“Meu caso de biógrafo da família”

O último pau de arara. Capa. Reprodução

“O último pau de arara” [Grafatório, 2020, 172 p.; R$ 79,90], novo livro de Jotabê Medeiros, bem poderia ser um roteiro dos irmãos Coen e, se digo isto, não é pela inevitabilidade do clichê, mas pela habilidade do próprio autor em jogar com seu ofício – o universo da cultura pop sempre foi seu ganha-pão – ao contar a história de alguém que, embora o respeitasse, nunca ligou muito para isso, tratava quadrinhos com desprezo e nunca foi ao cinema.

O livro é um misto de biografia de João Francisco de Medeiros, seu pai, autobiografia, autoficção e ensaio sociológico sobre migrações internas, muito mais comuns no Brasil de outrora, mas ainda presentes, sobretudo no recrutamento de trabalhadores em situações análogas à escravidão. Há alguma doçura na forma como são narrados certos episódios de violência, e não são poucas as cenas de fúria incontida de seu pai, jamais soando condescendente. “Essa é uma obra de fricção. Espremida entre a memória e a vontade de contar”, diz em boutade, em que anuncia também um escancarar de intimidades, também nunca soando vulgar.

Aos três anos de idade, em 1965, o 11º filho do “Paraíba”, o primeiro homem entre 15 filhos, viajou de Sumé até a nascente Cianorte, no Paraná, em um caminhão de sal. Dessa viagem clandestina vem o título do livro, emulando o sucesso de Fagner, de autoria de José Cândido, Venâncio e Corumba.

A partir de remontar fragmentos da trajetória de seu próprio pai, Jotabê Medeiros remonta a trajetória de sua enorme família – e a sua: o paraibano do interior que se muda muito cedo para o Paraná, em busca de melhores condições de vida, forma-se em jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina e depois se muda para São Paulo, onde viria a se tornar um dos maiores jornalistas culturais do país – isto não é ele quem diz no livro, sou eu quem digo novamente, aqui e agora –, autor das festejadas e honestas biografias de Belchior (2017) e Raul Seixas (2019).

O jornalista é hábil em contar uma história que nos prende a atenção, mesmo em não se tratando de um protagonista de vida pública – o autor não nos poupa mesmo de suas dúvidas durante o processo de feitura do livro: seria seu próprio pai um personagem biografável? Embora aqui e acolá falemos dele no passado, como o faz também o autor, João Francisco de Medeiros está vivo – sofreu um AVC e teve uma perna amputada nos últimos anos – e completará 103 no próximo abril.

Baseado na própria memória, em conversas com familiares, viagens e rara documentação, Jotabê Medeiros não se deixa vencer pelas lacunas, urdindo texto delicioso, como é de seu feitio, histórias que se entrecruzam, como os constantes escambos que seu pai acabou tornando meio de vida. Em meio a tudo isso há um belo tributo ao irmão apelidado Jack, batizado em homenagem a Jackson do Pandeiro, ídolo de sua mãe – a ele o autor dedicou “Belchior: Apenas um rapaz latino-americano”: o irmão faleceu justo na semana em que o biógrafo viajaria a Santa Cruz do Sul, nos rastros do biografado então desaparecido. Com a mudança de planos e a ida ao velório do irmão, Belchior faleceu em sequência e aquela biografia foi finalizada com o relato de seu velório, entre a Sobral natal e Fortaleza.

A realçar a delicadeza e elegância do texto de Jotabê Medeiros, o estonteante projeto gráfico da Grafatório – marca da pequena casa editorial de Londrina/PR –, com xilogravuras de Luiz Matuto. A tiragem limitadíssima de 750 exemplares foi possível graças a um financiamento coletivo. Os que contribuíram já recebemos um pdf por e-mail, no que adiantei a leitura, na certeza de que relerei tão logo me chegue às mãos o exemplar impresso – a pindaíba, a pandemia e o capricho editorial acabaram atrasando um pouco as coisas, mas de mais longe já viemos, como quem desce de Sumé à Cianorte num caminhão de sal.

Leia um trecho de “O último pau de arara”.

Se liga nas lives!

Como eu já disse aqui, a onda agora é live!

Hoje (30), no Balaio Cultural, na Rádio Timbira AM, tive a honra e o prazer de conversar com Juliano Gauche. Amanhã, às 16h, ele se encontra com Tatá Aeroplano para uma live que eu reputo histórica: o encontro de dois dos mais talentosos artistas de sua geração. Vale muito conferir!

A quem perdeu o programa, eis a íntegra, incluindo o anúncio de outras lives muito interessantes por estes dias. Na TimbirAlive de quinta que vem conversarei com Jotabê Medeiros. Não percam!

Divulgação
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Leia Raul!

