O manifesto comunista ilustrado

Manifesto comunista em quadrinhos. Capa. Reprodução
Manifesto comunista em quadrinhos. Capa. Reprodução

 

5 de maio marca a data de nascimento do filósofo alemão Karl Marx. Como prazo não tem sido o forte desta quarentena, falemos hoje do velho barbudo – e já começa aí a rejeição de leitores mais à direita: eles detestam barbudos.

Marx, autor, com Friedrich Engels, do Manifesto comunista, é amado e odiado talvez em iguais proporções por quem leu e não leu, entendeu e não entendeu sua obra. Ele, que em outra, disse que a história se repete como tragédia e como farsa, dialoga diretamente com o Brasil pelo menos dos últimos 60 anos, mas não só.

A adaptação do cartunista e escritor britânico Martin Rowson Manifesto comunista em quadrinhos [Veneta, 2019, 88 p., R$ 69,90; tradução: Rogério de Campos] é a perfeita tradução da pergunta que vez por outra queremos fazer ou fazemos a, por exemplo, eleitores de Jair Bolsonaro diante da realidade por eles negada, apesar de escancarada: “precisa desenhar?”.

Se em 1964 os generais de plantão, para barrar a ameaça de uma ditadura comunista implantaram uma… ditadura militar, em 2018 a democracia brasileira, numa de suas inúmeras contradições, permitiu que o voto popular elegesse um (aspirante a) ditador, que até agora, além de não dizer a que veio, tem um comportamento repugnante diante do seríssimo momento que não só o país atravessa com a pandemia de coronavírus – seus atos e gestos irresponsáveis estão transformando o Brasil no recordista mundial de mortos pela doença.

A primorosa adaptação de Rowson (que no texto de abertura não poupa críticas ao comunismo e a alguns de seus ideólogos) torna cada página uma obra de arte, com as severas críticas de Marx e Engels ao capitalismo, com eles passeando por pátios de fábricas, e Marx se apresentando para uma plateia de anticomunistas, um gancho recheado de ironia que surte efeito, entre desenhos que expõem as vísceras do sistema capitalista, uma verdadeira máquina de moer gente, com destaque para o vermelho-sangue de trabalhadores e trabalhadoras explorados/as.

“A história de todas as sociedades até os nossos dias tem sido a história da luta de classes”, diz o texto, a certa altura. E continua: “homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e peão – em resumo, opressor e oprimido –, em constante oposição…”, outra palavra que também dói no ouvido de alguns.

Originalmente publicado em 1848, o Manifesto comunista segue incomodando muita gente, pelos mais diversos motivos. A palavra comunista, em si, chega a causar urticária em alguns. É, no entanto, um dos textos mais importantes da história da humanidade e sua força e atualidade são impressionantes.

Sua leitura, portanto, se faz mais do que necessária, sobretudo em nossos dias. Ilustrado, talvez facilite a vida de curiosos em geral. Outros, certamente continuarão se negando a enxergar o óbvio.

Página do Manifesto comunista em quadrinhos. Reprodução
Página do Manifesto comunista em quadrinhos. Reprodução

Os pais de Comichão e Coçadinha

Squeak the mouse. Capa. Reprodução
Squeak the mouse. Capa. Reprodução

 

“Emoções! Risos! Sexo! Sangue!”, lemos, em inglês, na capa de Squeak the mouse [2019], cujas 158 páginas reúnem 15 histórias de gato e rato no melhor estilo Tom e Jerry, mas com muito mais doses do que é anunciado no balão da capa, que diz de cara a que veio o álbum de Massimo Mattioli (1943-2019): os dois protagonistas entre açúcar e pimenta, com um violentando o outro (e este vingando-se na contracapa, onde se lê “impróprio para menores de 18 anos”) com uma espécie de motosserra portátil, em cores vibrantes, como ao longo de toda a publicação.

O volume em capa dura lançado no Brasil reúne histórias publicadas desde 1982 na Itália, além de inéditas. Por aqui a dupla de inimigos íntimos ficou conhecida graças à revista Animal, que circulou entre 1987 e 1991, fundada, entre outros, por Fábio Zimbres e Rogério de Campos, este também fundador e atualmente editor da Veneta, que publica o volume.

