O punk lírico Marcos Magah, um autobiógrafo musical

[Vias de Fato, agosto/2013]

Marcos Magah prepara O homem que virou circo, sucessor de Z de vingança, a bem sucedida estreia, discos de uma trilogia sobre mágoa, solidão e morte. Autobiógrafo musical, o punk lírico conversou com o Vias de Fato, vindo diretamente de uma sessão de gravação.

TEXTO E ENTREVISTA: IGOR DE SOUSA E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: ZEMA RIBEIRO

Los Perros Borrachos já haviam pedido a conta e estavam prestes a ir embora, quando o cantor e compositor Marcos Magah, mais de uma hora de atraso, adentrou o Cafofo da Tia Dica, aconchegante boteco por detrás da Livraria Poeme-se, na Praia Grande. Chegou desculpando-se: estava no Paranã, em uma sessão de gravação de seu novo disco, O homem que virou circo. “Todo mundo só fala desse negócio de Praia Grande. Ninguém cita o Paranã. O Paranã é um bairro importante, cara”, protestou. A conta foi reaberta.

Magah quer armar o circo, digo, lançar o disco, até o fim do ano. Trata-se do aguardado sucessor da estreia Z de vingança, que chegou ao mercado no fim de 2012 e rapidamente esgotou a tiragem inicial, de 700 cópias. Uma nova fornada foi providenciada e tem saído bem, nas melhores casas do ramo e nas não poucas apresentações que o músico tem feito em palcos diversos na capital maranhense [nota do blogue: a mais recente, domingo passado, 18, no Sebo no Chão, no Cohatrac].

O processo só foi possível graças a um produtor de Manaus, que se deslocou até São Luís com todo o equipamento de gravação – as sessões duraram oito dias, na casa do músico –, e ao escritor Bruno Azevêdo, que, maravilhado com o som punk rock bregadélico do artista, resolveu assinar o projeto gráfico e bancar a prensagem do disco, lançado por seu selo Pitomba.

“Primeiro disco, até onde eu saiba, a não recalcar o elemento do brega local como parte da música que ajuda a definir o lugar, que não faz brega involuntário. Magah raciocina através do brega, saca de rock e escreve pra caralho! O resultado é um disco poderoso, tristíssimo e de peito aberto”, classificou Bruno Azevêdo ao justificar seu voto em Z de Vingança, o único que Magah levaria na lista dos 12 discos mais lembrados da música do Maranhão, publicada no Vias de Fato de abril/maio.

Aos 42 anos, ludovicense, o autor de Viagem ao centro da queda é um “homem lúcido e perigoso” “fazendo rocks duros e pensando em Dolores Duran”, para tentarmos explicar o homem através de sua própria obra. Autobiográfico, Magah é punk e lírico. Integrou a banda Amnésia, que ajudou a consolidar uma cena punk em São Luís, na segunda metade da década de 1980. Não nega influências que vão dos Rolling Stones a Pinduca, passando por Cólera, Ratos de Porão, Richard Hell e Voidoids. E é capaz de fazer música sobre os olhos de uma camelô que “vende bugigangas no centro da cidade”.

Vias de Fato – Como está o processo de gravação do disco novo. E você pretende lançá-lo quando?
Marcos Magah – Rapaz, eu queria lançar no final do ano, está indo bem devagarzinho, com cuidado. Eu acho que essas são as melhores músicas que eu já fiz, então eu estou sendo cuidadoso. O Z eu gravei dentro de oito dias. A gente trabalhava de oito horas da manhã até às três da madrugada, saca? A gente comia em cima dos equipamentos. Era um negócio assim porque o produtor só tinha 10 dias para passar aqui. Ele veio de Manaus. O jeito que eu gosto de trabalhar é assim. Esse jeito que eu estou trabalhando agora eu não gosto. É tudo muito moroso. Eu não tenho esse pique da morosidade, eu sou um cara agoniado demais [risos].

O que você considera mais relevante para a produção do teu som? O que é que você ouve e que faz a tua cabeça? Rapaz, eu mesmo na época do punk, sempre escutei esse negócio da música brega. Odair José, por exemplo, hoje é muito badalado, mas naquela época gostar de Odair José era quase uma ofensa. Precisa entender também o que era o movimento punk naquela época, para as pessoas que não viveram aquela época, porque o movimento mudou tanto desses vinte anos pra cá, que eu falo algumas coisas e ninguém entende. Esses dias eu estava comentando com um cara que em 1985, 86 eu tinha 13 anos e você pegava um ônibus com aquele pessoal, aquela coisa punk e as pessoas… o ônibus ia lotado e as pessoas ficavam em pé, mas o banco do teu lado ninguém sentava. É uma coisa assim, parecia que tinha uma baba em cima de ti, sabe? Era um negócio desgranhento, não tinha MTV, essas revistas sobre rock, não tinha nada disso. Então, a Amnésia [banda em que Magah tocou e ajudou a consolidar a cena punk ludovicense], pra tu entender, surgiu num terreno limpinho, não existia banda de hardcore, por exemplo. As influências que a gente tinha era Dead Kennedys, Exploited, Cólera, Ratos de Porão. A gente passava o dia ouvindo música, era uma loucura, uma paixão maluca, era uma doença.

A gente quem? Eu, Carlos Pança, Carlos Amaral, que hoje mora em Salvador, que era o baterista do Amnésia, era uma pequena turma. E o Cohatrac tinha uma pequena turma do punk. Essas influências, por exemplo, eu vejo até hoje no meu som. Na forma do Redson, do Cólera, de tocar guitarra. É uma coisa que eu trago até hoje comigo. Inclusive coisas de palco, aquela coisa “eu vou morrer hoje aqui, cara!” [risos]. Mas sem aquela coisa dramática, tu tá entendendo?

Você tocando guitarra lembra muito o Keith Richards [guitarrista dos Rolling Stones]. Ah, tem muito de Stones, sempre teve. Tem uma coisa do Stones que não é uma coisa deliberada, “ah, eu vou imitar”. Mas de tanto ver, de tanto escutar, é uma coisa que peguei do Keith Richards por osmose de tanto ouvir. Foi essa coisa do jeito de corpo, sabe? Aquele negócio que ele bate a guitarra e meio que solta, como quem diz “eu não tenho nada a ver com esse crime” [risos], “não fui eu que atirei nesse cara” [risos]. Essa coisa assim, meio interpretativa, cara, eu trouxe. Tem um negócio maluco que no meio do punk eu sempre fui um cara meio esquizóide. Nunca fui um cara muito bem aceito. Porque, por exemplo, naquela época eu adorava discos de Pinduca [cantor paraense, maior expressão do carimbó], eu tinha, era meio maluco. Então, ontem eu tava conversando com um cara e ficava “pô, eu preciso voltar a escutar Pinduca”, tem um clássico dele, “vou tomar banho de cheiro, pra ficar cheirosinho pra Iaiá” [cantarolando]. Aí tinha aquela guitarra [imita o som da guitarra]. Até hoje tem esse negócio dessas palhetadas. Eu tenho uma música chamada Levada do despejo que se tu olhar a guitarra é Pinduca. Agora o jeito é tosco, é punk mesmo [risos].

A Amnésia não deixou registro? Foi até que ano? A Amnésia lançou demos que ficaram assim… até as pessoas esquecerem. A Amnésia foi uma banda muito popular, cara. Não só dentro de São Luís, mas no nordeste inteiro. Brasília, por exemplo, a gente vendia demo adoidado. Durou de 87 a 2002. Durante esse tempo a gente tinha uma popularidade enorme, de ir para outra cidade e parecer que [os fãs] iam virar o carro. Quando a gente saía da cidade jogavam camisas pela janela do ônibus. E a galera correndo atrás e continuavam a jogar camisa. Aqui em São Luís se for procurar pelas pessoas que viram e acompanharam esse processo, o público tinha uma adoração absurda, a tal ponto que as bandas de abertura tinham um público de 600 pessoas. Se eu tivesse o público da Amnésia… Eu fiz um péssimo negócio, cara! Entendeu? Em lançar o Z de vingança e abandonar o Amnésia. Se eu fosse um cara com o mínimo de visão, eu deveria continuar tocando aquela porcaria daquele som velho. Mas como eu sou um cara corajoso…

Mas o Amnésia acabou por causa da sua carreira solo? Não. Acabou, porque, cara, banda de rock tem uma hora que… o cara com 17 anos fazendo um underground bravo, acaba com qualquer pessoa. Viajar em ônibus, em pé duro, fazer circuito pesado, tocar aqui em São Luís, como a gente tocou, saca? E aquelas outras coisas, muito álcool, muita droga. Tem uma hora que neguinho pira! Fica meio doido, tá entendendo? Cansa. Já tinha integrante vendendo instrumento pra comprar disco. Daí não dá! Não dá! Chega um momento que não dá! E como eu sou obcecado, se a gente tiver uma banda junto, eu vou te enlouquecer, porque eu vou querer que tu trabalhe o mesmo tanto que eu trabalho. E os outros caras não tinham o mesmo foco que eu tinha. E aquilo, cara, é uma frustração terrível. Tanto que eu não sinto saudade dessa época. Eu sofri pra porra, porque eu queria que as coisas andassem. É o tipo daquela coisa de moleque, a coisa não parou, eu fui dando seguimento àquilo ali. Por mim, a banda não teria durado tanto assim. Apesar de ser uma das pessoas que a carregou nas costas.

E nesses 10 anos entre o fim da Amnésia e o Z de vingança, o que você fez? Eu fiquei de bobeira por um tempo, bebendo muito. Frustrado, pelo final do casamento. Depois, eu me aborreci de vez e fui para o interior. Nesse intervalo eu morei duas vezes no interior. Morei em São Mateus e Pedreiras. E passei tempo em outras cidades, como Santa Inês, por exemplo.

E o que você foi fazer nessas cidades? Eu fui trabalhar. Fui trabalhar num depósito de madeira, onde eu peguei a manha de vender madeira. E depois em serraria. Fazer porta, janela, lixar porta. Sempre fiz uns trabalhos meio malucos, uns trabalhos de estivador, carregando caminhão. Em Pedreiras eu montei um lance com computador, fazia uns trampos. E eu, como sempre gostei muito de ler, adaptei muita monografia. Acho que isso dá até cadeia, né? Mas eu me formei, mais ou menos, em umas cinco, seis áreas [risos]. Era isso que eu fazia. E paralelamente a isso, eu fiquei tocando em bandas de brega, saca? Tinha umas bandinhas de brega por lá, eu me inseria e ia tocar com os caras, foi onde eu aprendi muito.

Sempre guitarra? Sempre guitarra. Sempre mal tocada.

Magah, você tem formação acadêmica? [Espantado] Eu? Não, cara! Eu tenho paixão por livros. Todo mundo me pergunta, quando a gente começa a conversar sobre literatura, “mas tu te formaste em quê?”. Eu não me formei em nada. Eu sou estivador. Tá entendendo? [risos]

Se você fosse dizer que tem outra profissão além de músico. Eu diria que tenho um carinho pela estiva. Eu gosto de trabalhos braçais. Eu gosto de fazer força.

E esse carinho por livros, você mantém uma biblioteca em casa? Eu tive uma época em que eu pirei completamente, falo isso até em Dedos e anéis [faixa de abertura de Z de vingança]. Lembrando que todas as minhas músicas são reais. Tinha uma época que eu tinha uma biblioteca grande e ela foi se espalhando por vários locais. Grande não, razoável. Grande quem deve ter é Sarney. Sarney deve ter uma biblioteca grande. Mas esses livros foram se espalhando. Eu ainda tenho coisa como John Fante, por exemplo, que eu não deixo, não largo. Tem umas coisas como Émile Zola, que neguinho acha chato, Germinal, por exemplo, que acho interessante. Os livros do coração eu mantenho até hoje. Mas tem coisa que dei. Eu sou um cara muito roubado até hoje. Acabaram de me roubar o [dvd] No direction home, do Bob Dylan. Eu não tenho muito apego a essas coisas. Quem não tem apego nesse mundo, se fode. É o mundo do material, do tátil. E se você não se apega, as pessoas te roubam.

Você não trouxe nadinha aí, não? [risosTá querendo me roubar, sacana? [risos] E eu acabo perdendo também. Tem a coisa também de andar muito. Eu moro numa cidade, moro um tempo numa casa, aí saio daquela casa. Na época em que fui morar em Santa Inês, eu trabalhava numa serraria e morava num quartinho dos fundos, cortando tábua. Nessa época eu fiquei com roupa, guitarra e livro. Não tinha como. Muita coisa ia se perdendo. Tu não tem onde guardar.

Dá pra dizer se houve alguma fase da tua vida que você viveu de música? Rapaz, eu sempre vivi pra música.

Mas nunca viveu da música? Hoje eu vivo disso. Eu até estava tendo uma discussão com um cara: que não existe, na minha cabeça, um mercado de música no Maranhão. Existem caras que se grudam na aba do Estado e conseguem viver desses projetos. Esses caras vivem de brechas que o Estado dá pra eles, de amizades. Mas, se eles fossem largar o Estado e tentar viver de música, talvez não vivessem. Vivem de concessões fraternais e generosas. Mas, assim, não existe um trabalho como o meu… viver de música é um ato muito louco. De heroísmo, de paixão. Porque eu produzo um show aqui, faço um show acolá, é assim que eu vivo. Produzo não sei o quê… o cara me dá, tipo, R$ 2.500,00. Eu pego essa grana, vivo muito humildemente assim. E me viro. O que me propus a fazer bem feito e que eu tento fazer 24 horas. Eu me propus a viver disso e segurar as consequências, mas não é fácil. Eu acho que a gente está tentando dar um norte para uma galera que tá vindo aí. Porque, pra mim, a galera que vai fazer a música maranhense bacana tá por aí. Eu escutei o disco da Nathália Ferro, eu adorei o disco dela. Eu gosto da menina, da Acsa Serafim, muito bacana o trabalho dela. Então, a gente está tentando dar um norte pra essa galera. Tem que ter algum louco, lunático que diga é possível a gente fazer esse caminho dessa maneira. Mas tem que ter entrega e coragem, porque senão não faz.

Você acha que a música brasileira e a música maranhense, em particular, padecem hoje de originalidade? Eu acho que a música mundial está passando por uma crise de originalidade. Quando eu falo que sempre volto pras antigas é por causa disso. Me parece sempre muito parecido, copiado, “eu quero ser um Neil Young”. Eu, particularmente, não quero ser ninguém. Agora, eu acho que aqui em São Luís, as pessoas que eu fico vendo que fizeram um trabalho, esse menino, por exemplo, o Phill Veras, eu o considero realmente um menino com um talento maravilhoso, mas ele, a meu ver, padece dessa coisa.

A los-hermanização. Exato! Eu acho que o Los Hermanos já faz o seu trabalho muito bem feito, são os caras mais indicados para fazer a música dos Los Hermanos. Eu, Magah velho aqui, acho que tenho que descobrir o meu jeito e escutar meu som interior. Se eu for fazer igual a eles, eu vou fracassar, porque não é real. Aí o cara diz assim, o cara não fracassou, porque ele está em São Paulo e indo bem. Quando eu falo fracassar não é mercadologicamente, tá entendendo? É artisticamente. Esse é que é o problema, porque às vezes você… há brechas para o copia e cola, tanto é que eles é quem povoam e poluem por aí, nas rádios e nas TVs. Mas quando você vai embora desse planetinha é sua honra que você vai deixar. Esses dias eu estava conversando com um amigo meu sobre a Rita Lee. Pô, Rita Lee passou os anos 80 até pouco tempo só fazendo disco porcaria, cara. Agora Rita Lee tá indo embora. Eu acredito que um artista dessa ordem diz assim: “pô, eu bem que podia ter tido um pouco mais de coragem e ter lançado um puta disco, com a bagagem que eu tenho”. Eu acho que tem um pouco disso. Quando eu for embora, o que vai ficar aqui é a obra. É a única vaidade que eu tenho. No dia que eu for embora daqui, a única coisa que eu quero que fique é a minha obra. Os homens vão, mas as obras ficam.

Você considera a sua obra original? Eu não tenho o direito de dizer isso, cara. Não sou eu que tenho que dizer isso. Isso quem diz são as pessoas. Ou não. Dizem que é uma porcaria. Mas também não me importa, não.

Mas a pergunta é no sentido crítico mesmo. Quando você fala que fulano está fazendo uma música que é copia de Neil Young ou Los Hermanos, eu sei que não está apontando o dedo na cara de ninguém. Estou fazendo a pergunta no sentido de uma autocrítica mesmo: como tu percebe a tua obra? Eu acho que, na verdade, esse disco, estou muito ansioso para terminar de gravá-lo e lançá-lo, O homem que virou circo, porque eu ainda nem arranhei o que quero fazer. Ainda não dei o primeiro arranhão na superfície. Mas eu acho esse trabalho um trabalho de referências. Se você, por exemplo, escutar os teclados e escutar o cd de Jerry Adriani, você vai identificar os teclados, com umas guitarrinhas fuleiras que são muito parecidas com os do primeiro disco do Camisa de Vênus, o baixo típico do brega dos anos 70. Eu acho que eu usei as referências que eu tinha, que eu queria dar. Mas é preciso entender que meu trabalho é um trabalho com conceitos. Eu não faço assim: componho um monte de músicas, acho elas legais, vou e gravo. Não. Eu tenho um conceito. Eu quero trabalhar o tema da solidão. Eu vou desenvolver em cima desse conceito. Aí eu vou desenvolver uma sonoridade que também seja cabível com esse tema. Eu tenho uma trilogia: mágoa, solidão e morte. É um tema alegre, não? [risos] A trilogia dO homem que virou circo é isso: o Z é sobre mágoa, O homem que virou circo é sobre solidão e o MIF – cemitério dos cachorros é sobre morte. Eu trabalho assim. Eu tava numa fase meio braba da minha vida, e me propus a fazer três discos para não enlouquecer e resolvi dividir os temas. Peguei o Z, e comecei a escrever músicas só sobre mágoa, sobre a possibilidade de sair dali. Às vezes eu brinco que o Z é um manual de práticas de fuga, como fugir, como se livrar de uma mágoa violenta. Um manual de mágoa e fuga. Aí eu comecei a escrever músicas que só tinham a ver com esse tema. Pra isso eu desenvolvi um personagem que no Z é um homem lúcido e perigoso, nO homem que virou circo é o próprio, e no MIF também. É o mesmo personagem, só que em cada disco ele vai tendo um nome, agregando novos valores e a personalidade dele meio que vai se transformando nesse processo todo. Até a onda da morte.


Vingança com Z. Por que Z de VingançaEu sou apaixonado por essa letra, bicho. E é um trocadilho gostoso, pra deixar no ar. Porque se eu dissesse V de Vingança, pô, tem filme. E todo mundo sabe que vingança se escreve com V. Um dia eu acordei, morava eu e meu baterista aqui na [rua] Jansen Müller, levantei, sem molecagem nenhuma, e esse título me veio à cabeça. Antes de eu começar a escrever o Z. Eu passava o dia todinho falando isso, Z de Vingança. Porque eu tinha um negócio com o Z. Porque eu falava assim “esses caras me estreparam, mas vai ter a volta do Zorro”. E aí eu comecei com essa onda de a volta do Zorro e o Z do Zorro sempre me acompanhando. Aí eu montei um estudiozinho chamado A Volta do Zorro e fiquei com essa coisa do Z, do Z, até que pipocou. E eu sou um cara vingativo pra porra. Dentre outras qualidades nobres, a vingança [risos]. Eu achei bacana assim, me veio, pá, abracei!

Como foi o processo de financiamento do Z de Vingança? Normalmente se mascara esse lado da música. Ele custou 65 centavos. Porque eu pensei primeiro. [Fala como se se dirigisse diretamente aos leitores do Vias de Fato e não aos repórteres:] Vocês que têm raiva de mim, eu estou desinflacionando o mercado da música no Maranhão [risos]. Foram dois pães que eu comprei com o próprio corpo. Então, se você não gosta de mim, se manque, porque eu estou transformando o mercado da música no Maranhão. Sabe por que 65 centavos? Porque eu enviei as músicas pro cara e ele ficou alucinado e se tocou de Manaus pra cá. Nós gravamos em oito dias, mixamos em um e masterizamos em outro. Ele me entregou e foi embora. Saca? Super feliz! Não me cobrou nada. O cara cobrava cinco mil reais num estúdio onde ele morava lá. O cara se tocou de lá pra cá. Então, quer dizer, eu só posso acreditar no que eu faço. Tá entendendo? Porque para eu convencer um cara com umas músicas gravadas fuleiramente num computadorzinho e esse cara se tocar de lá pra cá, meu brother, chegar e dizer “vamos!”, e pegar o equipamento dele, bancar passagem de avião ida e volta, ficar na minha casinha velha e dizer “vamos montar a porra desse disco” e “isso aqui vale ser registrado. O que tu vai fazer com isso, eu não sei. Mas, eu quero gravar isso aí”. E aí, em vez de eu ir até Manaus, Manaus veio até mim.

Eu me lembro do Bruno [Azevêdo] falar muito entusiasmadamente do disco. “Rapaz, tu tem que ouvir isso aqui”. E que era uma coisa nova na música do Maranhão. Qual foi o papel de Bruno nesse processo? Qual foi a importância? Porra! Toda. Total. Porque eu não conhecia Bruno, nem sabia quem era ele. Quer dizer, já o tinha vista algumas vezes pela rua. Sabia de uma banda em que ele tocava. Mas ter visto assim, como estamos aqui, eu o via passando na rua. Uma vez um cara falou “ó, aquele é o baixista da Catarina Mina [banda de que Bruno Azevêdo foi baixista, com Djalma Lúcio (voz e violão) e Eduardo Patrício (bateria)]”. Não sabia quem era o cara. Pablo [Habibe, guitarrista, editor da revista Bezouro] uma vez chegou na minha casa… pra tu ver, por isso que tem aquela frase em Caixa de Pandora [faixa de Z de vingança], “o que eu sinto é o que eu mais sei”. Eu sou um cara que acredito na minha intuição, porque se eu negar a minha intuição, velho, eu tou fodido. Um belo dia eu estava em casa sozinho andando alucinadamente de um lado pro outro. Já estava com esse CD gravado, pensando “o que eu vou fazer com isso?” Bateu na minha porta o senhor Pablo Habibe, que eu não conhecia… não conhecia ninguém! Eu sou um ermitão. Fico trancado em casa. Não saio de casa pra nada. Só saio à noite para ir ao Chico [Discos, bar], porque nós já somos amigos seculares. Você não vai me ver em noite, em festa. Eu não vou pra essas coisas. Eu sou um cara caseiro. Passo o tempo todo em casa. Eu sou chato. Só. Eu gosto de viver só. Bateram na minha porta, Pablo Habibe, Acsa Serafim e Fábio Pereira, que hoje está substituindo o Pablo, que quebrou o braço. E falaram “e aí, o Ryan tá aí?”, meu baterista estava morando comigo e tava fazendo bateria pra eles. Aí eles entraram lá em casa e eu falei assim, “cara eu tenho um disco. Vocês são músicos?” Porque a solidão tem uma hora que ela enche o saco, você precisa falar com alguém. Tem um limite. Tu passa três, quatro, cinco dias trancado em casa, mas tem uma hora que tu pega uma sacola da Vivo e começa a conversar com ela [risos]. Eu mostrei o disco pra eles. Porra, o Paulo ficou “éééguas”. Ele e o Fábio ficaram alucinados. Aí ele começou, “porra, rapaz, que diabo é isso?” Eu lavando louça e a gente conversando. O Pablo levou o disco, “tem um cara que precisa escutar isso aqui: Bruno Azevêdo”, eu não sabia quem era. Levou. Fiquei preocupado. Quando eu vi estava correndo atrás, “vamos lançar, vamos lançar!”, começou a jogar na internet, ficou mais empolgado do que eu. Fiquei surpreso, o disco começou a vender e gente dizendo “legal”. Pra mim era um disco muito a cara de [rádio] AM, um toque de experimentalismo. O Bruno é responsável por tudo, eu chamo ele de meu patrão, ele fica puto quando eu digo isso [risos]. A Pitomba bancou, eles acreditam em mim. Eu sou um cara feliz, sem nenhum tostão no bolso [risos].

Uma vez, conversando com Bruno, ele disse que não teria lançado O Monstro Souza [Pitomba, 2010] se não tivesse o investimento do Souza [proprietário da barraca de cachorro quente mais famosa de São Luís, que inspirou o livro de Bruno], que deu uma grana e ele pode imprimir o livro. Z de Vingança não existiria sem Bruno. Quem Marcos Magah financiaria se tivesse grana? Eu financiaria o disco do Tiago Máci. Pra mim, esse cara é um dos melhores que já pintou de música em todos os tempos aqui. É um compositor de calibre pesado. De todo coração: um dia eu vou produzir o disco do Tiago Máci. Eu quero fazer. Eu acho muito bom, cara. Ele me lembra um pouco o [compositor] Cesar Teixeira, um gênio. Às vezes eu o olhava com fascínio, apesar de ele [Cesar] não ter nenhuma influência na minha música. Que às vezes tem aquela coisa que você olha para o cara e ele não tem nenhuma influência na tua música, mas que tu admira ele pra cacete.

Eu li em algum lugar que você está produzindo o novo cd de Claúdio Lima. Eu estou fazendo uma pré-produção do disco dele. Na verdade ele quer produzir com um cara de Londres. Ele me chamou para acrescentar esse lance que ele viu no Z e gostou muito, aqueles efeitos que tem de psicodelia e aquela guitarrinha fuleira. Cláudio é muito doido! O primeiro cd dele é genial, ainda bem que entrou lá [na lista do Vias de Fato], eu me senti vingado.

E qual seria a tua lista? Pô, mas tu tá me sacaneando! Eu não sou homem de lista! [risos]. O que eu posso te dizer é que entraram coisas ali que me… pô, olhar ali Nonato e seu conjunto [O som e o balanço, 1975], o próprio disco do Claudio [Claudio Lima, 2002], o Bandeira de Aço [de Papete, 1978] eu sabia de ia dar, pá, pá, pá, na cara de todo mundo. Mas, agora, por exemplo, tiveram coisas que não entraram e poxa…o segundo disco de Raimundo Soldado [Raimundo Soldado, 1981] tinha que aparecer [risos]. Mas tudo bem. Raimundo Soldado perdoa todos vocês! Vocês estão salvos.

Nem com o Z de Vingança nem no Amnésia você tocou em evento público bancado pelo Estado? Com a Amnésia eu fiz coisas muito esdruxulas. Em 1989, todo mundo era anarquista e os caras do Amnésia tinham uma tendência meio marxista. E eu nunca fui um cara muito ligado nessa coisa, sabe? Aí a gente tocou em 1989, no Comício do Lula, aqui na Praça Deodoro, pra umas 12 mil pessoas. Eu acho que poucos sabem disso. Falam muito bem da Amnésia. Ninguém fala mal. Parece que quando a gente morre ninguém fala mal. Mas, eu não, nunca toquei. Eu toco em barzinho, nessas casinhas, no Chico, não chamando o Chico de casinha. Toco no Chico, no Odeon [bar recém fechado na Praia Grande], toco, sei lá, no Miguelitos [casa de comida mexicana no Vinhais]. Entendeu? É uma coisa pequena. Toco por 300 contos. Eu pretendo fazer um caminho que brinque com essa coisa do popular e tal, mas que seja o meu caminho. Eu acho que meio que todo mundo tá num caminho padrão: vou fazer não sei o quê, vou ser contratado, vou para São Paulo. Eu vou fazendo um caminho mais mambembe. E a obra vai te respaldando ao longo dos dias, porque Z de Vingança é um disco, mas isso é trabalho longo. Vou fazer outro [disco], com uma sonoridade que acredito. É a construção. Ter credibilidade perante as pessoas que gostam do meu trabalho. Eu sou franco e jogo duro, não abro mão daquilo que eu gosto. Eu acho que é isso que constrói uma carreira. Não só boas músicas, mas um caminho que o público meio que se orgulha. Que aquela meia dúzia de pessoas olhe pra ti e diga “eu respeito esse cara”. Eu admiro muito o Marcelo Nova [roqueiro baiano, vocalista e guitarrista do Camisa de Vênus], uma cara de público pequeno, mas que você respeita o cara. Eu acho que credibilidade também é importante, porque neguinho pelo sucesso tá querendo fazer qualquer coisa. Eu também não sou um ingênuo de dizer “não, eu não faço isso”. Eu não tenho esses pudores, essa coisinha da culpa cristã. “Eu sou limpinho, eu não faço, eu não me envolvo”. Se eu quiser fazer uma turnê no interior, eu utilizo os mecanismos que estão à minha disposição para poder chegar nesse público que eu quero chegar. Eu vejo a coisa beligerante, de guerrilha, eu uso as armas que eu tenho. Mas eu também não vou pegar uma lança e enfiar no meu rabo e dizer “ah, morri como herói”. Não é assim.

Mas você tocaria num evento patrocinado pelo governo do Estado, por exemplo? É uma pergunta boa, cara. Eu nunca pensei sobre isso. Eu acho isso tão improvável que nunca me passou pela cabeça. Eu não acho que o governo do Estado um dia vá me chamar para tocar num evento seu. Eu acho que o governo do Estado tem o seu time. Eu não estou nesse time. É uma situação hipotética inimaginável. Eu sou um marginal!

Você falou sobre a intuição que permeou a construção de Z de Vingança. Você acredita em Deus? Porra, quando neguinho fala em Deus é esse papo sempre muito complicado. Eu sou um homem de muita fé. Existe algo que é muito complicado. Eu creio que a gente, em termos de física, a gente não sabe de nada. A luz é a coisa mais rápida que viaja no universo, talvez seja só brincadeira de criança. Rapaz, eu não gosto de fugir de pergunta assim [risos]. A pergunta é se eu acredito em Deus. Sim. Da forma como eu o concebo. Eu acredito mais nas coisas que eu não vejo, do que nas coisas que vejo [risos].

E qual é a forma que você concebe Deus? Não sei. Acho que a gente vai cair num lugar comum. Energia. É muito difícil trabalhar com esse tipo de coisa. Eu acho que passa mais pelo campo do sentimento. O vocabulário humano é muito pobre para tentar te dizer em palavras como concebo Deus. Acho que essa é uma questão metafilosófica muito complicada. É um sentimento bom. Eu gosto de ser ingênuo.

