A violência e a impunidade, a culpa e o cinismo

EDITORIAL
DO VIAS DE FATO

Um show de cinismo! Foi isso que alguns maranhenses assistiram, no último dia de 13 de junho, por volta das 19 horas, quando o jornal da TV Mirante (ligada à rede Globo) informou que, naquele dia, “vândalos entraram na sede regional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), reviraram e quebraram tudo”. A matéria reconheceu o fato de haver membros da coordenação local da CPT ameaçados, mas, deixou no ar a possibilidade de ter sido um assalto. Uma rápida fala do Padre Clemir também foi veiculada. E ponto final.

A matéria confundiu muito mais do que explicou. Ela serviu, principalmente, para os donos da emissora (grupo Sarney) tentar passar para a opinião pública que não têm nenhuma relação com os tais “vândalos”, quando, na verdade, estes são os eternos capangas de latifundiários, protegidos pelo mesmo grupo Sarney, os cínicos donos da mesma TV Mirante.

Estamos falando de um fato dramático. No ano de 2011, em pleno século XXI, a sede da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Maranhão, localizada no centro da capital, em São Luís, foi invadida durante a madrugada do dia 13 de junho. E esta invasão é resultado do clima de violência e de total impunidade vivido num Estado onde a oligarquia/máfia de José Sarney, o presidente do Senado Federal, continua mandando – e promovendo desmandos – no INCRA, no Tribunal de Justiça e no Governo do Estado.

A notícia realmente importante é que a CPT, ao lado de lavradores quilombolas ameaçados de morte, esteve participando da coordenação de um acampamento feito na Praça Pedro II, em frente à sede do Tribunal de Justiça e do Palácio dos Leões, indo em seguida para a sede do INCRA, no bairro do Anil. O acampamento durou entre os dias 1º e 10 de junho e denunciou a violência e a impunidade, colocando o governo Roseana e o grupo Sarney entre os principais responsáveis por este problema do Maranhão.

O que não pode ser escondido é o fato de dois padres da CPT e 19 lavradores ameaçados, terem feito greve de fome, durante o acampamento do INCRA, para chamar a atenção para o problema da impunidade e da violência no Maranhão. A greve foi suspensa junto com o acampamento no dia 10 de junho e, nas primeiras horas do dia 13, a sede da CPT foi invadida.

É fundamental registrar – junto com a notícia da invasão da sede da Pastoral – que estes lavradores e os dois padres só suspenderam a greve e desocuparam a sede do INCRA, quando uma Ministra de Estado assumiu o compromisso de vir ao Maranhão para ouvi-los. E neste caso, tem que ser dito que, apesar do governo Dilma andar de braços dados com a máfia maranhense, apenas uma autoridade federal poderia resolver o impasse.

Para os acampados, os representantes do Governo Roseana não valem um Cibazol. Prova disso é que quatro secretários de estado assinaram um documento endereçado a eles e a proposta foi recebida com indgnação, considerada ridícula, com ninguém levando a sério o documento assinado por Conceição Andrade (Secretária de Desenvolvimento Agrário), Claudett de Jesus Ribeiro (Secretária de Igualdade Racial), Luiza de Fátima Amorim Oliveira (Secretária de Direitos Humanos) e Aluízio Guimarães Mendes Filho (Secretário de Segurança).

A oligarquia/máfia tem o poder para segurar e manipular processos em diferentes tribunais, indicar ministro de Estado e eleger seus apadrinhados na base do abuso de poder político e econômico. Porém, vem de longe o fato de todo este poder ser colocado contra a população do Maranhão, especialmente, contra os mais pobres, caso de trabalhadores rurais (lavradores), ameaçados há décadas pelo avanço do latifúndio, da grilagem de terras e da violência no campo. As organizações populares pagam um preço alto por ficar ao lado das vítimas dessa estrutura de poder.

Hoje, a grande imprensa, controlada pela oligarquia-máfia, só fala em desenvolvimento e em grandes projetos. Sobre a violência no campo e seus verdadeiros responsáveis, o assunto é tratado, por esse mesmo sistema de comunicação, como se o problema fosse na lua.