“Mattioli optou pela narrativa como sequências de imagens de um eterno retorno, fortemente baseadas nos desenhos animados dos anos 40, 50 e 60. Nesses desenhos (…) dispensava-se a linha do tempo, a narrativa continuada, em busca de um sentido maior para os personagens, que pareciam eternamente aprisionados em um dia de marmota, de gags violentas e pueris. Não é à toa que predadores perseguindo suas presas são um dos temas prediletos das animações dessa época, como o gato que caça o rato e o coiote que caça a ave pernalta”, anota o quadrinhista Rafael Campos Rocha (autor de Magda e Deus, essa gostosa, entre outros), no prefácio do álbum.

A disposição dos quadros nas páginas, todos iguais, e a movimentação e agilidade do enredo, levam o leitor a uma inevitável comparação entre hq e tv. As histórias se dão em looping, sem diálogos, com o gato perseguindo e matando o rato, que ressuscita e se vinga do gato e assim sucessiva e infinitamente – com generosas e muito bem desenhadas doses de sexo pelo caminho, além de citações a filmes de terror.

Não quero atribuir qualquer carga profética ao trabalho de Mattioli, aparentemente desconectado da realidade, de mero entretenimento, mas ele parece ter desenhado exatamente estes nossos tristes tempos: entre o monstruoso e o sublime, como cantaria um antigo compositor baiano, entre corpos decapitados ou cortados ao meio, com muito sangue jorrando, e o humor que emana (ou deveria emanar) de histórias em quadrinhos, ele poderia estar falando de nossa tragédia política em meio à pandemia (e vice-versa), em que às vezes o grau da desgraça é medido pelo volume de memes que é capaz de produzir.

Poderíamos dizer ainda que o gato e o rato de Squeak the mouse são os pais de The Itchy & Scratchy Show, conhecidos no Brasil como Comichão e Coçadinha, protagonistas de uma animação exibida dentro de Os Simpsons, de Matt Groening.

Aventuras e descobertas

Spinning. Capa. Reprodução
Spinning. Capa. Reprodução

 

“Eu sou o tipo de criadora feliz por fazer um livro sem ter todas as respostas. Não preciso entender todo o meu passado para desenhar quadrinhos sobre isso. E, agora que este é um livro que outras pessoas vão ler, sinto que não sou eu quem deve responder a essa questão”, afirma Tillie Walden na Nota da autora, posfácio à hq Spinning (Editora Veneta, 2019, 396 p.; R$ 84,90; tradução: Gabriela Franco), título que a transformou na mais jovem vencedora do Eisner, aos 22 anos.

Coragem e ousadia são qualidades da narrativa de Walden. Por trás do traço aparentemente simples de coloração roxa (e eventualmente amarela), a jovem quadrinista divide com seus leitores as angústias e mudanças da adolescência, entre as incertezas entre que rumo seguir quando chegar a hora do vestibular ou assumir-se lésbica para a família e os amigos.

Os ringues de patinação no gelo, de onde vem a expressão que dá título ao trabalho, algo como “girando”, são o cenário destas angústias, descobertas e transformações. Passado nos Estados Unidos, a história de Walden poderia ter como protagonista qualquer adolescente, entre o sofrimento com o bullying e o primeiro amor, o que acaba criando uma espécie de cumplicidade entre autora e leitores, independentemente da idade destes.

Spinning. Reprodução
Spinning. Reprodução

A ousadia de Walden está também em retratar o quão opressivo pode ser o ambiente de um esporte, ainda que tipicamente feminino, algo de que ela acaba tentando se descolar, seja ao assumir-se homossexual, seja ao romper com o esporte que praticou por 12 anos, tendo viajado boa parte do país participando de competições.

Ainda bastante jovem, Walden tem outros seis livros publicados e além do Eisner, venceu também o Ignatz, o Broken Frontier e o Los Angeles Times Book Prize.

Um encontro provocativo

A louca do sagrado coração. Capa. Reprodução
A louca do sagrado coração. Capa. Reprodução

 

O encontro de dois dos maiores gênios em suas respectivas áreas não tinha como dar errado. É o que percebemos mais uma vez ao longo de A louca do sagrado coração [Veneta, 2019, 200 p.; R$ 89,90; tradução: Letícia de Castro e Rogério de Campos], delirante história em quadrinhos de Alejandro Jodorowsky e Moebius (Jean Giraud, 1938-2012).

Na lista de fãs da dupla estão os Beatles John Lennon e George Harrison, o Stone Mick Jagger e os cineastas Federico Fellini e George Lucas, entre muitos outros.