Uma coisa que eu tendo a comparar quando te escuto é com Wander Wildner. Gosto demais. Apesar do Pablo, meu guitarrista, dizer “não deixa esse cara ser comparado contigo, aquilo é uma desgraça!” Eu adoro Wander Wildner. Inclusive eu vejo similaridades não só com a nossa música, mas no jeito de viver. Wander é assim também. Esses tempos ele largou a profissão de músico e foi trabalhar numa funilaria na Alemanha. Trabalhava durante o dia na funilaria e à noite tocava. Eu vejo similaridade no jeito de pensar, de viver, a trajetória no punk também. Wander Wildner sou eu. Eu sou Wander Wildner [risos].

Intuindo que você não se preocupe muito com isso: Marcos Magah está pronto para subir ao palco do Teatro Arthur Azevedo e receber um Prêmio Universidade, seja lá em que categoria concorrer? Eu tou pronto pra tudo. Sou um homem de combate. Não tenho medo de nada. E outra coisa, esse negócio de “ah, eu não vou”. Eu não tenho medo de sujar minha mão. Depois eu limpo no paletó do garçom que estiver passando, ou do governador, melhor ainda se ele estiver de branco. Eu não penso nessas coisas, nem passou pela minha cabeça. Eu nunca fiz música para receber prêmio. Tanto que quando eu fiz o Z ele ia ficar pra mim.

Você não se preocupa, então, com o público, quando compõe? Nem um pouco. Se eu me preocupar, eu já fracassei. Isso é conversa de perdedores. Quando eu falo fracassado não é o fracasso construído pela sociedade de consumo. É uma coisa da tua verdade. Eu faço música pensando em mim, tanto que eu sou um cara egoísta pra caralho, moro sozinho e não consigo dividir a casa com ninguém.

Marcos Magah é MPM? Eu nem sei o que diabo é isso.

Música Popular Maranhense. Eu não! Eu faço música pro mundo, para todo mundo que quiser ouvir. Eu não tenho nada a ver com isso aí.

Como você define a música que faz? Rapaz, infelizmente a gente tem trabalhar com rótulo. Eu sempre brinquei em dizer que eu primeiro fazia “magahlismo”, assim, muito pretensiosamente. A arrogância também tem o seu lado romântico, mas é uma brincadeira, lógico. Eu brinco de chamar de rock-bregadélico, que é um termo que acho legal. Essa é a definição mais próxima do que eu faço. Também não estou preocupado em ser original não, cara. Agora eu escuto um som interior, que vem de dentro de mim. Quando eu lançar O homem que virou circo, eu vou mostrar para vocês, é um disco que não tem começo e não tem fim. Sabe no cinema, que os atores ficam na frente e a trilha sonora fica atrás?! O que eu fiz com esse disco, a trilha sonora vai pra frente e o ator fica atrás. Quando a música termina, o diálogo dos atores continua. O disco nem começa e nem tem fim. Ele começa com a voz de um menino dizendo “ei, moço, por que o senhor virou circo?” Então ele não tem começo, porque o começo dele é o fim do Z e termina com uma vaia sonora, que é o que vai começar o MIF também. Esses três discos estão interligados. Aí tem um lance da literatura e do cinema também. É isso O homem que virou circo, ele não tem fim, nem começo. É muito doido esse disco. É gente falando, é gente vaiando, cadeira quebrando, copo… enquanto isso a música tá rolando.

Chorografia do Maranhão: Osmar do Trombone

[O Imparcial, 23 de junho de 2013]

Osmar do Trombone está prestes a lançar seu disco de estreia, gravado em Belo Horizonte/MG. Para o nono entrevistado da série Chorografia do Maranhão, falta apoio para a consolidação da cena choro em São Luís

Osmar do Trombone, o “pequeno gigante”

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Técnico em eletrotécnica, Osmar Ferreira Furtado enverga dois apelidos. Um, o nome artístico, Osmar do Trombone, que ganhou após escolher o instrumento de sopro para chamar de seu; o outro, “pequeno gigante”, que faz jus, primeiro por sua altura física, segundo pelo que se torna quando sopra seu instrumento.

Osmar nasceu em 1º. de junho de 1950 em uma família de músicos. Não à toa, sua composição mais conhecida, inicialmente intitulada Quatro gerações, foi rebatizada Cinco gerações depois de ele descobrir mais um avô que tocava.

Sua mãe, a grajauense Julieta Pereira Furtado, 87, sempre cantou acompanhando seu pai, José Antonio Furtado, 92, ainda hoje soprando “seu saxofonezinho de vez em quando, dentro das limitações”. Osmar não poderia fazer trocadilho com seu sobrenome, portanto não se furtou a herdar-lhes a aptidão musical.

Hoje divide o tempo que sobra de curtir a aposentadoria entre a música e a Pizzaria Lauletas (ex-Stop, Cohab). Acabou de gravar seu disco de estreia em Belo Horizonte, a capital mineira para onde viajou para visitar o filho Osmarzinho, saxofonista que o acompanhou no grupo Os Cinco Companheiros, o grupo de Osmar que toma emprestado nome de clássico de Pixinguinha.

O nono entrevistado da série Chorografia do Maranhão recebeu os chororrepórteres no restaurante que Chico Canhoto mantém – embora sem espaço para um retorno do Clube do Choro Recebe – nas imediações do Aririzal. Ele nasceu em Barro Vermelho, à época povoado de Cajari, quando a cidade ainda pertencia à Penalva. É lá que se inicia a trajetória de Osmar, abordada nesta entrevista, que se inicia justo por sua vinda para a capital.

Então se empregaria aquela frase que dá título à música de Josias [Sobrinho, compositor], você veio de Cajari pra capital? Também, né? Primeiro de Cajari pra Pindaré, e de Pindaré pra capital.

Teve escala, né? Teve escala. Em Pindaré city [risos].

Como era o universo musical, em casa, na tua cidade? Quando tu começaste a se envolver com música? Que tipos de estímulos recebia? Tu nasce no meio musical, tu já fica… [chora. Continua depois de uma longa pausa] Tu já fica contagiado. Aí papai começou a me ensinar música com oito anos de idade. Tinha a bandinha, lá tinha banda, eu fui tocar aquela trompinha, o apelido do instrumento na banda era cachorra, a cachorrinha, aquela de marcação, de contraponto, fazia “pom, pom” [imita o som do instrumento com a boca]. Todo dobrado, valsa, tudo era no contraponto. Aí eu toquei na banda, a gente viajava pra várias cidades, Penalva, Pindaré Mirim…

Tu gostavas? Ah, adorava. Sempre no meio dos músicos. Isso por muitos anos. Até 14 anos, nós morávamos em Cajari, quando papai recebeu uma proposta de Pindaré, de um amigo dele, um cara que é conhecidíssimo lá, o Chico Devora, era festeiro, aquele cara que aparecia, que só andava de linho branco, dançando, era o pé de valsa da cidade, todo elegante. Ele convidou papai. “Cajari não dá, o meio musical da cidade, vam’bora pra uma cidadezinha mais adiantada”. Aí papai disse “eu vou”. Mas quem influenciou mesmo foi mamãe: “nós temos que ir, Zé Furtado, ele está convidando, lá a gente vai…” Aí mudamos pra Pindaré em 1964. Só que em Pindaré eu fiquei só de junho a dezembro. Foi quando minha mãe fez uma carta para minha irmã que morava aqui em São Luís e disse que não queria os filhos dela lá no interior, que iam ficar só pescando, que aquilo não era vida. Mamãe já tinha uma visão de crescer, que os filhos fossem alguém na vida, que viessem pra São Luís estudar. Aí eu vim, peguei aquela lanchinha lá, tradicional, de Pindaré, passando por Cajari, Viana, fazia escala, Penalva e São Luís. Passava dois, três dias viajando. Cheguei em 64, fui morar no pensionato com minha irmã e aquela vontade de estudar na escola. Fiz exame de admissão, passei.

Em que escola? Na Escola Técnica Federal do Maranhão, na época. O sonho era tocar na banda da escola. Na época era o… o nome dele eu não recordo, mas era conhecido como o velho Dó, o maestro. Logo depois foi o João Carlos Nazaré [maestro, pai da cantora Alcione], o nosso mestre.

Além de teu pai, quais foram teus principais mestres? Quem mais te orientou na formação musical? Importante na minha formação foi João Carlos Nazaré e mestre Nonato [do grupo Nonato e Seu Conjunto]. Além de meu pai foram estes dois músicos, estes dois maestros, que me orientaram. Depois que eu saí da escola, e mesmo quando eu estava lá, já trabalhando, fui bancário, antes de ir pra Cemar [Companhia Energética do Maranhão], eu já era convidado pra tocar em vários grupos de música. Toquei na Banda Reprise, Banda O Peso, Banda Reluz, Mákina du Tempo, e outras. Nessa época não tinha a influência do choro aqui em São Luís, a não ser aqueles velhos chorões. Eu não tava no meio musical, mas já ouvia falar, [o multi-instrumentista] Zé Hemetério tocava choro, Agnaldo Sete Cordas [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 17 de março de 2013]. Quando eu já estava tocando no Barrica, aí eu encontrei [o violonista sete cordas Gordo] Elinaldo, e comecei a despertar para o choro, comecei a curtir. Peguei um vinil do grupo Chapéu de Palha, no qual [o trombonista] Zé da Velha tocava. Silvério [Pontes, trompetista], acho que tava molequinho ainda. Eles tocando sambas bonitos. Tem um chapéu na capa, acho que ainda tenho o vinil. O choro mesmo chegou pra mim depois que eu larguei o Boi Barrica, ainda toquei em alguns grupos de bumba meu boi, foi o tempo que me aposentei da Cemar, aí eu gostei mais de choro.

Nestes grupos que você citou eram tocadas mais músicas de baile, não é? Sim, músicas de baile. Mas também samba, muito samba, gafieira.

E na tua experiência anterior, ainda lá na baixada, Cajari, Pindaré? Ah, tocava muito com meu pai. Tocava sambas, maxixe, bolero, tudo na festa de meu pai. Cheguei a tocar até tuba. Quando faltava o contrabaixista, ele: “meu filho…”, ele ficava com pena. O instrumento era muito grande, eu apoiava num tijolo, nove quilos e meio.

E como é que se deu a escolha do trombone? A partir do quê você definiu que era seu instrumento? O trombone, tudo é assim: você focar. É tipo torcer por um time. É tipo o cara quando nasce e vai crescendo, o pai diz “meu filho, torce pelo Flamengo”…

Não dá certo! [risosMas só que eu torci pelo Flamengo. O filho disse; “não, eu não quero torcer pelo Fluminense, eu quero é pelo Flamengo” [o anfitrião Chico Canhoto acompanha a entrevista vestido numa camisa do tricolor carioca]. Então o instrumento, quando eu olhei uns alunos de meu avô, Antonio Cacete, Lupércio, eu achava a sonoridade muito grande. Meu pai foi um grande trombonista.

Teu pai tocou trombone? Ave Maria! O primeiro instrumento de meu pai na orquestra de meu avô foi o cavaquinho. Depois ele gostou, tocou trombone. Então meu pai era um instrumentista que quando dizia assim “faltou trompete”. Aí meu avô dizia assim: “Zeca, dá pra ti tocar trompete?” Aí ele ia lá e tocava trompete. “Dá pra ti tocar não sei o quê?”. Então ele saía tocando tudo. Tocou trompete e hoje toca sax, ainda, dentro das limitações. Aí eu comecei a ouvir a sonoridade. Quando eu cheguei na Escola Técnica, eu já tocava. O trombone de vara não era muito comum. Mandaram buscar quatro trombones de vara. Tocava eu, João Carlos Filho [filho de João Carlos Nazaré], Zé Américo [Bastos] tocava bombardino.

Você já viveu de música? Nunca! A música fazia a feira, comprava a cervejinha.

Tu estás aposentado da Cemar? Sim, aposentado da Cemar.

No trombone, quem é tua grande referência? Hoje existem grandes trombonistas, mas minha referência é o Raul de Barros. Quando eu o ouvi tocar Na Glória [de Ary dos Santos, Felipe Tedesco e Raul de Barros], eu pensei: “esse é o cara! Isto é o choro!”, aquela sonoridade linda do Raul. Hoje tem o Vittor Santos, o próprio Zé da Velha. Zé da Velha superou todo mundo, com aqueles contrapontos.

Como está o processo de gravação de teu disco? Graças a Deus terminamos. Está concluindo a mixagem. Osmarzinho [saxofonista, filho de Osmar] me ligou essa semana, minha sobrinha está fazendo a arte da capa. Tem que ter muito cuidado pra fazer a coisa. Sempre o segundo sai melhor, mas o primeiro a gente tem que dar uma caprichada pra sair legal.

É um disco solo? Solo.

Autoral? Autoral.

Todo autoral? Não, só cinco músicas.

E as demais? Uma de Antonio Vieira, O samba é bom, a de Josias é Terra de Noel, a de Joãozinho Ribeiro é Saiba, rapaz, e as duas de Cesar, eu não poderia deixar Cesar Teixeira de fora, Das cinzas à paixão e Rayban.

Todo instrumental? Todo instrumental. Eu sou suspeito pra falar, mas tá uma maravilha. Os músicos lá, não que a minha cidade não tenha grandes músicos, mas foi a oportunidade que me deram pra gravar isso, sem custos, sem patrocínio.

Sonho realizado? Sonho realizado. Tive um grande carinho dos músicos, professores da UFMG. [O trombonista] Marcos Flávio, um dos melhores do Brasil, um cara que tem referência internacional, que já tocou com [o trombonista] Raul de Sousa, com grandes músicos fora do país, gravou com uma simplicidade. Tranquilo! É professor de Osmarzinho em uma cadeira lá de chorinho. Ele me ouvia, cara. E me dizia: “Osmar, todo músico é bom naquilo que ele faz. Eu já ouvi tu tocar, tu é um talento nato”, ele falou pra mim. Não tem como não se emocionar.

Na entrevista anterior Zezé Alves [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013] comentou a felicidade de saber que tu tinhas gravado o disco em Minas. Parece que foi por acaso, já que tu foste à Minas visitar um filho, não gravar um disco. Como é que foi esse processo? Osmarzinho foi em algumas rodas de choro. Toda vez que ele ia numa roda de choro, ele dizia “papai vem aí, papai toca trombone”. Tem um dia que acontece, que dá tudo certo, aí eu viajei pra Belo Horizonte. Geralmente no Bar Mosteiro, que fica na Savassi, lá em Belo Horizonte, é o point, é o point do choro, é a elite do choro de Belo Horizonte. É só músico bom, só músico talentoso! Osmarzinho disse assim: “papai, eu vou lhe levar primeiro lá no Mosteiro, depois eu te levo no Salomão, no Pastel de Angu, no Bolão”, e eu “tudo bem”. Quando eu entrei, já com trombone e tudo, que a galera olhou, rapaz, tem um pandeirista superengraçado, fora de série, ele levantou a cabeça e disse assim “pode tirar logo, que eu já sei que é pai de Osmarzinho”. Aí eu disse pra Osmarzinho, “e se eu não tocasse? Eu tava ferrado” [risos]. Uma coisa que eu achei muito legal é que o músico que toca em roda de choro é impecável. Uma vez Silvério me falou isso: “Osmar, a música não é brincadeira. A brincadeira tá no meio da música. Mas quando você tá tocando, tem que ter responsabilidade pra tocar certo, fazer tudo pra tocar tudo certinho”. Eu fiquei maravilhado com aquilo que ele me disse. Eu fui sentir lá em Belo Horizonte a capacidade da execução dos músicos. Quando eles perguntaram que música eu ia tocar, eu perguntei qual a música eles queriam que eu tocasse. Altamente sugestivo [risos], sugesta na manha. Mas eu sabia que eu poderia dizer que tava brincando, mas disse “olha, eu vou tocar o hino do trombone”. Eles perguntaram qual era, e eu disse “olha, na minha concepção é Na Glória, é uma música que eu acho que todo chorão tem que saber tocar, e vou tocar um choro que eu compus, chamado Cinco gerações [Osmar do Trombone]”. A paixão pelo choro foi instantânea. Os amigos do choro, tem uma turma lá, que é carteirinha, toda sexta-feira, juízes, advogados, engenheiros, profissionais liberais, aquela galera, alguns que já trabalharam em São Luís, perguntando como estão as praias, “ah, estão ótimas, poluídas, mas estão boas” [risos]. Eu toquei outras músicas, vários choros.

Você listou uma série de grupos de que já participou, mas não falamos ainda de grupos de choro. O que significaram pra ti? A pessoa quando tem na alma a música, qualquer música, soando bem em seus ouvidos, você toca, gosta de tocar. O choro, eu não sei por que, já há uns anos eu me identifico mais com choro e samba, é uma linguagem fantástica, aquela malícia, aquela malandragem da melodia, aquelas armadilhas, aquelas coisas que só a música pode falar por si. Os Cinco Companheiros tem mais de oito anos, foi no bar de meu amigo Chico Canhoto que teve a repercussão de grandes grupos de choro aqui de São Luís, e a gente fica muito feliz de participar, de ter a música na vida da gente, de ter a música como um elemento da vida da gente.

Tu tens quantas composições? Gravada, escrita, tem cinco. Mas já tenho outros seis choros prontos para passar para partitura. E eu pretendo fazer o próximo cd só com músicas minhas. Essas cinco que já estão no primeiro mais essas seis novas, que já estão praticamente prontas, faltando alguns acertos de melodia, algumas notinhas que ficam o tempo todo querendo mudança.

Quanto tempo você demorou para dar o disco por pronto? Olha [pensativo]… em novembro de 2011 a ideia, mas começou mesmo em maio de 2012, então tá com um ano. Sempre com cuidado.

Isso envolveu várias viagens. Cada viagem era uma história. Uma história de conhecer outros grupos, outras rodas de choro.

Dentro do que depende só de ti, tu pretendes colocá-lo na rua, fazer um show de lançamento em São Luís, quando? Depois que o cd estiver pronto eu quero convidar o meu amigo Ricarte para ser o intermediador dessa ideia de fazer um show de lançamento. Ele que tem muita experiência nisso aí, eu quero que ele me mostre o caminho. “Olha, fica melhor por aqui, em ambiente tal”, eu sou todo ouvidos. Foi a primeira pessoa em que eu pensei.

Mas tua ideia é fazer isso quando? O cd estará pronto agora, fim de junho, começo de julho. Eu gostaria de fazer em agosto, por que em setembro já está agendado para eu fazer lançamento em três casas de choro lá em Belo Horizonte: o Bar Mosteiro, o Pedacinho do Céu e o Salomão.

Além deste disco tu tens participação em outros discos? Tem. Na Companhia Barrica, participei de uns dois discos. Participei do cd dOs Foliões, Antonio Vieira ao vivo no Teatro Arthur Azevedo [O samba é bom, 2001], Vagabundos do Jegue, o cd do Fuzarca [grupo carnavalesco que reúne os cantores Cláudio Pinheiro, Inácio Pinheiro, Fátima Passarinho e Rosa Reis], o de Isaac Barros, Cabeh [o póstumo Esquina da solidão].

Você falou que despertou para o choro um pouco depois. O que significa o choro, pra ti, hoje? Ave Maria! É a música! O choro é a música! Não tem outra música. Aprendo muito tocando choro, a cada dia tu tem um ensinamento diferente, é um acorde, é uma maneira, um improviso.

Você gosta de tocar com essa geração mais nova? Adoro! Tem uma galera aí muito legal. Em São Luís, eu não sei, é meu ponto de vista, eu não sei se é falta de formação, de mostrar que choro é uma música legal, tem muita gente nova que não está tocando choro. Por exemplo, Daniel Miranda, que é trombonista do Quinteto de Metais, eu digo “Daniel, tu tem uma sonoridade legal, aprende a tocar choro”, ele não toca. Tocou uma vez, tu lembra, que um quarteto de trombones tocou o Tororoma [Saudades do Tororoma, música de Osmar do Trombone que homenageia um riacho de sua região de origem] lá no Clube do Choro Recebe?

Você ainda participa de algum grupo de choro em São Luís? Só free lance, quando me chamam eu toco.

E Os Cinco Companheiros? Os Cinco Companheiros toca de vez em quando. O problema maior é que não tem onde se tocar, não tem uma casa fixa. Todos os componentes dOs Cinco Companheiros tocam em outros grupos.

Você está vindo de Belo Horizonte, onde pode sentir a efervescência da cena, várias casas, vários grupos, e viveu também a experiência do Clube do Choro Recebe, no Chico Canhoto. A gente via, naqueles três anos em que o projeto existiu, um público cativo. Por que esse público não vai para outras casas, ver outras apresentações, de outros projetos? Eu acredito que pela inconstância. Deixaram de acreditar. Eles acreditavam tanto naquele projeto no Chico Canhoto, que aquilo ali era como se ir pra igreja todo domingo, rezar, já sabiam que sábado tinha. Eu encontro pessoas, “rapaz, era tão bom, por quê que acabou aquilo?” Um dia arrumaremos outra casa.

Como tu tens observado a cena choro, o desenvolvimento do choro no Brasil hoje? Tem muitos grupos no Brasil hoje tocando muito choro. Pode acessar a internet aí que tu vê. Nos Sescs, cada instrumentista fantástico. Tem muita coisa boa. Aqui tem grandes músicos.

Quais os chorões que tu mais gostas, que mais te tocam? Pra te ser sincero, Zé da Velha e Silvério Pontes, musicais, alegres. Tenho cds de [o clarinetista] Paulo Moura, que tá lá no outro andar, grande instrumentista, Yamandu [Costa, violonista sete cordas] tem um cd de samba e choro do Paulo Moura com o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, o Cliff Korman [Gafieira Jazz, 2006]. Aquilo ali é uma maravilha, cara!

E no Maranhão, quem é que te enche os ouvidos? Tem uma pessoa aqui em São Luís, que já tocou comigo em vários grupos, que tocou no Osmarmanjos comigo em São João e Carnaval, e participou também de roda de choro, que é Daniel Cavalcante, toca trompete. Juca é excelente cavaquinhista, o [cavaquinhista] Rafael Guterres, [o violonista] João Soeiro, tem o Domingos Santos, o sete cordas, Solano [o violonista sete cordas Francisco Solano, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 26 de maio de 2013] é maravilhoso tocando aquele sete cordas dele, parece que ele tá é navegando, não tá tocando. Serrinha de Almeida [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013] é um cara supertalentoso, concentrado, não é aquele músico de muita firula. Na última comemoração do Dia do Choro [23 de abril de 2013, na Associação Atlética Banco do Brasil, Serra de Almeida foi homenageado em evento anual que reúne diversos chorões de São Luís] eu achei fantástica, impecável a apresentação de Serrinha. [O flautista] João Neto é um excelente músico. Então, pra não ser indelicado com alguns que eu não lembre, aqui tem muitos músicos, estamos bem servidos. Falta é apoio, principalmente dos poderes maiores, culturais, que nós não temos. A sede do Clube do Choro ficou só no papo de político, ninguém fez nada por aquilo.

Com tudo isso que você fala, é possível prever um bom futuro para o choro no Maranhão? Como tou te falando: só se tiver apoio. Eu não digo nem do poder público, mas da iniciativa privada. Vamos investir, vamos patrocinar o músico.

Mas você não acha que falta iniciativa dos músicos, perceberem a capacidade de gerar essa movimentação? Sim, tem essa carência, essa falta de pulso, de chegar e tomar a frente da coisa. A inviabilidade, às vezes, é até pela forma de retorno financeiro. Tem muita gente que vai tocar choro, vai numa roda de choro, e não tem retorno. A cidade não tem grandes empreendimentos para você ter um salário digno. O músico, geralmente, se ele viver só de música, já é precário. Faltam políticas públicas, oportunidades, incentivos. O músico pode se mexer, mas ele tem que ter pra onde se mexer.

Da preguiça como método de trabalho

Roubo este título do Mário Quintana para mostrar-lhes, encontrei recentemente arrumando o quarto a que pretensiosamente chamo biblioteca, estes três desenhos que fiz durante uma reunião, há alguns anos. Sobraram-me nas mãos as tarjetas de cartolina e os pincéis atômicos azul, preto e vermelho. O lixo talvez fosse melhor destino, mas como diz Manoel de Barros, tudo que é bom para o lixo é bom para a poesia.

 

 

Chorografia do Maranhão: Zezé Alves

[O Imparcial, 9 de junho de 2013. Cá no blogue um tantinho maior

Oitavo entrevistado da série Chorografia do Maranhão, Zezé da Flauta tornou-se Zezé Alves e investe na formação para a continuidade da cena.

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Estavam enganados os que pensavam que uma cirurgia cardíaca diminuiu a atividade e/ou a intensidade musical de Zezé Alves: ele apenas mudou o foco, trocando os palcos pelas salas de aula. Trocando, não, que o professor já dava aulas enquanto o artista apresentava-se nos bares e bailes da vida.

É o próprio músico, nascido no Maracanã, em São Luís, em 8 de dezembro de 1955, “dia de Nossa Senhora da Conceição”, ele emenda à data, quem faz a distinção entre o Zezé Alves de hoje e o Zezé da Flauta de outrora. Filho do paraibano José Alves da Nóbrega e da doméstica Inês Alves da Costa, ele chegou a morar em Bacabal, onde lembra de ter ouvido choro pela primeira vez na vida, ainda criança: “Palito, mestre Palito, José de Brito, que era dono de um conjunto em Bacabal. Saxofonista, dono do Brito Som Seis. Chegou a ser um dos maiores do nordeste. Era meu vizinho, morava de frente a minha casa. Eu saía, chegava na porta, ele estava tocando Saxofone, por que choras? [de Ratinho].

Sua mãe “fazia aqueles reisadinhos, aqueles autos, tocava cabaça, gostava muito de cantar, talvez esta seja a origem familiar”, afirma, sobre sua musicalidade. “Sempre fui muito musical”, continua. “Quando comecei, criança, eu cantava, eu era cantor, cantava Waldick Soriano. Talvez a coisa da minha musicalidade seja a seguinte, tem uma história muito interessante. Quando eu era criança eu era muito fraquinho das pernas, cheguei a ir a médicos, tomar remédios, pra ficar mais forte. E tinha um rádio e eu ficava sentado debaixo desse radio, num caixotezinho, um banquinho, um tamborete, ouvindo todas as músicas do rádio da época, da década de 1950, virando pra 60, Orlando Silva, Waldick Soriano, eu repetia todas essas músicas”, começa a contar antes mesmo da primeira pergunta.

Além de flauta, Zezé toca violão, para compor e estudar harmonia. Depois de ter ajudado a formar muitos músicos que hoje tomam conta da cena local, o professor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo considera-se uma espécie de “Bota pra Moer”, apelido de Antonio Lima, folclórico personagem ludovicense que carregou uma bandeira numa passeata contra o governador Eugênio Barros, em 1951. “Até aqui eu vim, mas daqui pra frente arranjem outro que seja mais doido do que eu”, teria afirmado, conforme relata Lopes Bogéa no raro Pedras da Rua (1988).

Zezé Alves recebeu os chororrepórteres em casa. Isto é, na Sala Leny Cotrim Nagy, na EMEM, a mesma que serviu de cenário para uma das fotografias do encarte de Choros Maranhenses, disco de estreia do Instrumental Pixinguinha. Estudantes de música em aula em duas salas contíguas garantiram a boa trilha sonora da conversa.

Além de músico, qual a tua outra profissão? Eu fui criado por outra família e essa família não queria que eu fosse músico, pois o pai desse pai que me criou não se deu bem, era saxofonista. Eles não queriam, eu tive que sair de casa. Eu comecei a tocar, tocar mesmo, com 22 anos já. Mas eu só vivia cantando. Na realidade me formei em contabilidade, sou contador, técnico em contabilidade. A outra profissão seria essa, por que eu trabalhei com meu pai por muito tempo num comércio, eu sei muito de comércio.

Você exerceu a profissão? Não, não exerci a contabilidade. Mas trabalhei junto no escritório dele muito tempo, ajudava nessa área. Aqueles irmãos do Six [o cavaquinhista Francisco de Assis Carvalho da Silva] eu conheci todos do Banco do Brasil por que eu ia pagar as duplicatas do comércio do meu pai e os via lá.

Quando tu falas que começaste a tocar com 22 anos, isso tu falas profissionalmente? É, por que eu cantava, eu já arranhava um violãozinho, tocava Eu só quero um xodó [de Dominguinhos e Anastácia, sucesso na voz de Gilberto Gil], tocava flauta doce, pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo [repete enfatizando]. Quando chega em 77, em 76 eu saí de casa, em 77 é que aí eu digo que é o meu marco: eu participei de um show chamado Boca do Lobo, de [o compositor] Sérgio Habibe. Esse show foi o primeiro com características de show, com banda, com [o violonista] Joaquim Santos, [o compositor] Ronald Pinheiro, e eu na flauta começando. Por que na realidade, meu professor de música, meu primeiro mestre de música, é o Sérgio Habibe, é meu mestre mesmo! Quando [o violonista] João Pedro [Borges, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] volta à São Luís, em 97, eu já o conhecia, ele de certa forma passou a ser o meu mestre, me convidou para trabalhar no Musiceuma junto com ele, aí foi que eu comecei a reforçar mais a ideia de ser educador musical. Ele reforçou isso. Eu comecei essa carreira, de 77 pra cá, comecei no show dele [de Sérgio Habibe], ele trouxe uma flauta do Rio de Janeiro, daqui a pouco eu tava tocando com todo mundo. Eu é que fui o “Bota pra Moer”, até enquanto surgiu o [flautista João] Neto, Paulinho, Lee Fan. O que eu quero agora é a função de educador. Até por que eu gosto de ensinar, sempre gostei de ensinar, eu ficava dando aula em mesa de bar [risos].

Se tu pudesses citar três músicos que foram bem influentes pra ti, do começo até agora… Palito foi o primeiro cara que eu ouvi tocar. Mas, claro: Sérgio Habibe, Chico Maranhão e João Pedro Borges. Por que Chico Maranhão também influenciou muito na minha vida, estive em São Paulo, acompanhando-o no Lances de Agora [1978]. As pessoas às vezes dizem [imita um cochicho] “ah, por que Chico Maranhão é um cara chato” [volta ao tom normal], quem é amigo dele não acha. Eu sou amigo dele, de ele ligar “vem comer aqui um tabule comigo”.

Esses três nomes que tu citaste, de João Neto, Lee Fan e Paulinho, seriam os nomes de destaque, na flauta, hoje, no Maranhão? Sim, sim. A gente não pode negar o Serra [de Almeida, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013], o grande Serra, pelo tempo, pela história dele, aquela qualidade que ele tem de tocar, lembrando Copinha, lembrando Carrilho, inclusive o Sérgio me disse isso uma vez, “Zezé presta atenção, toca igualzinho”.

