MPM

FLÁVIO REIS*

Trupe que gravou o LP "Lances de agora", de Chico Maranhão, em 1978. Da esquerda pra direita: Sérgio Habibe, Paulo Trabulsi, Ubiratan Sousa, Chico Saldanha, Rodrigo Croce, Chico Maranhão, Ronald Pinheiro, Valdelino Cécio, Zezé da Flauta, Antonio Vieira e Vanilson Lima. Foto: Reprodução de "Em ritmo de seresta" (de onde copiei a legenda)
Trupe que gravou o LP “Lances de agora”, de Chico Maranhão, em 1978. Da esquerda pra direita: Sérgio Habibe, Paulo Trabulsi, Ubiratan Sousa, Chico Saldanha, Rodrigo Croce, Chico Maranhão, Ronald Pinheiro, Valdelino Cécio, Zezé da Flauta, Antonio Vieira e Vanilson Lima. Foto: Reprodução de “Em ritmo de seresta” (de onde copiei a legenda)

Nos últimos tempos novos trabalhos sobre música popular e identidade cultural no Maranhão vão recolocando um tema que se tornou, aos poucos, incômodo entre os músicos e controverso entre comentaristas, apesar de relativamente aceito entre radialistas e produtores locais: a categoria música popular maranhense ou MPM. Uma referência obrigatória encontra-se ainda em 2004, no debate entre Ricarte Almeida Santos e Chico Maranhão, em dois artigos claros e densos, onde se colocou, de um lado, a inadequação restritiva do termo, utilizado a partir de meados da década de 80, considerado apenas uma receita de sucesso atrelada à estetização de ritmos populares com que se tentou reduzir a produção musical do Maranhão; de outro, foram enfatizadas as condicionantes históricas que teriam propiciado o seu surgimento, o sentido da “construção de uma canção maranhense moderna”.

Nas palavras do próprio Chico Maranhão: “Naquele momento, a afirmação de nossa identidade era mais importante, e a música popular um veículo significativo, embora naquela época inconsciente. (…) Isto continha um enorme peso estimulador criador na época. Demos a cara pra bater e ascendemos (sic) a fogueira que ainda hoje se vê a brasa arder. Éramos muito jovens e necessitávamos responder às ressonâncias que pairavam nos céus do país. Desta forma, qualquer análise sobre esta sigla MPM tornar-se-á vã se não tivermos clareza desses aspectos mórficos históricos de sua ‘adoção’”.

Em 2005, Roger Teixeira apresentou a monografia Xô do Mato, Boca de Lobo e Rabo de Vaca: a trajetória da música popular maranhense nos anos 70. Trabalho direto, sem trololó acadêmico, escrito acima de tudo por um ouvinte e admirador confesso dos compositores em questão, coloca de maneira sucinta, mas informada, praticamente todas as figuras em cena, com algumas histórias ótimas, daquelas de algibeira, onde afloram traços pessoais e situações emblemáticas do período.

Ao final, o autor afirma que as experiências ocorridas mais ou menos no mesmo momento no Ceará (Fagner, Belchior e Ednardo), no Recife (Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho) e na Bahia (Novos Baianos), além de Minas (Clube da Esquina), foram incorporadas à chamada MPB, tendo seus artistas rumado para o grande centro, o que não ocorreu no caso da geração laborarteana, seja por questões financeiras ou por convicções pessoais, pois “ir para o centro do país seria concordar que fazer música no Maranhão não poderia dar certo”.

O passo seguinte foram as monografias de músicos participantes do Rabo de Vaca. Em 2010, o trabalho do baixista Mauro Travincas, Rabo de Vaca: memória de uma geração musical, onde recupera a trajetória do grupo fundamental que existiu entre 1977 e 1982, capitaneado por Josias Sobrinho, dando continuidade nas experiências com ritmos e melodias levadas a efeito no Laborarte em meados da década e com uma postura decidida de tocar em praças e espaços comunitários na periferia, não ficando preso a apresentações em teatros. Curiosamente, o único show realizado no principal palco da cidade, o Teatro Arthur Azevedo, seria também o último do grupo.

Em 2011, o trabalho do flautista José Alves Costa, A Música Popular Produzida em São Luís na Década de Sessenta do Século XX, sobre o momento anterior ao Laborarte, quando a cena musical da Ilha era dominada pelos programas de auditório, no rádio e depois na televisão, e os grupos de acompanhamento eram no estilo “regional”, com violões, cavaquinho, baixo, percussão e algum instrumento solista, como o sax. Um pouco depois, conjuntos de baile, com formação básica dos grupos de rock, guitarras, baixo, bateria e teclados, como Nonato e Seu Conjunto e Os Fantoches, com vasta influência da Jovem Guarda, mas também de toda tradição dançante dos boleros e outros ritmos com toques caribenhos.

Bandeira de aço. Capa. Reprodução

No ano passado, foi a vez da monografia de Josias Sobrinho, Aquém do Estreito dos Mosquitos: a música popular maranhense como vetor de identidade. Para o compositor, a construção da música popular maranhense significa a inserção de sua cultura de raiz popular no universo da música popular brasileira, ou seja, os ritmos do bumba boi, principalmente, transplantados para o universo da produção musical brasileira. Em nota indica que “o site de vídeos online YouTube incorporou o gênero ‘boi music’ entre as categorias disponíveis para a classificação de vídeos enviados pelo usuário da plataforma”. A consagração do gênero bumba meu boi como categoria musical estaria no disco Bandeira de Aço, gravado pelo percussionista e cantor Papete, em 1978, com composições de Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Sérgio Habibe e Ronaldo Mota.

As células rítmicas do boi e do tambor de crioula e sua utilização nas composições é apontada por Josias como elemento distintivo e acompanhada em sua dificuldade de transposição para o disco desde os anos 60. Por exemplo, a toada de tambor de crioula Sanharó, de João do Vale e Luiz Guimarães, gravada por Marinês e Sua Gente, em 1963 ou a conhecida música Tambor de Crioula, de Cleto Júnior e Oberdan Oliveira, gravada por Alcione Nazaré e pelo Nonato e Seu Conjunto. Cleto Júnior explica: “ela não tem a pegada do tambor ainda… ela tem a letra do tambor, ela tem a ideia do tambor, ela tem a homenagem do tambor, ela tem aquela coisa toda do tambor, os versos do tambor (,,,) mas o acompanhamento não tinha ideia de como fazer”. O ritmo terminava sendo levado com toque de umbanda.

Em outros momentos a dificuldade já tinha se colocado. Na gravação do disco do I Festival da Música Popular Brasileira no Maranhão, na Toada Antiga, de Ubiratan Sousa e Souza Neto, realizada sem o acompanhamento percussivo do bumba boi ou em Cavala Canga, de Sérgio Habibe, ritmo do tambor de mina, gravada no primeiro disco do Nonato e Seu Conjunto, em 1974, também com tratamento diferente da forma original.