Em geral soa clichê dizer que uma hq tem tons cinematográficos, mas é impossível fugir dele quando se trata da união do cineasta chileno com o quadrinista francês.

A louca do sagrado coração foi originalmente publicada em três partes ao longo da década de 1990, quando Moebius já era “não apenas o grande nome dos quadrinhos franceses, mas provavelmente o mais cultuado e premiado quadrinista do mundo”, como relembra o tradutor Rogério de Campos em Escândalo sagrado, prefácio rigoroso e vigoroso. Quando de sua morte, dele disse o jornalista Jotabê Medeiros: “ele inventou a imaginação dos autores que inventaram a ficção visual da minha época, nada menos que isso“.

Só agora lançada no Brasil, a trama tem elementos de suspense, policial e comédia. Após um divórcio, um renomado professor de filosofia da Sorbonne ingressa numa aventura que inclui reencarnações divinas, bombardeios americanos (sob o pretexto de combater o narcotráfico sul-americano), ayhauasca, feitiçaria e crises de diarreia que, além de humanizar o catedrático, leva o leitor a gargalhadas ao longo de toda história.

A louca do sagrado coração. Reprodução
A louca do sagrado coração. Reprodução
A louca do sagrado coração. Reprodução
A louca do sagrado coração. Reprodução

Moebius viria a influenciar boa parte da ficção científica produzida após ele, e Jodorowsky é um cineasta ambicioso, entre obras realizadas e abortadas (Duna, o “maior filme de ficção científica jamais realizado”, que “seria estrelado por Orson Welles, Salvador Dali, Mick Jagger”, entre outros; “o Pink Floyd faria a trilha sonora” do “projeto que nasceu e morreu em meados dos anos 1970”, como também relembra Rogério de Campos. A louca do sagrado coração é um ótimo exemplo de como juntar um traço sóbrio e elegante a uma história instigante e cheia de reviravoltas, que prende a atenção do leitor.

A louca do sagrado coração é outro livro “publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação 2019 Carlos Drummond de Andrade do Instituto Francês do Brasil”, “com o apoio do Ministério francês da Europa e das Relações Exteriores”, a exemplo de Travesti, que marca outro encontro da pesada: o quadrinista francês Edmond Baudoin com o escritor romeno Mircea Cărtărescu.

O título antecipa o recheio satírico em que sobram críticas à academia e principalmente à igreja. Não é um álbum recomendável para caretas, reacionários, mau-humorados ou para quem acha que livros são “um montão de amontoado de muita coisa escrita”, mesmo em se tratando de uma história em quadrinhos.

Prosa em quadrinhos

Travesti. Capa. Reprodução
Travesti. Capa. Reprodução

 

Extraída de um dos quadros da obra, o feto humano no ventre de uma aranha na capa de Travesti [Veneta, 2019, 130 p.; R$ 49,90; tradução: Maria Clara Carneiro], que une o traço de Edmond Baudoin ao texto de Mircea Cărtărescu, antecipa ao leitor a característica onírica do volume.

O francês Baudoin, vencedor de três Angoulême, é um dos maiores nomes dos quadrinhos no mundo, e o romeno Cărtărescu é renomado escritor, poeta e teórico literário, aposta frequente em listas de favoritos ao Nobel de literatura.

Travesti conta a história de Victor, jovem que ambiciona escrever um grande romance para a posteridade, tornando-se um grande escritor desconhecido, na Romênia de 1973. A narrativa é povoada de sonhos, renúncias e histórias adolescentes.

Os desenhos de Baudoin aliam elegância e sujeira, com seus híbridos, a vida na cidade grande, viagens (literalmente ou não), referências literárias (sobretudo Franz Kafka), as descobertas da adolescência e o sexo como só ele poderia apresentar. Um casamento perfeito com a prosa de Cărtărescu.

“Publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação 2019 Carlos Drummond de Andrade do Instituto Francês do Brasil, contou com o apoio do Ministério francês da Europa e das Relações Exteriores”, lê-se na página da ficha catalográfica da obra. Ou seja: países desenvolvidos estimulam a tradução de obras de autores nativos, garantindo sua difusão ao redor do mundo. No Brasil, sob o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, não há mais Ministério da Cultura e o próprio presidente declarou que livros didáticos “têm muita coisa escrita”.