Você vive de música? Vivo de música como professor de música. Sou funcionário do Estado e hoje, depois de uma pós-graduação, estou professor substituto na UEMA. Como instrumentista, o que eu ganhava era pra pagar a passagem no outro dia e tomar uma e tal. Então, sobrevivo de música, como professor, dou aulas particulares.

Tu tens uma preocupação muito grande com o registro da obra de chorões, seja no disco [Choros Maranhenses, de 2006] do Instrumental Pixinguinha, seja no Caderno de Partituras [2012]. A gente percebe que o registro ainda é uma fraqueza, mesmo com todas as tecnologias hoje disponíveis. A que tu creditas essa pobreza de registro? O pouco registro se deve a certo descaso nosso mesmo. Nós admiramos muito o que é dos outros, muita besteira. Se você ver pessoas como Cleômenes [Teixeira, compositor], Tomaz de Aquino, eram grandes professores, saxofonistas, mas não houve nenhum registro. As condições técnicas não havia, agora é que estão surgindo gravadoras com nível, mas na década de 70 não havia onde, edição de partituras era raridade. Agora é que a Escola de Música vai ter um banco de partituras, quer dizer, quase 40 anos depois [da fundação da EMEM]. O Rabo de Vaca foi um grupo que eu sempre disse que é uma escola, muita gente passou por ele: Ronald Pinheiro, [o compositor] Josias Sobrinho, [o compositor] Beto Pereira, [o contrabaixista] Mauro Travincas, todo mundo passou, mas tem pouco registro. Josias deve ter uns k7s. A gente não ligava para registrar, não havia recursos tecnológicos, nem apoio.

O Rabo de Vaca foi importante para o desenvolvimento da música do Maranhão. De que outros grupos você participou? O mais importante foi o Rabo de Vaca. O Rabo de Vaca é a cabeça de Josias. Ele tinha saído do Laborarte e eu entro no Laborarte, era muito amigo de Nelson Brito [ator e diretor teatral, ex-diretor do Laborarte], que trabalhava numa loja de discos de um tio dele, tava todo mundo debandando, e havia um departamento de artes, eu entrei, o período em que fiquei no Laborarte, Josias saiu, mas o [a peça] Cavaleiro do Destino ainda estava sendo encenado. Eu entrei para tocar violão nas peças. Em outubro [de 77] o Aldo Leite monta uma peça chamada Os Saltimbancos, e se não me engano, foi o segundo lugar em que foi feito com músicos ao vivo. No Rio de Janeiro era feito com músicos, depois no Maranhão. Nos outros lugares era playback. Na do Maranhão o Aldo Leite convidou Josias, “monta um grupo”, e se fez ao vivo. Josias convidou Beto Pereira, Mauro Travincas, acho que [o percussionista] Manoel Pacífico e Vitório Marinho, um cara que pouca gente fala, um moço cego que tocava violino. A gente tinha público. Foi um grupo muito importante para a música maranhense. Depois disso, Beto Pereira fez um grupo para tocar música maranhense em barzinhos, tocou muito, o Amor de Canela, era eu, [o percussionista] Carbrasa, Mauro, [o percussionista] Jeca e Beto, o banda líder [aportuguesa o band leader]. E no Maçaroca [1986], disco dele, ele gravou uma música nossa [Campo Cidade, parceria de Zezé Alves e Paulinho Lopes]. Depois teve outro grupo, eu, Omar Cutrim, Fazendo Mel, que era uma música dele…

E o [Instrumental] Pixinguinha? Aí sim, aí é que vem o Pixinguinha. A gente já era professor da Escola de Música, eu, Marcelo [Moreira, violonista], [o bandolinista] Raimundo Luiz, quando [Francisco] Padilha chegou, começou a ser diretor da Escola, teve essa ideia, junto com Marcelo, que era carioca, a escola precisava criar um núcleo de música popular, criaram a Big Band junto com Tomaz e Marcelo encabeçou, de certa forma, a criação de um grupo de choro. Por que um grupo de choro? Por que é a nossa música, com raiz no samba. Por que Instrumental Pixinguinha? Por que foi o maior arranjador e não sei o quê e não sei o quê. O Instrumental Pixinguinha vingou, tocamos em muitos lugares, fez um trabalho belíssimo, aquele cd, Choros Maranhenses, pioneiro, que esse caderno [aponta para o Caderno de Partituras] é uma continuidade dele, aqueles dez choros e mais alguns. Pra não falar dos compositores que eu acompanhei. Com [o cantor, compositor e violonista] Chico Nô e Lazico [o percussionista Lázaro Pereira] a gente teve um trio chamado Trio Tom, tocávamos Bossa Nova, é outro grupo de que participei. Toquei muito no Cacuriá de Dona Teté. De início era só caixa, depois tiveram a ideia de botar flauta, depois eu fiquei tocando, viajei o Brasil todo por conta do Cacuriá de Teté.

E atualmente? Atualmente eu sou titular, fundador do Pixinguinha. Emérito [risos]. Atualmente o que eu quero mesmo é essa coisa de educador musical.

Quando tu começaste a dar aulas na Escola de Música? Essa coisa da Escola de Música é interessante. Teve um governo, na época da Olga Mohana, ela foi ao Rio de Janeiro, e alguém escolheu para ela, uma porção de professores. Estes professores moravam no Seminário Santo Antonio, ela era irmã do padre João Mohana. Os caras ganhavam uma grana, na época coisa de 10 salários mínimos. Nós tivemos Watanabe, grande violinista, Emanoel Martinez, hoje regente do coral de Curitiba, Mércia Pinto, Cidinho Ornelas, então foi um naipe incrível. De repente foi todo mundo embora. Dessa leva o cara que ficou e hoje é uma figura importante é o Marcelo Moreira. Quando Padilha chega, pegou os alunos mais avançados e transformou em professores. Era eu, Raimundo Luiz e alguns outros.

Uma das críticas recorrentes à Escola de Música é a erudição, o distanciamento da pulsação de São Luís, uma coisa mais de cultura popular. Isso parece que vem sendo equacionado nos últimos anos. Vem sim. A Escola, quando ela foi lançada, na época da professora Olga, ela foi pensada nesses moldes, de formar músicos de orquestra. Ela era meio mãe, e dizia “tu vai estudar viola e tu vai estudar piano”, ela era quem dizia. Por um bom tempo ela ficou nisso, ficou nessa insistência. A primeira aluna formada aqui, grande pianista, com [o então governador do estado] João Castelo entregando diploma e tudo, foi a professora Rosimary Fontoura. Hoje em dia se forma muito aluno na área popular, violonista, baterista, cavaquinhista. Quando chega a música popular na escola, que é quando a direção chama Jayr [Torres] pra dar aula de guitarra, Diógenes pra dar aula de contrabaixo, Jeca chegou a dar aula de percussão, abriu concurso, hoje em dia Rogério Leitão é professor de bateria da casa. Essa vertente, chamada núcleo de música popular, ainda hoje em formação, com isso a escola se tornou uma coisa mais popular, encheu. O Jayr Torres faz toda sexta uma coisa chamada Sexta Musical, Sexta Jazz, enche. 90% dos alunos da escola são evangélicos. Isso mudou, se não a escola estaria do mesmo jeito.

Tu tocaste em alguns discos importantes, como Lances de Agora, Pedra de Cantaria [disco coletivo gravado em Belém, reunindo diversos compositores maranhenses, entre eles Chico Maranhão, Josias Sobrinho e Giordano Mochel], Maçaroca, Choros Maranhenses. Eu queria que tu lembrasses outros discos que têm tua flauta. O de Fátima [Passarinho, Voos, 2007] eu fiz uma flauta lá. Com Joãozinho Ribeiro eu participei daqueles shows do Samba da Minha Terra [temporada de 18 shows em bairros ludovicenses produzida por Vanessa Serra] e agora da gravação do Milhões de Uns [estreia de Joãozinho Ribeiro em disco, gravado ao vivo no Teatro Arthur Azevedo, a ser lançado em breve], em que ele gravou uma parceria nossa [a música Rua Grande, interpretada por Lena Machado]. De Sérgio eu nunca toquei em nenhum disco dele, ele gravava quase tudo no Rio. Fiz pontas em outros.

O que é o choro pra ti? Que importância tem para a música feita no Brasil? A visão que eu tenho é a que todo mundo tem: o choro como raiz dessa música popular urbana. Tem essa história toda que vocês já conhecem, da década de 30 pra cá, com Noel Rosa, com Pixinguinha. Como raiz dessa música, a mistura do batuque com a música que veio com o colonizador europeu, que criou a escola nacional, tocaram juntos com os músicos que vieram nas caravelas, e daí, teve o momento de renascimento, a partir do momento em que os caras vão estudar em Berkeley, depois a chegada da Odete Ernst Dias, que é uma mãe de todos os flautistas. O choro, a importância dele é inconfundível, inegável. Tem que estudar o choro para compreender a música brasileira. Aquela máxima de que tudo é choro, de repente vale, tudo é choro, tudo é baião. Luiz Gonzaga quando chegou no Rio, chegou tocando choro. Aliás, Gonzaga é nosso primeiro músico pop.

Como tu observas o choro hoje? Já está começando a se universalizar. Já está tendo outras influências, já estão fazendo choros mais modernos. Se você pegar o [violonista] Guinga, já faz choros mais elaborados, com a influência do jazz – Influência do Jazz [Carlos Lyra] é o nome de uma música da bossa nova [risos] – ele não tá parado, ele tá evoluindo. A pessoa hoje em dia já não estuda choro só pra tocar choro como antigamente. Ele está enriquecendo. O cara pega, estuda, vai atrás, vai fazer uma boa música.

Que nomes tu destacarias nessa cena? Gostei muito do [saxofonista] Eduardo Neves. Alguns que eu nunca mais ouvi falar, mas são muito interessantes, o [saxofonista] Zé Nogueira, o [saxofonista Mauro] Senise, assim, que eu conheço mais. Atualmente, que eu conheço, o Guinga, que a gente pode considerar um cara do choro. Tem aqueles já mais tradicionais, [o trombonista] Zé da Velha, [o trompetista] Silvério Pontes. É tanta gente que não dá para dizer um ou dois só, tem muita gente fazendo choro.

Tu disseste que tua obra como compositor é pequena. Saberias precisar em números? Quantas composições? Ah, poucas. Por que na realidade eu fiz esse choro, Candiru [parceria com Omar Cutrim gravada em Choros Maranhenses], tenho duas músicas só, mais, assim. O resto tudo tá no baú, eu toco quando me lembro. Choro é só essa. O resto são baladas, são músicas seis por oito. Com Paulinho Lopes eu tenho umas coisas que nunca foram gravadas.

Independentemente de compor choro, tu te consideras um chorão? [Pensativo, demora a responder] Não. Não. Essa resposta é meio doída, mas eu não me considero um chorão, não. Por que eu me interessei pelo choro quando foi criado esse grupo que eu tive que aprender a tocar, a mergulhar. Por que com o Rabo de Vaca eu tocava era os bois da gente, os baiões, frevo, xote, xaxado. Quando era criança, o primeiro cara que eu ouvi tocando Saxofone, por que choras?, mestre Palito, todos aqueles discos de Pixinguinha, Altamiro Carrilho na banda do Palhaço Carequinha, tudo aquilo eu ouvia.

Como tu observas o atual momento do choro no Maranhão? O choro no Maranhão, se for pegar na raiz, a gente tem sempre os antigos, por que eles tocavam choro mesmo, todo mundo tocava, tocou-se muito choro. Se você pegar, todo mundo, Cleômenes, Palito, seu Raimundo Amaral. Aqui em São Luís, a referência que eu tenho é o [Regional] Tira Teima, é Ubiratan [Sousa, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013], Paulo Trabulsi. O Pixinguinha foi o segundo grupo. Depois do Tira Teima e do Pixinguinha, não demorou muito, o Pixinguinha reinou um pouco, aí começaram a surgir, por exemplo, o Chorando Callado, com Tiaguinho [o saxofonista e clarinetista Tiago Souza], hoje tem Wendell [Cosme, bandolinista e cavaquinhista], que tá um figura, indo gravar em Brasília, São Paulo, tem esse menino do bandolim, o Robertinho Chinês [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013], tem o João Eudes, os filhos de Osmar, tem Osmar [do Trombone], que eu fico muito feliz por ele, foi visitar o filho, os colegas adoraram, ele virou estrela, está gravando o disco lá em Minas. Quer dizer, continua aquela coisa, Clube do Choro sem sede, o povo se reunindo aqui, aqui, ali, mas tem uma geração boa tocando. Meus alunos, quando eu falo, dou o caderno pra todo mundo, “ah, tocar choro” e tal. Tá todo mundo tocando choro.

Nesse processo de pesquisa para o Caderno de Partituras, quais foram as principais dificuldades? Não houve muitas dificuldades. As 10 partituras do disco eu já tinha. Minha ideia foi recolher mais uma de cada. Eu editei, fui nos autores pra corrigir. Escolhi algumas que achava muito importantes. Cesar Teixeira não podia deixar de ter. Algumas partituras eu escrevi, mas a maioria os autores já me deram.

Quem são os teus compositores preferidos da música popular no Maranhão? Aí vão entrar as paixões. A ordem é aquela mesminha: Sérgio Habibe é um cara maravilhoso, o Chico, Josias, tem um cara que eu tenho lembrado muito dele agora, por causa dessa história do Bandeira de Aço, que é o Mochel. Cesar Teixeira inegavelmente, tem características muito próprias, de samba, tem aquela consciência política dele muito forte. É um cara muito especial.

Quais os teus próximos projetos no campo da música? Me aprofundar mais. Fazer um mestrado, se der. Aprofundar.

Qual é a diferença entre o Zezé da Flauta e o Zezé Alves? O Zezé da Flauta surgiu a partir do momento em que eu peguei uma flauta e comecei a tocar em shows, com todo mundo. É a história do “Bota pra Moer”, eu chegava e o pessoal, “olha Zezé!”, e eu onde chegava tirava, e tocava, de graça, toquei muito, tava aprendendo, toquei muito romanticamente. Esse é o Zezé da Flauta. O Zezé Alves é o educador, que começa a racionalizar mais as coisas. Todos dois são legais [risos]. As pessoas me chamam de Zezé da Flauta, gente que me reencontra depois de não sei quantos anos. As pessoas que me conhecem hoje já me chamam de Zezé Alves.

Essa distinção entre um Zezé e outro tem a ver com o consumo de álcool? Não. Por que Zezé Alves ainda bebeu pra poxa [risos]. Todo mundo que passa por essa cirurgia do coração muda muito. Eu acho que é por que o cara vai lá e volta [risos]. Mas não tem a ver não.

Você vê algum futuro para o choro no Maranhão? Não só para o choro. Teu programa [o Chorinhos e Chorões que Ricarte Almeida Santos apresenta aos domingos, às 9h, na Rádio Universidade FM, 106,9MHz], uma iniciativa como a do Alê Muniz, lembrar os 35 anos de um disco [o show em que o projeto BR-135 homenageou o Bandeira de Aço no Teatro Arthur Azevedo]. A música do Maranhão precisa se organizar. Elizeu Cardoso, Bruno Batista, há uma moçada nova muito boa, são mais organizados. A gente era mais romântico.

Tu hoje estás mais concentrado na função de professor. Mas o que te tiraria de casa para um palco ou um estúdio? O convite de grandes amigos, participar de um projeto interessante, com minha turma. Mas mesmo para pessoas de hoje eu não me nego. É só me ligar e marcar que eu vou.

Chorografia do Maranhão: Francisco Solano

[O Imparcial, 26 de maio de 2013

Sete cordas do Tira Teima é o sétimo entrevistado de Chorografia do Maranhão: acaso ou destino?

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Francisco Solano Rodrigues Neto nasceu em 1º. de fevereiro de 1953, no centro de São Luís do Maranhão, filho do bioquímico José de Ribamar Nina Rodrigues, falecido, e de Helena Simões Rodrigues, prendas domésticas. Aprendeu a tocar violão ainda criança, por influência do pai, que gostava de tocar em casa e sonhava montar um conjunto com os filhos, para confraternizações caseiras, sem quaisquer pretensões profissionais. Os dois – ele e o pai – chegaram a ser colegas de aula na Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo.

Técnico em equipamento médico, hoje empresário do ramo, Solano é músico por hobby, como ele mesmo afirma. Não sabe precisar a data em que passou a integrar o Tira Teima, mais antigo grupamento de choro do Maranhão em atividade, atualmente às voltas com a gravação de seu primeiro disco.

Atual presidente do Clube do Choro do Maranhão e titular do violão sete cordas do Tira Teima, o músico recebeu a equipe de O Imparcial/ Chorografia do Maranhão no terraço do Brisamar Hotel (Ponta d’Areia), palco do regional às sextas-feiras. A dança dos coqueiros ao vento e o vai e vem da maré fizeram parte da paisagem perfeita para a conversa, descontraída, regada a cerveja e camarões empanados. Era uma noite de terça-feira de clima agradável em São Luís.

Apesar da agenda musical intensa – com o Tira Teima Solano toca ainda às quintas-feiras no Barulhinho Bom (Lagoa) e aos sábados no Restaurante Tai (Calhau) – o músico confessou sua saudade do projeto Clube do Choro Recebe.

Como era teu universo musical familiar? Quem mais te influenciou em casa? Em casa foi meu pai. Ele tocava violão e começou a me ensinar um pouquinho, eu pegava o violão dele. Depois ele começou a tocar flauta, e a gente tocava choro, eu no violão, ele na flauta. Em casa! Fora de casa ele não tocava em lugar nenhum. Antes de eu sair pra tocar fora, de procurar aprender, foi essa minha realidade, só em casa. Ele gostava muito de [o flautista] Altamiro [Carrilho]; e no violão, de Dilermando [Reis]. Ele estudou na Escola de Música [do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo], nós estudamos juntos. Nós saímos quando o [ex-diretor da EMEM e ex-secretário de Estado de Cultura do Maranhão Francisco] Padilha resolveu colocar uma prova para ver em que lugar cada um estava. Por que tinha gente que estava no último período e não sabia nada, e tinha gente que estava no começo e sabia muito. Eu estava no terceiro ano, fizeram a prova e não deixaram eu voltar mais [risos].

Altamiro e Dilermando eram os preferidos dele. Era de quem ele mais comprava discos? De choro ele comprava tudo o que encontrasse, mas também gostava muito de samba, de jazz, tinha de tudo, música internacional e nacional, era música boa [risos].

Tua escolha pelo violão se deve a quê? Meu pai queria que nós tocássemos. Queria que a gente fizesse um grupo. Então ele incentivou meu irmão a tocar violão, ele ia tocar flauta e me incentivou a tocar acordeom. Aí ele comprou pra mim uma sanfona de 120 baixos, eu tinha 10 anos de idade. Contratou um professor ali no fundo do [extinto cinema] Eden [hoje loja Marisa, na Rua Grande], e eu morava na rua de Santana no fundo da [extinta loja de departamentos] Lobras. Pra eu carregar esse acordeom até a casa do professor eu acabei com a caixa, arrastando. E não aprendi nada [risos]. Resultado: larguei o acordeom, meu irmão não quis saber do violão e eu peguei o violão.

Até então seis cordas? Seis cordas, Del Vecchio.

Tinhas mais ou menos que idade? 10 anos, 11 anos… Não houve nenhuma evolução disso aí. Casei, larguei tudo, e fui retomar o violão, já com mais de 30 anos, 33 anos. Foi uma viagem que fiz ao Rio de Janeiro e lá eu conheci o Élcio do Bandolim, e ele me levou para assistir a um ensaio deles. Aí eu me invoquei pelo [violão de] sete cordas.

Teu pai tinha vontade de que vocês tocassem, isso na década de 1960. Não havia aquela preocupação com o estereótipo do músico? Boêmio, vagabundo, o preconceito da época? Tinha. Ele gostava, considerava que a coisa da música a gente levasse a sério, mas sem pensar em profissionalismo. Se desse, tudo bem. Mas a música como um motivo para a gente confraternizar, a finalidade que ele imaginava era essa.

Além de teu pai, quem foram os teus principais mestres no aprendizado do violão? Marcelo [Moreira, violonista, professor da EMEM; Solano se confunde com as datas em que tomou aulas com ele, inicialmente chutando a década de 70], anos 90.

Depois daquela viagem ao Rio? Sim. Foi em 1983 a viagem.

O fato principal de tua retomada à música foi essa viagem ao Rio?Brenha Neto tinha muita amizade com Raul [do Cavaco], com [o percussionista] Mascote. Eles se encontravam todo sábado, eles chamam de Navio, [um bar] ali perto do Nhozinho Santos. Eles começaram a me levar e isso mexeu comigo. Aprendi muita coisa ali. Eu conheci Raul lá. Eu tinha uma viagem para o Rio e ele pediu que eu levasse o cavaquinho dele para consertar. Era um Do Souto, eu nem sabia o que era isso. Levei, fui lá na Bandolim de Ouro [famosa luteria carioca], e conheci o Élcio. Aí é que foi a história!

Você nunca viveu exclusivamente de música? Pra te ser sincero, a única coisa que eu fiz com recurso de música foi comprar um violão. Eu fui convidado por Juca [do Cavaco] e [o cantor e percussionista] Zé Costa pra fundar o [grupo] Amigos do Samba. Nós estávamos ensaiando nessa época na minha firma, eu, [o bandolinista] Jansen, [o percussionista] Carbrasa, querendo fazer um trabalho. E Juca apareceu, querendo fundar, eles tinham saído do [grupo] Sambando na Praia. Eu resolvi aceitar. Eu disse: “olha, eu tenho um projeto aqui, que é de comprar um violão “João Batista”. Eu vou tocar até pagar meu violão, no dia que eu pagar, acaba”. Foi um ano certinho [risos], a gente tocando no Caneco [choperia na Rua do Norte, centro, hoje dedicada às serestas de teclado], samba. Aqui e acolá tinha um choro.

Tu estás no [Regional] Tira Teima desde quando? Não tenho a data assim bem definida. Eu comecei no Tira Teima por que Gordo [Elinaldo] sempre foi muito ocupado. Ele que era o violão do Tira Teima [antes de Solano], e ele arranjava os contratos e não ia. Aí ligava pra mim: “Solano, vai lá!”. Aí eu ia, quando estava pra terminar, ele chegava. Mas o violão era ele. Essa situação, nas reuniões ele não estava, aí o pessoal resolveu me assumir [risos]. Ele mesmo abandonou, muito trabalho, Boi Barrica, viagens. Não ficou definida a minha entrada na história.

Você conviveu com [o compositor e instrumentista] Zé Hemetério? Quem era ele? É um de nossos maiores nomes do choro do Maranhão? Convivi. Eu mesmo posso dizer que aprendi muita coisa com ele. Foi um dos maiores músicos que conheci. Era profissional de música. Tocava violino com uma técnica apurada, veio da Baixada [maranhense], estudou com os padres. Era um músico completo, lia partitura, tocava violino. Instrumento de corda ele tocava tudo: bandolim, violino, cavaquinho, violão… É realmente uma grande referência! E principalmente às pessoas a quem ele passou conhecimento. Gordo foi um discípulo de Zé Hemetério. Eles tinham um repertório monstruoso, tudo ensaiadinho.

Qual a outra grande referência para vocês, dessa geração, dos anos 70 pra cá? [Os violonistas] João Pedro [Borges, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013], Joaquim Santos. A Escola de Música pra mim foi muito importante pelos encontros. A gente tinha muita oportunidade de trocar, de conversar. Foi muito importante, pra me trazer o que é a coisa do meio da música. Outra referência muito importante é o Tira Teima. O próprio Gordo, Paulo Trabulsi. O que eu consegui desenvolver com a minha pouca tendência musical eu devo muito ao Tira Teima, muito a Zeca [do Cavaco], muito a Paulo, Gordo. Essa troca, sem ser aquela coisa de sala de aula, a vivência. Isso pra mim foi a minha consolidação.

Tu consideras a roda de choro uma grande escola? Eu acho que é a maior. A escola do choro é a roda. Você pode ir para escola de música desenvolver técnica, mas a escola do choro é a roda, não tem outro caminho. É você sentar e o músico jogar o choro na tua cara e tu ir atrás. O choro nasceu assim e só tem valor se for assim, no meu entender.

Tu estavas na gravação do Tributo a Zé Hemetério [música de Gordo Elinaldo registrada pelo Tira Teima no disco Na palma da mão, estreia do grupo Serrinha & Cia]. Comente um pouco do clima. Eu estava fazendo seis cordas e Gordo sete. Ali eu vi uma coisa que eu já sabia de Gordo, o talento dele, a sensibilidade para dirigir em estúdio. Fiquei impressionado com a competência, era uma experiência que eu não sabia que ele tinha, dirigindo até os cantores.

De que outros grupos musicais tu fizeste parte? O [Instrumental] Pixinguinha foi o primeiro grupo que nós criamos. Fomos nós quem fundamos: eu, Jansen, Marcelo, aí nós convidamos [o violonista] Domingos [Santos] para fazer seis cordas. Nós fizemos um espetáculo tocando a Suíte Retratos [de Radamés Gnattali]. Antes disso nós fizemos o programa de Gabriel Melônio no canal 2, Teclas e cordas. Gravamos Estrela [de Joãozinho Ribeiro] num disco de Rosa Reis. Depois disso acabou o Pixinguinha, deixamos de ensaiar [o grupo existe hoje, com outra formação].

Além do de Serrinha, com o Tira Teima, e o de Rosa, com o Pixinguinha, tu participaste da gravação de outros discos? Toquei em quatro faixas do Memória [Música do Maranhão, 1997]. Botei violão no disco [Esquina da solidão] do Cabeh [Carlos Alberto de Sá Barros], que foi o primeiro diretor da Rádio Universidade FM. Ele deixou só a voz guia, morreu antes do disco ficar pronto. Botei violão em algumas faixas desse, ele queria que eu tocasse em todas, mas achei melhor não, e gravei também num outro disco dele.

Na entrevista anterior da série, Ubiratan Sousa [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013] revelou estar em São Luís para trabalhar no disco de estreia do Tira Teima. Como está esse processo? Nós estamos pleiteando recursos, projeto. A intenção inicial era fazer um disco caseiro, até mesmo buscar um estúdio só para ter qualidade, mas fazer uma coisa nossa mesmo. O próprio Ubiratan conversando com Paulo sugeriu que a gente fosse atrás dos recursos.

Além de instrumentista você desenvolve alguma outra habilidade na música? Tive uma experiência de arranjador naquele show do Pixinguinha.

E composição? Uma música, por acaso o primeiro nome dela era Lembrando Élcio, que eu fiz baseado numa harmonia que ele me ensinou no Rio. Depois eu fiz duas partes e mudou o nome para Companheiro e Paulo fez uma terceira parte. É um choro que vai estar no disco [do Tira Teima].

O repertório dessa estreia do Tira Teima será autoral ou a regravação de clássicos? A nossa ideia é gravar nossas músicas. Há possibilidade de a gente ir buscar alguma coisa fora. Paulo tem três, fora essa que a gente tem em parceria, Serra [de Almeida, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013] tem quatro. A gente quer tocar alguma coisa de Cesar Teixeira, mas tudo música maranhense.

Qual a formação atual do Tira Teima? Hoje é eu, Zé Carlos [percussão], Paulo [cavaquinho], Zeca [cavaquinho e voz] e o João [Neto] tá fazendo a flauta. [O flautista] Serra está um pouco afastado, às vezes por problemas de saúde, cansaço. Mas a gente faz questão que ele participe do disco, embora ele não esteja tocando direto com a gente.

Como tu estás observando o movimento do choro no Brasil hoje? No Rio deu uma esfriada. Em São Paulo deu uma crescida. Brasília, acho que continua a mesma coisa, muita gente nova estudando, muita coisa que motiva. Em São Paulo há uma disputa entre os músicos, muito jovem tocando. É incrível, tudo lotado. É realmente impressionante. Eu acho que aqui deu uma melhorada agora, ultimamente. A gente mede por nós mesmos, mas a frequência de público é muito pouca. Eu acho que a gente tem que falar da época do Clube do Choro Recebe, realmente ali foi o auge. Nossa experiência hoje é lembrar daquilo. Com relação à meninada, aos que tocam choro hoje, devem àquela época.

Mas essa melhorada de que tu falas é na época do Clube do Choro Recebe [2007-2010] ou herança do projeto? O Clube do Choro, não só o Clube do Choro Recebe, desde a época que era na [Associação do Pessoal da] Caixa, estimulou muita coisa. Meninos novinhos tocando, da Escola de Música. Houve um estímulo. Você vai estudar um estilo de música pra fazer o quê com ela? A gente criou um palco, as pessoas podiam tocar, choro começou a dar dinheiro. Essa meninada que toca hoje, esses meninos que tocam muito, como [o cavaquinhista e bandolinista] Robertinho [ChinêsChorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013], [o violonista sete cordas] João Eudes, João Neto, todos se estimularam muito com aquelas apresentações do Clube do Choro Recebe. Era um palco disputado, as pessoas tinham um cachezinho. Então eu acho que isso foi um negócio marcante para a situação atual do choro no Maranhão. Nós estamos numa entressafra, embora eu acredite que estejamos próximos de uma virada.

Qual o principal sete cordas da história chorística brasileira? E qual a grande referência pra ti, hoje, em vida? Pra mim a grande referência foi uma pessoa que eu tive o prazer de conversar, de ele me dizer muita coisa, que foi Dino. O Dino é a grande referência para o sete cordas. Eu acho que só existe sete cordas por causa dele, a forma de tocar sete cordas foi criação dele. Vivo nós vamos ter que dividir as coisas. Eu estive semana passada com Carlinhos, que é o luthier que recuperou esse violão, e ele me disse, “Solano, a gente fabricava 100 violões seis cordas para fabricar um sete cordas. Hoje em dia ninguém quer seis cordas”. Todo mundo vai pro sete. Meninos que estão estudando violão clássico estudam no sete cordas. Faz tudo o que o seis faz e mais alguma coisa. Tem meninos novos aí que eu gosto muito: Gian Correa, de São Paulo, o Rogério Caetano, uma monstruosidade, Zé Barbeiro, Luiz Filipe [de Lima], maravilhoso, o Carlinhos [Sete Cordas], que é mais pra samba. Se a gente for olhar, hoje, eu acho que o violão mais tocado no Brasil é o sete cordas. Pra onde você vai tem um tocando, e muita gente muito boa.