Nos últimos anos, após a volta de Roseana ao governo, aumentou no Maranhão o número de assassinatos no campo. O Poder Executivo (com o auxílio de figurinhas carimbadas do Judiciário) acoberta os mandantes desses crimes. Os casos ocorridos recentemente em Açailândia e São Vicente Férrer (noticiados em edições anteriores deste jornal) são escandalosos e estão aí para provar o que estamos afirmando.

O Maranhão sobrevive sob o manto da impunidade. O poder institucional do Estado está a serviço do crime organizado. No caso da terra, as instituições defendem os interesses dos grandes grileiros. Com isso, o latifúndio se esparrama e o clima de barbárie se instala em várias regiões. Isso já foi dito outras vezes neste jornal. E será repetido, sempre que for necessário.

Em 2009, tocaram fogo em uma associação de lavradores quilombolas da Baixada e o governo de Roseana não apurou as responsabilidades. Em 2010, mataram o presidente dessa mesma associação (Flaviano Pinto Neto) e, até hoje, os mandantes estão soltos. Outra liderança da comunidade do Charco, conhecido como Manoel do Charco, vive sob a proteção da Força Nacional. E agora, em 2011, a residência do vice-presidente da mesma associação, Almirandir Pereira, foi alvejada com três tiros. Por último, invadiram a sede da Comissão Pastoral da Terra, localizada em plena Rua do Sol, no centro de São Luís.

E a TV Mirante diz que a Policia vai investigar. É mesmo? E Roseana? Quer que investigue? E Sarney? E João Alberto? Estão todos preocupadíssimos com o caso de “vandalismo”? É o cúmulo do cinismo!

O caso da CPT merecia (no mínimo!!!) uma entrevista com o secretário de segurança do Estado. Quanto à secretaria de Direitos Humanos essa não adiantaria ouvir, afinal, ela efetivamente não existe, só servindo para distribuir umas “medalhas” no final do ano.

Encerramos lembrando que, em julho de 1969, José Sarney assinou a Lei de Terras do Maranhão e abriu as portas do estado para os grandes grileiros, tumultuando o processo de regularização fundiária e provocando êxodo rural e violência no campo. Em 2011, a oligarquia-máfia criada por ele (com Roseana no papel de porta estandarte) fala em desenvolvimento e de grandes projetos, mas, na verdade, permite que os ladrões de terras (travestidos de empresários e pecuaristas) atuem como se estivessem no século XIX.

Mas, havia uma vantagem naquele tempo. Pois, no século XIX, os coronéis, chefes dos pistoleiros, não tinham uma emissora de TV para confundir a opinião pública e acobertar, cinicamente, os verdadeiros culpados pela violência e pela impunidade.

Sobre anjos musicais

O cantor e compositor Bruno Batista acaba de lançar Eu não sei sofrer em inglês, seu segundo disco. Via Facebook ele conversou com o Vias de Fato.

Maranhense nascido em Pernambuco, Bruno Batista (foto) já morou no Piauí e no Rio de Janeiro antes de cravar residência em São Paulo, onde vive hoje. Na terra de São Sebastião gravou seu primeiro disco, que levava apenas seu nome no título, Bruno Batista (2004), elogiado pela crítica. (Re-)gravado por nomes como Cecília Leite, Cláudio Lima e Lena Machado, é um dos principais nomes da cena musical contemporânea do Maranhão.

Na terra da garoa Bruno Batista gravou seu segundo disco, o belíssimo Eu não sei sofrer em inglês (2011). Se no primeiro disco já eram surpreendentes suas elaboradas letras e melodias, neste segundo o cantor e compositor se supera. “O primeiro era um disco sem pretensão nenhuma”, afirma modesto o jovem de fã-clube cada vez maior.

O novo disco ainda nem estava pronto e só chegou às lojas pouco antes deste número do Vias de Fato, já neste maio. Pode ser encontrado nas lojas Poeme-se (Rua João Gualberto, 52, Praia Grande) e Playsom (Tropical Shopping), além do Bar do Léo (Hortomercado do Vinhais) – onde a reportagem tentou encontrá-lo por duas vezes, conversa adiada diante de problemas na agenda ou do artista ou do repórter.

“Esse jogo não pode ser um a um”, diria outro poeta da canção. O desempate aconteceu via Facebook: pelo site de relacionamentos, entre os dias 7 de abril e 11 de maio, Bruno Batista concedeu a entrevista abaixo ao Vias de Fato.