Eis, aliás, uma hq que certamente não agradaria (a começar pelo título) ao ocupante do mais alto cargo da república brasileira (e qual o agradaria?): Travesti é movido pelo delírio, com poucos diálogos, ao contrário da maior parte das histórias em quadrinhos, o texto servindo, como uma espécie de diário, mas sem o rigor das datas, na maioria das vezes, para narrar os acontecimentos em primeira pessoa.

Reprodução
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Sua voz ecoará para sempre

Blues for Lady Day. A história de Billie Holiday. Capa. Reprodução

 

O traço de Paolo Parisi engana o leitor mais apressado: parece econômico, mas o que o quadrinhista quer é que o leitor capte a alma de seus personagens. Ainda mais personagens tão intensos quanto John Coltrane (1926-1967) – biografado em Coltrane [Veneta, 2016] – e Billie Holiday (Eleanora Fagan Gough, 1915-1959), protagonista do recém-lançado Blues for Lady Day – A história de Billie Holiday [Blues for Lady Day; tradução: Rosane Pavam; Veneta, 2018, 112 p.; R$ 55,00].

Autor de traço e texto, Parisi, graduado em História da Arquitetura Contemporânea pela Universidade de Bologna, Itália, se vale de tudo ao refazer a trajetória da cantora, entre diários, discos, canções, livros (citados em bibliografia e discografia essenciais, ao final do volume), o noticiário da época, depoimentos de personagens que orbitaram em seu redor – Count Basie, Artie Shaw, Tony Scott e Louis Armstrong, para citar apenas alguns –, a relação conturbada com o pai Clarence Holiday, também músico, numa narrativa que foge do convencional e da linearidade.

Não deixa de abordar nenhum aspecto da vida trágica, sem pender ao sensacionalismo ou à indulgência: sua graphic novel equilibra-se entre a vida difícil de garota de origem suburbana, a prostituição, problemas com drogas e a polícia, e a estrela fundamental para a música americana – que ganhou o mundo.

Em Breve nota à margem, texto ao final do volume, Parisi explica suas escolhas, algumas bastante pessoais, como nomear os capítulos com títulos de algumas de suas canções preferidas entre as de Billie Holiday. Neste texto, lemos, em alturas diferentes: “O blues é entretenimento e história. O blues é voz política”, e depois: “Nós nos entretemos para não morrer”, entre outros pontos destacáveis.

Reside justo no equilíbrio entre entretenimento e história o grande trunfo dessa hq, como terá nisso residido a qualidade da obra de Billie Holiday, “ao mesmo tempo íntima e política”.

O reconhecimento do desenhista à grandeza de Billie Holiday é mais uma justa e merecida contribuição à preservação do legado de Lady Day. Oxalá sirva também para lhe angariar novos ouvintes.

*

Ouça Strange fruit (Lewis Allan), com Billie Holiday:

Novo álbum celebra grandeza de Marcello Quintanilha

Todos os santos. Capa. Reprodução

 

Marcello Quintanilha é, merecidamente, um dos mais festejados quadrinhistas brasileiros da atualidade. Obras como as graphic novels Tungstênio [Veneta, 2014, 186 p.], recém-adaptada ao cinema por Heitor Dhalia [drama, 2018, Brasil, 80 min.], com o próprio Quintanilha no time de roteiristas, e Hinário nacional [Veneta, 2016, 128 p.], vêm angariando prêmios no Brasil e lá fora – o niteroiense mora em Barcelona desde o início dos anos 2000.

Todos os santos [Veneta, 2018, 112 p.; R$ 85], seu novo álbum, é uma espécie de portfólio, reunindo os primeiros trabalhos – começou aos 16 anos na carioca Bloch, desenhando roteiros alheios de terror e artes marciais –, desenhos e tiras publicados em jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Bravo, O Estado de S. Paulo, Trip, Cândido, El País, Le Monde), além de inéditos – Acomodados!! Acomodados!!, vencedora da I Bienal Internacional dos Quadrinhos do Rio de Janeiro, em 1991, permanecia inédita até aqui.

Também merecem destaque a HQ A invasão do sagaz homem fumaça (2000), mais conhecida pelos fãs do Planet Hemp, que deu capa e ilustrou o disco homônimo da então banda de Marcelo D2, retratos de Zeca Pagodinho, Mario Vargas Llosa, Paul Gauguin, Fidel Castro e Fernando Henrique Cardoso, com um fósforo quase a queimar-lhe os dedos, na vã tentativa de iluminar o próprio rosto à época dos apagões de seu governo.