Lances de agora. Capa. Reprodução

Essa questão de trazer a rítmica para dentro das canções gravadas só seria resolvida com Bandeira de Aço, fruto direto da estética trabalhada pelos compositores no Laborarte e o disco Lances de Agora, de Chico Maranhão, que expressa uma aproximação de seu trabalho com as “influências de berço” (os ritmos do boi e do tambor de crioula). Depois disso, “daí em diante outros artistas e álbuns, com alguma relação com a cultura popular de raiz maranhense, foram sendo colocados no mercado nacional”, citando Papete, Ubiratan Sousa, Tião Carvalho, Betto Pereira, César Nascimento, Mano Borges, Alê Muniz, a dupla Criolina, Flávia Bittencourt e “Rita Ribeiro e Zeca Baleiro, que sempre apontam em suas produções um elo qualquer de identidade maranhense”.

Em setembro de 2011, publiquei no jornal Vias de Fato um longo artigo, posteriormente incluído no livro Guerrilhas, abordando, a partir das questões colocadas nos textos de Ricarte e Chico Maranhão, o mal-estar e mesmo a indefinição e o desconhecimento que cercam a sigla MPM, pois indicava algo que parecia existir quando ainda não havia sido nomeada (década de 70) e se tornava uma incômoda indagação depois de batizada (década de 80). Afinal, quem além de nós utilizava ou compreendia o que era MPM?

O artigo acentuava a visível distinção do período de gestação, marcado pelo cruzamento das experiências dos três compositores que participaram do Laborarte (Cesar, Josias e Sérgio) com figuras também exponenciais no processo, como Chico Maranhão, Giordano Mochel, Ubiratan Sousa, Chico Saldanha, do momento seguinte, quando a rádio Mirante FM estava no centro de uma estratégia de propagação do que se passaria a chamar de MPM, trazendo uma nova geração de compositores, entre eles, Gerude, Godão, Mano Borges, César Nascimento, Tutuca, Carlinhos Veloz.

Ao contrário das linhas de continuidade, era enfatizada uma descontinuidade em relação ao empuxo inicial, tendo a aproximação com as agências governamentais e com o mecenato privado se verificado segundo os esquemas de patronagem de uma ordem social e política ainda em larga medida oligárquica, por onde terminariam se enredando quase todos os compositores, os novos e a maioria dos antigos. O texto, não por acaso, intitulava-se Antes da MPM, para enfatizar o momento da década de 70 e início dos 80, quando a sigla não existia. Soava, ao mesmo tempo, pois, como elogio e crítica.

O ataque que essa ambiguidade carregava não só à utilização do termo, mas ao próprio estatuto da coisa, colocada como uma experiência interrompida e redirecionada, resultando em pouco tempo numa projeção fantasmagórica sobre os músicos e a própria música que realizavam, não passou totalmente despercebido e foi objeto de um comentário de tom enviesado, meio truncado, mas com uma observação importante. Intitulado Música Para Maiores, de autoria de Lane Mosi, foi publicado no mesmo jornal Vias de Fato, na edição seguinte, de outubro de 2011.

Em linhas gerais, diz que o artigo estava “perfeitamente enquadrado nos moldes históricos – sociais – científicos da sociedade vigente” por comungar de uma mitificação da ação do Laborarte, principalmente na questão das experiências “para criação de uma determinada categoria de música maranhense elitizada”. Alertava então: “É evidente que a periferia a qual me refiro não é composta por aquele bairro privilegiado, pela sua localização estratégica perto dos casarios antigos, tão pouco àquele cheio de afilhados culturais, me refiro mesmo, aos não tão distantes e nem tão abastados, mas totalmente esquecidos e desconsiderados na influência da musicalidade desta cidade”.

Para a autora, a periferia a que o pessoal do Laborarte se articulava resumia-se ao Desterro e a Madre Deus. Sem indicar qualquer referência, de ontem ou de hoje, afirma que ¨existe todo um potencial na periferia que consegue escapar à ‘estratégia governamental de mercantilização da cultura’ mas que é renegado a (sic) pelo menos 30 anos, pouco tempo cronologicamente mas uma eternidade em se tratando de uma arte para libertar”. Surpreendentemente, no entanto, termina o texto falando em reviver os “momentos áureos da música maranhense que tanto gosto”, depois de exaltar programas de rádio com “o melhor da MPM” e “os bolachões (vinis) do Festival Viva”.

Afora o evidente desconhecimento do que foi a atuação do Laborarte, principalmente até o início dos anos 80, minimizando totalmente seu significado cultural e político, pensando o que ele era a partir do que se tornou, e a percepção do momento de diluição como se fosse o “momento áureo” (aí é aquela história, cada qual com seu ouvido…), o texto deixa a observação de que a incorporação da periferia na cultura da cidade ainda não se deu ou seria bastante incompleta, muito seletiva, não aceitando o marco que geralmente é atribuído ao Laborarte. Este momento ainda seria um porvir.

No ano seguinte, Ricarte Almeida Santos volta ao tema, desta vez através de uma dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, da UFMA, intitulada Música Popular Maranhense e a Questão da Identidade Cultural Regional. Temos aqui um trabalho mais circunstanciado, com utilização de todos os textos então existentes, destacando trechos e depoimentos com argúcia, além de sua própria pesquisa, trazendo novos e interessantes depoimentos de músicos e jornalistas. De forma geral, define dois períodos: o de surgimento da música popular maranhense, na década de 70, e o de sua inserção nos mecanismos da “indústria cultural”, na década de 80.

O Laborarte teria configurado uma “ação cultural”, um processo “com início claro e armado, mas sem fim especificado”, onde avulta o papel dos agentes ou mediadores culturais, indivíduos que “num ambiente de heterogeneidade sociocultural, de preconceitos, cumprem uma ação de aproximação de grupos sociais, de pessoas de diferentes procedências”. Uma ação pensada para a prática de um novo teatro, terminou tendo numa nova estética musical seu resultado mais duradouro e “consequentemente, contribuiu decisivamente para a assimilação das expressões e manifestações da cultura popular, até então marginalizadas e negligenciadas, como símbolos da identidade cultural regional”.

Apesar de citar e conhecer todos os nomes principais que estavam envolvidos com a música popular nos anos 60 e 70, Cesar Teixeira, Josias Sobrinho e Sérgio Habibe são considerados “os três principais agentes culturais do desenvolvimento da música popular maranhense”. O disco Bandeira de Aço é colocado no texto como “marco de partida e de chegada” da MPM. Num dos vários trechos destacados de um rico depoimento, Cesar diz: “Bandeira de Aço é uma consequência do que foi sistematizado no Laborarte” (…) “esse paradigma musical incluiu ritmos de bumba meu boi, divino, tambor de crioula e de mina, entre outros, caracterizando-se como música percussiva e adotando uma poética enriquecida pelo vocabulário popular”.