ENTREVISTA: BRUNO BATISTA
POR ZEMA RIBEIRO

Vias de Fato – Quando é que, de fato, Eu não sei sofrer em inglês será lançado? Bruno Batista – O Eu não sei sofrer em inglês, que já deveria ter sido lançado no fim do ano passado, deverá chegar nas lojas no início de maio [chegou]. O atraso todo se deu no processo de mixagem, que se prolongou além do previsto. Atualmente ele ‘tá na fábrica e, só pra não deixar dúvidas: há realmente um disco no forno, chamado Eu não sei sofrer em inglês, que, muito em breve, estará circulando por aí . Não é lenda urbana, não [risos].

A que se deveu a demora entre a estreia e este segundo trabalho? O primeiro disco, muito embora seja muito importante pra mim pessoalmente, não tinha nenhuma pretensão. A proposta inicial era apenas registrar aquelas canções, de uma forma cuidadosa, claro, com as minhas ideias na época. Mas o fato é que, a partir dele, eu peguei gosto pela coisa – a experiência em estúdio e a troca com as pessoas que ouviram o disco me contaminaram – e passei a considerar, realmente, seguir no terreno musical. Esse tempo sem gravar me permitiu conhecer mais profundamente o mundo da música no Brasil, a enorme quantidade de artistas independentes que faz um trabalho incrível, e me deixar influenciar por eles. Muito embora no Eu não sei sofrer em inglês haja canções feitas há nove anos, além de duas regravações, eu esperei a minha própria música se modificar e se estabelecer em mim pra fazer um novo registro.

Eu não ouvi todos os discos [título de uma das faixas do primeiro disco] não é, mas bem poderia ter sido o título de teu primeiro disco. Eu não sei sofrer em inglês, título do segundo, tem a mesma quantidade de letras daquela faixa que Ricarte Almeida Santos referenciou em artigo de relativa fama no meio jornalístico e intelectual da capital maranhense. Para além dessa coincidência, digamos, numerológica, que diferenças e semelhanças entre um e outro tu poderias apontar? Sério? Que coincidência maravilhosa [risos]. Não tinha atentado para isso. Mesmo. Na verdade, Eu não ouvi todos os discos deveria, sim, ter sido o nome do meu primeiro disco. Não lembro mais a razão de não tê-lo batizado assim. Muito provavelmente se deveu à tal despretensão de que falei. Mas o fato é que, se fosse hoje, esse teria sido o nome do disco. Tanto que é o nome do meu blog [o desatualizado http://www.batistabruno.wordpress.com]. Quanto ao outro ponto, vejo mais diferenças que semelhanças entre os dois álbuns. A começar pela concepção: enquanto aquele recebeu arranjos de um maestro sofisticado – e saudoso – Alberto Farah, este foi gravado em três sessões, com uma banda tocando ao vivo e sem conhecimento prévio das canções. Além disso, penso que também ficou flagrante a inclinação mais “pop” do trabalho, com maior espaço para guitarras, bateria, coros. Mas, sobretudo, acho que ter gravado em São Paulo, com essa geração muito especial de músicos que forma a atual cena paulistana, deu um sabor bem distinto ao disco.

Seu blogue anda meio parado. Como já aconteceu com outra experiência, de blogueiro do jornal O Imparcial, e como aconteceu com o próprio curso de Comunicação Social, que tu abandonaste sem concluir. Podemos dizer que tu abandonou tudo pela música? Ou o cantor e compositor Bruno Batista se conciliará em breve com as letras, passando a trabalheira de “parir” um novo disco? Acho que não tenho muita vocação pra blogueiro, né? [risos]. Mas o instinto jornalístico é muito presente em mim. Vou conciliar as duas coisas, sim, e tem novos projetos vindo por aí.

Sobre estes novos projetos, podes adiantar alguma coisa? Tenho conversado muito com o Pedro Henrique Freire [editor-chefe de O Imparcial] sobre um novo projeto jornalístico. É uma proposta bem legal, mas ainda não posso adiantar muita coisa. E, musicalmente, após passar esse primeiro momento de lançamento do novo disco, quero muito viabilizar o meu trabalho de músicas infantis, além de um grupo de baião. Este último é um desejo antigo, que recrudesce à medida que meu trabalho autoral vai se distanciando dos signos nordestinos. É meio louco isso, não? Mas é o que acontece.