A história se repete como tragédia ou como farsa, como nos ensinou Marx, e as melhores retrospectivas nos permitem perceber esta lição na prática. Um projeto de capa de 2000 retrata um senhor calvo, em seu terno alinhado, portando a faixa presidencial, com as mãos algemadas para trás, sendo conduzido por dois policiais.

Edição de luxo, em capa dura, Todos os santos é aberto com uma respeitável fortuna crítica: o prefácio de ninguém menos que Aldir Blanc à primeira edição de Fealdade de Fabiano Gorila [Conrad, 1999], estreia autoral/solo de Quintanilha no mercado editorial – à época ele assinava Marcello Gaú –, saudado pelo cronista e compositor como “o Rosselini tupiniquim”. Antes dos quadrinhos, o leitor poderá deliciar-se também com uma entrevista de Quintanilha a Paul Gravett, “o mais influente crítico de quadrinhos da Europa”, da inglesa ArtReview, “uma das principais revistas sobre artes plásticas do mundo”, que em 2015 publicou duas páginas do brasileiro – devidamente incluídas em Todos os santos.

Marcello Quintanilha não hierarquiza a importância, para sua carreira, das histórias que publica hoje, em álbuns bem acabados, das que veiculou em publicações baratas a partir da oportunidade adolescente. Todos os santos funciona como uma espécie de guia ou porta de entrada para sua obra, em que se destaca seu agudo talento de cronista, de texto e traço sagazes ao relatar flashes de brasilidade, característica marcante de seu trabalho – a capacidade dos melhores cronistas em eternizar o que nos passaria despercebido se não fosse transformado em obra de arte. Afinal de contas, é disso que se trata.

Jornalismo desglamourizado

Tabloide. Capa. Reprodução

 

“Ninguém vai acreditar nisso!”, adverte o fotógrafo Horácio. “Por isso mesmo é que vamos publicar!”, retruca a jornalista Samantha Castello. A ilustração da quarta capa de Tabloide – A dama dos afogados [Veneta, 2017, 136 p.], de L. M. Melite, dá uma preciosa pista de onde o leitor vai se meter ao acompanhar as aventuras da dupla nesta graphic novel patrocinada pelo Programa de Apoio à Cultura paulista.

Baseado em fatos reais, afirma a ficha catalográfica, Tabloide é o mergulho na aventura em geral sem glamour de fazer jornalismo. Samantha está acima do peso, é desbocada, nem sempre higiênica, por vezes escatológica e comumente descrente. Mas não calcula nem freia seus ímpetos quando o objetivo é conseguir uma informação para a qual em geral seus pares não estão dando muito valor. Sensacionalismo? Quiçá.

Tabloide se desenrola a partir da investigação do assassinato de uma transexual em circunstâncias inusitadas: vestida de noiva, dentro de um carro popular, em uma represa que funciona como cemitério de automóveis, destino de fraudes em seguros.

Assombrada por seus próprios fantasmas, Samantha conduz o leitor por aventuras que passam por situações de trabalho escravo e tortura, temas infelizmente ainda bastante atuais no Brasil sob a égide dos golpistas.

A protagonista não hesita em brigar – literalmente, se necessário – para cumprir seu ofício, consciente de seus dilemas éticos. Polêmica, é uma grande personagem no traço apenas aparentemente desleixado do autor. No meio de tudo há uma reprodução fac-símile de Tabloide, com “jornalismo sádico” por subtítulo e uma coleção de manchetes pra lá de inusitadas. Nada é mera coincidência.

Tragédias brasileiras

Hinário nacional. Capa. Reprodução

 

Radicado há anos na Espanha, o quadrinhista brasileiro Marcelo Quintanilha talvez seja quem melhor retrata, no campo das graphic novels, o Brasil real e profundo. Após o policial Tungstênio – vencedor do prêmio Angoulême, o mais importante dos quadrinhos, em 2016 – e o “drama classe média” (embora estas aspas reduzam bastante a questão, reconheço) Talco de vidro, ele volta à carga com Hinário nacional [Veneta, 2016, 128 p.; R$ 54,90].

O livro já provoca desde o título, que subverte a “coleção ou livro de hinos religiosos”, atrelando-o a hinos de clubes de futebol cantados a plenos pulmões em estádios lotados ou não e o clássico junino Olha pro céu (Luiz Gonzaga e Peterpan), que se configuram personagens importantes na trama.