Além de trazer essa nova geração, de criar um palco para os chorões do Maranhão, que outra coisa importante tu observaste no Clube do Choro Recebe, em quase três anos de atividades? Foi um dos movimentos mais importantes musicalmente falando, com a grata satisfação de ser o estilo que eu gosto. Aquilo ali foi um negócio muito sério! A gente não podia ter deixado aquilo… a gente tinha que ter dado um jeito de continuar.

Que instrumentistas tu observas que merecem destaque do Maranhão? Eu vou ter que começar com minha casa: Serra, Paulo Trabulsi, esse tem espaço em qualquer lugar, eu conheço pouca gente que conhece choro como Paulo. Juca, eu adoro tocar com ele, é uma festa, a gente sai de lá alegre. A gente tem que falar de Robertinho, [o cavaquinhista e bandolinista] Wendell [Cosme] é muito bom. Tá enveredando por fora do choro, mas é um grande instrumentista. João Eudes é muito bom, tem futuro, já dominou o instrumento, é uma questão de evolução, de crescer. [O sanfoneiro] Rui Mário pra mim é um dos melhores, toca qualquer coisa.

O que tu achas que falta para o choro do Maranhão? A princípio falta a gente retomar o Clube do Choro Recebe, reabrir o Clube do Choro, retomar nossos projetos. Isso é o primordial. Estou terminando de regularizar a documentação [do Clube do Choro], a gente precisa retomar as nossas reuniões, para que surjam as ideias, debatermos e retomarmos essa situação.

Consolidar uma cena aqui passa necessariamente pela gravação de discos. Na criação do Clube do Choro, no estatuto, uma das coisas principais, é o Clube do Choro como selo musical. É um negócio interessante, se aproveitar essa situação, pegar toda essa moçada que está produzindo, dar uma orientada. Nós temos gente com experiência. Um dos melhores trabalhos, foi um marco, o disco Memória, mostrou a capacidade de João Pedro Borges [direção musical e arranjos], um trabalho totalmente isento, ele não quis nem tocar. Uma coisa que a gente poderia fazer, que é feito no Clube do Choro de Brasília, é gravar os shows, gravar tudo o que acontece no palco.

Tu fazes música por esporte. Dentro do que tu pretendes, tu te consideras um cara realizado? Não.

O que falta? Eu tenho um conceito: a pessoa que gosta de qualquer tipo de arte e se considera realizado é o que já morreu. Eu tou sempre insatisfeito com o que eu tou fazendo.

Cinema pela Verdade em junho em São Luís

Até agosto de 2013 todos os estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal, receberão a segunda edição da mostra Cinema pela Verdade, realização do Instituto Cultura em Movimento (ICEM) em parceria com o Ministério da Justiça (MJ), através de projeto contemplado em edital da Comissão da Anistia.

Em São Luís as sessões acontecerão entre os dias 13 e 28 de junho, na UFMA (Campus Universitário do Bacanga) e UEMA (Cidade Universitária Paulo VI, São Cristóvão, e Faculdade de Arquitetura, Praia Grande)

O propósito da mostra é a exibição de filmes sobre as ditaduras militares na América Latina. Após cada sessão há uma mesa de debates sobre o filme exibido, com a participação de professores, jornalistas, cineastas, historiadores e estudiosos do tema.

Quatro filmes integram a edição 2013 da mostra, que tem como agente mobilizadora em São Luís Dinalva dos Anjos, estudante de Educação Artística (UFMA), recentemente selecionada para a exposição coletiva Pinhole al redor del mundo, tendo fotografias realizadas com a técnica exposts nas cidades de Guayaquil e Manta, no Equador. Maiores informações pelo telefone (98) 8801-3681 e/ou e-mail dinalvadosanjos@hotmail.com

Dividindo a mesa com os professores Murilo Santos (UMA) e Paulo Rios (Faculdade São Luís), este blogueiro comentará No após sua exibição na UEMA (Paulo VI), dia 14 de junho, às 8h30min.

Confira a seguir as sinopses (com informações do release da mostra) e a programação da mostra Cinema pela Verdade em São Luís (abaixo apenas as sessões já confirmadas, o blogue voltará ao assunto, informando de novas).

Eu me lembro, de Luiz Fernando Lobo. Exibido no Festival Internacional do Rio de Janeiro, o documentário acompanhou cinco anos das caravanas da Anistia e reconstrói a luta dos perseguidos por reparação, memória, verdade e justiça por meio de imagens de arquivo e de entrevistas. Sessões: 13 de junho, 8h30min, UEMA (Paulo VI) e 19, 14h30min, UFMA.

Infância Clandestina, de Benjamín Ávila. Representante argentino ao Oscar 2013, categoria melhor filme estrangeiro. Argentina, 1979. Juan, assim como seus pais e seu tio leva uma vida clandestina. Fora do berço familiar ele precisa manter as aparências pelo bem da família, que luta contra a ditadura militar que governa o país. Sessões: 20, 14h30min, UFMA, e 28, 18h30min, UEMA (Arquitetura, Praia Grande).

Marighella, de Isa Grinspum Ferraz. Ganhador do Prêmio de melhor longa-metragem da Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul em 2012. Carlos Marighella foi o maior inimigo da ditadura militar no Brasil. Este líder comunista e parlamentar foi preso e torturado, e tornou-se famoso por ter redigido o Manual do Guerrilheiro Urbano. Sessão: 27, 18h30min, UEMA (Arquitetura, Praia Grande).

No, de Pablo Larraín. Concorreu ao Oscar 2013 na categoria melhor filme estrangeiro. Pressionado pela comunidade internacional, o ditador Augusto Pinochet aceita realizar um plebiscito nacional para definir sua continuidade ou não no poder. Os líderes do governo contratam René Saavedra para coordenar a campanha contra a manutenção de Pinochet. Sessões: 14, 8h30min, UEMA (Paulo VI), e 18, 14h30min, UFMA.

Marcia Castro e Siba fizeram a plateia ser feliz

Natura musical levou shows De pés no chão e Avante de graça à Estação das Docas, na capital paraense

TEXTO E FOTOS: ZEMA RIBEIRO*

Marcia Castro: “A plateia só deseja ser feliz”
Siba: “Pode acabar-se o mundo, vou brincar meu carnaval”

 

BELÉM/PAMarcia Castro e Siba lançaram, ano passado, dois dos melhores discos da música brasileira deste início de milênio – ainda se pode dizer isso?

Ela, De pés no chão, aprofundou os bons resultados já apresentados na estreia, Pecadinho (2007), em que mergulhava de cabeça, corpo, voz e alma, no que há de melhor na MPB – para usar uma sigla surrada – misturando gravações e regravações de artistas consagrados e de novos compositores.

Ele, Avante, disco autoral em que retoma a guitarra, seu instrumento de origem, embora a rabeca o tenha projetado para o Brasil. O trabalho tem um acento mais pop, mais rock, após as experiências com a Fuloresta do Samba que sucedeu o Mestre Ambrósio, grupos que integrou. Se a rabeca não aparece no disco, estão lá, no entanto, suas referências interioranas que ajudaram a sedimentar a cena pós-mangue em Pernambuco.

Ela, baiana, ele, pernambucano. Em dois shows – não se encontram no palco – ambos fizeram sua parte para fazer o público sorrir, cantar junto, aplaudir, dançar, se divertir. A Estação das Docas, onde o palco foi armado, ficou pequena para tanta gente, conhecedora ou não do trabalho de ambos os artistas – as apresentações foram gratuitas, pelo Natura Musical.

Ao vendedor de cervejas que indaguei através do gradil, fugindo das long necks a oito reais vendidas nos bares do espaço, “nunca tinha ouvido falar, mas estou gostando. Sempre tem shows bons aqui”, afirmou.

Marcia Castro passeou pelo repertório de seus dois discos e apresentou duas músicas que não estão neles: Menina mulher da pele preta (Jorge Ben) e Jorge Maravilha (Julinho da Adelaide, pseudônimo de Chico Buarque), do verso “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, esta emendada a Você gosta (Tom Zé). Começou por Pois é, seu Zé (Gonzaguinha), cujos versos “a plateia ainda aplaude ainda pede bis/ a plateia só deseja ser feliz” podem perfeitamente traduzir a noite.

“A gente não vai sair para vocês pedirem o bis, se não vão desligar tudo aqui e a gente não volta”, anunciou brincalhona, avisando da impossibilidade de ouvir da plateia o tradicional “mais um”, já que o palco tinha que ser montado para Siba no intervalo. Mandou os hits Preta pretinha (Moraes Moreira e Galvão) e Frevo (Pecadinho) (Tom Zé), antes de deixar a plateia pedindo “mais um”.

“O que eu digo pra vocês uma hora dessas?”, Siba subiu ao palco desculpando-se pelo atraso, decorrente da reorganização do palco entre um show e outro. Logo estava desculpado por todos os presentes, mandando o repertório de Avante, show man que sabe hipnotizar a plateia mesclando o punk rock que corre em suas veias aos idem maracatu, frevo e ciranda, botando o público para dançar e cantar junto.

Poeta-trovador, as letras das músicas de Siba têm força e contam histórias, algo já notado desde que integrava o Mestre Ambrósio e a Fuloresta do Samba. Pontos altos do show, A bagaceira – história de um carnaval supostamente vivido pelo músico – e Canoa furada contam causos pra lá de engraçados, envoltas em ritmos que levam mesmo repórteres desengonçados a mexer o corpo e batucar nas próprias pernas tentando acompanhar os músicos no palco. Siba não recorreu ao repertório do Mestre Ambrósio mas lembrou o Toda vez que eu dou um passo/ o mundo sai do lugar (2007), faixa título de um disco seu com a Fuloresta.

Escoltados por ótimas bandas, ambos disseram da felicidade de tocar em Belém, cidade em que os dois baixavam pela primeira vez, o que por si só já garantiria às apresentações o status de “históricas”. Mas o par de artistas – de mútua admiração, confessada publicamente – não estava ali (apenas) para fazer turismo. Fizeram música da melhor qualidade, com turistas e belenenses tomando parte de um evento de magia e alto astral, aproveitando cada momento de diversão e deleite proporcionados por dois dos maiores artistas brasileiros de nossos tempos.

*O repórter viajou às próprias expensas.

Os 12 discos mais lembrados da música do Maranhão

[Vias de Fato, abril/maio de 2013]

No ano em que completam 35 anos os discos Bandeira de Aço, de Papete,  e Lances de Agora, de Chico Maranhão, lideraram as lembranças de 11 pessoas do meio musical convidadas a votar em uma lista para o Vias de Fato

POR CELSO BORGES E ZEMA RIBEIRO

Esta lista já estava virando lenda. Da ideia às páginas que ocupa nesta edição do Vias de Fato já se vai mais de meio ano. O escritor Bruno Azevêdo já a havia citado em um texto [Homem lúcido e perigoso se dirigindo para o centro da cidade, O Estado do Maranhão, Alternativo, 15/12/2012] sobre Z de Vingança, de Marcos Magah, cuja prensagem pagou do bolso e em que votou em sua lista afetiva. “A ordem é alfabética que meu coração não hierarquiza”, afirmou sobre sua seleção.

O “amadurecimento” da lista ao longo desses seis meses (e pouco) não significa sua “melhora”. Certamente alguns dos convidados a votar mudariam alguns votos, se o convite surgisse hoje. Ou se, sabe-se lá, surgisse daqui a seis meses. Ou ainda se estivéssemos agora vendo uma lista publicada há seis meses ou um ano. Tanto faz.

Lista é foda: sempre excludente. Não tem como: fica um monte de gente boa de fora, mas é um exercício para reflexão e muita, muita discussão e polêmica, principalmente em mesa de bar – ou apenas por lá? O que vão falar mal não está no gibi, mas nem por isso vamos deixar de dar a cara pra bater – coisa que, aliás, o Vias de Fato sempre fez.

O jornal reuniu literalmente um time com 11 titulares ligados à música – djs, jornalistas, poetas, radialistas, escritores, pesquisadores e uma cantora (ainda inédita em disco) – para escolher os 12 discos mais importantes (há controvérsias) da música produzida no Maranhão nos últimos 40 anos (1972-2012). 12 o número médio de faixas de um vinil, se carece explicação, embora a lista no geral não soe saudosista.

Em 2013 completam-se 35 anos dos lançamentos dos discos Bandeira de Aço, de Papete, e Lances de Agora, de Chico Maranhão, que figuram na proa da lista final, embora esta, a lista, antes de elaborada não tivesse certeza de nada – embora seus idealizadores suspeitassem que eles liderariam a “eleição”.

Esta lista que o Vias de Fato ora publica acaba sendo, pois, a homenagem do jornal aos 35 anos destes discos, importantes não só para a música produzida no Maranhão. O primeiro acabou constituindo-se em um marco, por registrar pela primeira vez em disco obras de compositores fundamentais daqui – Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe – que ajudariam a definir o que se convencionou chamar, depois, de “música popular maranhense”; o segundo, até hoje nunca reeditado em cd, orbita em aura mística, por sua gravação na sacristia da Igreja do Desterro, em quatro dias, pelo lendário Marcus Pereira, que descobriu e registrou tanta gente boa Brasil adentro.

Homenagem – As comemorações não param nesta lista: no próximo dia 28 de maio, às 21h, no Teatro Arthur Azevedo, sob o manto já consagrado de sucesso do projeto BR-135, diversos nomes da nova cena musical do Maranhão interpretam o repertório de Bandeira de Aço em um tributo capitaneado, como o BR, pelo casal Criolina, Alê Muniz e Luciana Simões.

O show contará ainda com as participações dos “Compositores do Maranhão” – como consta na capa do vinil Bandeira de Aço – então gravados por Papete. Entre os novos nomes destaques para o duo Criolina, Afrôs, Bruno Batista, Dicy Rocha, Flávia Bittencourt e Madian. Na ocasião será apresentado ainda um documentário sobre o disco, assinado pelos jornalistas Andréa Oliveira, Celso Borges e Maristela Sena.

OS 12 MAIORES DISCOS DA MÚSICA DO MARANHÃO (1972-2012)

Bandeira de Aço, Papete, 1978, 10 votos > Este deve ser uma unanimidade. Puta discão, apesar das mil falhas e (talvez) também pelas polêmicas. É um disco que traça certa paisagem sonora e fica encravado na memória afetiva de quem teve contato com ele. (Bruno Azevêdo)

Lances de Agora, Chico Maranhão, 1978, 6 votos > Considero este um dos discos fundamentais da música maranhense. Poucas vezes um álbum reuniu tanta poesia embalada em ótimas melodias. (Ademar Danilo)

Cine Tropical, Criolina, 2009, 4 votos > O disco aponta os caminhos tropicalistas da paisagem sonora maranhense que encontra ecos no Caribe, Jamaica e outros portos musicais ameríndios e pós-coloniais, tudo com cores e brisas tropicais. (Alberto Júnior)

Bumba meu boi de Pindaré, 1973, 4 votos > Este disco pioneiro contém uma das mais brilhantes gravações já feitas de bumba meu boi. São as raízes maranhenses cantadas por Coxinho. Um mergulho profundo na alma rústica da nossa identidade. (Eduardo Júlio)

O som e o balanço, Nonato e seu Conjunto, 1975, 4 votos > O sucesso Cafua e outras pérolas habitam esse disco formidável que abre a seleta. Viva o maestro Nonato! (Franklin Santos)

Shopping Brazil, Cesar Teixeira, 2004, 4 votos > Autor de um sem número de clássicos da música maranhense, Cesar Teixeira já tinha mais de 35 anos de carreira, contados a partir dos primeiros festivais de que participou, ao estrear em disco solo, já tendo fornecido pérolas para o repertório de muita gente, daqui e de fora – por exemplo, o saudoso menestrel mineiro Dércio Marques, que registraria sua Namorada do Cangaço em Fulejo (1983). O compositor relê parte de sua vasta obra já registrada – Bandeira de aço, Flor do mal e Ray ban – e apresenta inéditas – Met(amor)fose, Vestindo a zebra e a faixa-título, composta ainda na década de 1970, quando o autor se deparou com o primeiro lixão ilhéu (e uma senhora que o habitava) –, além de homenagear “vodus” de nossa música: Antonio Vieira e Dona Teté (que participam do disco), Mestre Felipe e Dona Elza (que comparecem com excertos de gravações do tambor de crioula e do caroço, respectivamente), Rosa Reis (coro), Laurentino (citado em Mutuca) e João Pedro Borges (que assina o arranjo de Flor do Mal). Cesar mistura tradição e modernidade em pirão musical de farta sustança. (Zema Ribeiro)

Antoniologia Vieira, Vários, 2001, 3 votos > Interpretado por 16 vozes a obra deste compositor cuja carreira se sedimentou aos 80 anos contribui para esquadrinhar a trajetória da música popular feita no Maranhão num intervalo de 40 anos. Arranjado por Adelino Valente, o disco reúne as canções mais conhecidas de Antonio Vieira [nota do blogue: acima, no vídeo, a capa do disco; esta gravação não está em Antoniologia]. Os Ingredientes do Samba (música interpretada por Letice Valente) se sobressaem na obra deste compositor de letras simples, sem rodeios, como Na cabecinha da Dora. Sem o esmero da tecnologia, a gravação ganha ainda mais valor como registro. (Henrique Bóis)

Balaio, T. A. Calibre 1, 2002, 3 votos > Costelo (vocais), Ramuzyo (baixo), Christian (guitarra) e Franklin (bateria) fizeram um disco que propõe um diálogo mais próximo entre o hip hop e os ritmos de cultura popular maranhense. (Celso Borges)

O Boizinho Barrica, Boizinho Barrica, 1988, 3 votos > A brincadeira de rua vai para o estúdio e registra os nossos principais ritmos populares: o boi e seus vários sotaques, o divino, o coco. Um disco que também é fundador, para o bem e para o mal. Para o bem porque tem lindas composições de Godão e Bulcão. E para o mal porque abriu a porteira para o chamado boi de butique. Sugiram mais de 30 diluindo e empobrecendo o que o Barrica inaugurou. (Celso Borges)

Claudio Lima, Claudio Lima, 2002, 3 votos > Um disco que ouvi muito, e até hoje me pego botando na vitrola pra cantar Ray ban (Cesar Teixeira) e a “puta que pariu” que a Rádio Universidade censura. Pensa pra fora e grita alto, com um pé dentro, mas só um pé, que quem coloca os dois se atola! (Bruno Azevêdo)

Eu, você e a cidade, Nicéas Drumont, 1982, 3 votos > Natural de Rosário, Nicéas Drumont morreu cedo, aos 39 anos. Deixou mais de 100 composições e foi gravado, em vida ou postumamente, por nomes como Alcione, Leandro e Leonardo, Moacyr Franco, Nando Cordel, Nando Reis, Noite Ilustrada e Rosa Reis. Foi pioneiro ao registrar dois reggaes neste disco: Gavião vadio e Senzalas, com que tomou de assalto as rádios locais. (Zema Ribeiro)

Regueiros Guerreiros, Tribo de Jah, 1992, 3 votos > A banda de Fauzi Beydoun encabeça só pedras neste disco que é a cara dos Regueiros Guerreiros do Maranhão. Destaque também para a linda Neguinha. (Franklin Santos)

AS LISTAS COMPLETAS (SAIBA QUEM VOTOU EM QUE DISCOS) [incluindo a lista comentada deste blogueiro]

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Chorografia do Maranhão: Ubiratan Sousa

[O Imparcial, 12 de maio de 2013]

Fundador do Regional Tira-Teima e autor de mais de 700 composições, Ubiratan Sousa participou de capítulos definitivos da música do Maranhão

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

“O Maranhão é o estado do Brasil que mais bate palma para quem vem de fora e mais renega o seu talento. Aqui não se dá valor para o artista da terra”, afirma Ubiratan Sousa, que revela não ter nenhum tipo de mágoa ou ódio, embora seja um crítico ferrenho da mídia. Cantor, compositor, arranjador, regente e multi-instrumentista, o maranhense nascido na Rua das Hortas, no centro de São Luís, está radicado em São Paulo desde o início da década de 1980, quando atendeu à recomendação de Dércio Marques.

“Ubiratan, tu não podes ficar aqui. Tu tens que ir pra São Paulo”, disse-lhe o menestrel mineiro, em cujo Fulejo (1983), Ubiratan chegaria a tocar e arranjar. Namorada do cangaço (Cesar Teixeira), naquele disco, é dedicada a Chico Maranhão. “Um grande talento, esquecido no Maranhão, como tantos outros bons que temos”, lamenta o sexto entrevistado da série Chorografia do Maranhão.

Tendo tocado e feito arranjos em Lances de Agora (1978) e Fonte Nova (1980), ele cita Chico Maranhão como “um dos maiores letristas do país”. “De letra, é o nosso melhor”, afirma; “somando música e letra, é Mochel”, com quem tocou e para quem escreveu arranjos em Boqueirão (1994).

Ubiratan Campos de Sousa nasceu em 11 de setembro de 1947, filho de José de Ribamar Guimarães de Sousa, comerciário comerciante falecido, e Vinólia Campos de Sousa, doméstica do lar. “Ambos cantavam, meu pai cantava muito bem, minha mãe canta muito até hoje, 90 anos de idade, muito lúcida, uma dádiva, um presente de Deus”, afirma o artista que trocou uma promissora carreira de professor universitário pela música. “Foi um chamado. Passei alguns anos de fome em São Paulo, mas não desisti”, revela ele, que desde então vive de música. “Hoje estou muito bem, graças a Deus”.

Discos fundamentais da música do Maranhão têm as digitais de Ubiratan Sousa, a exemplo dos já citados Lances de Agora e Fonte Nova, de Chico Maranhão, ambos lançados pela Discos Marcus Pereira, Boqueirão, de Mochel, o homônimo de Célia Maria (2001), Pregoeiros (1988), de Antonio Vieira e Lopes Bogéa, Cristóvão Alô Brasil (1999), que reúne parte da obra do sambista madredivino Cristóvão Colombo da Silva, Visitação (2012), de Biné do Banjo, Velhos Moleques (1985), que reuniu Agostinho Reis, Antonio Vieira, Cristóvão Alô Brasil e Lopes Bogéa, e a estreia de Chico Saldanha (1988), além dos primeiros discos do Bicho Terra (Guizos, 1984) e Boizinho Barrica (O Boizinho Barrica, 1982; Baiante, 1983; Barrica, brincadeira de rua, 1984; e Barrica, Bumba Brasil, 1985). Entre seus discos destacam-se Tempo Certo (1984), Rosa Amor (1987), Choro de Pássaros (1990), Capital do Boi (1994), A Alegria do Boi Bunininho (1996) e Bruxaria (2003)

Ubiratan Sousa conversou com O Imparcial/ Chorografia do Maranhão no ECI Museum, na rua 14 de Julho, Praia Grande, ao lado da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo. A chororreportagem aproveitou a passagem do músico pela Ilha, que ele visita para trabalhar no projeto do sonhado, aguardado e, nunca é tarde, primeiro disco do Regional Tira-Teima. Era uma tarde chuviscosa em São Luís e um reggae tocado em alto volume, oriundo da vizinhança, entrava pelas janelas do segundo andar da edificação.

Além de músico qual a tua outra profissão? Eu prefiro me concentrar na música. Eu trilhei outro caminho, mas quando a gente coloca o outro lado, as pessoas minimizam, eu prefiro dizer que sou músico. Honrado, vivo de música, eu prefiro dizer isso.

Mas tu chegaste a dar aula no curso de Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão. É, fiz, formei, dei aula na área de psiquiatria, mas eu prefiro esquecer esse lado, vamos concentrar na música. A música é o meu mundo.

Qual era o universo musical da tua infância, em casa, o que tu ouvias, que estímulos recebia? Aos 14, 15 anos, meu irmão, Sousa Neto, poeta, parceiro, saudoso, faleceu ano passado, ele me colocou um violão na mão. Foi aquela paixão. Com esse violão eu fui estudando, fui desenvolvendo e fui buscando outros instrumentos, cavaquinho, contrabaixo. E o ambiente em casa era música, meu pai cantava, minha mãe, principalmente, cantava. Depois nós fomos buscando amigos, como João Pedro Borges, que morava ali na Rua de Santaninha, na época eu já estava na Rua de São Pantaleão, e fomos trocando ideias, informações, ele caminhando mais para o lado erudito, e eu, um pouco de erudito, mas cambando para a parte de música popular, e trocamos informações.

Quem foram os teus mestres do violão? Na verdade eu fiz um caminho como o que Hermeto Pascoal fez: do autodidatismo. Eu não tive propriamente nenhum professor. A única coisa que eu tive na formação foi um curso com Ian Guest, que é um papa. 80% da classe artística brasileira, dos compositores, passou por ele. Ele deu um curso aqui em São Luís e eu me destaquei muito nesse curso, ele me deu o diploma por antecipação. Eu sou uma pessoa que observo. Algumas coisas observei de João Pedro, Turíbio [Santos], Jodacil [Damasceno], mas nunca tive assim um cara que me desse aula; eu sempre pesquisei, fui um autodidata.

Com quantos anos tu consideraste que tocava? Ah, eu evoluí rapidamente. Acho que com dois anos eu já estava preparado e comecei a dar aula. Eu dei aula para uma geração aqui, acho que 80% dos colegas passou pelas minhas mãos. Ensinei, acredito, mais de duas mil pessoas, entre profissionais, muito menos, e pessoas que têm outra profissão, tocam por diletantismo, ensinei muita gente, tanto aulas particulares como na Escola de Música. Lecionei muito.

Observando fichas técnicas de vários discos que tu produziste, que tu tocou, a gente vê teu nome fazendo várias coisas, tocando violão, percussão, cavaquinho, contrabaixo. Não quero dizer que o violão não bastava, mas o que te levou a buscar outros instrumentos? A musicalidade dentro de mim sempre foi muito grande. Lembro que quando meu irmão me entregou esse violão, eu não parava, eu ficava mais de 10 horas por dia em cima desse violão, tentando descobrir.  Houve a necessidade de descobrir outros instrumentos, por que eu estava descobrindo a minha capacidade de arranjador, e pra isso eu precisava conhecer outros instrumentos, pra poder escrever pra esses instrumentos, e comecei a estudar o cavaquinho, o contrabaixo, e comecei a utilizar profissionalmente, no conjunto Samanguaiá Boys, da Prefeitura, que eu toquei, naquela época, nos anos [19]60, 70, depois o Big Nove, conjuntos de baile. E aí você vai aprendendo mesmo pra valer, repertório em cima da hora, pedido em cima da hora, aí fui desenvolvendo com Zé Américo Bastos, ele tocava acordeom, às vezes João Pedro tocava o baixo e me passava a guitarra ou vice-versa. O que me levou foi a necessidade de ser arranjador.

E a tua ida para São Paulo? É preciso fazer um retrospecto: fomos eu, [o compositor Giordano] Mochel, [o compositor] Tião [Carvalho] já estava lá, [os percussionistas] Manoel Pacífico e Erivaldo [Gomes]. Formamos um grupo, fizemos muitos shows, no [teatro] Lira Paulistana, no SESC.  A gente fez esse trabalho e começou a sentir necessidade de produção. Quando a turma começou a ver as produções que eu fiz para Dércio Marques, Chico Maranhão, a turma começou, “esse rapaz tem alguma coisa pra dizer”, e começou a me suscitar para fazer esse lado de arranjo. Fizemos [arranjos] para Alcione, Dominguinhos, Leci Brandão, e fomos abrindo, e pra pessoas que não estão na mídia, de trabalhos importantes, como a Morena, uma cantora pernambucana que tem um disco belíssimo. E fomos fazendo também para pessoas que não eram conhecidas. E entra Barrica, entra Bicho Terra, entram muitas histórias nesse trabalho de arranjador, e entra o chorinho também. Sorte não existe, existe plantar e colher, mas vamos usar essa palavra. Formei o Regional Madeira de Lei, formado por grandes músicos, expressões nacionais, como [Antonio] Carrasqueira na flauta, Isaías no bandolim, um chorão de alto nível, da geração antiga, Edmilson Capelupi, um grande violonista e arranjador, Gentil do Pandeiro, um museu da história do choro, e Haroldo Capelupi, pai de Edmilson, no cavaquinho, uma grande mão direita, uma capacidade muito grande do chorinho. Fizemos mais ou menos 35 músicas, onde 15 eram músicas minhas, e 20 músicas eram clássicos como Brasileirinho [de Waldir Azevedo] e Noites Cariocas [de Jacob do Bandolim], com arranjos modernos, segundo eles, mais avançados que Radamés Gnattali. Esse grupo existiu durante um ano, mas não existia muito espaço para coisas avançadas: era o choro tradicional, que é uma predominância hoje em dia. Alguém disse que o Brasil é conservador. Eu culpo a mídia. Não quero citar o povão como baixo nível cultural, isso é até desagradável. Eu culpo a mídia: a mídia é formadora de opinião, ela vem invertendo o processo, fazendo a lavagem cerebral através do jabá. É dificílimo mudar isso. Mas voltando, a gente imprimia esse caráter avançado, quando eu cheguei a São Paulo, eu fui muito afoito na história do choro, fui muito afoito pra fazer uma revolução. Eu não me conformava com Brasileirinho tocado do mesmo jeito, Noites Cariocas com a mesma introdução, aí eu quis inovar. Não cheguei com cautela e aconteceu o seguinte: houve uma rejeição inicial, quase eu fico discriminado como um cara esdrúxulo, até metido, no começo, e não era a minha intenção. Eles chegaram a fazer cartazes [risos], em que eles me desenhavam em cima de um jumento e diziam “Bira, volta pro Maranhão, tu tá trazendo coisas muito complexas”. Aí eu fiz o seguinte, eu disse que a minha proposta era aquela, mas mostrei choros tradicionais, eu tinha valsas, polcas, maxixes, coisas da linguagem tradicional, e comecei a mostrar, e fiz algumas músicas com nomes interessantes como Esses vocês gostam, Como vocês querem, aí eles perceberam que eu era um chorão. Quando eles viram que eu fazia também o que eles faziam, aí eles entenderam. Há um depoimento no Youtube do Luizinho Sete Cordas falando sobre isso. “Vocês pensam que o que o Bira faz é só encrenca? Realmente não é fácil, mas tem beleza”. Eu tive o cuidado de procurar ser aceito, hoje em dia eles me consideram um chorão, mas que eu extrapolo, como Hermeto extrapolou. Existem três caminhos na música: aquele que utiliza a música em benefício próprio, para sua sobrevivência, ou para o ego, sua promoção pessoal; existe aquele que trabalha pela música, aquele que promove, que briga com a mídia, que briga com a injustiça, que fala dos colegas, que promove; e existe o terceiro aspecto, aquele que é a música: Hermeto é a música! Eu se fosse me rotular, me rotularia no segundo nível: que ama a música, que luta pela música, que fala dos colegas, que promove.