Entre as feras que estão em Eu não sei sofrer em inglês, como foi chegar a nomes como Chico Salem e Marcelo Jeneci, ambos da banda de Arnaldo Antunes, mais Estevan Sinkovitz, da de Kléber Albuquerque, Guilherme Kastrup, que já tocou com Zeca Baleiro, que participa de regravação de Acontecesse, mais Rubi, Juliana Kehl e Tulipa Ruiz? Na verdade, tudo começou quando assisti ao Partimpim, da Adriana Calcanhoto. Lá tinha um percussionista que tirava som de tudo, com muita graça no palco. Foi assim que cheguei ao nome do Guilherme e o procurei pela internet. Mandei algumas canções, ele curtiu, e começamos a pensar no trabalho. Em princípio, ele iria fazer só as percussões mas, ao ouvir o disco Vol. 1, da Andréia Dias, percebi que ele também era um puta produtor e o convidei pra produzir também. Pra minha sorte, ele aceitou e convocou esse time maravilhoso. O curioso é que, exatamente nessa época, eu estava ouvindo muito o Ao Vivo no Estúdio, do Arnaldo, e entusiasmadíssimo com o Jeneci, o Chico Salem. Foi demais poder contar com todos eles. Quanto às participações, uma das coisas mais gratificantes desse disco foi poder dividir uma faixa com o Zeca. Ele sempre foi um dos meus grandes mestres, lembro de ter ouvido um milhão de vezes o [Por onde andará] Stephen Fry, o Vô Imbolá, e acho mesmo que, ele e o Chico César, foram os responsáveis por eu ter me tornado compositor. Isso em falar no prazer de conhecer o Rubi, um dos timbres mais especiais da música brasileira, a Tulipa, que é uma fofa e tem uma personalidade artística incrível. Ambos foram muito generosos e me emocionaram enquanto gravavam. Mas, talvez o mais bacana de tudo, foi a relação que construí com o Guilherme e o Chico. Depois de tanto tempo depurando o disco, burilando, refletindo acerca de todas as questões, ficamos amigos. São músicos fantásticos e pessoas raras.

As referências trazidas por ti, aqui, são bastante contemporâneas: Chico César e Zeca Baleiro não têm, ainda, 20 anos de carreira. Partimpim e Ao vivo no estúdio são discos novíssimos, embora estes conceitos estejam cada vez mais dissolvidos, em tempos de produção musical cada vez mais efêmera, onde tua música não se insere, obviamente, dado o apuro, a preocupação, o cuidado com cada detalhe. Teu blogue homenageia na definição Zico, Kusturika, Oscar Wilde e Waldick Soriano. Tarantino, Marley, Lennon, Bowie, Morris Albert, Bob Dylan, Joan Baez são outras personalidades que passeiam pelas letras de Eu não sei sofrer em inglês. Gostaria de citar outras influências e referências? Sim, eu citei algumas referências contemporâneas porque, atualmente, é o que tenho ouvido com mais frequência. Mas minha memória afetiva, inelutavelmente, me remete a Chico Buarque, Gilberto Gil, Geraldo Azevedo, Gonzaguinha, Amelinha, Egberto Gismonti, que era o que meu pai ouvia quando eu era criança. Minha casa sempre foi muito festiva e musical, e se consumia, fundamentalmente, música brasileira. Além disso, havia a casa da minha avó, em Teresina, onde passava as minhas férias ouvindo o violão dos meus tios, sobretudo o do meu tio Naeno. A minha maneira de tocar, meu dedilhado, advém dele. É um artista maravilhoso. Quando citei o Zeca como responsável por me tornar compositor foi, além de todo o entusiasmo e impacto que sua música causou em mim, ele ter provado que um artista saído dali, da cidade em que eu vivia, podia, sim, ser bem sucedido, construir uma carreira além muros. Mas, com relação estritamente à herança musical, o meu maior credor, provavelmente, é o Naeno. Um dos meus grandes desejos é, um dia, gravar um álbum só com suas canções.