O enredo entrelaça vários dramas em torno do mesmo tema: o abuso sexual. Da namorada que cede a ver filmes de ação (que o namorado prefere) em vez de filmes mais românticos (sua própria preferência) a relação entre colegas de escola (“eu tô acostumada”), os clichês machistas e homofóbicos repetidos ad nauseam, o taxista que “graceja” e a passageira que interrompe a corrida pelo meio do caminho, além do drama de um motorista de ônibus acidentado, cuja memória fragmentada faz questão de lembrar que é ele quem manda em casa.

Quintanilha, em suas ficções, é um perfeito tradutor da tragédia brasileira. As pequenas desgraças individuais são traços de nossa formação, agravados pelo golpe em curso. Hinário nacional é impresso em amarelo, cor da palidez – nossa impotência diante da realidade? –, e se vale da retícula, cujo efeito granulado pode ser lido como outra metáfora: pontinhos formam uma imagem, como os dramas individuais compõem a desgraça brasileira.

Exceção e regra em Encruzilhada

Encruzilhada. Capa. Reprodução

 

Marcelo D’Salete é uma exceção: um quadrinista negro de sucesso no Brasil. Sua obra é regra: sua ficção documenta a realidade cotidiana de periferias das grandes cidades e o massacre diário da juventude negra e pobre. Mas sua obra é, ao mesmo tempo, exceção, já que não é qualquer artista que se interessa por abordar tais temas sob tais perspectivas, dando voz aos oprimidos.

A violência policial já não nos choca, pois está estampada nas edições diárias dos jornais impressos ou circula em sites e grupos de whatsapp. D’Salete no entanto não alivia: o traço sujo traduz a vida sofrida dos que habitam a periferia e vivem sob o jugo dos agentes da lei – que em geral desrespeitam-na. “Com polícia a gente fica quieto” é o mantra repetido por uma personagem em Risco, história inédita que se soma à reedição de Encruzilhada [Veneta, 2016, 160 p.], originalmente lançado em 2011.

São cinco histórias que não causariam estranhamento a quem acompanha o noticiário, sobretudo através de programas policialescos sensacionalistas – redundância intencional –, em que sangue é sinônimo de audiência. São Paulo está perfeitamente traduzida no preto e branco – e cinza – dos quadrinhos de D’Salete, cujos grafites, espalhados por paredes e muros, e marcas, por outdoors, neons e embalagens, garantem autenticidade às narrativas, jogando o consumismo (e o capitalismo) no cerne da questão urbana e sua onda de violência, que atinge “trabalhadores, ladrões, policiais, camelôs” e usuários de crack.

As histórias de Encruzilhada – a grafia do título na capa do álbum não por acaso evoca um picho – não são fábulas com moral; antes evocam uma amarga realidade, causando incômodo e propondo reflexões, exceto a quem já perdeu qualquer grau de humanidade ou sensibilidade, anestesiado pela “normalidade” do status quo, justamente contra o que mira a arte consciente de D’Salete.

Graphic novel mergulha na vida e obra de Carolina Maria de Jesus

Carolina. Capa. Reprodução
Carolina. Capa. Reprodução

 

O professor de literatura Ivan Cavalcanti Proença causou polêmica ao ecoar recentemente racismo, machismo e classicismo acadêmico em um evento em homenagem a escritora mineira Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de despejo: diário de uma favelada. Para ele, a principal obra da ex-favelada e ex-catadora não é literatura – o livro está na lista de leituras obrigatórias para o vestibular da Unicamp. O professor foi rebatido pelos poetas Ramon Mello e Elisa Lucinda, que saíram em defesa da escritora e de seu legado, já reconhecido por nomes como Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector – que esteve na noite de autógrafos de seu livro de estreia, em 1960.

“A menina Bitita, mineira de Sacramento, arrombou a porta estreita e branca da elitista literatura brasileira ao tornar-se Carolina Maria de Jesus (1914-1977), escritora de Quarto de despejo: diário de uma favelada. O livro, quando lançado em agosto de 1960 em sucessivas edições, alcançou a marca de 100 mil exemplares vendidos em poucos meses, superando em vendas naquele ano, Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado, e foi publicado em 40 países e 14 línguas”. Assim a professora Sirlene Barbosa inicia o artigo que serve de posfácio a Carolina [Veneta, 2016, 128 p.; R$ 39,90], graphic novel biográfica da escritora, com pesquisa e argumento dela e roteiro e desenhos de João Pinheiro.