Tu também tiveste participação na origem dos grupamentos de choro por aqui. Qual foi a tua contribuição no choro daqui? Eu fui fundador do Tira-Teima. Muitas pessoas participaram: Domingos [Santos], no violão de sete cordas, [o cavaquinhista] Paulo [Trabulsi], Pitoca, no clarinete, aquele pandeirista, daqui a pouco eu vou lembrar o nome dele [Carbrasa, ele informaria depois, por e-mail], Adelino Valente, no bandolim, Jansen, no bandolim, [os percussionistas Antonio] Vieira e Arlindo [Carvalho]. Houve muita mudança. Eu tive a felicidade de fundar o Regional Tira-Teima e imprimir esse caráter: de não tocar as mesmas coisas do mesmo jeito. O Brasileirinho da mesma forma é lindo, eu não quero menosprezar, mas há a necessidade de progredir, como [o bandolinista] Hamilton de Holanda faz, como [o violonista] Yamandu [Costa] faz, e outros grandes chorões fazem, [o bandolinista] Luis Barcelos, tem muita gente fazendo, é interessante. Tudo o que havia de choro eu tava lá no meio, um cara que ama o choro, e luta, e por isso fico feliz de ter vocês como uma grande força de propulsão do choro no Maranhão.

Na condição de membro do Tira-Teima, na época, participaste de um momento lendário da música do Maranhão, o disco Lances de Agora, de Chico Maranhão, até hoje um disco infelizmente mais falado do que ouvido, por conta da aura mística que se criou em torno dele, da gravação na Igreja do Desterro, além de sua perspectiva chorística. Fale um pouco desse capítulo. Se tratava de um disco gravado ao vivo. A produção era aquela que nós tínhamos, eram poucos músicos. Eu tinha que fazer mais ou menos aproveitando os elementos da terra, de acordo com a capacidade, com a experiência e a vivência dos músicos. Naquela época, não só pelo envolvimento que eu tinha com o choro, mas a própria música do Chico já conduzia a isso, não vinha só de mim, como arranjador ou produtor. Não havia grana para uma grande produção, mas foi interessante por que foi feito ao vivo, na marra, naquela época, com um gravadorzinho pequeno, de poucos canais, se se errasse era complicado, tinha que estar bem treinado. Não teve muito mistério.

Além do Madeira de Lei em São Paulo e, antes, do Tira-Teima, em São Luís, tu chegaste a participar de outros grupos musicais? Não, eu não entrei em outros grupos. Eu toquei muito em rodas de choro, mas não participei de outros grupos. Desenvolvi em alguns discos o choro, vocês vão ver que eu misturo músicas cantadas com músicas instrumentais.

Mas na tua juventude tu não participaste de grupos ligados à beatlemania, à jovem guarda? Claro! A jovem guarda, o Samanguaiá Boys, da Prefeitura, do [Epitácio] Cafeteira, tocamos na TV Difusora, cantávamos Roberto Carlos, Erasmo Carlos, enfim. A nossa atividade aqui, se a gente for relatar, acaba a entrevista. Eu tou concentrando no choro, por que vocês são chorões [risos]. Mas sendo sintético, eu entrei na área do vocal, fiz um quinteto que cantava especificamente os Beatles, com os irmãos Saldanha, Chico, que é médico em Brasília e João Pedro no violão. Era metendo os Beatles na linguagem do [conjunto vocal] Os Cariocas. Depois eu formei um trio, eu, Ubirajara e Sousa Neto, os Timbira Boys, cantávamos na rádio Timbira uma vez por semana. Depois Sousa Neto saiu e entrou o falecido Jafir.

Quantas composições tu tens? Mais de 700, em vários estilos: música regional, chorinho, samba, frevo, maracatu, jazz, fox, valsa, é uma diversidade muito grande.

Tu lembras com quantos anos fez a primeira? De 15 pra 16 anos, é um prelúdio, o Prelúdio nº. 1.

Em tua vasta vivência musical, como tu definirias e o que significa o choro pra ti? O choro, não só pra mim, tem importância pra todo músico, trabalha numa linguagem ampla, complexa, que exige dedicação para o entendimento da sua forma e da sua execução. As peças exigem um nível de capacidade técnica muito alto, e isso dá uma formação muito grande ao músico, principalmente ao músico, não só ao compositor. Qualquer solista de choro tem que ter uma habilidade técnica alta, se não ele não vai conseguir tocar. É uma música alegre, que leva felicidade às pessoas, contagiante, envolve um ritmo gostoso, mistura, se aproxima do samba, é uma coisa impressionante, são melodias belíssimas.

Que mensagem tu deixaria para quem ainda acha que choro é música de velho? Primeiramente a gente precisaria saber quem está dizendo isso. Se for um jovem que gosta de rock, da dança, que está nas baladas, ele pode achar, por que ele não vai encontrar talvez aquela coisa eletrizante, embora ele possa até dançar. Mas eu prefiro dizer o seguinte: não está sob a ótica da mídia, não está sendo enaltecido pela mídia, e as pessoas vão atrás do que a mídia diz. A gente sabe que, por exemplo, as novelas criam moda, penteados, roupa, até a forma de agir, as vinganças que são propagadas nas novelas. A mídia faz uma lavagem cerebral. Quando a pessoa vê que o choro não está na mídia, ela relega. Essa pessoa que diz que choro é coisa de velho vai dizer que o samba de raiz também não presta e vai bater palmas para o pagode, por que a mídia bate palma. Hoje em dia o artista é medido não por sua capacidade, não por seu trabalho, mas por sua conquista, ou seja, o cara que não toca nada, não compõe nada, mas tá na mídia, esse é considerado o bam bam bam da história: há uma inversão de valores.

Como tu tens observado o desenvolvimento do choro nas últimas décadas? Uma coisa impressionante, alvissareira, uma coisa que nos joga pra cima, nos dá alento, nos fortalece, dignifica a profissão de músico no Brasil. Eu estive em 2000 participando de um festival nacional no Museu da Imagem e do Som [no Rio de Janeiro] e pude constatar garotos de 14, 15, 16 anos tocando muito bem o choro, da Escola Portátil de Luciana Rabello. Aquilo ali foi uma demonstração. Você vai a Brasília, você vê muitos jovens tocando, São Paulo, o Brasil todo. Aqui mesmo teve o Choro Pungado, uma proposta bacana, antes do que eu fiz [a mistura de choro com ritmos da música popular do Maranhão] no disco [Visitação] de Biné [do Banjo].

Quem é o grande instrumentista do choro, hoje? Eu não diria só do choro, mas tem um instrumentista e compositor muito bom, quer dizer, tem vários, mas tem um que quando eu vejo ele compor ou tocar, principalmente tocar, não dá mais vontade de eu pegar o instrumento. Ou o contrário: eu tenho que estudar 12 horas por dia. Chama-se Yamandu Costa. Aquilo não existe, é uma coisa 100 anos à frente. Como nasceu um Pelé no futebol, nasceu um Yamandu na música. Eu não tenho mais nem superlativos para usar.

Tu já participaste de vários discos, compondo, tocando, arranjando. Que discos tu destacaria como mais importantes dessa discografia? Todos. Cada disco é uma história. Todos têm sua importância. Todos foram momentos de alegria, satisfação, de dever cumprido.

Minha primeira vez num jornal

Foi há 27 anos. Era domingo, 20 de abril de 1986. Eu tinha quatro anos de idade. Até falecer em 2007, meu saudoso avô Antonio Viana guardou a edição 8.632 de O Estado do Maranhão em que fui capa.

Outro dia, conversando, minha avó Maria Lindoso falou-me do exemplar, que eu até então não conhecia, ou não lembrava. Trouxe-o para digitalizar e compartilhar com meus poucos mas fieis leitores.

Era uma materinha sobre uma campanha de vacinação infantil da época e os efeitos do período chuvoso sobre as filas nos postos.

Destaque na capa, mamãe, por exemplo, não depõe no texto para o qual a foto chama; ela simplesmente foi retratada segurando o guarda-chuva e carregando minha irmã, enquanto eu e meu irmão somos conduzidos por Nilta “de Tereza”. De esquerda, apareço à direita na foto.

A primeira vez do blogueiro num jornal (clique para ampliar)

Chorografia do Maranhão: Robertinho Chinês

[Mais uma entrevista com “bonus track”; essa saiu um pouquinho menor nO Imparcial de 28 de abril de 2013]

Robertinho Chinês foi saudado como garoto prodígio do cavaquinho e bandolim ao tocar, de igual pra igual, com grandes mestres do choro no Maranhão. Detalhe: o quinto entrevistado da Chorografia do Maranhão acabara de deixar a infância 

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Robertinho ou Robertão? Eis uma pergunta que Chorografia do Maranhão não fez a Jorge Roberto da Silva dos Reis, revelado há alguns anos como garoto prodígio do instrumento que deu sobrenome a mestres como Carrapa, Índio, Jair, Juca e Zeca. Tinha de 13 para 14 anos quando começou a frequentar as rodas do Clube do Choro Recebe. Não demorou muito a enveredar pelo bandolim de mestres como Evandro, Jacob, Reco e Ronaldo, para ficarmos também naqueles a quem o instrumento deu sobrenome artístico.

Robertão ou Robertinho?, vice-versa, a pergunta não feita se justificaria: Robertinho, o diminutivo de seu nome de batismo, o nome artístico herdado do sobrenome artístico do pai; Robertão por sua estatura: 1,92 de altura. O talento e o discernimento e a modéstia, faltam fita ou régua pra medir – Robertinho conversa feito gente grande (e aqui não estamos falando da altura física).

Nascido em São Luís em 16 de setembro de 1993, Robertinho Chinês é filho da assistente social Nivalna Justo da Silva e do contabilista Rosanil Carlos dos Reis, percussionista do grupo Espinha de Bacalhau, mais conhecido no universamba da Ilha por Chico Chinês, uma das grandes influências e incentivadores do filho.

Robertinho Chinês não bebe nada alcoólico – ao fim da conversa secou uma garrafa de água. Conversou com os chororrepórteres no Bar do Léo, que tem seu disco no vastíssimo acervo. Feitiço da vila, de Noel Rosa e Vadico, foi a música que o garoto escolheu para encerrar a conversa em uma tarde de sábado chuviscosa.

Qual o teu universo musical familiar? Sempre teve música na tua casa, na tua família? Além de teu pai, tua família tem outros músicos? Meu pai foi o grande influenciador, por sempre gostar muito de samba. O samba sempre esteve muito presente na minha vida. Minha família, de modo geral, é muito ligada à música, apesar de não ter tantos músicos assim. Mas a música sempre foi muito presente na minha casa.

Quando tu foste descoberto como garoto prodígio da música no Maranhão, por ter começado a tocar cavaquinho muito novo, numa entrevista ao jornalista baiano Iuri Rubim, tu disseste que, depois de tocar, o que tu mais gostavas era de estudar. Isso continua? Continua. Não como eu gostaria que fosse, pela escassez de tempo, da correria do dia a dia, mas o estudo dos instrumentos, da música, e das outras coisas ainda está muito presente.

Tu começaste pelo cavaquinho. Por que a escolha pelo bandolim? Eu comecei a tocar bandolim por insistência do [violonista] Luiz Jr. Ele falava, “ah, bicho, cavaquinho tu já tá tocando o que tem pra tocar. Tu precisa ter um instrumento que te dê uma amplitude maior, te dê um novo horizonte”. Daí ele insistiu tanto, passaram uns dois, três anos, eu fiquei mais próximo dele, e consegui um bandolim. O primeiro bandolim que eu tive foi graças a ele, ao [pianista] Carlinhos Carvalho [irmão de Luiz Jr.], que se juntaram com mais alguns amigos e me deram um bandolim de presente. Ele foi o grande incentivador para que isso acontecesse, pra eu tocar bandolim hoje.

Foi a escolha correta? Meu instrumento mesmo é o cavaquinho. Bandolim até hoje eu ainda estou aprendendo. Eu não posso dizer que eu toco, é um instrumento bastante difícil de tocar. A maior dificuldade que eu tenho até hoje é querer tocar bandolim bem, que eu ainda não consegui.

Cavaquinho tu toca com maior tranquilidade. Não é bem tranquilidade, mas eu tenho uma segurança maior tocando cavaquinho que bandolim. Não que eu domine nenhum dos dois, mas o cavaquinho eu acho que eu consigo desenvolver um pouco melhor.

Qual a diferença básica entre o cavaquinho e o bandolim, para os leigos? A diferença, de cara, é a afinação. O bandolim tem a afinação tenor, mi, lá, ré, sol. No caso do [bandolim de] 10 cordas, tem um par a mais, que é o dó. No cavaquinho é ré, sol, si, ré. E o número de cordas, obviamente.

As possibilidades no cavaquinho são mais limitadas? Muitos falam que sim, mas depende do que a pessoa entenda como limitado, por que hoje a gente vê cavaquinho de cinco cordas, o [cavaquinhista] Márcio Marinho, o [cavaquinhista] Arley Henrique, lá de Minas, os caras tão fazendo no cavaquinho o que ninguém imaginou, tocando coisas bastante difíceis, tocando lances de melodia e harmonia que nunca tinham existido na história do instrumento. Eu acho que não é tão limitado quanto o pessoal diz.

Tu tens preferência por um instrumento ou outro? Tu vieste para a entrevista e trouxe o bandolim, não o cavaquinho. Na capa do disco apareces empunhando o bandolim, e não o cavaquinho. Preferência não existe, mas hoje, pela necessidade, eu tenho que estudar mais o bandolim. Mas os dois instrumentos são grandes paixões na minha vida.

Você é muito instigado pelo bandolim, parece que ele te move, que ele te desafia, não é? É a necessidade de estar buscando sempre algo novo, ter que estar desenvolvendo algo no instrumento. É muito complexo. Se eu passar um dia sem pegar, no outro dia parece que é a primeira vez que eu tou triscando no instrumento, pelo grau de dificuldade que ele tem.

Tu começaste a tocar com quantos anos? Comecei a estudar música, se eu não me engano, foi com oito, nove anos, lá no Monte Castelo, com Joãozinho [posteriormente indagado sobre o sobrenome do professor, Robertinho disse que não sabia. “Bota Joãozinho do Monte Castelo que todo mundo sabe quem é”]. Fiz aula com ele um bom tempo, depois fui pra Escola de Música [do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo], aprendendo nas rodas de choro, de samba.

Além de Joãozinho, quem mais foram teus mestres? De instrumento mesmo foi o Joãozinho. Mas o [o professor] Juca [do Cavaco] teve uma influência boa na minha formação como solista de cavaquinho, o [cavaquinhista] Paulo Trabulsi também contribuiu bastante. Eles eram minhas referências de cavaquinho aqui. Tem o Waldir [Azevedo] também, que não precisa nem falar, mas aqui eram eles, e hoje ainda são. Os caras têm uma contribuição muito importante pra música daqui, pro choro.

Tu citas o Waldir como grande instrumentista. Quem são os teus instrumentistas preferidos, restringindo ao cavaquinho e ao bandolim? Cavaquinho posso dizer que é o Waldir Azevedo. Atualmente é o [cavaquinhista] Pedro Vasconcelos, sem dúvidas, foi importantíssimo pra mim. É meu amigo particular, professor lá em Brasília, tem o Márcio Marinho, que eu sou bastante fã. De bandolim minha maior escola é o Jacob [do Bandolim], mas aí tem também o Ronaldo [do Bandolim, do Trio Madeira Brasil], Joel Nascimento, Pedro Amorim. Atualmente é o Hamilton [de Holanda], que eu acho que foi de grande influência na minha música e é influência até hoje, pra muita gente, nesse instrumento.

Por que ele tem uma levada mais jovem e você acaba se identificando muito com isso, não é? Costuma se dizer que a história do bandolim tem o antes do Hamilton e o depois do Hamilton. Por que o que ele vem fazendo por esse instrumento, acho que vai demorar muito tempo pra aparecer outra pessoa com a mesma importância. Ele conseguiu mudar aquela visão do bandolim como apenas um instrumento específico do choro e do samba, como era antigamente. Ele mostra que não é só isso, que a gente pode ir muito além, com os lances de bandolim solo, das formações que ele vem fazendo, tocar com banda, trio, duo, enfim.

Teus pais sempre te apoiaram na tua vocação musical? Meu pai sempre apoiou bastante. Minha mãe no começo tinha certo receio de eu ser músico. Ela gostava que eu estudasse música, mas tinha aquela preocupação, por que músico é sempre mal visto, o lance da boemia, ela tinha preocupação com esse lance de bebedeira, da farra. Mas eles sempre deram todo apoio e suporte que eu precisei, na medida em que eles podiam fazer pra mim. Tudo o que eles puderam fazer, eles fizeram.

Tu estás fazendo faculdade de música? Ou outra faculdade? Estou fazendo o curso superior, licenciatura em música, na UFMA.

Tem uma pressão de alguém da tua família, ou de fora, para tu teres uma carreira paralela? Tipo, se a música não der certo, vai ser advogado, vai ser médico, por que é isso que dá dinheiro. Pode até existir, mas nunca ninguém chegou e falou isso pra mim. O pessoal da minha família, em geral, não só meu pai, minha mãe, meus irmãos, o povo lá de casa, todo mundo sempre apoiou bastante. Lutaram junto comigo pra que isso acontecesse. Se eu sou músico hoje eu devo muito a eles.

Você começou a estudar música com oito anos. Quando foi que se considerou ou que começou a atuar como músico, profissionalmente? Até hoje eu não me considero músico profissional, por conta das minhas limitações. A gente vive em constante aprendizado. É difícil a gente falar que é músico profissional com essa gama de músicos que tem hoje espalhado em todo canto. Pra gente falar que toca um instrumento é bem complicado. Prefiro dizer que eu tou aprendendo todo dia esses dois instrumentos que eu tento tocar.

Quando foi que tu ganhaste teu primeiro cachê com música? Lembra o que fez com o dinheiro? Eu acho que foi numa roda de samba. Foi engraçado. Meu pai ia tocar num samba lá na Fonte do Ribeirão, eu tava aprendendo a tocar cavaquinho. Levei o cavaquinho numa sacolinha [risos], aí chegou lá, parece que o pessoal da harmonia faltou, só tinha o Cacá [do Banjo] tocando banjo. Eu sempre levava, pra ir pegando, praticar o que eu estudava. Nesse dia eu fiquei sentado, quando me espantei já tava tocando na roda com o pessoal. No final já rolou um cachê, mas eu não lembro exatamente quando foi. O que eu fiz com o dinheiro não recordo agora, não.

O primeiro cachê deve ter sido motivo de muita alegria pra ti. É, por que estar estudando e já estar ali tocando, com os caras que eram referência pra mim, aí pegar ali cinquentinha, sei lá quantos contos, era um mundaréu de dinheiro [risos].

De lá pra cá já se vão anos, veio o Choro Pungado, veio muita coisa na tua vida, tu participando de vários grupos de samba, tocando com grandes nomes do samba nacional. Tu moras com teus pais, depende deles. Mas dá para viver de música hoje? Tuas necessidades hoje poderiam ser supridas por tua atividade musical? Hoje o mercado da música em São Luís permite a um músico da tua qualidade viver de música? Dá sim. Eu moro com meus pais, mas se eu quisesse morar só, dava para viver tranquilo. Tem muita gente que vive exclusivamente da música, eu digo que é operário da música. Dá pra viver. Mas acontece uma coisa bem chata. A gente vê muitos músicos bons aqui na cidade que acabam não tendo pra onde correr e tendo que viver da música comercial. Não tão fazendo aquilo que eles realmente gostam de fazer, que é tocar música instrumental, samba de qualidade, não desmerecendo o samba midiático, mas muita gente hoje se reclama disso, bastante músico, até da minha geração.

Tu tens que fazer isso de vez em quando? Tenho. Pela necessidade, pela falta de opção. Aqui a gente sofre de um problema cultural muito sério, vocês sabem disso, como é a realidade. Infelizmente não temos para onde correr. Espero bastante que mude um pouco esse cenário um dia.

Tu participaste de um acontecimento muito importante na história do choro recente do Maranhão: o grupo Choro Pungado. O que significou estar tocando com aquela turma? Foi importantíssimo. Eu bem novinho, com 13, 14 anos. Na verdade era o Quartetaço, a primeira formação deles. Aí o Ricarte disse “vai lá, vai ter uma formação legal, eu te boto pra dar canja com os meninos, lá no [projeto] Clube do Choro [Recebe]”. Aí Ricarte e Luiz Jr. botaram o pé na parede pra eu participar do grupo. Foi uma escola muito grande, não só de choro, mas de música instrumental, os caras são referência pra muita gente. Luiz Cláudio, Luiz Jr., Rui Mário, João Neto, todos eles são importantíssimos pra música daqui da nossa cidade, do estado, e também pra música brasileira, pela história deles e pela musicalidade particular de cada um.

O Choro Pungado tinha uma proposta muito interessante que era mesclar o choro aos ritmos da cultura popular do Maranhão. Ele foi formado dentro da ideia do Clube do Choro Recebe, de estabelecer o diálogo dos chorões com artistas da música popular, da música cantada. O que tu acha que foi responsável pela vida curta do grupo? Houve alguma briga nesse processo de separação? É complicado trabalhar em grupo por que cada um pensa de um jeito, cada um acredita numa coisa diferente. Foi bom o tempo que durou, foi um aprendizado pra todos nós. Acho que foi importante o que a gente fez, por que eu acredito que nunca ninguém tenha feito o que o Choro Pungado fez na época, juntar os ritmos de nossa cultura popular com clássicos do choro, clássicos da música brasileira. Não houve briga, não. Foi pela falta de tempo de alguns, outros já não acreditavam mais no trabalho.

De que outros grupos musicais você já participou como integrante? Participei do Espinha de Bacalhau, dOs Madrilenus, uma temporada de seis meses, Farinha d’Água, que eu fiz um tempo com João Neto e João Eudes; do Argumento.

Antes de falarmos nele, além de teu disco solo, de que outros discos já participaste? O disco da Lena Machado [Samba da Minha Aldeia, 2010], o da Célia Maria que vai sair agora, produzido e dirigido por Luiz Jr. Teve o do Gildomar Marinho [Olho de Boi, 2009], com participação da Ceumar [na faixa Alegoria de Saudade, samba-choro de Gildomar Marinho], discos de carnaval, festival, gravação de São João, eu sempre tou muito envolvido nessas épocas.

Além de instrumentista, que outras habilidades tu desenvolves na música? Eu tento forçar um pouco esse lance da composição. Tou tentando partir agora pra esse lado do arranjo, tentar desenvolver um pouco mais da musicalidade, que é importante também. Não só tocar um instrumento, mas ver a música um pouco mais na frente.

O que te inspira pra compor? Vai muito do momento, das coisas que eu tou passando. Engraçado é que eu sempre componho quando estou muito triste, ou sozinho em casa ou aconteceu algo muito sério. Sempre foi assim, a maioria [das composições] sai assim.

Quantas músicas tu tens? Não tenho muita coisa não. Acho que tem umas cinco no disco, minhas ou em parceria, com Jr., com Pipiu. Tem umas agora que eu tou compondo, teve umas duas que eu fiz de bandolim solo, cavaquinho solo, mas acho que não deve passar de umas 15 músicas, por que muita coisa do que eu faço eu gosto no momento, mas depois eu deixo de mão, por que eu não acho mais legal.

Qual a tua experiência com outros ritmos que não choro e samba? Já toquei algumas coisas diferentes em shows, não é uma coisa que eu busquei. Admiro muito, mas não tenho esse conhecimento. É de grande importância para o instrumento, para a técnica, mas ainda não tenho. Pretendo chegar um dia a estudar, conhecer um pouco mais, a ter domínio dessa área.

Pra você, o que é o choro? E qual a importância do choro para a música brasileira? Tem toda importância. As principais referências da nossa música são da escola do choro. O choro eu costumo dizer que é a festa do brasileiro: em todo canto que a gente vai vê ali um grupo de choro tocando, num barzinho ali, ou num show grande acolá, vê grandes instrumentistas hoje tocando choro, ou que saíram daquela escola de choro, e vê muita gente nova se interessando por esse gênero.

Tu te consideras um chorão? É complicado a gente se intitular alguma coisa. Mas eu tento buscar conhecer bastante do que é produzido no choro, não só de hoje, mas do pessoal mais antigo, dos primórdios.

Como é que tu ouves música? Pelo seguinte: temos entrevistado pessoas mais velhas, que se lembram do rádio, de como era difícil conseguir vinis. E tu estás na era do download. Baixar música, comprar cd, como é que tu faz? Pela carência da gente em encontrar disco aqui fica quase inevitável a gente não ter que baixar música, discos. Sempre que posso e encontro, compro. Agora mesmo eu estive lá no Rio [de Janeiro], passei uma semana lá, entrava nas lojas feito doido. Gastei mais dinheiro comprando disco do que passeando na cidade. Sempre que eu posso eu compro bastante cds, dvds.

Quando tu vais ao Rio, tu manténs contato com os músicos de lá? Em Brasília sabemos que sim. O Rio foi a primeira vez que eu fui, agora no começo de março. Eu conhecia algumas pessoas de lá, cantores com que eu tinha trabalhado aqui, acompanhado, também alguns músicos, que vieram de lá pra cá fazer shows, criou-se uma amizade. Eu ‘tive lá agora, fiz contato com alguns, liguei pra Julieta [Brandão], primeira cantora de lá que eu acompanhei. Ela disse “ah, legal que tu tá vindo. Vou te botar pra fazer uns shows aqui comigo”. Chegando lá ela arrumou uns trabalhos, apareceram uns negócios pra dar canja, lá pela Lapa. Foi importante ver que a coisa é mais séria do que a gente imagina.

Como é que tu tens observado o desenvolvimento do choro em todo o Brasil? Há um grande desenvolvimento, sempre. Até os caras que são de outras áreas a gente vê buscando o choro, gente que não tocava choro e tá tocando choro hoje.

E o movimento choro em São Luís do Maranhão? Sinceramente tá uma coisa bem triste. Teve época que a gente tinha música instrumental aqui de segunda a segunda. Chegava no [bar e restaurante] Antigamente [então na Praia Grande], segunda-feira tinha lá o [cavaquinhista] Roquinho tocando com o [grupo] Um a Zero, terça tinha o Juca tocando com o [Instrumental] Pixinguinha no lá no [bar] Por Acaso [Lagoa da Jansen], quarta-feira tinha o [Regional] Tira-Teima não sei aonde, sábado o Clube do Choro Recebe, que era famosíssimo. Hoje a gente quase não vê choro acontecendo. Uma coisa bem triste é chegar no [bar] Barulhinho Bom [Lagoa], quinta-feira, o Tira-Teima, os caras que são referência do choro, tocando pra duas mesas. A cena está bem complicada, embora pudesse estar bem melhor diante do que já foi.

A que tu credita essa desarticulação? Nós, músicos, temos uma parcela de culpa grande nisso, mas o problema maior é a questão cultural, do pessoal absorver o choro como música, não só o choro, mas a música de boa qualidade, por conta da mídia em si, que tem compromisso com a propaganda.

Mesmo nesse terreno meio árido, é possível observar o surgimento de novos valores? Tem muita gente boa surgindo. A gente vê [o bandolinista e cavaquinhista] Wendell [Cosme] tocando bandolim, ele é respeitado no Brasil todo. O pessoal vê ele tocando no youtube, nessas coisas aí de internet, os caras ficam doidos. Aí fora, o pessoal que é referência do choro dá valor; aqui, ninguém quer dar valor.

Que outro instrumentista tu destacarias como alguém que merece atenção? Um cara que pra mim é uma referência muito grande e que eu acho que não tem o valor que merece aqui, como muita gente, é o [sanfoneiro e pianista] Rui Mário, um instrumentista fora do sério. Pra mim ele é um dos principais de nossa cena instrumental.

Luiz Jr. te dirigiu em teu disco. Como tu o observas? É um bom músico, com ideias bastante boas e interessantes. Tenho um respeito grande por sua música.

Como foi o processo de seleção de repertório de Made in Brazil [seu disco de estreia]? Foi uma correria danada. Esse disco surgiu por culpa do [músico Arlindo] Pipiu. Tinha aberto o edital [da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão], ele me ligou, eu gravava bastante com ele. Nisso, ele já saiu ligando pra [os compositores] Josias [Sobrinho], Cesar [Teixeira], “vamos pegar música, dá uma música aí pro Roberto gravar”. Tem música do Pipiu também. Teve muita gente com que não se conseguiu contato de imediato e o prazo já estava vencendo e faltava parte do repertório. Aí eu tive que compor algumas, eu só tinha uma música pronta. Fiz no calor do momento pra fechar o repertório do disco.

Já estás pensando no segundo? Eu tou pensando em gravar um disco novo, mas eu fico muito preocupado, por conta da qualidade dos discos instrumentais que estão saindo hoje em dia. Pela quantidade de bandolinistas que eu tou conhecendo, alguns com quem eu já tenho amizade, é uma coisa muito séria. Eu achei legal ter feito este disco, foi um aprendizado, mas me preocupo bastante em fazer disco novo. A vontade sempre tem, o lance de a gente estar botando em prática o que a gente estuda, o que a gente está vivendo.

Uma pergunta clichê: que discos tu levaria para uma ilha deserta? Os discos do Hamilton, com certeza. Tem os discos do [Trio] Aquário, que eu sou fã. Tem muita gente que não gosta do trio do Pedro Vasconcelos, [o violonista] Rafael dos Anjos e o Eduardo Belo, contrabaixo. Esse disco [Primeiro, 2010] eu acho que vai ficar pra história da música instrumental, uma coisa particular, de gosto. A maioria dos que escutam fica de cara com a maneira que eles interpretaram aquilo ali, um disco basicamente de canções, mas o que eles fizeram ali nos seus instrumentos, vai ser difícil aparecer outro disco para ser tocado com aquele sentimento, com aquela expressão. Acho que eles foram bastante felizes.

Qual foi o choro mais bonito que tu já ouviu? É complicado. Pra mim todo choro é bonito, principalmente os que eu gosto de tocar. Eu tou numa coisa agora de tentar pegar a maior possibilidade de choro que eu puder. Pela falta de estar tocando choro constante, acaba que a gente vai esquecendo as músicas que estudou, que tirou. Se a música é boa, independente de estilo, gênero.