Ou ainda, de forma mais precisa: “creio que o Laborarte serviu como um ponto de referência para a difusão de uma música popular que já vinha sendo gestada antes mesmo da criação dessa entidade cultural. Foram acrescentadas novas células rítmicas à MPB local, deixando transpirar as virtudes artísticas da nossa gente, das nossas raízes culturais. (…) No ponto de convergência estava a estratégia para a superação das dificuldades, habilitando uma essência rítmica – com base harmônica de violão e cavaquinho – alicerçada por instrumentos regionais: matraca, tambor-onça, pandeiro, cabaça, agogô, abatá, terno de crioula, pífaro etc.”

No capítulo seguinte, é olhada mais de perto, com depoimentos esclarecedores, a questão da criação da sigla a partir da ação decidida de Fernando Sarney em promover a “música maranhense”, através da Mirante e de sua posição como diretor da Cemar. É o momento da estetização, que define ao mesmo tempo uma expansão e a descontinuidade no movimento artístico, pois “a música popular em si, se reorienta em vista também de obter o apoio e a legitimação do campo político”.

Ricarte é um conhecedor de música popular brasileira, de suas raízes no choro e no samba, apreciador e incentivador dos compositores maranhenses, além de seu texto ter objetividade e fluência, oferecendo-nos, sem dúvida, uma rica análise do momento. Da sua exposição discordo, no entanto, da centralidade excessiva dada ao Laborarte (lembro, é claro, da observação feita por Lane Mosi, aproveitando-a em outro sentido), basicamente em dois aspectos.

De um lado, a própria definição da estética musical em questão, que passa, a meu ver de maneira significativa, por outros compositores, já indicados. Ameniza essa discordância o fato de que estamos falando de um movimento (ou de uma ação) cuja proposta inicial era de uma integração entre campos distintos e aberta a influências diversas. De outro, acho que a ação do Laborarte deve ser enfocada mais incisivamente como um dos elementos de um processo mais amplo de redefinição da identidade regional, a passagem da exaltação do passado letrado, centrado nos mitos de distinção expresso nas alegorias da Atenas Brasileira e da Fundação Francesa, para a exaltação da cultura popular, principalmente do bumba meu boi, antes excluído e alvo de perseguições. Algo que se efetivou mais como superposição, dado a direção do processo pela oligarquia dominante.

Claro que isto está referido lá, Ricarte sabe das coisas, mas um trabalho importante como o de Lady Selma Albernaz, O “Urrou” do Boi em Atenas: instituições, experiências culturais e identidade no Maranhão, uma tese defendida em 2004 na Unicamp, favoreceria o olhar para o movimento que se efetuava no campo das instituições governamentais em torno da cultura popular e do turismo desde o final dos anos 60. Assim, o encontro posterior com o guarda-chuva da oligarquia não era propriamente entre elementos estranhos.

O que se perceberia com clareza a partir daí era que o sentido da “ação cultural”, para manter o conceito utilizado, foi redirecionado para a ênfase na carreira profissional, aproveitando os caminhos que se ofereciam através dos favores oficiais. De maneira emblemática, o coletivo que se sobressaiu a partir do final dos anos 80 foi a Companhia Barrica, cujas principais atrações eram o Boizinho Barrica, no São João e, depois, o bloco Bicho Terra, no carnaval.

Ambos eram fruto principalmente da ação do compositor Godão na Madre Deus. No Boizinho Barrica elabora uma recriação cujos ritmos envolvem os vários sotaques do boi, os ritmos dos tambores de crioula e de mina, as ladainhas do Divino e até as batucadas dos blocos e tribos de índio do carnaval. É uma tentativa de síntese de vários elementos da cultura maranhense, da música, das danças, do artesanato etc. A Companhia tentou se colocar como movimento, mas terminou se definindo mesmo mais como atuação de empresa e desencadeou toda uma enorme discussão à época sobre grupos “parafolclóricos”. A outra ponta era a Marafolia, uma empresa de eventos vinculada ao Sistema Mirante, responsável pelo carnaval e as festas juninas “fora de época”, ambas com intensa participação da turma do Barrica. Para estes, a década de 90 significou os anos dourados.

Em ritmo de seresta. Reprodução

No final do ano passado, mais um trabalho tocou na questão da formação da MPM e, desta vez, por um ângulo inusitado. Trata-se do livro de Bruno Azevêdo, Em Ritmo de Seresta: música brega e choperias no Maranhão (Edufma, 2014), também fruto de uma dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UFMA. Inicia com uma relação entre a crise nas bandas de baile, determinada pelo aparecimento dos teclados eletrônicos polifônicos e a criação de um novo estilo, uma corrente da música brega que se desenvolveu nas regiões norte e nordeste a partir do final dos anos 80, conhecida como “seresta”. Muitos músicos migraram para o teclado com programação, pois barateava o show, eliminando instrumentos, como baixo e bateria. Era uma modificação na técnica acarretando alterações no estilo. “Músicos que por anos tocavam diversos instrumentos passaram para o teclado com programação, músicos que nunca cantaram passaram a emprestar sua voz para as serestas”.

O texto, bem articulado e bastante informativo, penetra fundo no universo das choperias, tendo como campo privilegiado duas grandes, a Choperia Marcelo, no retorno da Forquilha, e o Kabão, no Aterro do Bacanga. Bruno aqui está à vontade, passeando entre os nomes de destaque e suas imensas discografias, as nuances de estilo, a produção dos shows, o mercado de discos (que se apoia justamente na “pirataria”, subvertendo a lógica das gravadoras), o público consumidor etc. Consegue depoimentos incríveis de músicos, desencava vasto material fotográfico que traz muito do espírito do tempo, explorando as capa dos discos, os instrumentos e cenas de palco. Conta ainda com um ensaio do fotógrafo Márcio Vasconcelos, em flagrantes de campo, descortinando as cores, gestos e expressões em torno dos ritmos da seresta. A edição, vale frisar, é caprichada em seus detalhes, além de vir acompanhada de um cd. Tudo com a cara da Pitomba! (apesar de carregar o signo da Edufma, cujo padrão é justamente o oposto…).

Depois de analisar um estilo musical que alicerçou o boom das choperias e envolve milhares de pessoas, Bruno volta sua atenção para a (in)visibilidade dessa música e concentra-se na separação entre os músicos de seresta e suas canções e o que se poderia chamar de “identidade musical maranhense”, indicando a existência de uma marginalização nas “esferas discursivas de poder”, tanto no plano do acesso a financiamentos nos programas de cultura, quanto de legitimação nos meios de comunicação, carecendo de “reconhecimento”, pois a categoria não constaria nas listas de premiação, nem nos catálogos de cultura.