Ele já havia dedicado graphic novels a biografias de escritores antes: Kerouac [Devir, 2011] e Burroughs [2015, Veneta]. Uma característica de seu trabalho é seu traço versátil adaptar-se às realidades de seus personagens reais: o preto e branco de Carolina parece imitar carvão ao dar o tom certo à miséria humana vivida pela escritora e seus vizinhos de favela do Canindé – onde hoje está localizado o estádio da Portuguesa de Desportos.

Carolina Maria de Jesus foi personagem complexa e por vezes contraditória. Enfrentou preconceitos os mais diversos: por ser negra, pobre, mulher. Aliás, passados 40 anos de sua morte, continua enfrentando, como demonstra o episódio envolvendo o professor. Sirlene Barbosa e João Pinheiro mergulham profundamente na tragédia humana que lhe cerca, mostrando a realidade nua e crua e por vezes cruel. Muitas vezes a escritora foi vítima de preconceito entre seus iguais, isto é, os vizinhos de barracos no Canindé.

A narrativa de Carolina é bastante apoiada em Quarto de despejo: diário de uma favelada, que teve a primeira edição publicada por iniciativa do jornalista Audálio Dantas, que descobriu a escritora meio que por acaso ao cobrir uma pauta para a então Folha da Noite: Carolina ameaçava tornar seus vizinhos personagens do livro que estava escrevendo, reagindo à antipatia deles, para quem ela não passava de uma pobre solteirona metida e fedorenta – às vezes faltava dinheiro para comprar sabão e não foram poucas as vezes em que passou fome junto com os filhos.

“Não são ratos, não são abutres…”, “… são gente”, dizem os quadrinhos a certa altura, apresentando a paisagem violenta por todos os ângulos: desagregação familiar, violência contra a mulher, abuso de álcool e a disputa entre humanos e animais por comida, evocando o poema O bicho (1947), de Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/ na imundície do pátio/ catando comida entre os detritos/ (…)/ o bicho, meu Deus, era um homem”.

Carolina passeia pela vida e obra da escritora que lhe batiza, certamente ajudando a jogar luzes sobre aquela e angariar novos leitores para esta, que segue sendo apontada como influência: Quarto de despejo: diário de uma favelada foi o primeiro livro lido pela também escritora, negra e mineira Conceição Evaristo, que estará na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) este ano e atualmente é tema de uma Ocupação no Itaú Cultural.

Linguagem: vírus e vício/s de Burroughs

Burroughs. Capa. Reprodução
Burroughs. Capa. Reprodução

 

Burroughs [Veneta, 2015, 128 p.], de João Pinheiro, outro brasileiro de reconhecimento internacional, é um mergulho profundo na atormentada mente do escritor beat – o quadrinista já havia hqbiografado outro da geração, em Kerouac [Devir, 2011]. A impressão arroxeada do miolo da graphic novel lembra as provas mimeografadas da escola da infância.

“A linguagem é um vírus vindo do espaço”, determina um dos primeiros quadros da história. O big bang de William Burroughs (1914-1997) foi o assassinato de sua esposa Joan, numa brincadeira de de seu xará Tell.

A HQ retrata um Burroughs perseguido por fantasmas, escrevendo para fugir deles, seu processo criativo, o método cut up utilizado por ele, Mugwumps, drogas, alucinações, o famoso inseto de Kafka, sua bissexualidade, a interzona e o Almoço nu – levado ao cinema por David Cronenberg. Também estão lá a violência – sobretudo contra homossexuais – e a sociedade que a aplaude, aos gritos de “bandido bom é bandido morto”.

“Morfina, heroína, dilaudid, eucodal, pantopom, diocodid, diosane, ópio, demerol, dolofina, paufium… comi, cheirei, injetei, enfiei no reto… o método não importa, o resultado é sempre o mesmo: dependência”, revela a certa altura. “Foram 15 anos no vício. Aos quarenta e cinco anos de idade, me livrei da doença da dependência. (…) Registrei minhas alucinações em centenas de páginas que mais tarde seriam publicadas sob o título Almoço nu”, continua. E arremata: “A única coisa real sobre um escritor é o que ele escreve, e não a sua vida. (…) Sinto-me forçado à conclusão apavorante de que nunca teria me tornado um escritor… sem a morte de Joan”.

Burroughs é, em suma, a história da busca de seu protagonista, um artista que viria a influenciar gerações, por salvação através da literatura, sua única crença possível.