Mas tem alguma música que te marca, tipo, “poxa, essa música eu gostaria de ter feito”? Uma música que eu gostaria de ter feito é o Flor da vida [do disco 01 byte 10 cordas, 2005], que o Hamilton compôs e também o Virtude de esperança [Brasilianos 2, 2008]. São músicas fantásticas, ele foi bastante feliz quando compôs essas músicas.

Fora do universo do choro e do samba, o que te interessa? Eu me interesso por todo tipo de música de qualidade que é produzida. Eu sou fã da boa música.

Na entrevista com [o violonista e professor] João Pedro Borges [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] ele citou teu nome como alguém que lhe enche os olhos. O que significa agradar uma figura como ele? Eu fico surpreso com uma coisa dessas. João Pedro é uma escola universal do violão. Em todo canto que a gente chega, a gente ouve falar dele. Só não aqui, que o povo não dá valor a nada que é daqui. Em todo lugar que eu chego o povo fala, “ah, o João Pedro Borges lá do Maranhão”. Eu fico muito feliz pela história dele, ele é um músico muito classudo, tem um bom gosto musical incrível. Ele me citar numa entrevista, eu fico bastante feliz e emocionado.

Tu estás com 19 anos e é senhor de si nos instrumentos que tocas, embora tu tenhas uma modéstia em assumir ser um grande músico. Maria bandolim: tu és muito assediado por conta de tocar um instrumento? [Risos] Não sei, é complicado falar. Assédio, assédio, não. Mas existe o pessoal que se deslumbra com os instrumentos, tem aquela curiosidade. Assédio, pelo menos comigo não. Mas tem outras pessoas aí que são assediadas bastante. Não posso citar nomes para não comprometer [gargalhadas gerais].

Chorografia do Maranhão: João Pedro Borges

[O Imparcial, 14 de abril de 2013; aos poucos mas fieis leitores do blogue um bonus track: a versão abaixo traz algumas perguntas e respostas que ficaram de fora da edição do jornal, embora isso ainda esteja longe de ser a íntegra da deliciosa conversa que Ricarte Almeida Santos e este que vos perturba tivemos, fotografados por Rivânio Almeida Santos, com o mestre João Pedro Borges, um papo longo em uma noite de segunda-feira; o violonista fala como professor que é, fazendo questão de deixar tudo bastante explicado para que não restem dúvidas aos alunos; orgulho de ter aprendido essa lição.

Este post é dedicado a Maria Pepê, cunhada de Sinhô]

Quarto entrevistado da série, João Pedro Borges é um dos mais importantes nomes do violão, do choro e da música brasileiros. Seu talento é reconhecido internacionalmente

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

João Pedro da Silva Borges nasceu em uma vacaria, espécie de pequena fazenda, onde hoje fica o edifício Clara Nunes, “olha que grata coincidência”, no Apicum, região central da capital maranhense, em 23 de junho de 1947. O apelido Sinhô ganhou da avó: “Minha avó, mãe do meu pai, eu nascendo numa fazendinha, nasceu o Sinhozinho, nossa herança coronelesca. Era o Sinhô, Sinhozinho. Aí pronto, pra distinguir dos outros irmãos, que eram muitos [onze], era Sinhô e acabou-se”.

Filho de Raimundo Felipe Borges e Marina Silva Borges; a mãe, professora normalista, o pai, técnico em eletrônica, especialista em rádio e televisão, um empreendedor que chegou a ter gráfica, trabalhava com o avô na Livraria Borges, de propriedade da família, a maior da São Luís da época, quando o menino João Pedro nasceu.

Ele é um dos maiores violonistas brasileiros em todos os tempos e participou de um capítulo fundamental para a renovação do choro no Brasil: a Camerata Carioca do gaúcho Radamés Gnattali, com que o maranhense chegou a gravar discos e fazer diversas apresentações Brasil afora. Seu talento é hoje reconhecido internacionalmente e o disco mais recente, Clássicos Latino-Americanos, foi gravado em 2005, em uma igreja na França.

Wilson Marques concluiu recentemente um perfil seu para uma coleção que pretende publicar em breve. Para a construção do livro, entrevistou o próprio João Pedro Borges além de figuras próximas, como Chico Saldanha, Arlete Nogueira da Cruz e Sérgio Habibe, entre outros. “É ele contando a história dele, não é uma minuciosa biografia, mas sobretudo um registro de sua trajetória e da importância do trabalho dele para a música brasileira”, adiantou o jornalista.

João Pedro Borges conversou com O Imparcial/ Chorografia do Maranhão no Chico Discos, acompanhado, na decoração do ambiente, de diversas personalidades da música: algumas delas ele chegou a conhecer pessoalmente e são citadas por ele ao longo da conversa.

Quando foi que tu percebeste que teu negócio era a música? Eu sempre tive certos indícios de sensibilidade. Por exemplo, eu ganhei, por ocasião de um natal, um violãozinho de plástico, e aquilo era o brinquedo que mais me encantava. Então eu simulava cantar com aquilo, com o passar do tempo eu buscava alguma forma de afinação. Lembro que na minha infância passava um deficiente visual numa carroça puxada por um burro, conduzida por um ajudante que provavelmente era filho dele, e tinha a peculiaridade de que este senhor  tocava cavaquinho. Então, eu guardava dinheiro pra ter o que levar pra ele, por que quando a gente chegava, ele dizia “a pedido é mais caro”. Lembro que quando ganhei esse pequeno violão eu queria imitar um pouco o homem cego que passava lá na minha rua, quase que todos os dias. Mas só mais tarde [consegui], meu padrinho José Silva foi meu primeiro professor de violão. Ele fazia parte da velha guarda das pessoas que lidavam com o choro. Foi ele o meu vínculo com o choro, era violonista, compositor. Ele era irmão adotivo, por afinidade, do famoso professor Custodinho, Custódio Zaqueu Coelho, que eu considero o grande violonista do Maranhão, anterior a[o violonista] Turíbio [Santos], por exemplo, como geração. Era um violonista extraordinário. Cheguei a ter aulas com ele.

A tua escolha por ser músico contou com o apoio da família? De uma parte da família, que me incentivou. Tinham muitos saraus na minha casa. Sistematicamente tinham reuniões de violonistas, de músicos na minha casa, onde o repertório era basicamente choro de violão. Esse meu padrinho era um pintor de paredes, mas era um homem autodidata, de uma intelectualidade muito grande, tinha um conhecimento extraordinário. Ele foi a primeira pessoa que me falou da cultura musical brasileira. Os personagens que ele citava para mim eram Pixinguinha, Ernesto Nazareth, falou de Agustín Barrios quando passou aqui, ele era amigo do pai de Turíbio, que era seresteiro, e frequentava um pouco esse grupo, que a gente chamava os velhos, na época. Nessas reuniões meu padrinho notou meu interesse em ficar ouvindo aquilo. Aí ele perguntou se eu não queria tocar violão e eu disse “quero!” Ele disse “então eu vou te ensinar”, e me ensinou um choro. Eu não comecei por acordes, fazendo assim, ele botou a minha mão e me ensinou um choro chamado Mariazinha [toca trechos ao violão, não sabe dizer a autoria]. Esse choro tem uma peculiaridade formal [fala enquanto continua tocando]: é que ele tem três partes, todas no mesmo tema, ele é uma síntese da forma do choro.

O choro, durante muito tempo, os músicos tocavam por diletantismo. Tinham geralmente outra profissão e tocavam choro nas horas vagas para se divertir e às vezes, como desenvolviam muita capacidade, habilidades, acabam se tornando músicos conhecidos, consagrados, mas não eram profissionais da música. Você é um profissional da música, vive de música, sempre viveu de música?Isso faz diferença? Sim. Faz diferença. Quer dizer, em termos. Se a gente levar em consideração que Jacob do Bandolim era escrivão, César Faria trabalhava numa repartição, há que se levar em consideração aí que há um impulso por detrás desse aparente amadorismo. Quer dizer, eles tinham profissões que lhes davam sustentação, mas grande parte da atividade deles era exercida em torno do choro. A diferença é a seguinte: uma carreira de concertos não é uma carreira convencional, é algo que vive de oportunidades que se inventam, que são criadas. Por exemplo, os concursos de violão são uma forma de atrair a atenção para jovens, têm limite de idade. Eu fui por outro caminho alternativo, me beneficiei da companhia dos meus professores. Depois de um ano que eu estudava com Jodacil Damasceno, ele me tornou assistente dele, eu tive como alunos Dori Caymmi, Guinga, Marlui Miranda, Durval Ferreira, Miltinho do MPB-4. Depois Turíbio me convidou para montar um curso no Rio de Janeiro.

Eu queria que tu contasse um pouco de tua participação em uma banda cover dos Beatles. Tinha a vizinhança próxima com os Saldanha, na Rua de São Pantaleão, Ubiratan Sousa, que gostava muito de choro, foi quem me falou pela primeira vez da bossa nova, me mostrou uns acordes e aprendia comigo a linguagem do choro, aquelas baixarias, que eu era especializado por conta de meu padrinho, que era craque na área. Nessa época surge a televisão por aqui e os irmãos Saldanha, principalmente o mais novo, Nena, falavam bem inglês. E surgiu essa coisa da televisão e todo mundo encantado com a música dos Beatles. Então eles fizeram um conjunto em que eu era apenas o acompanhador. Eu não aparecia no vídeo, e ficava com um violão de cordas de aço poderoso que eu tinha, que parecia uma guitarra, e acompanhava só com esse violão todo mundo. Era Francisco Saldanha, Nena, o Antonio Saldanha, Benedito, que eu não lembro o sobrenome, estudava também no Liceu, Chico Linhares, o Francisco Linhares, que também morava na Rua de São Pantaleão, Edson, também não me lembro o sobrenome e eu acompanhando. Mudou essa formação. Entra Ubiratan nesse conjunto, que muda de nome, de The Five Gems para Os Rebeldes, e ficamos vinculados à televisão, inicialmente através dos programas de Reinaldo Faray. Tava começando a Difusora.

Depois tu ajudaste a fundar a Escola de Música do Estado, que surge no momento em que uma nova geração de artistas começava a produzir com base nas linguagens da cultura popular. E eles tinham a esperança de que a Escola de Música pudesse ser a continuidade de um processo de absorção dessas linguagens, numa escola de identidade mais maranhense? Tinha esse desejo? Como é que era isso na época? A responsável intelectual por todo esse movimento é [a poeta e ex-secretária de Estado da Cultura] Arlete Machado. Foi ela quem concebeu e encomendou o plano da Escola de Música. O que aconteceu foi o seguinte: os primeiros professores, quer dizer, eu vim em 1974, da África, diretamente para cá para São Luís do Maranhão. Criou-se essa escola de música, a primeira diretora é nossa melhor pianista de todos os tempos, Maria José Cassas Gomes, e o resto eram professores que vieram de fora. Era Clemens Hilbert, um alemão que dava cursos de extensão nos seminários de música da ProArte, lá por Teresópolis. Tinha outro professor chamado João Solano, que era um pianista que também estudava relações internacionais, queria ser diplomata. Veio daqui do Ceará um pianista chamado Flávio, não me lembro agora também do sobrenome dele, mas um excelente músico, pianista, e Gilles Lacroix, que chegou a dar aula de música, de teoria musical, tempo em que ele estava se decidindo a largar a batina. Nesse contexto a Escola de Música foi organizada, ali no Apeadouro, e os primeiros candidatos que surgiram, por exemplo, [o compositor] Sérgio Habibe, que trabalhou também um tempo como funcionário lá da escola. Então surgiu [o compositor Giordano] Mochel, Zé Martins, Josias [Sobrinho] e [o compositor] Cesar Teixeira, sempre a gente tendo aquele cuidado de que eu não queria descaracterizar o trabalho deles, mas eles estavam em busca de formação. Eu tinha um discurso de fundamentação. Dizia “até para você fazer bem essas coisas nossas, você precisa de recursos, de técnica”. Sérgio Habibe é um caso flagrante de ter mudado o nível de composição a partir do estudo, ele próprio reconhece isso. Josias Sobrinho foi o meu melhor aluno de harmonia, eu dei um curso pra ele de harmonia aplicada ao violão. Eram alunos dedicados. Eu forneci uma espécie de subsídio pra eles, mas sempre com a recomendação, dizendo “olha, vocês não têm que estudar pra serem músicos eruditos, nem nada, é pra melhorar o que vocês estão querendo fazer”. Naturalmente da parte deles devia haver certas expectativas políticas, por que o movimento pra eles não era só artístico. Pra mim era um movimento artístico, pra eles era político.

Lá no Rio você teve uma convivência com uma nova geração de chorões, com gente da antiga, e você vivenciou o momento de renovação do choro, ali da virada dos anos 70 para os anos 80, convivendo ali com nomes como Paulinho da Viola, com a Luciana [Rabello], com a turma dOs Carioquinhas, Radamés [Gnattali]. Conte um pouco dessa história. Eu passei a ser habitué de todos os saraus que o Jodacil participava. Tinha um amigo nosso chamado Tonzinho, que na realidade é Milton Borges, eu chamava até ele de parente, morava em Niterói, tinha sido amigo pessoal de Jacob, de Six e de Jonas, e através das idas de Six ao Rio de Janeiro nós fomos parar um dia na casa desse Tonzinho e lá ele reunia Abel Ferreira, Copinha, Arthur Moreira Lima passou por ali, Paulinho da Viola, tudo o que era do choro, Ronaldo do Bandolim com os irmãos. O Raphael Rabello, que eu conheci tocando junto com Turíbio, tinha 12 anos, travou logo amizade comigo, tocava, tinha uma formação bem consolidada de música e ele tinha o que eu gostava, tudo em quanto dizia respeito ao choro tava consolidado na cabeça dele, não tinha que aprender nada. Ele era herdeiro de toda a tradição do Dino [Sete Cordas] e do Meira [Jaime Florence], que foi o grande professor dele, professor do Baden [Powell]. O Raphael, um dia assim, disse “olhe, aniversário da Nara Leão, nós vamos lá na casa dela, e eu queria te levar por que eu tenho uma pessoa que eu quero te apresentar”. Aí me apresentou pro Joel [Nascimento], estávamos tocando, quando ele me viu tocar, disse “olha, nós estamos iniciando um trabalho”, não existia esse nome, Camerata [Carioca], isso veio depois, “de tocar uma suíte que o Radamés tá transcrevendo”, acho que nem todos os movimentos ainda estavam transcritos, só tavam os primeiros, “você não gostaria de participar?”, e eu “gostaria”. Marquei um ensaio com eles, acho que na minha casa, e me encantei com o trabalho, aí começamos a montar a Suíte Retratos. A partir dessa nova abordagem com o choro, os saraus começaram a mudar de feição, num determinado momento eles abriam espaço, “vamos ouvir a rapaziada”, e ficavam encantados com aquilo. E aí esse trabalho começou a chamar a atenção, por que a gente começou a montar um espetáculo chamado Tributo a Jacob do Bandolim, foi considerado o melhor espetáculo de 79 no Rio de Janeiro.

Tu tens uma vasta discografia, tocando, integrando a Camerata Carioca, fazendo Valsas e Choros [1979] e Choros do Brasil [1977]… [interrompendo] Com Turíbio eu tenho três discos. Choros do Brasil foi o primeiro, Valsas e Choros, depois tem o Violão Brasil [1980], que a gente fez para um projeto, por que nessa época, disco instrumental dependia também muito desses projetos que eram feitos pra dar brindes de empresas. Por exemplo, eu gravei a obra de Paulinho da Viola [A obra para violão de Paulinho da Viola, 1985], não quisemos nem eu nem Paulinho editar comercialmente, por que sabíamos que os acordos não iam ser bons, apesar de que eu tinha muita consideração com a [gravadora] Kuarup, Mário de Aratanha [idealizador e proprietário da gravadora] praticamente me lançou como produtor, eu ganhei cinco prêmios Sharp como produtor de discos, e editor, fazia aqueles acabamentos todos, tem discos nossos inclusive que ganharam também prêmio na Europa, foram lançados lá pelo Chant du Monde, gravadora que substituiu a Erato francesa. Eu fiz o meu primeiro disco de forma independente em 1977. Logo depois daquela ideia lançada pelo Antonio Adolfo, do disco independente, alguns músicos eruditos descobriram que podiam fazer aquilo. E Jodacil me disse “por quê que tu não faz um disco?” Aí eu decidi fazer também um disco, isso em 1977, concomitante com a ideia do Choros do Brasil, com Turíbio, eu fiz esse disco, sozinho, gravei no estúdio do Museu da Imagem e do Som. O segundo disco [João Pedro Borges Interpreta, 1983] já foi proposta da Kuarup, como eu fiz muitos trabalhos com a Kuarup, Mário disse “olha, a gente tava querendo fazer um disco teu”. Foi um disco dedicado a violonistas espanhóis e clássicos. Depois deste, A obra para violão de Paulinho da Viola, o quarto que eu fiz já foi na França [Clássicos Latino-americanos, 2005]. Eu também nunca me entusiasmei muito com a indústria do disco especificamente, por que eu era muito criterioso, a gente tinha aquele medo de ser explorado, mesmo tendo a compreensão de que um disco não era uma forma de ganhar dinheiro, era uma forma de divulgar o trabalho.

Era o que eu ia perguntar: tem disco com a Camerata, com Paulinho da Viola, com Turíbio, tem disco em que tocas só em uma faixa, casos de Mistura e Manda [de Paulo Moura, 1983] e Shopping Brazil [de Cesar Teixeira, 2004], para citar apenas alguns. O que tu consideraria, ou por razões afetivas ou por razões de importância pra música do Brasil, uma discografia básica de João Pedro Borges? Pro pessoal ir atrás, baixar na internet. Tributo a Jacob do Bandolim [da Camerata Carioca, 1979], sem a menor sombra de dúvida. Por que na realidade eu era um mero componente, eu digo que fui testemunha privilegiada. O Hermínio Bello de Carvalho tinha a seguinte definição: “olha, essa Camerata vai dar certo por que tem o grande arranjador e compositor, tem o grande intérprete e tem o grande ensaiador”, por que eu tinha uma técnica de ensaio que nem Turíbio tem essa técnica, era tudo muito bem organizado, até Radamés eu enquadrava. O [jornalista] Aramis Millarch uma vez, num ensaio, eu discutindo com Radamés, mas discutindo assim numa boa, a gente tinha uma amizade muito grande, mas eu sabia o limite dele, já pela idade, ia até certo ponto, por que ele já queria sair para tomar chopp, comer alguma coisa, ele não tinha muita paciência de ficar ensaiando, como Turíbio também nunca teve, mas o resto do pessoal precisava de ensaio. Aí Radamés dizia “não, agora já tá bom”, e eu dizia, “não senhor, ainda não está bom, ainda tem uma partezinha que nós vamos limpar aqui”. Aí terminava o ensaio e eu dizia, “e aí, Radamés?”, “é, é, ficou melhor”, aí ele dava o braço a torcer.

Soubemos que você anda compondo. Eu fiz arranjos na época, na própria época do Valsas e Choros os arranjos eram assim coletivos, mas sempre prevalecia uma base. Como Turíbio tinha muita confiança em mim, sabia que eu tinha formação, lia música melhor do que todos os outros, eu dava muita colaboração nesse sentido dos nossos discos, assim a parte mais erudita. Agora a parte mais tradicional, mais dentro da linguagem do choro, imagine, com Jonas e Raphael, não dá nem… pelo contrário! Foi uma escola, foram meus mestres, o que aprendi com eles não tá no gibi. Aqui, depois que eu voltei à São Luís do Maranhão, minha amizade com [os poetas José] Chagas e Nauro [Machado], e as reuniões periódicas pra ouvir música, com Arlete [Nogueira da Cruz Machado, poeta, esposa de Nauro], o Chagas começou a me passar umas poesias dele não editadas. Me deu vários cadernos. E olhei aquilo, eu digo “rapaz, isso dá música!”.

Isso é recente? Mais recente, eu sempre tive minha ideia de compor, compor choro, compor valsa, sempre toquei valsas e choros que eu mesmo compus. Tem coisas que eu nem escrevi, que foi embora, Turíbio até brigava comigo por conta disso. Aí comecei a escrever essas canções de Chagas, musiquei dez poesias de Chagas, uma de Nauro e descobri mais recentemente, desse povo novo, que existe por aí, fora dessa geração, pra mim, na minha opinião, a melhor poeta que a gente tem chama-se Aurora da Graça Almeida. Ela me deu um livro, eu preciso dar esse livro pra vocês lerem. Ela me deu um livro e eu descobri coisas assim maravilhosas. Deixa ver se me lembro, sem compromisso [começa a dedilhar o violão]. Chama-se Mágoa. Um homem prevenido vale mais do que dois desprevenidos [abre o case e tira uma folha de papel em que o poema está anotado]. Olha a letra, diz assim [recitando]: “meu coração sem cor e sangue/ maldiz a mágoa renascida do tempo estilhaçado que vivi/ meu coração sem cor e sangue/ esconde a selva oculta do perdão/ esconde as palavras mais belas e fugazes que não disse/ no meu coração de veias seculares/ padece a solidão de antigamente/ maltrata-me a vida retalhada/ maltrata-me não ser o que eu queria/ maltrata-me deixar sem poesia/ os que previram minha dor, minha agonia/ meu coração sem cor e sangue/ repleto de veios de fervor/ resgata a duras penas o sentido/ de ser ao menos navegante nessa vida” [canta, acompanhando-se ao violão; ao final recebe aplausos dos chororrepórteres].

Ficou clara tua percepção sobre o cenário no Brasil, tanto no Rio como em Brasília, que são os dois focos. No Maranhão como é que tu observa a cena choro? Quais os fatos mais importantes, recentes? O choro tá presente desde o século XIX, a própria pesquisa que Maurício [Carrilho] e Luciana fizeram no acervo João Mohana, se identifica, desde quando nasceu no Rio, já existia choro aqui. Mas hoje, o cenário, pra onde aponta? O quê que tá faltando? Olha, o que acontece é o seguinte: eu digo que tem coisas que as brasas podem passar muito tempo só fumegando de leve mas não apaga completamente. Aqui sempre houve esse potencial, que fez surgir os primeiros conjuntos, tipo [o Regional] Tira-Teima, Rabo de Vaca, já com o advento da Escola de Música já surge a ideia do [Instrumental] Pixinguinha, todo mundo sempre com uma estética voltada inicialmente para a inovação. Aqui no Maranhão surgiu a ideia do Clube do Choro, todo mundo aqui foi testemunha do grande impacto que isso causou na sociedade. Eu vejo esse cenário que o choro se diversificou, atraiu o povo da nova geração, a gente vê agora o movimento Madre Deus, o movimento do Clube do Choro. Pra mim o grande impulso foi lá o Chico Canhoto, com o Clube do Choro Recebe, por causa da concepção inteligente, de compreender que o choro é mais do que ele aparenta ser, ele está presente nas coisas todas, está presente na música de Tom Jobim, Caetano Veloso fez choro, Chico Buarque faz choro, Cesar Teixeira. Então essa junção, primeiro da música instrumental com a música cantada, pra quebrar os preconceitos, e segundo, com o componente da música maranhense, foi a boa fórmula. Nós estamos vivendo ainda dos dividendos desse investimento, na minha opinião. Eu acho que está faltando o aspecto didático, ou melhor dizendo, pedagógico da coisa. O choro tem uma vertente de entretenimento, que ele agrada todo mundo, todo mundo vai, tem público sempre, quando a coisa é bem organizada, tem espaço; segundo, isso só não garante a subsistência do choro, os movimentos vão e vêm, as casas comerciais, os estabelecimentos, tem época que é moda aqui, tem época que é moda ali, tem muita oferta na cidade. Por isso que até hoje eu lamento que a ideia da casa lá [uma sede própria] do Clube do Choro não tenha dado certo, por que tinha um projeto social relevante envolvido.

Dessa nova geração tem alguém dos instrumentistas do choro que te enche os olhos, que tu vê como uma boa promessa? Tem. Robertinho [Chinês] eu acho que é um grande talento. Aliás, antes dele se projetar no choro, o pai dele me procurou na época da formação da Escola de Música do Município, quando a gente ainda tava dando aula lá naqueles camarins da [praça] Maria Aragão e o pai dele me procurou, são dois filhos, nem sei o que é feito do irmão. O que eu passei pra ele, na época, foi o seguinte: “olha, você tem que investir em formação. Teus filhos têm talento, mas eles têm que investir na formação, por que o que garante o desenvolvimento do talento, a formação é o adubo do talento, sem formação, sem você correr atrás do fundamento, se fundamentar, desenvolver”. Essa juventude, por exemplo, eles têm uma facilidade técnica pra tocar, mas isso só não garante. Eu vi muito menino prodígio que abandonou a profissão. Por que tem toda uma estruturação que é psicológica, por que na realidade você tá lidando com a própria vida. Às vezes ele pode se desenvolver no instrumento, absorver bem a coisa do choro e ser mais um chorão na cidade, muito bom. Mas é só isso?

Na tua entrevista diversas vezes tu citaste Turíbio. Na tua opinião, quem é Turíbio Santos? Turíbio Santos é o mais importante violonista brasileiro. Pra mim ele é uma espécie também de matriz fundadora. E é facílimo de explicar. Foi o primeiro violonista brasileiro que se destacou internacionalmente, o primeiro que ganhou um concurso que chamou a atenção pra profissão. Se Ronaldinho Gaúcho botou uma porção de meninos pra jogar futebol e querer ser Ronaldinho, Turíbio fez isso com o violão. A importância dele foi pelo seguinte: ele deu o exemplo, ganhou o concurso e projetou uma carreira internacional de respeito; segundo, foi o violonista brasileiro dessa geração mais generoso, montou curso de violão, criou movimentos sociais como ele fez lá com os Villa-Lobinhos, atraindo banqueiros para bancar a carreira de gente, tem gente que tirou a mãe do tráfico, da marginalidade, alugou apartamento, tá vivendo da profissão, toca na noite, estudaram lá graças a ele. O que pode se acrescentar à dimensão de um bom instrumentista é a dimensão social, o que ele faz em benefício dos semelhantes dele. Turíbio criou os dois cursos superiores, tanto na UFRJ como na UniRio. Foi o primeiro camarada que tirou o violonista de seu isolamento, por conta de criar a ideia de Orquestra de Violão, foi o primeiro violonista que pegou João Pernambuco e disse “isso aqui é música de qualidade”. Quer dizer, quem é o camarada que tá por trás de todos esses movimentos? São as ideias que ele gerou.

E a preocupação dele com a memória de Villa-Lobos, também, não é? Com a memória de Villa-Lobos. Que é um reconhecimento, por que Villa-Lobos projetou a carreira dele. A Mindinha Villa-Lobos [viúva de Heitor Villa-Lobos] quando encomendou dele os 12 estudos para violão talvez nem imaginasse a projeção que ia dar, foi o que facilitou a carreira dele lá fora, foi o primeiro violonista a gravar os 12 estudos de violão de Heitor Villa-Lobos.

Você ajudou fundar a Escola de Música, mas ajudou a fundar outras escolas, mostrando uma preocupação sua sempre com o processo de formação pedagógica. Ceuma, depois foi diretor da Escola de Música, fundou a Escola de Música do Município. Fale um pouco dessa tua preocupação com o processo da formação do músico. Eu acho que é uma questão de humanidade. Essa preocupação eu sempre tive. Eu raciocinei a seguinte coisa: se eu não tivesse tido certa ajuda, que me projetasse, que me ajudasse nos momentos em que eu precisei, numa família de 11 filhos, quais seriam as perspectivas que a gente teria aqui? É uma preocupação social, humana, de ver que a música pode ajudar uma pessoa a plantar ideias que podem mudar sua vida. Ela é uma porta de entrada, ela não é a solução pra tudo, mas ela é a porta de entrada. É como se você entrasse num ônibus e esse ônibus começasse a passar por paisagens que você não conhece e você pode nem saltar, mas você diz “olha, se eu quiser ir eu tomo esse ônibus e vou pra ali pra aquele lugar”, eu sempre tive essa preocupação. Quando eu digo que eu vim da África pra ser o primeiro professor, talvez as pessoas não dimensionem o que representou em termos de sacrifício pra mim. O caminho natural era ir pra França, e eu vim pro Maranhão. Uma coisa que eu fiquei consciente ao longo desse tempo: não dá pra fazer agora sacrifícios maiores esperando que as coisas que você constrói sejam mantidas se elas estiverem vinculadas ao processo político. A política é a coisa mais traiçoeira que pode existir na vida, por que uma hora tá, outra hora não tá, outra hora volta, outra hora não volta mais, não tem continuidade, esse é que é o grande problema.

Queria que tu deixasse registrada aquela história gostosa do carrinho de picolé. As lembranças que eu tenho da minha infância, eu vivia muito dentro de casa, por que minha família não me deixava sair muito. Nem pra praça, tinha a Praça da Misericórdia ali, minha mãe dizia que eu tinha que evitar “adjunto”. Antes mesmo de começar a estudar mais seriamente o violão, eu já tava começando, tinha um ouvido assim que apurava, eu gostava de ouvir rádio, meu pai consertava rádios, a gente dormia com aquele barulhinho de rádio, ele ouvia a BBC de Londres, A Voz da América, aquelas coisas, e eu gostava, tinha um rádio em casa, e de tarde, chegava da escola, almoçava, tirava uma sonequinha, e aquele calor danado, ficava esperando a hora do sorvete passar, picolé e sorvete, e tal. Antes era num tipo de carrocinha, que o sujeito abria, aquela coisa toda. E nesse dia, rapaz, um dia quente, eu ligo o rádio e tá tocando essa valsa de Nazareth [Coração que sente], na Rádio Ribamar, que coisa linda, e o cara do sorvete gritou, “sorvete!”, aí eu aumentei o volume pra não perder, e fui correndo, naquele calor, esbaforido, e disse “eu quero um sorvete de baunilha”, e ele disse “você mesmo escolhe, abre aí pra escolher”. Agora, você imagina a sensação de você sair de um calor danado, faz aquele esforço, eu nunca tinha olhado pro lado de dentro [do carrinho de sorvete], que eu abro, vem aquela brisa gelada, com todos os sabores que estavam ali dentro. Ai, que sensação maravilhosa. Peguei o sorvete, volto, continuei ouvindo a música. Passa-se o tempo, cada vez que eu ouço essa música, Coração que sente, Arthur tocando, o quê que vem no meu nariz?, no meu olfato? O cheiro de todos aqueles aromas e pode estar o calor que tiver que vem aquela brisa maravilhosa.

‘Chorões’ comemoram a vitalidade do gênero genuinamente brasileiro

Pixinguinha e o Choro brasileiro confundem-se no imaginário popular. Não é à toa que o dia escolhido para homenagear esse gênero musical (23 de abril) é também o aniversário de Alfredo da Rocha Vianna Filho, que ficou conhecido como Pixinguinha, um dos maiores compositores, arranjadores e instrumentistas da Música Popular Brasileira.