O bolero, a música romântica de “dor de cotovelo”, o brega, que dominavam as rádios, foram taxados de “música de velhos” ainda nos anos 60 e, apesar de constar das lembranças de formação de músicos e jornalistas, seriam deslocados da receita de mistura que definiria a MPM nas décadas seguintes. Nos seus próprios termos: “o processo de construção da tradição da música maranhense, corre em paralelo ao processo de exclusão de outros estilos e seus representantes”. O brega, formaria então sua linhagem à margem do que era reconhecido como “música maranhense”, dos grandes como Raimundo Soldado e Adelino Nascimento, à reinvenção com Lairton e seus teclados e depois continuando em transformação, com o aparecimento do arrocha e outras fusões, em aproximação com o sertanejo e o forró.

O trabalho dá uma guinada e passa a discutir então o processo de definição da MPM. Novamente nos deparamos com uma riqueza de depoimentos, até mais variados. O desenho interpretativo, em sua armadura mais geral, é similar ao já colocado, com a distinção de dois momentos, mas os detalhes levam a resultados distintos. Bruno estabelece uma contraposição entre a geração Laborarte e a geração Mirante. Enquanto a primeira estaria voltada para a pesquisa, a postura política de combate e o contato com bairros da periferia, a segunda centrava-se na busca do apoio de mídia, na proximidade com os grupos dominantes e na fetichização do registro fonográfico. Assim como no trabalho de Ricarte, os dois momentos privilegiados para a análise são o disco Bandeira de Aço e o aparecimento da sigla MPM.

No caso do disco e todo o imbróglio que ele gerou, com o problema dos direitos autorais, da omissão dos nomes nas rádios etc., existem depoimentos extensos de Cesar e de Papete, botando os demônios pra fora mesmo, pois, como diz este último, “é uma coisa que respinga até hoje, essa coisa rançosa, uma pena porque é um disco tão importante”. O disco foi gravado à revelia dos compositores, as músicas capturadas meio à distância, de forma enviesada e depois conseguida a autorização, apesar das resistências de Cesar e de uma certa desconfiança que pairava no ar. Mas foi um sucesso e chegou a vender na época, segundo Papete, 150.000 cópias.

Várias opiniões são reunidas, todas considerando o trabalho como referência fundamental. Como bem sintetizou Ribamar Filho, dono do Sebo Poeme-se, foi “a primeira vez que a gente se ouviu”. Ou Zeca Baleiro: “Bandeira de Aço foi um divisor de águas na música do Maranhão. Sei de cor e salteado, de trás pra frente, ouvi demais. Pela primeira vez pudemos ouvir em disco e com a qualidade de áudio (ao menos próximo) de um disco de grande gravadora, os nossos ritmos e autores. (…). Aquilo calou fundo na alma do maranhense. E abriu portas para que outros artistas se aventurassem naquela seara. Já havia outros discos feitos antes – Chico Maranhão etc. – mas aquele lá foi certeiro. Conjugou a excelência artística com o poder de fogo comercial”.

Quanto à questão da MPM, o contexto mais atual que a cerca, marcado por um certo “toma lá, que o filho é teu…”, ganha aqui contornos até mesmo hilários, dependendo da perspectiva. No geral os depoimentos descortinam ainda mais as engrenagens em operação, principalmente o papel da Mirante e dos favorecimentos pessoais concentrados na figura de Fernando Sarney. O radialista César Roberto, por exemplo, depois de dizer que “Fernando era o pai da nossa música, né? O padrinho, o ‘paitrocinador’”, afirma que ele foi “um dos criadores dessa expressão MPM”.

Pedro Sobrinho, também radialista, não concorda: “Foram os próprios artistas que criaram essa sigla, Betto Pereira, Gerude, acho que Godão do Boi Barrica também. Hoje eles não gostam, mas ele foi um dos grandes incentivadores. (…) Surgiu através dos artistas e a rádio (Mirante) abraçou, também porque houve um boom lá pela década de oitenta, um boom da música maranhense… foi a partir daí que neguinho resolveu ‘não, a nossa música é a melhor’ e criou a sigla, só que foi um grande, quer dizer, o tiro saiu pela culatra, porque não existe, foi um tiro no pé”.

Betto Pereira, por sua vez, devolve: “É do rádio. Não foi pelos artistas não. Rotularam pra diferenciar, fazer uma diferença do que é a MPB e o que é a MPM… Fez uma merda que até hoje a gente tá penando por isso, que eu não sou artista do Brasil, sou MPM”. Essa relação de estranhamento torna-se ainda mais curiosa com a afirmação de Papete, outra figura emblemática da difusão dessa música, com vários discos tendo compositores maranhenses como base, inclusive um deles intitulado Música Popular Maranhense, que a certa altura diz: “MPM não conheço não”.

Para Cesar Teixeira, “é uma discussão que surge no rádio, na verdade nos bastidores da Secretaria de Cultura, que eu acho que surgiu foi ali. Ou era pra reinaugurar uma geração que não tinha pesquisado coisa nenhuma na vida, tipo assim, legitimar uma geração que não foi lá na zona, que não foi no bumba boi, não pegou em matraca, não sei o que, pra legitimar o que eles tavam fazendo, e de repente vender aquele produto, como se venderia o reggae e outras coisas. E mais uma vez não deu certo”.

Bruno trata da programação das rádios Mirante FM e Universidade FM e de como elas cuidadosamente se apartaram dos boleros e do brega, envolvidas no processo de construção da identidade musical local baseada no bumba meu boi e, de forma mais ampla, representando-se como o moderno e conceitual. No decorrer das entrevistas ele sempre se defrontou com a posição dos músicos (de quaisquer vertentes) e dos jornalistas, todos contrários ao estabelecimento de uma relação entre a “música brega/seresta” e a “música maranhense”.

No modelo explicativo com que trabalha, isso seria fruto da internalização por parte dos agentes da construção da identidade musical maranhense como determinada pela aproximação com a cultura popular, sustentada num processo seletivo e excludente (“elitizante” é um termo várias vezes utilizado – lembro novamente de Lane Mosi). A posição das rádios seria, enfim, sintomática de uma “intenção de afastamento do popular”.

A conclusão a que chega é cruel, mas termina se tornando também uma caricatura do processo: “A MPM seria assim, um arremedo de movimento centralizado na rádio Mirante, que reuniu artistas de música popular inspirados no folclore, com o intuito de criar um elemento distintivo para a música dentro do mercado”. Para entender o que ele quer dizer é preciso não esquecer a maneira como foi colocada a dinâmica do processo, como dicotomia entre geração Laborarte e geração Mirante.

O termo geração Mirante é ótimo, basta destacar um depoimento dado por Mano Borges para um programa de televisão sobre os 30 anos da rádio, quando afirma: “30 anos que se confunde, na verdade, com a história da gente, da nossa música. Eu acho que é uma rádio que foi pioneira em mostrar essa música produzida no Maranhão, e isso nos deu muita visibilidade”.