Se teu primeiro álbum não tinha pretensões, podemos dizer que este segundo te consolida como cantor e compositor, além dos planos e sonhos para o futuro: um disco infantil, outro com canções de Naeno, de quem tu herdas também uma doce melancolia. Em que momento, antes do primeiro disco, tu te sentiste artista? E quando, talvez na feitura do segundo, tu pensaste em fazer deste o teu principal ofício? Na verdade, esta sempre foi uma questão pra mim. Antes do primeiro disco eu nunca me senti, de fato, artista. Não percebia em mim a necessidade de dialogar com as pessoas através da música, nunca tive um fascínio especial pelo palco ou encantamento pela carreira artística. Tanto que as canções que fazia ficavam restritas ao ambiente familiar e, não fosse a iniciativa dos meus pais e irmãos, talvez repousassem lá ainda hoje. Mas, para citar um momento importante, lembro de quando ouvi pela primeira vez a gravação de Já me basta, feita pela Cecília Leite. Ali percebi que eu tinha uma voz e que ela poderia encontrar eco em algumas pessoas. Foi, talvez, a minha primeira afirmação enquanto compositor.

Outros nomes que já te gravaram são Lena Machado e Cláudio Lima. O último, com quem já dividiste o palco em shows, assina o projeto gráfico de teu novo disco. Em tempos em que é possível baixar discos em qualquer esquina virtual, informação e um bom projeto gráfico são, a meu ver, fundamentais. O disco, além de aos ouvidos, precisa agradar aos olhos. Como foi dialogar com Cláudio Lima neste sentido, de dar a cara a Eu não sei sofrer em inglês? Trabalhar com Claudio é sempre um privilégio, é um dos artistas mais sensíveis que eu conheço. A arte gráfica é apenas uma de suas facetas. A de cantor, mais conhecida, dispensa comentários – é um dos melhores do país – mas, além disso, ele escreve, compõe e anda de monociclo [risos]. É de um perfeccionismo comovente, tende a ruminar muito antes de apresentar qualquer trabalho e eu compreendo isso muito bem. Já foi uma delícia poder dividir o show Hein – que fizemos em São Luís em 2008 – e ainda iremos gravar um disco juntos.

Dá para culpá-lo um pouquinho pela demora do Eu não sei sofrer em inglês? Brincadeira [risos]. E aqui o Vias de Fato, novamente, apresenta em primeira mão outro projeto de Bruno Batista: um disco com Cláudio Lima. Ficando no disco novo, vamos ao repertório: por quê abri-lo com regravações de Já me basta e Acontecesse, músicas de teu disco de estreia, a primeira agora ganhando uma levada bumba meu boi, ainda que deixando a tradição de lado, a segunda com participação especial de Zeca Baleiro? [Risos]. Dá sim, ele também tem culpa nisso. Quando fomos selecionar o repertório, acabei apresentando 18 canções para os produtores que iriam comandar o processo. Entre elas, Acontecesse e Já me basta. Pensei: “Já que estou encarando este como meu primeiro trabalho, por que não mostrar tudo o que tenho?”. Eles acabaram escolhendo as duas e, num primeiro momento, eu hesitei. Mas depois veio a possibilidade da participação do Zeca, a gravação de Já me basta foi um dos momentos altos daquele processo, passei a me entusiasmar com os novos arranjos. No fim, elas iriam abrir o disco numa, digamos, coincidência intencional.

Encarar Eu não sei sofrer em inglês como primeiro trabalho não significa renegar Bruno Batista, o disco de estreia, ou significa? E seguindo no faixa-a-faixa: e a faixa-título, soma de referências em música de ninar gente grande? Não, não. Tem a ver, apenas, com a tal despretensão que já mencionei. A faixa-título foi composta na bacia das almas, praticamente dentro da cabine de gravação. Ia gravando os takes e alterando a letra [risos]. Mas tinha tido a ideia uns dois anos antes e sabia que seria o título do disco. Tem uma candura na própria melodia que acabou contaminando o arranjo. Mas gostei da tua definição “música pra ninar gente grande”. Talvez seja isso mesmo, muito embora eu já recebido alguns e-mails do tipo “Bruno, meu filho, sempre que entra no carro, pede pra colocar aquela música do sofrer em inglês”.