Genuinamente brasileiro, o Choro é tocado – e apreciado – no país todo. Zema Ribeiro, jornalista e produtor do projeto Chorografia do Maranhão, costuma dizer que há sotaques diferentes no Choro tocado em cada lugar, fruto das influências das culturas locais.

“A formação instrumental pode variar, mas não é por conta da geografia. Nos primórdios do choro, fins do século 19, início do século 20, a formação dos Regionais (nome dado aos grupos que tocam choro) era quase invariável, ficando entre flauta, cavaquinho, pandeiro e violão. Depois, outros instrumentos se somaram, como o violão sete cordas, o bandolim, a sanfona, o clarinete, o piano e tantos outros. O piano, inclusive, está nas origens do Choro, mas sem integrar grupamentos”.

O produtor também conta que, hoje, com o interesse das novas gerações, o Chorinho, como é também chamado, renova-se, ganha sobrevida, tem o advento de instrumentistas mais novos no tocar e apreciadores mais jovens no ouvir. “Por isso que dizemos que o Choro é, além de gênero musical, uma maneira de tocar”, afirma.O SaraivaConteúdo conversou com músicos e especialistas de várias partes do país. Eles deram dicas bacanas para quem quer ouvir e saber mais sobre o Choro.

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Trecho inicial da matéria que a jornalista Maria Fernanda Moraes escreveu para o SaraivaConteúdo sobre o Dia Nacional do Choro, para a qual dei um depoimento. Texto completo aqui.

Em São Luís, o aniversário de Pixinguinha será lembrado na AABB: organizado pela Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo, um show gratuito, a partir das 19h, reunirá diversos nomes da cena choro ludovicense, entre os quais o Instrumental Pixinguinha e o Regional Tira-Teima. Além do aniversariante do dia também será homenageado o flautista Serra de Almeida (que, na foto que ilustra este post, aparece sendo entrevistado para a série Chorografia do Maranhão por Ricarte Almeida Santos e este que vos tecla).

Chorografia do Maranhão: Biné do Banjo

[O Imparcial, 31 de março de 2013]

Terceiro entrevistado da série Chorografia do Maranhão é mais um de nossos talentos a estrear tardiamente em disco. Visitação, primeiro disco a registrar a obra de Biné do Banjo, foi lançado ano passado.

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVÂNIO ALMEIDA SANTOS

Biné do Banjo mora uma residência pequena em uma rua apertada, onde o carro, uma vez lá tem que sair de ré, por falta de espaço para a manobra. Quando a chororreportagem chegou já o encontrou vestido de calça comprida, sapatos cuidadosamente engraxados, ainda sem camisa, como quem havia saído de um banho em meio ao calor abafado que caía sobre São Luís, coberta de nuvens a anunciar chuva para ainda aquele sábado. Ele penteava os cabelos como quem se arrumava para um compromisso mais sério, como se fosse encarar não uma entrevista, mas como se fosse subir a um palco, ou fosse reger a orquestra da igreja evangélica onde congrega-se atualmente.

Ao “boa tarde” respondeu em tom sério, com cara de poucos amigos. Imaginando-o de mau humor, Ricarte emendou: “Biné, é Ricarte, do Chorinhos e Chorões, vim te buscar pra nossa entrevista, lembra?”. Rasgou um sorriso que nem parecia o mesmo senhor sisudo de há tão pouco tempo. “Fala, Ricarte. Rapaz, é que meus olhos estão doendo demais, só vou pra essa entrevista porque já tinha marcado contigo”, disse o velho banjoísta, baixando os óculos escuros, deixando à mostra sua lacrimejante cegueira. 

Só então entendemos o justificado mau humor aparente, logo dissipado. À proposta de a equipe retornar outro dia, quando lhe fosse mais confortável, Biné recusou: insistiu em cumprir com a agenda. Tateou por sobre a mesa e por gavetas, procurando entre os objetos os medicamentos que precisava tomar. Rapidamente os localizou, provavelmente pelo formato das embalagens. Pingou colírio, tomou comprimidos, pôs a camisa vistosa e disse: “já podemos ir. Só quero te pedir uma coisa: que a gente não fosse para um bar. Eu agora sou protestante, não fica bem fazer essa entrevista nesses ambientes, as pessoas não vão entender”. Foi lembrado que já havíamos combinado de fazer nossa entrevista na praça. E assim, entramos no carro e saímos em marcha ré até o começo da rua, de onde rumamos à Praça da Saudade.

Seu problema na visão surgiu depois das “congestões”, como ele mesmo explica, quatro ao todo. “Na primeira, os olhos incharam e eu não liguei. Os caroços dos olhos incharam e eu tive que fazer cirurgias”. 

Benedito Etevaldo do Rosário, seu nome de pia, nasceu na Camboa, em 2 de agosto de 1939. Filho de Tolentino Nicolau do Rosário, barbeiro da penitenciária, “onde hoje é o Hospital Dutra”, e Marcolina Evangelista Costa, doméstica. Evangélico há 12 anos, se congrega no Fumacê. Uma manhã chegou bêbado à igreja, como conta, depois de tocar numa festa e amanhecer na farra. Foi convidado a entrar. Aceitou, depois de perguntar se não haveria de causar problemas a quem o convidava. “Se você não fizer escândalo, sem problemas. Promete ficar quietinho?, ele me perguntou. Prometo, respondi e entrei”. Perguntado se ainda enxergava quando compôs as músicas de Visitação, informa que as mesmas foram compostas entre 60 anos atrás – quando o músico tinha apenas 14 anos – até 1972. “Eu era bonzinho da vista”.

Conduzido pelos braços, Biné senta-se num banco sob um toldo desocupado àquela hora, depois de irritar-se rapidamente com o mau jeito da equipe. “Eu mesmo tenho que tatear o banco pra poder sentar”, explica. Ele mesmo começa a conversa, falando mais uma vez da igreja que frequenta.

Biné do Banjo – [dedilhando seu instrumento] Eu sou regente da orquestra da igreja. Toco banjo, toco até violão às vezes. Mas eu sou o que dirige, quem dá a direção das coisas lá. Teclado, tudo quem dirige sou eu. Me tornei solista por opção de um grande amigo meu, Manoel Madeira.

Quando o senhor fala que seu pai o abandonou, podia contar melhor essa história? Olha, quando ele me abandonou, eu tinha três anos de idade. Passei muita fome. Minha família é que ia tirar sururu e sarnambi e um ceguinho vendia e trazia o dinheiro pra gente. Aí a gente tomava merenda de sururu, sopa de sururu, café de sururu, doce de sururu com sarnambi… sábado e domingo saia um dinheirinho pra comprar um peixe, outra comida melhorzinha. E foi assim que eu fui criado. Agora, quem me botou instrumento na mão foi seu Manoel Madeira, o pai de Carlito, que era o dono do Boizinho Barrica. Ele ia tocar numa festa e o cara tava bêbado, só faltava 30 minutos. “Poxa, rapaz, agora que esse cara adoeceu”. Aí eu disse “rapaz, não terminou nada não, por que eu sei tocar isso daí”. Aí eu cheguei e fiz [imita o som da bateria com a boca]. Aí começaram a perguntar como se toca baião [imita o som da bateria com a boca no ritmo], como é que se toca bolero, samba [idem]. “Rapaz, esse menino vai terminar essa festa com a gente”. Toquei os 30 minutos e ganhei o dinheiro e ganhei seu Manduca. Foi assim que eu não fui embora daqui do Maranhão, que vieram me buscar várias vezes.

Além de músico, qual a tua outra profissão? Eu fui pedreiro, fui especialista em sapatos, aqueles sapatos MAC, do Mercado Central, aqueles sapatos de bico canoa, bico fino, aquilo era eu, Coló e Leonardo e Coioí da Madre Deus quem fazíamos, assim que era.

Na tua infância tu teve pouco contato com teu pai, mas na adolescência o convívio foi maior. Ele também te influenciou pra música? Foi. Por que ele era violonista e eu guardei na mente. Quando Manoel Madeira me fez músico e me preparou como compositor e solista, aí eu já passei a frequentar meu pai para ouvi-lo. Ele cantava uma, eu cantava outra, ele cantava uma, eu cantava outra, até que tem uma música que eu fiz assim pra ele [recitando]: “toda vez que eu pego o meu cavaquinho/ nasce logo em mim uma inspiração/ me faz recordar o meu saudoso paizinho/ quando estávamos a tocar e a cantar / ao som do seu violão/ este violão que por ele foi desprezado [“por que ele morreu”, interrompe-se para explicar]/ está aqui hoje ao meu lado/ sentindo a falta do seu tocador”, entendeu? Aí o resto eu já esqueci.

Como é o nome dessa música, lembra? Ah, eu não lembro. Eu não me lembro o nome da música, não. Pode botar um nome aí, “Saudação ao meu pai”, pode ser, né? “Saudação a Tolentino Nicolau do Rosário”.

O Madeira foi teu professor de música. Mas o que é que tu ouvia, na infância, na adolescência, em casa, na rua? O quê que a gente ouve na Madre Deus, me diz?

Samba. É só samba, marcha, boi, quadrilha, entendeu? E coco… tu tá sabendo quem foi sócio fundador do Boizinho Barrica? Fui eu. Que nesse [naquele] tempo era lelê. Eu saía daqui com [o compositor Zé Pereira] Godão pra São Simão [povoado de Rosário/MA], buscar lelê lá de São Simão, com Godão, [o compositor] Bulcão, esse pessoal todinho, [o poeta] Jeovah França, [o compositor] Wellington Reis, pra pegar esse pessoal. Aí nós sentamos numa praça e começaram a dizer, “temos que botar aqui e tal, vamos botar Boi Tonel. Pra botar aqui pelo carnaval”. Aí eu disse “Boi Tonel não, vocês já tão roubando o título alheio, que Boi Tonel foi quando eu comecei a fazer música na casa do velho Bertoldo, na Rua 1, que lá era cruzeiro, e o cruzeiro, a representação dele era um boizinho, numa vara, no feitio de um tonel. Como é que vocês querem botar Boi Tonel, querem roubar o nome dos outros? Então por que vocês não botam uma coisa parecida com o Boi Tonel? Eu viajo muito aqui pra contrabando com finado Ciríaco, com Aruanda, levar café e de lá eu trago tudo quanto é produto, perfume, todas as coisas de lá, inclusive nós trazíamos muito vinho engarrafado naqueles toneizinhos de vidro, que se dá o nome barrica, barrica de vinho. Por que tu não bota então o nome Barrica? É igualzinho um tonel”, aí ficou a sugestão Barrica.

Tu ouvia muito rádio? Escutava muito rádio.

Que tipo de música? Se ouvia muito marchinha, aquelas que vinham de São Paulo, que no Rio não tinha marcha carnavalesca. Era muito difícil. Era mais arretirado [sic] do Rio, já pro lado dos morros, Vila Isabel.

Que rádios tu escutava? Era sempre a rádio Globo. A rádio Globo, que se tornou Jovem Pan há muitos anos e até hoje continua como a melhor rádio do mundo, eu acho. Tu pode fazer uma pesquisa que não tem outra igual.

E o tipo de música? Boleros, sambas… Boleros, sambas, rock, pop, dava tudo.

Por que tu escolheu tocar o banjo como um instrumento associado a teu nome? Por que nesse banjo eu aprendi todo estilo de música.

Mas tu já tocava bateria, já tocava um monte de coisa. Sim, eu tocava bateria. Meu instrumento era bateria. Mas eu não te falei que Manoel botou o instrumento na minha mão e me fez banjista [banjoísta] dele? E aí ele me ensinou a tocar banjo e aí eu fui o quê? Banjista dele pra tocar com ele. Por que aí eu me tornei tocador de pastoral, de reisado, de comédia, procissão, ladainhas. Se eu pegasse qualquer outro instrumento, entendeu? [sola algo no banjo]. Eu tenho aqui [aponta para a própria cabeça] a escala na mente. Quando eu falho é pouca coisa.

Tu perdeu o tato, né?, nas mãos? Perdi. Essa mão aqui [mostra a mão direita] agora que tá começando a voltar, pegar a palheta. Eu comia com a mão dos outros, é muito triste. Com a congestão aí, quatro crises de congestionado. Foi por aí que foi feito meu cd. Veio [o compositor] Veloso, lá defronte e disse “rapaz, tu tá muito mal!”. Hoje eu ainda tou falando errado, eu falava assim, ó [mete um dedo na boca, de modo a dificultar a própria fala, emitindo sons difíceis de entender]. Veloso olhou e saiu correndo e foi lá onde Bulcão, Godão, Jeovah e Ubiratan Souza e Wellington Reis, aí vieram tudinho lá em casa. Aí chegaram lá em casa, eles se despediram, foram embora, e Ubiratan ficou comigo. Passou o dia comigo e no outro dia ele veio e disse: “olha, tu vai te lembrar de algumas outras músicas que tu fez e vai fazendo aí. Quando tu sentir que tu errou, tu para”. Aí eu comecei. E disse assim: mas qual é o chorinho que tu mais gostas aí que eu ainda não toquei aqui? Aí eu toquei esse aqui [dedilha no banjo uma melodia de sua autoria]. Essa é só a última parte. A primeira é assim [volta a dedilhar, após elogios dos chororrepórteres].

Tu lembra o nome desse choro? Ah… eu não me lembro mais.

Tu viveu de música? Música pra mim foi só pra beber umas cachaças. Eu vivia era de vender contrabando. Eu não tou te dizendo que eu fiz Aruanda, Carlos Mesquita, Titio, Ciríaco, Pedro Cara Cortada, esse pessoal todo ficou rico às minhas custas.

Tu vendendo contrabando pra eles? Por que eu que tinha a cabeça pensante. Eu chegava, olhava assim, eu ficava no porco, e dizia: dois quilos de pá, três quilos de não sei o quê, cinco quilos disso, dois quilos disso, separava logo a cabeça, cabeça não se metia, tripa, fussura, não se metia, e tantos quilos de banha. Aí os caras chegavam e diziam “mas isso é só porco”. E eu dizia: mas é porco carnudo, é porco de se vender. Hoje mesmo a gente começa a trabalhar, eu mato dez porcos desses, daqui pro amanhecer, e mando deixar pelos mercados, pelas partes, e o que ficar em casa a gente vende depressa. Os couros a gente salga pra dar pra comprador do sítio Piancó, do Justino. Eu nasci pra ajudar os outros, e nasci pra ficar rico disso, mas eu nunca fiquei rico. O que eu ganhava com uma mão eu enfiava tudinho num rabo de saia no outro dia. Eu não tinha pai nem mãe, minha mãe me deixou com 12 anos. Eu com 12 anos sustentei foi seis sobrinhos e duas irmãs, uma com três filhos e outra com três filhas.

Tu tocou em vários grupos de jazz. Lembra o nome deles. Eu toquei no Jazz Céu Azul, que era de seu Manduca. Toquei no Jazz Irakitan, que era do tenente Pedrão, da Polícia. Toquei no Vianense, os músicos eram todos contratados pelo tenente Gregório, da banda da Polícia, eram uns três grupos, todos de gente da polícia.

Quando tu tocava tu recebia algum pagamento? Eu era contratado pelo mestre da banda. Deixa eu te dizer. Nesse tempo um soldado ganhava, parece que três mil e pouco, quatro mil, cinco mil. Cinco mil que eu tou dizendo assim por que eu não lembro mais qual era o dinheiro daquele tempo, se era cinco mil réis, cruzeiros, cruzados, era um dinheiro assim dessas coisas. Eles ganhavam esse dinheiro pra tocar o mês todinho com a banda. E eu ganhava no mínimo de 18 e no máximo de 21 pra tocar contratado com a banda. Como é que eu ia largar de ganhar esse dinheiro contratado? Tu sabe quantas pessoas morreram tuberculosas naquele tempo, que não tinha cura? Muitos músicos, tudo de Viana. Só teve um cara que não era de Viana, era aqui do interior, eu não me lembro de onde era, se era de São Vicente, chamava ele Zé Leôncio. Grande saxofonista! Se inscreveu no exército e passou no primeiro lugar no exército como clarinete, entendeu? Aí ele foi pra banda de Brasília tocar clarinete lá. Quando fui um dia ele tava lá tocando aquelas coisas tudinho no pistom, tirando aqueles agudos, com brincadeira, baixinho. Aí o mestre da banda chegou e disse: “ah, é tu, não?” Tu hoje vai ser a minha segunda pessoa, de hoje em diante. Eu vou reunir todo mundo, chamar o presidente, o governador, que o presidente chamava-se João Goulart, esse pessoal aí do governo, ministro, essas coisas tudinho, chamou e decretou: “esse aqui é que vai reger a banda no meu lugar”, é maranhense, daqui do interior.

Tu, além de instrumentista de banjo, de bateria, que outras funções tu também tem na música? Compositor, arranjador, que tipo de outras habilidades tu desenvolve ou já desenvolveu? De música eu nunca desenvolvi nenhuma, a não ser só as que eu já te falei. Compositor e dom divino, graça divina de Deus, baterista, solista de banjo. De pau e corda eu já toquei todos os instrumentos. De pau e corda, que seja, baixo, violino, rabecão. Rabecão eu aprendi a tocar com Vital, que era o dono da melhor orquestra do Maranhão. Sabe onde foi que eu comecei a tocar? Na Rua Grande, num cinema que tinha lá chamado Éden. Pelo carnaval tinham os assaltos, começavam nove horas da manhã e terminavam uma da tarde. Quando terminava tava cheinho pras pessoas assistirem o filme.

Tu sempre morou aqui na Madre Deus? Eu morei pouco tempo lá onde eu tou te falando, na Camboa. Me mudei de lá com seis anos, vim pra cá, aqui foi que eu cresci.

Tu conseguiria fazer um comparativo, tipo, a Madre Deus já foi um celeiro de samba, de música popular, tu acha que hoje é melhor, pior? Deixa eu te dizer uma coisa: não tá nem melhor nem pior. As coisas foi que se desenvolveram tecnologicamente, pelo facebook, internet, essas coisas, que qualquer criança de cinco anos, sabe internet melhor do que tu e eu. Isso foi que cresceu e se desenvolveu de uma maneira tão grande. Por que Deus disse: “crescei-vos e multiplicai-vos”, e que o homem ia crescer e multiplicar em todos os sentidos.

Deixa ver se melhoramos a pergunta: a gente sabe, pela história, que se chegássemos aqui na Madre Deus, na década de 1970, iríamos encontrar uma roda, várias rodas, uma turma fazendo samba, criando. Hoje tu vais encontrar um porta-malas aberto, tocando um forró da pior qualidade. Nem só forró: funk, pop, rock, reggae. É conforme o local. Tem gente que adora chegar, principalmente onde tem local que se compra gasolina. O cara chega pertinho, compra tudo quanto é dinheiro de gasolina e bota o som dele que ele quer lá em alto volume. Aí chega outro, daqui a pouco tem dez, cada qual com um reggae diferente. Aí tem hora que tem reggae, tem pagode, tem forró, essas coisas todas. Mas aqui na Madre Deus também tem gente nova que gosta de um sambinha, de forró, pagode, chorinho, meninos novos. Tem criatividade pra tudo aqui na Madre Deus. Se tu vier de qualquer outro lugar e não vier na Madre Deus, tu não veio em São Luís, não veio no Maranhão [passa um veículo com o som em alto volume]. Olha aí, ó: eu tou te falando, eu tou mentindo? [risos] Eu conheço tudo aqui.

Quantos discos tu já gravou? Só aquele teu? Foi só esse que eu gravei, naquelas circunstâncias que te falei. Se não fosse a minha dificuldade, tu sabe quem era o responsável de eu ser lembrado? Foi que meu primo, Agostinho Santos, que tocava pandeiro com Mascote. Ele tocava com Hidelbrando, Agnaldo [Sete Cordas, segundo entrevistado da série Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 17.03.2013].

Visitação é teu primeiro disco solo, com tua obra, mas na condição de músico, tu não chegou a participar da gravação de outros discos, como por exemplo, o Barrica, no começo? Gravei com esse banjo aqui onde teve um Festival Viva, aqui na Praça Deodoro.

Qual era a música? Música de Godão, que fala na praia [cantarola:] “lá ri rá rá, na Beira da Praia, da maré vazante, lá rá, aquele amor”, esse foi o único cd que eu gravei foi esse cd.

Biné, que artistas tu admira? Instrumentistas? Instrumentista que eu admiro, que sempre admirei aqui na Madre Deus, foi Nazino, que eu tocava uma peça, ele tocava outra, eu uma, ele outra, daqui a pouco ele me beijava na cabeça e dizia: “Biné, eu não sou ninguém perto de ti. Tu és um monstro sagrado, o único tarado do banjo da Madre Deus”. Ele tocava banjo também. A munheca de ouro, tinha a munheca muito mais do que a minha, mas o meu repertório era maior que o dele, eu passava a noite todinha sem repetir. O outro músico chamava-se Amilar Costa Ferreira, que levou mais de 60 músicas minhas para Manaus, mandou a mulher dele vir me buscar, mandou a passagem para eu ir embora e eu não fui. E ele ficou mestre de banda lá, gravou, e a mulher dele é quem toma conta de tudo, que ele já morreu.

Em Visitação, quase todas as músicas são choros. É a música que tu mais gosta de compor? É, cresci foi aqui na Madre Deus, então chorinhos foi o dom que deus me deu para fazer. Por que eu era fã dos ritmos de nossa terra. Essa é a originalidade da minha vida. Então, cada música minha eu colocava um tipo de solo. Esse solo aqui dá pra tal ritmo, esse aqui dá pra [o bumba meu boi de] costa de mão de Cururupu, esse aqui dá pro boi de Iguaíba, boi da Maioba, esse aqui dá pro boi de Pindaré, esse aqui dá pro boi de Viana, cacuriá, com os ritmos da cultura do Maranhão.

Na tua opinião, qual a importância do choro como música? É a única coisa que é nato, que é nossa, criação nossa. Brasileira, não: maranhense. Samba é criação do Maranhão. Depois é que esse pessoal veio buscar aqui e pegar e inventar a nossa batucada, como Zeca Pagodinho e outros mais. Pega uma música de Zeca Pagodinho? [imita o som do batuque com a boca] Essa batucada é daqui da Madre Deus, da Turma do Quinto, do Príncipe da Folia, no Caldeirão, no comando de Zé Garapé, de Marciano. Isso é ritmo nosso, é coisa nossa!

Tu acha que no Rio de Janeiro, naquele universo todo, morros, favelas, eles não criaram também? Eles criaram, sim, mas com outro estilo. Cada terra com seu buraco, com cada um. Martinho da Vila só passou a ganhar depois que começou a entrar no samba total, entendeu? Que é daqui do Maranhão, sambinha nosso estilo [torna a imitar a batucada com a boca. Em seguida cantarola:] “minha caixinha de fósforo/ também é pandeiro/ eu não troco por qualquer pandeiro nosso/ nela acompanhando passo o dia inteiro/ quando eu encontro um bom violão/ aproveito logo a minha vocação/ se formo logo um sambinha ligeiro/ a minha caixinha de fósforo aqui é pandeiro/ os sambas cariocas são patenteados/ é inegável, é sem comparação/ os seus ritmos são bem organizados/ e a minha caixinha de fósforos é quem faz a imitação”. Eu sou bairrista, meu cumpade!

Quem é o chorão que tu mais gosta, dos grandes solistas brasileiros? Quem são os instrumentistas que tu mais gosta? Olha, dos grandes solistas brasileiros, quem eu gosto é Sivuca, da sanfona, Jacob do Bandolim, e o meu amigo que foi daqui do Maranhão, antes de Sinhozinho [o violonista João Pedro Borges] foi um outro.

Turíbio? [O violonista] Turíbio Santos. Esses são os monstros sagrados.

Tu gosta do Sinhozinho? Rapaz! Toquei muito com ele. Eu, Sinhozinho e Ubiratan. Esse negócio de [o compositor] Josias [Sobrinho], que canta, que veio de lá da Ponta d’Areia [a música De Cajari pra Capital], ele tocava pra gente, era eu quem fazia o solo. [O compositor] Cesar Teixeira também me acompanhou muito e Josias aprendeu muito com a gente. Outro que eu gosto muito é Dilermando Reis, esse é o monstro sagrado do violão.

Tu está tocando na igreja? Toco. Quer ouvir uma música minha? Vou tocar uma pra ti ver. Essa aqui foi a primeira que eu fiz lá [canta, se acompanhando ao banjo]: “sozinho eu sei que não vou conseguir/ sozinho eu não vou a nenhum lugar/ sem ler a Bíblia triste será meu fim/ mas como ler a Bíblia se eu não posso enxergar?/ meu Deus, o que será de mim?/ como subir sem ter alguém pra me guiar?/ por isso faça alguma coisa por mim/ oh, meu Jesus, antes da porta da graça fechar/ para que eu possa ter direito à salvação/ e receber das tuas mãos/ a chave do meu eterno lar/ ó doce lar/ estes lares que por ti foram preparados/ para os remidos, sem pecado/ entre eles eu quero estar”.

Cuspindo os caroços na cara dos leitores

[Entrevista que os autointitulados “los cachorros borrachos” fizemos e publicamos na edição de fevereiro do jornal Vias de Fato. Em 2013 vocês ainda vão ouvir falar bastante deste trio cá no blogue: Bruno Azevêdo deve lançar ao menos três livros (começando por A intrusa, cujo anúncio está aí na cabeça), Celso Borges lança O futuro tem o coração antigo e Reuben da Cunha Rocha estreia, tudo pela editora Pitomba]

Vias de Fato entrevista os editores de sua irmã, a revista Pitomba

Os editores da Pitomba: Reuben da Cunha Rocha, Bruno Azevêdo e Celso Borges

POR IGOR DE SOUZA E ZEMA RIBEIRO*

O jornal Vias de Fato e a revista Pitomba têm muito em comum. Feitas quase sem apoio nenhum, as publicações buscam, cada qual a seu modo, dar voz a quem não tem na chamada grande – e “séria” – mídia.

Juntas, as publicações editaram, entre o fim de 2011 e início de 2012, o livro Guerrilhas, coletânea de artigos que Flávio Reis, guru dessa galera, entre entrevistadores e entrevistados, infiltrou na imprensa, tradicional e alternativa, ao longo destes primeiros anos do milênio.

Pitomba e Vias de Fato incomodam. A primeira não toca em política, ao menos não de maneira convencional. É uma revista de poesia, artes gráficas, literatura e sacanagem, no dizer dos próprios editores, os ludovicenses Bruno Azevêdo, Celso Borges e Reuben da Cunha Rocha.

Na mais recente passagem do último por São Luís, Vias de Fato aproveitou para ir ao encontro deles. Era uma tarde cinzenta, a cidade de ressaca das chuvas e do carnaval. Mais que uma entrevista, um descontraído bate-papo dos repórteres do jornal com os editores da Pitomba.

Uma caminhada por algumas ruas do Renascença, os dois repórteres e o trio de entrevistados, antes de ligar o gravador e pedir emprestada a Bruno Azevêdo a máquina fotográfica que captou alguns momentos do encontro (as fotoscas são de Zema Ribeiro). Destino: um boteco próximo, encher os cascos que ele tinha no apartamento com a cerveja que regaria a conversa. De volta ao apê, misto de residência e editora, os melhores momentos do bate-papo.

ENTREVISTA: BRUNO AZEVÊDO, CELSO BORGES E REUBEN DA CUNHA ROCHA

Vias de FatoComo foi que surgiu a ideia da revista?

Reuben da Cunha Rocha – Conheci Bruno na véspera de viajar [Reuben saiu do Maranhão para cursar Mestrado, primeiro em Santa Catarina, depois em São Paulo. Hoje está no Doutorado em Ciências da Comunicação da USP], começo de 2008. Nesse ano a gente conversou bastante por e-mail. Celso sempre foi um papo, de muitos anos. E aí tinha a história da Pitomba, da editora, que era uma discussão que tava rolando.

Celso Borges – A gente criticava o texto que Bruno fez [o Manifesto Pitomba, impresso nos livros que Bruno Azevêdo publicou por sua editora]. Ele é meio que um manifesto, é uma ideia de um texto… e aí, conversa entre a gente… vamos fazer uma revista? Eu sempre gostei de revista.

Reuben – Na verdade, a ideia de fazer revista, ela existe o tempo inteiro na cabeça de quem escreve, eu acho. Desde que me entendo por gente e converso com outras pessoas que escrevem, esse papo de “vamos fazer uma revista” sempre existiu.

Celso – E Bruno sempre trabalhou com fanzine.

#1

Vias de FatoTodo mundo tem alguma experiência, ou com fanzine, ou com blogue, que é uma coisa menos palpável. CB com a [revista] Guarnicê [editada por um grupo de poetas que levava o mesmo nome] ainda na década de [19]80, na época mais novo do que vocês hoje.

Celso – Antes. O [grupo poético] Arte e Vivência, final dos anos 70, aquelas revistas dentro do saquinho. Então, eu faço revista, de estar envolvido, desde o final dos anos 70. Depois veio o [grupo] Guarnicê, depois teve a [revista] Uns e Outros [do grupo Akademia dos Párias]. Eu gosto, acho que a revista dá uma alegria, é muito prazeroso fazer. Agora o exato momento em que decidimos fazer, não lembro.

Bruno Azevêdo – Isso tava sendo discutido, “vamos fazer uma revista”, “vamos fazer uma revista” e rolaram várias coisas. Mas o negócio para mim, pelo menos até onde eu me lembro, virou uma coisa “vamos fazer” quando Celso e Reuben baixaram lá em casa com uma pilha de um metro de revistas de poesia, “ó, é isso aqui que a gente quer fazer”. E eles deixaram lá em casa e vazaram. Vocês lembram disso?! Um monte de revistas! [Enfático, gesticula com as mãos, para dar ideia da grande quantidade]

Vias de FatoNessa pilha de revistas, por assim dizer, as referências da Pitomba? O que inspira vocês em termos de outras revistas que já existiam, ou melhor, que continuam a existir?

Celso – A Coyote inspira a Pitomba, a Oroboro, a Medusa, puta que pariu! São tantas. A Nuvem Cigana é uma coisa linda.

Reuben – A Revista de Autofagia é uma coisa importante também.