No entanto, utilizá-lo como Bruno faz, a geração Mirante e a MPM como signos intercambiáveis, obscurece o trânsito que também houve da geração Laborarte para dentro da esfera de influência da Mirante e das secretarias de cultura. Talvez fosse mais simples falar, como Celso Borges, simplesmente em primeira e segunda gerações da MPM. Neste caso, o cuidado é para não esmaecer o fato crucial de que o termo é uma criação da segunda geração, quando a produção já não guarda a mesma qualidade, nem as mesmas características, voltando-se para o mercado fonográfico e as rádios, na busca de uma inserção que tinha ficado até então em segundo plano.

Por não se dar conta da rigidez que o esquema explicativo continha, o texto chega ao final escorregando em passagens surpreendentes ao afirmar que após o estabelecimento da sigla pela ação da rádio Mirante, “músicos da geração anterior como Sérgio Habibe passaram a ser reconhecidos como MPM por mais que não tomassem parte ativa em suas engrenagens”. Ou ainda: “Chico Maranhão se considera MPM, mesmo que a sigla tenha surgido depois da maioria de seus discos”. Em suma, aí ele opera uma disjunção total que torna a coisa toda um pouco confusa, na medida em que passa a configurar quase a existência de dois movimentos (mais do que dois momentos).

Não é possível dizer, por exemplo, que pela filiação à Mirante esta geração “é amplamente criticada pela geração anterior”. Salvo grosseiro engano, o único nome da linha de frente que permaneceu à margem dos canais que se formavam entre artistas, a Mirante e secretarias de cultura, foi Cesar Teixeira. Isso lhe valeu um certo ostracismo, uma distância que funcionou ao mesmo tempo como sua maldição e sua aura de identidade. Em graus variáveis, todos em algum momento participaram dos pequenos canais que se formaram para a produção de shows e gravação de discos de música popular. Basicamente era o esquema de financiamento que se formou aqui.

O trabalho de Bruno vai além da boa etnografia, ultrapassa a observação do fenômeno ao inquiri-lo em sua forma constitutiva, enquanto categoria socialmente legitimada, na trilha de Bourdieu, autor de quem pega as lentes para enquadrar os depoimentos dos músicos e agentes de mídia. Analisa um processo de construção simbólica e sua legitimação, insistindo na lógica da exclusão e sua introjeção, através da naturalização de noções como “cultura maranhense”, atrelando-a a um conjunto de signos retirados da cultura popular, mas filtrados pelas elites, no sentido mais preciso do conceito, portanto, incluindo o próprio Laborarte. Penso que a coisa pode ser encarada de outra forma.

Como é sabido, a discriminação acompanhou a música brega desde a formação do agregado que responderia pela sigla MPB a partir da segunda metade da década de 60. E isto só recentemente começou a se romper. No entanto, esta exclusão funciona mais como um recalque. E aqui não foi diferente, pois não dá para dizer que elementos do bolero e do brega não estão presentes na obra desses compositores, ontem e hoje. Me vêm imediatamente músicas como o bolero Babalu, que abre Emaranhado, de Chico Saldanha, seguido da cafonice fundamental de Mara, com aquele órgão hammond lá no fundo, ou ainda bregas escancarados presentes em seu disco anterior, Celebração, como Baby e Telma e Louise. Cesar e Josias não têm influência de brega? Acho que eles dificilmente negariam. Mas do velho brega, da cultura da zona, como enfatizou o primeiro.

E nem teria como ser tão diferente porque isso tudo rodava muito nas rádios. Quando Bruno analisa a questão da programação das duas FM e, através de vários depoimentos, mostra como o que era considerado muzak, de mau gosto, “brega” (Waldick Soriano, Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Odair José ou Wando, por exemplo), não rodava, fala como se não estivessem presente direto nas rádios AM. Isso não invalida a percepção geral defendida no livro, principalmente a questão dos modos de incorporação e legitimação que culminaram na invenção midiática da MPM, mas abre um caminho para nuançá-la e olhar a persistência desses elementos, que estavam introjetados e não poderiam ser tão facilmente apagados.

Também na década de 80 a onda do reggae se colocava com força e o ritmo terminou sendo absorvido, não ficou à margem, passou a frequentar os discos dos compositores maranhenses. E igualmente parece ter criado um nicho próprio, com bandas, gravações etc. e ainda com a particularidade do negócio das radiolas, mas hoje faz parte do cardápio oficial e é vendido na prateleira da diversidade. O potencial de afirmação de diferenças parece ter se diluído sob o guarda-chuva da “maranhensidade” e a noção de Jamaica Brasileira foi incorporada de maneira a esvaziar o potencial crítico da ordem social e cultural vigente.

Toda essa conversa pode parecer uma ruminação de águas passadas, na medida em que o quadro atual, à primeira vista, tem características muito distintas. É o que pode ser percebido na leitura de dois instigantes e, até certo ponto, antitéticos artigos a respeito do recente festival de música do projeto BR-135 e seu significado no contexto das artes, publicados em 27 de dezembro e 3 de janeiro últimos no Caderno Alternativo do jornal O Estado do Maranhão. Refiro-me aos textos DR-135, do mesmo Bruno Azêvedo e Não há saídas (só pontes e avenidas), de Reuben da Cunha Rocha.

Para encurtar o que já vai longo, Bruno faz um comentário bastante elogioso do festival, por expressar a diversidade atual das bandas e pelo local de realização (a Praia Grande) e do projeto, por ser o resultado de uma “ação política” dos produtores (Luciana Simões e Alê Muniz), que indicaria “uma boa chance para mudança paradigmática dos produtores locais”. A existência de uma ¨cena” artística em plena ebulição, um modelo de produção viável e, por fim, a “mudança política” anunciada são os ingredientes principais do texto.

A questão a que o BR-135 apontaria uma “saída” é de como “fazer acontecer uma cena que já acontece”, identificada por duas características: 1) “a cidade anda cheia de bandas de estilos diversos”; 2) “essas bandas tão (sic) interessadas num som autoral e desamarrado dos medalhões de identificação da cidade/estado”.

Correlato a este processo, que vem de algum tempo, ocorre agora a alteração política com a derrocada do grupo que comanda o estado há décadas, abrindo possibilidades de romper a “organização feudal” em que se tornou a pasta da cultura. Para isso, diz, “espero muito que a nova gestão consiga desfolclorizar a Secretaria de Cultura ou que aja uma ação dos produtores nesse sentido”. E conclama os artistas em geral a se inteirarem das possibilidades abertas com as leis de incentivo e a “convencer as empresas da importância estratégica do investimento na arte”. No horizonte, a aposta de que a “efetivação de uma política pública para a cultura transparente e impessoal”, seja uma alavanca para as atividades artísticas, um caminho “em direção ao público, à cidade, ao seu próprio ofício”.

O texto de Bruno é muito bom, vibrante, tocando em várias questões referentes ao esgotamento de um padrão de política cultural que vigora há décadas. Uma semana depois recebeu um comentário forte de Reuben. Um artigo radical no melhor sentido, opondo logo no título à “saída” do BR as conexões das “pontes e avenidas”.