A faixa seguinte, Tarantino, meu amor é uma desbragada declaração de amor ao ator, diretor e roteirista, certamente outra referência, um tango, digamos, impuro… Sim. Na verdade, antes de uma declaração de amor, é uma alegoria, uma sacanagem. Acho que tem a ver com ele. É um diretor que eu gosto muito e, na canção, trato de alguns temas que são caros a ele, como a personagem feminina, alguma violência e humor. Ele tem um humor sádico incrível. Originalmente tratava-se de um xote, que era pra dar uma coisa mais louca na canção – um sujeito tão cosmopolita como o Tarantino ser tratado num xote e chamado de “quentín”. Mas o arranjo tomou outro caminho com a banda e acabou, sim, transformando-se num quase tango. Quase.

Depois vem Vaidade, samba-choro modernoso de letra belíssima, com a participação de Rubi, uma das mais belas vozes do Brasil… Sim. A melodia deste samba foi composta em Recife há alguns anos. Lembrei dele quando estávamos selecionando o repertório e fechei a letra. De cara, sabíamos que ela seria uma faixa que teria participação especial, mas faltava definir quem convidar. Foi o Gui Kastrup quem sugeriu o Rubi e eu pirei na ideia. A gravação foi muito especial, o Rubi interpretou magistralmente e, ao final, sem que nos déssemos conta, estávamos todos chorando. Lindo e inesquecível.

Sobre anjos e arraias te devolve ao Nordeste, entre o Pernambuco de nascença e o Maranhão e Piauí da infância e adolescência… Sim, acho que é a faixa mais “nordestina” do disco. A influência pernambucana é mais consciente que atávica, uma vez que não lembro da minha vivência no Recife. Mas ouvi muito Chico Science e toda a geração do mangue beat. Tem o lance do acordeom, a percussão que assume o papel do baixo. Curioso é que essa canção foi criada para ter um único acorde, queria que ela soasse renitente, como um filho que não larga as saias da mãe. O arranjo final amenizou um pouco isso, o que, no fim das contas, acabou me deixando contente.

Quem é a Bonita? Na verdade, Bonita não foi feita especificamente pra ninguém. Partiu de uma imagem, do verso “Que te fez, Bonita!”. Depois, fui delineando a letra.

E Hilda Regina? Hilda Regina já foi inspirada numa amiga que adorava viajar, era castrista e fascinada por música cubana. Por isso, fiz uma salsa em que a personagem passeia pelo mundo.

Para um amor em Paris evoca dois compositores: Paulinho da Viola, por seu Para um amor em Recife e Zeca Baleiro, pela mistura de línguas da letra, o que já ocorria em Hilda Regina Sim, O título de Para um amor em Paris é uma alusão clara á obra-prima de Paulinho da Viola, uma de minhas preferidas da sua obra. Já o uso dos estrangeirismos tem ligação, sobretudo, com os poetas brasileiros modernos, como Jorge de Lima, que se valiam muito desse recurso.

Em Nossa paz, a participação especial de Tulipa Ruiz, personagem de um novo momento da música brasileira que merece ser descoberta por mais e mais gente, tal qual Bruno Batista, que devagarinho vai conquistando seu espaço… A Tulipa é, definitivamente, um novo momento na música do Brasil. Acho que há tempos não aparecia alguém com uma personalidade artística tão singular. E com tanto carisma também. Nossa paz é uma canção terna, cotidiana, que foi composta com essa intenção mesmo. Acho que acabou tendo uma boa aceitação porque muita gente se identifica com aquele sentimento.

E a mulher a quem você aconselha em Lia, não vá? É uma música otimista, esperançosa que, ao suceder Nossa Paz, cria certo momento de aconchego dentro do disco. A Lia, especificamente, não existe, mas talvez tenha inspirada numa antiga namorada que passou por um momento difícil.

E fechando o disco a densa e bela As cigarras As cigarras é meio tropicalista, rápida, esquizofrênica. É o único rock do disco e, por isso, foi até difícil encaixá-la. Quase não entra. Mas acho que ela, também por isso, acaba fechando bem os trabalhos.

Todas as músicas são assinadas por ti, o que também aconteceu no primeiro disco. Compor sozinho é uma opção? Acho que por muito tempo foi uma opção, sim, porque é mais fácil. Não há embate de ideias ou propostas. Mas, com o tempo, você acaba se tornando refém de si mesmo e ter parceiros que possam te desamarrar parece ser o melhor caminho. Tanto que já tenho algumas parcerias com o Chico Salem, Djalma Lúcio e, no próximo álbum, quero explorar bastante essas novas influências.

[Vias de Fato, maio/2011]