Celso – Quando me mandaram por e-mail um fascículo, aquilo é uma coisa linda, bicho, um exemplar único [a revista Nuvem Cigana teve número único]. Só tem uma e lá estão Chacal, Haroldo [de Campos], Augusto [de Campos], Hélio Oiticica, Wally Salomão… toda aquela energia dos anos 70, bicho, aquela revista é linda. Fotos, intervenções, tipografias, tudo ali naquela limitação, quer dizer, a gente chama de limitação porque vê de hoje, com a tecnologia que se tem, mas as intervenções iconográficas, porra, tu é doido? Aquilo é uma referência máxima. Para mim é.

Reuben – Mas acho que uma motivação fundamental, pelo menos para mim, era a coisa da editora. Quer dizer, fazer uma revista com o nome da editora, que é uma forma da editora circular mais rapidamente do que a edição de livros, que, pelo menos na minha cabeça, seria uma coisa mais lenta do que a edição de revistas, que seria uma forma de fazer acontecer.

Celso – Eu acho que revista tem um coração coletivo, coisa que para mim é muito estimulante. Com uma revista você consegue não só motivar as pessoas que estão fazendo, mas ao seu redor criar uma alegria, uma motivação, um esperar por uma Pitomba nova, um esperar por uma revista nova, o que é que vem ali, que forma, que poema. Isso aí é muito mais que um livro, até. Você não espera um livro. Uma revista você espera, você acalenta: “qual vai ser a da próxima revista?”, ou então “posso mandar um poema para revista?”, “posso escrever pra revista?”. As pessoas também querem fazer parte, tem uma coisa de divisão que eu acho legal.

Vias de FatoPorque tem isso de ser um espaço de publicar o material de vocês, quem faz poesia faz, quem faz tradução faz, quem faz quadrinhos faz, quem faz sacanagem faz. Mas tem o lance de publicar coisa dos outros e a revista não tem periodicidade, mas aí tem dois anos e cinco números, então mais ou menos um número a cada quatro, cinco meses. Mas isso não tá definido em lugar nenhum, acho que nem na cabeça de vocês.

Bruno – Não tem nada definido nessa revista em lugar nenhum, a não ser conteúdo. [risos]

Vias de FatoComo é que vocês decidem o conteúdo e a hora de fazer uma Pitomba nova?

Celso – Rapaz, é uma guerra… É uma guerra… [risos]. É uma briga, porque tem uma série de coisas que trabalham contra a gente também, contra cada um de nós e contra nós três juntos, que é a vida que cada um leva, que cada um tem que pagar suas contas, cada um tem sua vida, cada um tem não sei o quê mais.

Vias de FatoA questão geográfica atrapalha um pouco ou não? [Reuben mora em São Paulo]

Celso – Eu acho que a questão da operacionalização é uma coisa difícil, porque Bruno é um cara que trabalha em meio ao caos. Ele faz muita coisa ao mesmo tempo e a gente tem, eu tenho na minha relação com ele, eu tenho que ser um pouco assim…

Bruno – [interrompendo, enfático] Chato!

Celso – Eu tenho que hostilizá-lo, ele me hostilizar, porque é uma guerra, aí são três, mas a minha relação é mais próxima com Bruno porque ele está aqui e Reuben não tá, ele tá longe e então tem uma dificuldade.

Bruno – O trabalho de edição da revista é bem mais fácil que o de editoração da revista, que é até ela sair daquele computador bem ali [aponta para o cômodo do apartamento em que trabalha] para chegar no arquivo impresso. Isso é o mais traumático porque é o que demora mais.

Celso – A ausência de Reuben é sentida, não só por ser uma companhia, um cara que faz falta de estar junto, mas porque se senta eu, ele e Bruno numa tarde a gente já monta o esqueleto, entendeu? Agora eu ficando sozinho com Bruno, e Reuben lá, fica mais complicado porque tem uma dificuldade nessa operacionalização.

Reuben – Importa dizer que muito do trabalho recai sobre Bruno, porque só ele consegue diagramar a revista.

Celso – De texto, geralmente ele não quer se meter. [Irônico:] “ah!, eu não leio poesia” e não sei o quê mais, aquele negócio do rabicó do poema [gargalhadas gerais]. Isso eu divido meio com Reuben: “ah, tá ruim!”, “ah, tá legal!”, quando chega uma coisa com que ele concorda. Mas tem as discordâncias também, porque Bruno não quer ter o voto de minerva, ele se omite. Mas a distância de Reuben também faz com que surjam outras iluminações, coisas que ele descobre por lá, enfim.

Reuben – Mas o negócio de coletar material acaba cada um sacando o que acha interessante, ou pega e lembra alguém, se tem material suficiente para fechar as 44 páginas.

#2

Bruno – Tem coisas que pertencem e não pertencem ao que a gente imagina que a revista comporte. Nós três vamos te dar repostas diferentes sobre o que a revista comporta, mas no final das contas, esse lance que Reuben está falando da coleta, da cota, “pô!, isso daqui vai ficar massa” ou “isso daqui não ia ficar massa”, ou de repente tem um cara que nós três conversamos, que a gente acha uma inteligência, por assim dizer, que poderia estar por aí, tipo o [poeta Fabiano] Calixto, agora nessa última edição que saiu, que é um cara massa e blá blá blá, que está fazendo coisas legais e não sei o quê.

Celso – A gente fica naquela coisa, de abrir a revista, porque a princípio pensou em fazer um negócio de escritores do Norte e Nordeste, ou que estando fora, atuem nesse circuito. Eu já penso que pode abrir e sair um pouco desse sufoco, de que não necessariamente sejam artistas do Norte, mas tem um conceito que a gente não tem mais certeza se continua ou não.

Reuben – Nunca conversamos sobre isso com o passar do tempo. Isso foi posto inicialmente, e eu com o passar do tempo passei a achar que é um conceito armadilha.

Vias de FatoDe repente colocar alguma coisa que possa “despitombar” a revista?

Reuben – Que pode ser bom. Na verdade a gente fica naquela de ficar cavoucando nessa história de Norte e Nordeste e isso servir para legitimar uma ideia de folclore, regionalismo ou panela, de ter que colocar o cara porque ele é nordestino. Então para mim é a mesma questão de colocar gente do sul ou de qualquer lugar e ver que, pera lá!, isso não tem nada a ver.

Bruno – A própria ideia de fundar a editora é porque, num determinado momento, depois de fazer zines e livros, eu percebi que estava completamente marginal, fora do mercado. No final das contas tinha só eu lá dizendo “olha meu livro!, olha meu livro!” e que coisa antipática! A editora impessoaliza, parece uma instituição. Então, o critério para mim parece muito mais: esse sujeito aqui não consegue espaço; é bom e não consegue espaço em algum outro lugar. Porque, porra!, na prática você sabe que se mandar o original para 20 editoras, nenhuma vai te responder. Nenhuma mesmo! A maioria delas, na hora que tu abres o negócio [site], “não recebemos originais, exceto do Paulo Coelho”. Ou se tiveres uma indicação de dentro. Então, nesse aspecto, quando tu estás geograficamente distante, aí o critério geográfico é legítimo, tu não consegues existir, porque tu só consegues mesmo ter acesso a esses caras quando tu conheces alguém, e tu só conheces alguém numa mesa de bar, num lançamento e alguma coisa assim. De outra forma tu não existe, pô! Tu não existe mesmo.

Celso – Tem um elemento na revista que eu acho que não devemos abrir mão, embora seja uma característica e um traço que incomode muita gente, que nós temos essa coisa da despersonalização: as revistas não só não têm um nome na capa, como ela não tem o nome de quem escreve na capa e isso irrita muita gente. Mas esse retorno é pequeno, em todos os sentidos. Então eu acho que tem que manter o atrito, é uma característica da revista. Isso a gente não tem que abrir mão, nem é essa coisa do atrito, é a coisa da irritação mesmo.

Vias de FatoEu acho que é a única revista que não tem o nome na capa.

Bruno – É, porque se colocar o nome vai ter que colocar junto “revista de literatura contemporânea brasileira”. Imagina que coisa ridícula…

Celso – Ia ter que fazer editorial como se fosse um slogan, como se fosse uma frase.

Vias de FatoA propósito, o primeiro editorial de vocês é muito marcante, e eu acho que dá um pouco a ideia, além dessa coisa toda de despersonalização e talvez um pouco de não se levar a sério, eu não sei bem se é isso ou se é só isso, mas o lance do “quer fazer faz” [este, o texto do editorial], já que vocês não têm apoio ou os apoios que têm são pequenos, não cobrem a edição, o negócio sai do bolso mesmo, o lance de não ficar só reclamando, que “o poder público não me apoia”, que “a iniciativa privada é tímida”, isso e aquilo, então é aquela coisa de botar o bloco na rua.

Reuben – A prática é ficar 40 anos esperando até alguém reconhecer que eu sou um bom artista e tem interesse em… [se interrompe] Isso não vai acontecer! Não vai acontecer mais em lugar nenhum, isso acabou, é coisa de até metade do século XX e quem não sacou isso daí, não vai rolar mais nada, entendeu? [risos]. Então, não é uma reação à falta de apoio, é uma reação à mentalidade que espera apoio. Nós não temos apoio, portanto faremos. Porque raios a gente vai esperar apoio se a gente quer fazer o negócio e o quê que isso tem a ver com o Estado? 

Bruno – Os meios são completamente democratizados, digo os meios, as ferramentas, nós somos pessoas adultas, conseguimos excedentes com o nosso trabalho que dá pra fazer essa porra, então que diabos a gente vai ficar esperando uma secretaria abrir um edital?

Vias de FatoMas vocês entrariam num edital?

Bruno – Eu não! A revista não. Não mesmo, cara.

Celso – A gente não botou nem o nome na revista, vai botar o logo de uma fundação ou sei lá… É uma questão de postura mesmo, eu acho que tem que ter um distanciamento, eu acho que eventualmente, não com a revista, mas você pode, como escritor, fazer parceria com o poder público em algum momento, ou como poeta ou como artista subir num palco. Eu já fiz isso. Nenhum livro meu tem um carimbo de uma secretaria de cultura ou fundação cultural. Não vou dizer que nunca vai ter isso, eventualmente pode até ter, mas dentro de mim eu me sentiria um pouco constrangido com aquilo. Eu prefiro não ter, eu acho que o artista tem que manter um distanciamento. Ele pode eventualmente até fazer parceria com o poder público, mas ele tem que manter o poder público como um inimigo, como um cara que não deve se aproximar muito. Eu acho que é ele que não deve se aproximar muito para que não seja atraído, sei lá como é que se pode dizer isso, a gente trabalha com mais autonomia, trabalha com mais força para dizer aquilo que quer porque o poder público, ele vai calar você.

Bruno – Tem a questão que o poder público é tudo, menos público. Ele é pessoalizado. Ele não é pessoalizado apenas ideologicamente, mas socialmente.

Vias de FatoNão é querendo que vocês coloquem ou não uma logomarca, concorram ou não a um edital, recebam ou não recurso. O poder é pessoalizado e aí, tipo: se não tem a Pitomba recebendo verba pública, tem uma porcaria recebendo verba pública e difundindo arte e literatura de qualidade duvidosa.

Bruno – Por mim tudo bem, pra mim tá tranquilo. Eu acho que não devia ter verba pública investida em arte!

Celso – No caso aqui de São Luís é mais triste, não tem nenhuma revista do poder público! É triste! O poder público não faz uma revista de literatura. Podia juntar, fulano me dá um artigo tal, fulano me dá um quadro tal, mas ninguém tem é motivação. Eles não saberiam como administrar a divisão desse bolo. Como eles não podem contemplar a todos, só poderiam contemplar alguns, então eles decidem não fazer e não fazem.

Bruno – Pois é, porque não haveria nenhum critério estético, haveria um critério de geração, de subservilismo [sic].

Celso – Em Natal, por exemplo, existe revista do poder público.

Bruno – Tem aquela revista da Biblioteca Pública de Curitiba.

Vias de Fato[O jornal] Cândido. Cândido é lindo! [A revista] Helena e tal, que é dessa grossura [gesticula com os dedos], que é da biblioteca também.

Reuben – Tem um uma coisa interessante nesse negócio de edital no Brasil, que é por meio deles, especialmente da Petrobrás, que se tem conseguido que o artista se coloque como profissional. Ele pode ficar oito meses ou um ano escrevendo um livro. Isso é um trabalho, não é um favor. Isso não deixa de ser interessante, a figura do artista como profissional, que vai ter um dinheiro para fazer isso e não ter que correr numa coisa para, pelo menos, conseguir pagar o livro. Isso historicamente não é desprezível, mas isso gera uma série de comprometimentos que não faz sentido o sujeito se meter nisso daí. Você pega um livro de Joca [Reiners Terron, escritor], que o cara teve que passar por uma série de burocracias assim enorme só para mudar o título, que tinha sido inscrito um título e ele queria colocar outro e não podia. Com o mercado não é diferente, não dá pra dizer que se eu estiver sendo patrocinado por uma empresa privada eu seria mais livre do que se estivesse sendo patrocinado por uma empresa pública. Pra mim não faz diferença.

Bruno – A questão é, até onde eu consigo ver, a política do edital tá fazendo gente rica ficar mais rica.

Celso – O cara pode entrar também, pode fazer a parceria com o poder público, mas manter sua integridade.

Reuben – O problema é que, por onde começou essa história, não sei por onde começou, mas por onde se desenvolveu bastante foi no cinema, em que se chega a um ponto onde o sujeito não faz filme se não tiver dinheiro público. Quer dizer, não passa pela cabeça do sujeito que se ele não tiver 100 mil para fazer o filme, ele que faça o filme. Tu achas que as verbas vêm de onde? Se o sujeito quiser fazer um filme ele faz nesse apartamento aqui, com duas câmeras ou uma câmera, e seis atores. Ele não vai conseguir fazer um épico hollywoodiano, com duzentas locações, um filme na Amazônia etc., alguns projetos dependem realmente de dinheiro, mas o que eu quero chamar a atenção é para a imobilidade do cineasta. O sujeito não faz. Mais radical e mais independente que se possa fazer no Brasil, hoje ele tem dinheiro de lei de incentivo.

Vias de FatoPatrocínio da Petrobrás. Todo filme brasileiro começa “este filme foi selecionado pelo Programa Petrobrás Cultural” e depois logomarca, logomarca, logomarca.

Reuben – E se o sujeito não conseguir, ele não vai fazer o filme.

Bruno – Tem gente que faz filme massa sem dinheiro público, como no [documentário] Brega S/A [sobre a cena musical contemporânea em Belém do Pará], que começa logo “esse filme não tem dinheiro público nenhum”.

Celso – Mas isso é muito excludente, cara. Porque um filme como esse vai ter um público muitíssimo menor.

Reuben – Não necessariamente.

Bruno – Eles distribuem de graça na internet.

Vias de FatoTem um ponto, voltando a essa história da Pitomba aqui e do cenário, que é a história da Pitomba, que está em São Luís e São Luís que tem um histórico de artistas e intelectuais a serviço de dados grupos políticos. Como é que a revista se situa nesse campo, já que ela está à margem?

Celso – Ela se situa contra essas pessoas. Se tu pegares a primeira Pitomba, lá no [texto de Roberto] Bolaño [traduzido por Reuben na contracapa] é uma porrada; a segunda contracapa, cada contracapa é uma porrada. Na revista tem todas as repostas que tu tá falando aí. Acho que a segunda é que fala melhor dos artistas, aquilo é uma porrada!

Bruno – A revista tem uma série de indicações, mas as coisas não são dadas.

Reuben – A própria ideia de se manter distante dessas relações já fala sobre esses artistas e o fato de nenhum deles estar na revista.

Vias de FatoSe a esquerda abomina, a direita ignora.  Aquela história de alienante e alienado. A esquerda clássica, naquele modelo de partidos e sindicatos.

Celso – Há um silencio. Me mostre alguém que tenha se manifestado sobre a Pitomba publicamente. [O artista plástico] Jesus Santos [link para assinantes com senha] que escreveu n’O Estado do Maranhão.

Bruno – E [José] Loredo [proprietário da Livraria Resistência Cultural, que se negou a vender exemplares da revista, alegando ofensas ao cristianismo], que excomungou a gente! É o silêncio total. Não existe discussão sobre arte em São Luís.

Celso – Com raríssimas exceções, esses três, Loredo, Jesus Santos e o blogue do Zema, nunca ninguém falou nada sobre a Pitomba publicamente. Esse é o ponto!

Vias de FatoModéstia às favas, não existe crítica.

Bruno – Queria ou não a gente tenta ainda fazer, nem que seja resenhando livro um do outro.

Celso – A única crítica que rolou foi do Loredo e do menino lá, o Ronald [Robson], defendendo em blogue e tal. Agora, que a gente sabe que pessoas da esquerda não gostaram, a gente sabe. O que eu quero dizer é que não existe, a única vez que alguém falou foi da direita. Por que a revista tem a provocação, ela tem arrogância, vamos dizer assim.

Vias de FatoÉ iconoclasta total, se é que isso pode ser um adjetivo.

Celso – A gente sabe que nos bares se fala dela.

Bruno Azevêdo dá um gole durante o papo

Bruno – A revista tem uma existência concreta nem que seja nas conversas de bar, e, porra!, eu quero é estar na conversa de bar.

Celso – Na Pitomba, às vezes, se sobressai um pouco o lance da imagem, um editorial ou uma coisa que Bruno faça. Mas ali, velho, estão 60% de poesia, pode ver, ou é tradução ou é alguma coisa que eu faço, ou é coisa de alguém.

Bruno – Pode ver que esse negócio de poesia deu tanto na minha cabeça que fiz uma fotonovela.

Vias de FatoQue eu achei sensacional! E isso volta para aquela discussão sobre financiamento, independência e coisa e tal, porque se tu tivesses um apoio do que quer que fosse, tirando [o bar] Chico [Discos] e [a livraria] Poeme-se, mas tu irias criticar tua própria revista dentro da revista?

Bruno – Rapaz, ninguém ia me publicar senão eu. Quase todas as coisas que eu escrevo, não é nada enquadrado assim, ninguém consegue transformar em um produto fácil para dizer “isso aqui é isso aqui” e a revista tá meio nesse negócio.

Reuben – Isso é uma coisa que deve perturbar a leitura de quem está aqui porque talvez a leitura da revista seja um negócio difícil de localizar. Primeiro que a revista não é uma revista de poesia. Não tem uma ordem, não tem uma prioridade. Então, [o professor] Flávio Reis contou uma história do primeiro lançamento da revista que talvez possa ser ilustrativo. Ele disse que tava sentado no lançamento da revista e tinha um pessoal dizendo “vem cá, olha isso daqui, essa revista não tem como vender”, querendo dizer que era um negócio mal acabado e tal. O que não deixa de ser interessante também. E Flávio perguntou: “rapaz, vocês acham que esse pessoal está interessando em vender?” Mas eu tô dizendo isso porque eu tenho a impressão de que a gente não tá preocupado com nada, então, isso dá certa flexibilidade de critérios, que no fim das contas a gente bota o que tá a fim de botar e não bota o que não está. Pronto.

Celso – E as pessoas ficam, talvez, procurando um sentido, uma estratégia.

Bruno – Uma razão de ser, [irônico:] onde se situa o marxismo contemporâneo na narrativa.

Celso – Tem um negócio de confundir, de desabilitar, de você não saber direito. Rapaz, você tem uma tradução de [o poeta e. e.] cummings e o cara lá comendo as hóstias, tem a pornografia, tem as coisas opostas, que não teriam uma unidade. A revista trabalha quase como se não houvesse um conceito que ligasse uma coisa a outra.

Reuben da Cunha Rocha ri: “a Pitomba não tem absolutamente nenhuma seriedade”

Reuben – Agora aí, eu acho, e pessoalmente, se ninguém percebeu, isso precisa ser dito, que daí vem talvez o mais interessante da revista: o fato de que ela não tem absolutamente nenhuma seriedade. De critérios, e não tem nada assim que se possa dizer que a revista não publicaria, poderia até não publicar por falta de interesse ou gosto pessoal nosso, como não achar bom, mas coisa tipo censura de conteúdo, moralismo, não tem como dizer que não tem uma revista na literatura que se possa dizer isso. Toda revista de literatura é séria. A seriedade acompanha, seja a poesia seja a prosa. Escritor é um sujeito sério. Foi a única revista até hoje que conseguiu fazer isso daí foi a Pitomba. Inclusive daí vem alguma fraqueza, porque a gente publicou muito texto ruim ao longo dessas cinco edições. Agora, o que levou a isso foi de onde vem a principal força dela, que é isso daí.

Celso – Agora imagina uma revista em que você faz um assassino de funcionários públicos [a série O matador de funcionários públicos, de Bruno] onde 80% da população é funcionário público. É claro que você vai ter uma raiva introjetada na cabeça de muita gente.

Vias de FatoÉ porque também tem muito o lance de você só poder falar de dentro. Para você falar de funcionário público você tem que ser funcionário público.

Bruno – E funcionário público não vai falar porque já está morto de feliz por estar lá.

Vias de FatoOu você tá empertigadinho lá, contente porque o salário não atrasa etc., até atrasa [lembrando o calote de João Castelo (PSDB) às vésperas de deixar o cargo e o parcelamento da dívida pelo atual prefeito Edivaldo Holanda Jr. (PTC)]. O que fica provado é que o pessoal perdeu a capacidade de rir de si mesmo. Seja funcionário público, seja sei lá o quê.

Bruno – Esse negócio dO matador ninguém comenta, eu acho isso tão engraçado, ninguém diz nada.

Reuben – Nem pra dizer que “eu não gostei disso”.

Bruno – Moreira da Silva passou a vida inteira sendo motorista de ambulância. O cara, um dos criadores do samba de breque, um dos maiores cantores do samba brasileiro, teve uma carreira longeva no samba e ele chegou a viajar e passar três meses em Portugal fazendo turnê e o chefe dele dizendo “não se preocupe que você é um funcionário de utilidade nacional” e pronto. Tu não achas que houve gente que precisou ser socorrida pela ambulância que Moreira dirigia, ou deveria dirigir? Eu não posso achar graça disso, por mais que seja engraçado.

Celso – Tem também a história da alta e da baixa cultura. Muitos olhares sobre a revista são de crítica, do mau gosto que algumas pessoas devem achar, mas também que há eventualmente uma pobreza, que pertence a uma baixa cultura, que não é uma literatura que seja levada a sério. Eu acho que isso a Pitomba também coloca na cabeça das pessoas. “Isso daqui é literatura?”, isso é uma questão que também vem à tona. Tem a questão do pornográfico e erótico. E aí se tem um especialista no assunto [aponta para Bruno]. Tu olhas lá o [quadro] A origem do mundo, do [pintor Gustave] Courbet e mostra o sexo lá e tal. Pois é, isso é mau gosto? É erótico ou pornográfico? Eu sempre venho observando essa coisa, do que é mais literatura, do que é literatura mais séria, do que não é.

Vias de FatoVocês acham que há um desprezo total por parte da crítica? É por isso que ninguém comenta O matador de funcionários públicos ou outra coisa?

Bruno – Que crítica? Não existe crítica! A gente desprezaria se a crítica existisse.

Celso – O único cara que fez alguma crítica foi Ronald Robson. O único, o único! Foi uma crítica de acordo com o que ele pensa.

Reuben – Uma crítica inteligente, o cara leu a revista e raciocinou em cima daquilo ali, se dispôs a escrever sobre uma revista da qual ele sequer gostou. Por outro lado, a gente não deixa de ter respostas entusiasmantes. Não dá para ser injusto.

Bruno – Rapaz, o papel da revista é grosso demais para ser papel higiênico. Então de alguma forma alguém lê.

Reuben – Também, essa relação é tipicamente nossa, né? Quem foi que gostou, quem foi que não gostou e a gente começa a mapear o negócio. A diferença é que a gente está fazendo isso daqui sem nenhuma intenção de por conta disso o negócio começar a “fulano de tal não entra, cicrano também não”. Então a questão não é tanto de gostarem ou não gostarem, mas de um retorno que dissesse que a revista é interessante por isso, não é interessante por aquilo.

Bruno – Eu penso muito mais em livros do que na revista. Eu penso muito mais na proposta do livro, que ‘nego’ tem que fazer seus livros e tal. Talvez eles tenham uma possibilidade de exploração de ideias mais interessante, enfim, a ideia é continuar fazendo livro e revista.

Reuben – A revista essencialmente é um negócio efêmero, por mais que ela continue, que tenha 20 edições, com o tempo ela vai se perdendo. Livro, o sujeito guarda. Revista chega uma hora em que o cara vende pro sebo, dá pros amigos, perde e tal. Agora, isso não é um problema, o lance é permitir que ela fosse mais experimental ainda, mas “isso daqui vai se perder”, foda-se! O importante é testar a mão e ver o que dá para fazer e o que não dá para fazer.

Vias de FatoCelso, tu estás com mais de 50 e já fazia revista com menos de 20.

Celso Borges: poesia e teimosia

Celso – Rapaz, se eu tiver saúde com 80, uma revistinha lá eu vou estar fazendo…

Vias de FatoPor tudo aquilo que a gente conversou aqui às vezes tu não te sente meio pregando no deserto, não bate certa depressão? Será que alguém vai ler a revista?

Celso – Não bate depressão. Acho que às vezes bate um desestímulo. Mas aí tem o lance da disciplina. Sempre foi assim e sempre vai ser. Tá na minha cabeça, tá na minha alma, não tem resposta para isso. É como se fosse uma coisa que eu precisasse fazer.É uma doença, uma maldição, como diz Fabreu [o poeta Fernando Abreu].

Vias de FatoComo é a seleção do que a Pitomba, a editora, não a revista, o que ela publica e não publica?

Bruno – É uma questão pessoal, o que eu acho que deva ser publicado.

Vias de FatoUma vez eu perguntei, que eu nem lembro sobre o quê, mas qual é a sensação de colocar um selo na capa de um livro, e tu me respondeu que era ilusão de achar que tem uma editora.

Bruno – É. É isso mesmo.

Vias de FatoComo é o financiamento disso? Tu? Tu e o autor? Depende?

Bruno – O disco [Z de Vingança] do [Marcos] Magah eu paguei todo. Exceto a gravação, o resto eu paguei tudo. Porque eu peguei o disco, esse cara ta aí, não tem dinheiro nenhum. Ele tá com o disco tem uns seis meses e esse disco precisa existir. Tem tudo a ver com a ideia da editora. Porque eu só fiz O Monstro Souza porque Souza [proprietário do cachorro-quente homônimo que inspirou o livro] me deu boa parte da grana para fazer o livro, então eu tenho uma certa obrigação e vamos ver o que vai acontecer. O trabalho de editoração de outros livros eu não cobrei nada pra ninguém. Do [poeta] Dyl [Pires, O perdedor de tempo], da [poeta] Jorgeana [Braga, A casa do sentido vermelho, a ser publicado em breve]. Por enquanto é assim que funciona, o livro da [jornalista] Karla [Freire, Onde o reggae é a lei] eu e ela que pagamos tudo pro livro sair.

Vias de FatoE as vendas?

Bruno – Já vendeu umas 110 cópias. No Riba [livraria Poeme-se] já esgotou, eu repus hoje; na [livraria] Leitura eu ainda não fui; no Chico eu também ainda não fui. Tem tido certa saída. Já recuperou 30% do gasto. Eu nunca espero dinheiro de volta. Quer dizer, só em prestação de serviços que pode ser reinvestido como em achar um cara como Magah. Vai sair o livro de Reuben, o da Jorgeana. Tem uns livros para lançar aí e sempre aparecem outras coisas. Mandam coisas, me mandam originais, mas eu fico sempre desconfortável em ler porque vai que eu leio e o livro é uma merda? Então eu sempre tenho que dizer alguma coisa. Se me aparecer um livro de poesia eu jogo para esses dois aqui.

Vias de FatoEntão, a editora usa os editores da revista como conselho editorial, digamos assim?

Bruno – É, eu jogo direto para eles. Ainda mais porque se aqui em São Luís sabem que tem uma editora que publica livro de poesia, tu é doido!, ia ter todo dia 20 livros de poesia aqui em casa. Todo mundo é poeta, sabe aquele cara bem ali? [aponta um transeunte pela janela] Ele é poeta, pô! “Ó, São Luís”, e coisa e tal. A poesia é apologética em relação à cidade ou preocupada em falar da própria poesia. É o negócio do rabicó.

Reuben – Para mim essa é a grande ironia, a maior obra de Nauro Machado é essa tiração de onda de com todo mundo: “Ô, meu poeta!”, todo mundo é poeta.

Bruno – Esculhambou geral.

Vias de FatoOutra afinidade de vocês é a música. Vocês estiveram juntos no palco para o lançamento de Belle Epoque [mais recente livro de poemas lançado por Celso]. Tem alguma possibilidade ou previsão de vocês tocarem juntos novamente?

Celso – A gente queria fazer um lance de rock’n roll com leitura. O grande lance é a disponibilidade de tempo. Pra mim é na hora, fazer um som com esses camaradas. Agora tem que ser uma coisa igual ao que teve no Belle Epoque. Ali a gente teve um mês livre para fazer aquilo. [O baterista André] Grolli, [o violonista André] Lucap, esse rapaz [Bruno] totalmente disponível, [o guitarrista] Reuben. No dia em que Bruno me ligar pra gente fazer um som eu tô aqui na hora e Reuben pega o helicóptero dele.

Reuben – Ah, de novo não, mas outra. Fundamental é o cara quebrar a ideia de que ele vai conseguir manter as coisas. O fundamental aqui sempre foi fazer tudo. O sujeito tem tempo para fazer um som, ele vai fazer, não tem, ele vai fazer outra coisa. Tem para um zine, ele vai fazer, não tem, faz outra coisa. Se não ele vai ficar a maior parte do tempo parado e fazendo as coisas no tempo livre, as coisas não vão durar. O lance é o tempo livre. Se juntar de novo, as coisas vão mudar, tudo muda o tempo todo.

 

Celso – A música talvez seja a coisa que mais nos ligue. Eu tenho uma preferência, Reuben tem outra, mas entre a gente bota ali o rock. A gente se une bastante, bota o rock’n roll ali. Tem uma identificação com a linguagem do rock. Tem essa diferença de Bruno não gostar de poesia, tem a formação dele em quadrinhos. A minha é precária, ficou para trás. Eu tento pegar alguma coisa com ele, mas eu não tenho a formação e a influência que tem na obra dele.

Reuben – Restos Inúteis [título de poema de Celso que deu nome à banda que o acompanhou no show de lançamento do livro] foi um nome que muita gente não gostou, quer dizer, algumas pessoas. Porque não é sério. Não basta ser resto, ainda tem que ser inútil.

Bruno – Se fosse Parnasianos Alados…