No geral, ampliava o escopo da ¨cena¨ referida, recusando qualquer viés de apresentação do festival como sua expressão. “O que discuto no texto de Bruno é a tentativa de sequestrar, para sua formulação do BR-135, certos traços da experiência mais ampla e mais ousada que tem borbulhado na panela da ilha. Nessa jogada, ele esvazia os aspectos mais radicais ou pelo menos mais inquietos”.

Reuben expõe a desconfiança com um esquema voltado para a “profissionalização”, que estimula a troca e a mistura, mas “capitaliza experiências radicais como se fossem ‘cases de sucesso’”. Não é propriamente uma recusa, antes uma observação que recupera a importância das formas de agrupamento não marcadas pelo viés “empreendedorista” e sim pelo caráter mais “autonomista e não hierárquico”, como a experiência do Sebo no Chão, no Cohatrac, “que nunca deixa de acontecer e se vale das melhores e piores condições com o mesmo empenho”, ou a da Casa Loca, “que além de boa banda é uma casa ocupada mesmo, e parece que é louca”.

Não tenho condições de comentar o leque que ele apresenta do cenário contemporâneo das artes na Ilha, mas mesmo para quem conhece tão pouco é possível sentir os ventos e a energia que começam a despontar desses sons e imagens, dessa nova gestualidade, do “trânsito de linguagens”, claramente impulsionados por “dispositivos que apontam para a autonomia: a capacidade de gravação, a coletivização do trabalho produtivo, o domínio dos meandros da captação de recursos”.

Neste sentido, o chão da experiência atual é realmente muito distinto, tanto no referente às possibilidades de produção e circulação quanto aos desafios estéticos e políticos a responder. Os anos 70 e 80 marcaram aqui a passagem de uma configuração cultural caracterizada pelo predomínio dos signos de erudição para a incorporação de signos extraídos da cultura popular. Tal processo atingiria seus contornos mais definitivos somente na década de 90, através da ação concertada entre agências estatais e agências de comunicação, e terminou propiciando um aprisionamento e até uma acomodação dos artistas. O que se põe hoje é a necessidade de recriar os canais e ativar outros para uma nova leitura da diversidade cultural, que não seja refém de uma visão asfixiante da identidade e permita ao Maranhão se ver refletido em outros lugares, além do casarão ou do bumba meu boi. Para isso, mais do que (re)ler o local, a questão é como absorver o estranho e deixar acontecer as vias de combinação, vale dizer, de destruição das fórmulas de exaltação predominantes.

Para Reuben (no que Bruno concorda), “uma evidente liberdade se coloca entre a geração mais nova e os mais longevos fantasmas da cultura maranhense. Já quase não se sentem os ecos de certa ideia de legitimidade antes pretendida sobretudo através da cultura popular. O Maranhão, na música mais nova que tenho ouvido, aparece em outro lugar”. Liberados de qualquer “acerto de contas” com o passado, “afinal os mitos deixaram poucos discos e tudo depende da memória hiperbólica dos que lá estavam”, essa geração estaria de certo modo, liberada de carregar o fardo da “preservação da cultura”, abrindo espaço não só para um leque mais amplo de gêneros como, principalmente, da perspectiva que ele se coloca, para a experimentação mais radical e subversiva. Na formulação feliz: “O jogo agora é com o estúdio e não com o histórico”.

O dilema é o que fazer com essa “liberdade”, pois se é possível dispensar “a demanda dos fantasmas históricos”, é necessário também fugir dos “acertos do mercado nacional”, ou seja, do velho sonho de “estourar”. O próprio Reuben alerta: “não adianta tirar onda dos velhos medalhões para acabar refém de outros lugares de poder”.

Se não estamos mais na posição de reféns da relação entre arte e cultura popular, é bom frisar que isto se deu antes pelo desgaste da fórmula e pelas possibilidades abertas com os novos meios de produção e comunicação do que por qualquer diálogo crítico com essa “herança”. Não é apenas “um papo desgastado entre nós”, como Reuben e Bruno parecem concordar, é uma limitação que essa nova geração vai carregar, apesar de ser também por onde vai tentar se livrar dos “fantasmas da cultura maranhense”, que poderia sintetizar na necessidade de ultrapassar a tônica do “Maranhão, meu tesouro, meu torrão…”, o canto de sereia da ordem vigente.

Não me refiro, é claro, à bela toada que Humberto deixou gravada na memória da cidade, mas ao narcisismo ludovicense historicamente enraizado, que sempre deu o tom de nossas mais duradouras representações e ajuda a entender como um momento tão rico de transformação da música popular, capaz de definir os contornos de uma estética regional na linha de experimentações do período, desembocou na caricatura pretensiosa que significou a sigla MPM.

*FLÁVIO REIS é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Publicou Cenas marginais (ed. do autor, 2005), Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão (ed. do autor, 2007; 2ª. ed. 2013) e Guerrilhas (Pitomba!/Vias de Fato, 2011).

Com Tributo ao Bandeira de Aço, termina hoje a #7felis

A 7ª. Feira do Livro de São Luís termina hoje, após 10 dias (incluindo este domingo) de intensas atividades nos mais diversos espaços da Praia Grande.

Às 21h, na Praça Nauro Machado, diversos artistas relembrarão as nove faixas do antológico disco gravado por Papete para a Discos Marcus Pereira, em 1978, ocasião em que pela primeira vez foram gravadas em disco músicas de Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe.

É um bis do show apresentado em maio passado no Teatro Arthur Azevedo.

Floresta na selva de aço e concreto

De sangue e alma maranhenses, a cantora Ligiana Costa lança amanhã e domingo seu segundo disco, Floresta, em São Paulo.

O álbum, cujo título homenageia sua avó, dona Floresta, é impregnado de Maranhão: do título a Sousândrade, passando por seu pai, o jornalista maranhense Celso Araújo, radicado em Brasília, que musicou àquele, os rios Corda e Mearim, título de outra faixa, e ainda a regravação de Boi de Catirina, de Ronaldo Mota, originalmente registrada no antológico Bandeira de aço, divisor de águas da música do Maranhão que completou 35 anos neste 2013.

A paulistas e turistas, e principalmente à colônia maranhense por aí, recomendo fortemente. O disco você baixa aqui. E aqui lê entrevista que a talentosa moça me concedeu.

35 anos do antológico Bandeira de Aço são celebrados com grande festa no Arthur Azevedo

Público lotou o teatro na primeira edição do BR-135 em 2013. Repertório do disco foi tocado na íntegra

Um encontro para a história da música brasileira

O Teatro Arthur Azevedo ficou absolutamente lotado para a celebração aos 35 anos do disco Bandeira de Aço, de Papete, divisor de águas da música brasileira produzida no Maranhão.

O projeto BR-135, capitaneado pelo casal Criolina, Alê Muniz e Luciana Simões, propôs uma revisita ao repertório do antológico LP lançado pela Discos Marcus Pereira e revelou o que todos já sabíamos: todo mundo que faz música aqui bebe na fonte do disco que reuniu a obra dos “compositores do Maranhão”, como assinalava a capa da obra que muitos ouvem hoje como se fosse uma antologia, dada a qualidade do repertório. Não à toa Bandeira de Aço encabeçou a lista dos 12 discos mais lembrados da música do Maranhão, recentemente realizada pelo jornal Vias de Fato.

Um balanço do projeto ao longo do ano passado mostrou números impressionantes no telão, principalmente de artistas que passaram pelos palcos do BR-135 – iniciado no ainda desativado Circo da Cidade, que precisa ser urgentemente reativado pela atual gestão municipal –, e de público presente aos eventos, cujo principal objetivo é a formação de plateia – o que se viu ontem no TAA é o bom resultado da iniciativa.

A projeção de um documentário, dirigido e narrado pelo poeta e jornalista Celso Borges, revelou histórias que jogam luz às polêmicas que sempre envolveram o Bandeira de Aço, sempre envolto por uma aura mística, justo também por isso. Entre os entrevistados, os quatro compositores das nove faixas, Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota (o único que não mora no Maranhão e que não participou do show de ontem) e Sérgio Habibe, além do intérprete Papete, Chico Saldanha (que jogou a fita com a obra dos quatro nas mãos do percussionista maranhense e este apresentou-a a Marcus Pereira e o resto é história) e de diversos artistas para os quais o álbum é referência.

Ao longo do show o filme continuou dialogando com a plateia, entre uma música e outra, apresentando o contexto da época, as insatisfações de cada compositor com a interpretação de Papete para suas obras, o clima em que foi gestado e a repercussão do disco para suas carreiras artísticas e para a música do Maranhão e do Brasil em geral.

A homenagem do BR-135, a exemplo das edições anteriores do projeto, propôs também um diálogo entre a velha guarda e a nova geração de instrumentistas, cantores e compositores, percebido desde a formação da ótima banda que acompanhou a todos os artistas que pisaram no palco para a celebração: Erivaldo Gomes (percussão), Isaías Alves (bateria), João Paulo (contrabaixo), João Simas (guitarra) e Rui Mário (teclado, sanfona e laptop). Alê Muniz assinou os arranjos do que foi ouvido na noite histórica.

O repertório seguiu a ordem do disco, sob o cerimonial do ator César Boaes, ou de sua personagem na comédia Pão com ovo, sucesso de bilheteria que volta ao palco do TAA nas comemorações dos 196 anos da casa de espetáculo: o mestre de cerimônias carregou no humor, os risos da plateia em peso garantidos também pelas deliciosas histórias que os protagonistas relatavam.

Boi da lua, de Cesar Teixeira, abriu o show com interpretação do autor, num arranjo próximo ao original. De Cajari pra capital (Josias Sobrinho) foi interpretada por Bruno Batista, entre a lentidão e uma “porrada de pista”. Flávia Bittencourt interpretou Flor do mal (Cesar Teixeira), música registrada por ela em Sentido (2005), seu disco de estreia. Boi de Catirina (Ronaldo Mota) teve o vigor interpretativo de Madian, com vocais das Afrôs. Fechando o lado a, Josias Sobrinho cantou e dançou sua Engenho de flores.

O lado b seguiu com Josias Sobrinho sendo interpretado pelas Afrôs: Dente de ouro, com direito a mina incidental. Eulália, interpretada por seu autor Sérgio Habibe ficou entre o bumba meu boi e a cantiga de ninar, reforçada pelo teclado de Rui Mário – muita gente foi ninada pelas letras das músicas do disco. Catirina, de Josias Sobrinho, ganhou arranjo reggae na interpretação competente de Dicy Rocha. Com introdução tango, o casal Criolina subiu ao palco para interpretar a faixa título, que fecha o disco. Entre o tango e o bumba meu boi, convidaram Papete ao palco, e depois todos os outros que por lá já haviam passado. A plateia tornou-se um imenso arraial, com muitos dos presentes batucando pequenas matracas distribuídas pela produção, e já que todo mundo havia engrossado o coro do batalhão, o assíduo Zé da Chave também estava no palco, dividindo a percussão com Erivaldo Gomes.

Há tempos eu não via o Arthur Azevedo tão cheio para um espetáculo de artistas genuinamente maranhenses. Que a semente do BR-135 floresça, a começar por um bis desta homenagem a Bandeira de Aço e, quem sabe, ainda este ano, uma homenagem ao também antológico Lances de Agora, de Chico Maranhão, outro disco trinta-e-cincão de nossa música. Fecho com o que declarou o dj Joaquim Zion (esposo de Dicy) em sua conta no facebook: “uma noite pra ficar na história da Música Popular Brasileira”.

Floresta urgente!

A cantora Ligiana disponibilizou seu segundo e aguardado disco, Floresta, para audição em sua conta no Soundcloud. O disco físico, que terá distribuição da Tratore em todo o Brasil, deve chegar às lojas em breve. Mas o trabalho já vazou (aproveitem e baixem logo, que vale muito a pena).

Floresta, cujo título homenageia a avó paterna da cantora, merecerá outro post; esse aqui foi só para avisar aos poucos mas fieis leitores deste blogue do belo achado na downloadland. Em tempo: aos 35 anos do antológico Bandeira de aço, Ligiana regravou Boi de Catirina, composição de Ronaldo Mota registrada por Papete em 1978.

Boi de Catirina: Ligiana nO Ouvido Vivo

Desde 10 de setembro passado a distribuidora Tratore está disponibilizando uma faixa por dia da coletânea que tem a capa acima, que terá lançamento e venda física.

Nomes bastante interessantes da cena independente brasileira estão no disco, entre os quais Carlos Careqa, Rhaissa Bittar, Rogério Skylab, Stela Campos e Ilana Volcov.

A faixa de hoje, disponibilizada no Facebook da Tratore, é Boi de Catirina, regravação de Ligiana para a música de Ronaldo Mota, já gravada pelo autor e, antes, por Papete, no antológico Bandeira de aço (1978).

Este blogue recomenda com entusiasmo sua audição e download.

Bandeira de aço, eterna

Disco antológico é divisor de águas na produção musical maranhense. Faixa-título, de Cesar Teixeira, batiza show do compositor em julho. Breve memória sentimental embalada pelo trabalho, fruto da pesquisa incansável de Marcus Pereira

ZEMA RIBEIRO

Papete usa um boné xadrez e óculos de aro fino. E sorri. E não é para menos. O músico bacabalense é um homem de sorte. Estava na hora e lugar certos. A estampa é ladeada por um texto, de que colho trecho.

“E logo entrei em contato com um grupo de compositores maranhenses que nos convidou para uma reunião boêmia na Madre Deus, trincheira maior dos resistentes em favor da cultura popular regional, dos tambores, do bumba meu boi. E, perplexos, assistimos ao desfile de composições surpreendentes de Carlos Cesar [Teixeira], Josias [Sobrinho], Ronaldo [Mota] e Sérgio Habibe. Muito antes, a partir de 1968, Chico Maranhão, cujo apelido não deixa dúvidas, vinha me mostrando as coisas de sua terra. Nosso encantamento foi tal que as músicas se instalaram dentro de nós e nosso grupo passou a ter uma senha que era cantarolar ou assobiar a fantástica música de São Luís.”

O trecho é um parágrafo inteiro do texto sem título, assinado pelo pesquisador e produtor Marcus Pereira, na contracapa do vinil Bandeira de Aço, lançado por ele em 1978. Na capa, além do título do disco e de um simpático boi de lata, o nome de seu intérprete, Papete, encimando a expressão “Compositores do Maranhão”, que se referia aos quatro que gravou, os citados autores das composições surpreendentes. Àquela altura, Chico Maranhão já havia lançado pelo menos três discos pela gravadora: um disco brinde com músicas do maranhense de um lado e de outro Renato Teixeira (1969) – disco este que transformou definitivamente o escritório de publicidade de Pereira em gravadora –, Maranhão (1974) e Lances de Agora (1978), gravado em quatro dias na sacristia da secular Igreja do Desterro, no bairro homônimo do centro histórico da capital do Maranhão.

Outra contracapa de texto antológico, aliás. Lá, Pereira cravaria a sentença, espécie de doce praga de que não conseguimos nos livrar: “Ninguém nasce e vive impunemente em São Luís do Maranhão”.

Mas divago.

Bandeira de Aço era o segundo disco de Papete na Marcus Pereira. Antes, ele já havia lançado Papete, berimbau e percussão (1975), em que executa em sua maioria temas de domínio público, pontos de mina e tambores outros. No segundo, nove composições dos quatro mosqueteiros, três deles com passagens pelo Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão, o Laborarte, fundado em 1972 – a exceção é Ronaldo Mota (hoje o único que reside fora do estado) –, um repertório para ninguém botar defeito: no lado a, Boi da Lua (Cesar Teixeira), De Cajari pra Capital (Josias Sobrinho), Flor do Mal (Cesar Teixeira), Boi de Catirina (Ronaldo Mota) e Engenho de Flores (Josias Sobrinho); no lado b, Dente de Ouro (Josias Sobrinho), Eulália (Sérgio Habibe), Catirina (Josias Sobrinho) e a faixa-título (Cesar Teixeira).

Músicas até hoje, como preconizava o relato de Marcus Pereira, cantaroladas e assobiadas por qualquer maranhense – ou quem quer que as tenha ouvido ao menos uma vez. É ou não é Papete um artista de sorte? O talento não lhe nego. Era ou não era fácil tornar Bandeira de Aço, o disco, um sucesso? Nem tanto: “aquele time de compositores praticamente definiu uma estética da música popular produzida no Maranhão”, afirma o sociólogo e radialista Ricarte Almeida Santos em dissertação que está produzindo para o Mestrado em Cultura e Sociedade (UFMA) – o trabalho do apresentador do Chorinhos e Chorões versa sobre as relações entre os sucessivos governos e a produção musical/fonográfica do Maranhão, a ser defendido ainda este ano.

O fato é que demorando mais ou menos, o repertório de Bandeira de Aço inteiro caiu nas bocas, mentes e corações do povo – o disco embalou minha infância e a vida inteira e o que dela ainda vem. Quem nunca ninou uma criança com um Boi da Lua? Ou quem nunca dançou ao som de qualquer daquelas músicas num arraial da vida?

Meu "Shopping Brazil", autografado pelo compositor
Meu "Shopping Brazil", autografado pelo compositor

Cesar Teixeira, Josias Sobrinho Ronaldo Mota e Sérgio Habibe ainda demorariam algum tempo a estrear no mercado fonográfico – digo, em disco, interpretando suas próprias composições. Uns mais, outros menos. O primeiro, que já compunha e vencia festivais desde entre o final da década de 1960 e início da de 70, já vencera salões de artes plásticas e participou da fundação do Laborarte, só viria a lançar Shopping Brazil – sua estreia em disco-solo, apesar de já ter sido gravado por um sem-número de intérpretes – em 2004.

Ali mostrou músicas inéditas e regravou músicas já conhecidas do público em interpretações alheias. Boi de zabumba, coco, choro, samba, xote, baião, hip-hop, ladainha. Tem de tudo. Entre as regravações, Bandeira de Aço. Quem não se lembra de versos clássicos como “Mamãe, eu tou com uma vontade louca/ de ver o dia sair pela boca/ de ver Maria cair da janela/ de ver maresia/ ai, maresia”?

Esgotado, Shopping Brazil ganhará reedição ainda em 2011. A verdade é que as demoras – para lançar um primeiro disco, para recolocá-lo nas prateleiras das quase inexistentes lojas ou para gravar um segundo – se justificam pela despreocupação do artista com questões que não sejam coletivas. Sua música e sua poesia – esta completamente inédita, fora um ou outro poema publicado aqui ou acolá em antologias – sempre estiveram a serviço de causas nobres, como seu jornalismo, sua militância por direitos humanos, indissociáveis os vários césares que lhe habitam. Quem, numa greve, nunca cantou os versos de Oração Latina? A música, vencedora do Festival Viva Maranhão de Música Popular, em 1985, é hoje um hino de trabalhadores e movimentos sociais. Sua vida e obra sempre foram bandeiras de aço, resistência, ideais, convicção e coerência.

Bandeira de Aço dá nome a show que Cesar Teixeira (foto) apresenta dia 30 de julho (sábado), às 21h, no Circo Cultural Nelson Brito (Circo da Cidade, Aterro do Bacanga, ao lado do Terminal de Integração da Praia Grande). A produção é de Ópera Night.

No espetáculo, uma espécie de “saideira das férias”, o repertório, completamente autoral, passeará por músicas mais ou menos conhecidas, incluindo aí dos clássicos que todo mundo sabe e cantará junto a inéditas. Os poderes públicos do Maranhão têm permitido à população conhecer apenas as faces carnavalesca e junina de diversos artistas. A exemplo de outros, Cesar Teixeira é daqueles que têm bem mais a mostrar.

Bandeira de Aço, o show, é uma oportunidade ímpar de ver e ouvir Cesar Teixeira em ação. De saber-lhe a força poética. De sentir a alma tocada por seus versos certeiros. De perceber que a cultura popular do Maranhão é bem mais que carnaval, São João e bumba-bois abençoados por madrinhas e padrinhos cuja credibilidade quase nos faz perder a fé num mundo melhor. Que a Bandeira de Aço tremule de alegria.

[Outro texto nosso no Vias de Fato de julho, ora nas bancas]