Raul Seixas: não diga que a canção está perdida. Capa. Reprodução
Raul Seixas: não diga que a canção está perdida. Capa. Reprodução

 

Parafraseando Belchior, o outro biografado de Jotabê Medeiros, não espere que eu lhe faça uma resenha como se deve. Ora, o autor de Raul Seixas: não diga que a canção está perdida [Todavia, 2019, 413 p.; R$ 69,90] é meu amigo pessoal, colega de Farofafá e não raro repito: meu maior professor de jornalismo fora da sala de aula.

Talvez isto devesse me afastar da tarefa de comentar seu livro. Mas não seria justo, tampouco honesto. O livro acaba por marcar, por assim dizer, o encontro de dois heróis meus, um no jornalismo e um na música. O elepê Maluco beleza, uma coletânea de hits daquele que acabou rebatizado pela faixa-título, foi um dos primeiros vinis de minha coleção (que o advento do cd acabou por fazer se perder no tempo) e ainda lembro de quando comprei Gita [1974] numa promoção da saudosa Lobras, com vinis vendidos a preços mais baratos justo por conta da popularização das bolachinhas lidas a laser.

Acompanhei as agruras, perrengues, negociações, bastidores, enfim, da escrita de Jotabê das biografias do cearense Belchior e do baiano Raul Seixas, tendo o privilégio de ser dos primeiros a saber que o jornalista se movimentava em seus por vezes pantanosos terrenos, mas perdendo o furo em nome da amizade.

Acompanhei o linchamento virtual de que Jotabê Medeiros foi alvo pouco antes do lançamento de seu novo livro, em novembro passado. Gente que sequer tinha lido a obra (pois ainda não havia sido lançada, frise-se) e passou a atacar o biógrafo por uma suposta acusação de dedo-durismo do biografado em relação ao escritor Paulo Coelho, seu mais famoso parceiro musical.

Demorei a mergulhar na leitura de Raul Seixas: não diga que a canção está perdida por saber, antecipadamente, tratar-se de livro que mereceria a atenção que eu queria dar em tempo quase integral, no que foi bem vinda a quarentena diante da ameaça mundial do coronavírus, pelo que a profecia do cantor e compositor tem sido sempre lembrada e O dia em que a terra parou quase alçada à condição de clichê.

Poderia dizer que Jotabê Medeiros reinventou, em seus dois livros do gênero, a escrita de biografias. Seus mais de 30 anos de jornalismo cultural – com foco na crítica musical – garantem um profundo mergulho na pesquisa e nas entrevistas com fontes, a checagem a que o simplificador control c control v nos desacostumou como leitores e não raro mesmo como jornalistas – há exceções, é claro, e o jornalista-escritor é uma delas.

Mas a reinvenção da escrita de biografias não se dá por isso, o que deveria ser obrigação de qualquer jornalista, escreva ele uma biografia de mais de 400 páginas ou uma resenha, como tento aqui, ou uma nota ou o que quer que seja. Se dá pelo fato de Jotabê Medeiros, com sua habitual escrita elegante, buscar equilibrar vida e obra, através da narrativa dos fatos daquela e da análise desta; sobre a primeira, não emite juízos de valor; sobre a segunda, pode eventualmente apontar desníveis onde o fã-clube enxerga apenas perfeição.

Se Roberto Piva, outro personagem cultural da predileção de Jotabê Medeiros, dizia que não existe poesia experimental sem vida experimental, e a vida de Raul Seixas foi marcada pela brevidade (morreu aos 44 anos, vítima de pancreatite decorrente do abuso de drogas lícitas e ilícitas) e intensidade – deixou obra fecunda, a provar o que quero dizer aqui e o autor demonstra, tanto biografando Raul quanto Belchior: uma e outra se cruzam, em seus altos e baixos.

Guardadas as devidas proporções, Jotabê Medeiros sabia dos riscos que correria ao encarar o fã-clube mais chato do Brasil (expressão que usei quando eu e Suzana Santos o entrevistamos para o Radioletra, na Rádio Timbira, e negada por ele): qual um Philippe Petit ao realizar sua façanha-obra de arte, o autor não recuou diante de temas mais espinhosos, no entanto sem correr outros riscos: ele nunca é deselegante ou sensacionalista em nome de “vender a porra do livro”, como acusou-o numa rede social o autor de O alquimista.

Existem por aí muitos livros escritos sobre Raul Seixas, fora e dentro da academia. Boa parte escorada na suposta perfeição do mito (aqui na acepção real do termo, é preciso explicar nestes tempos) construído em torno do raulseixismo. Quem já assistiu a pelo menos um dos tributos anuais apresentados pelo cantor Wilson Zara em São Luís – a série teve início em Imperatriz, em 1992 – sabe do que estou falando: gente fantasiada, envergando camisas com a efígie do astro ou bandeiras com o símbolo da Sociedade alternativa, louvando acriticamente seu legado (embora o momento seja de festa e a culpa não seja de quem presta a homenagem, realizada sempre em torno do aniversário de falecimento do ídolo).

Um dos méritos da biografia de Raul Seixas escrita por Jotabê Medeiros é mergulhar num ponto quase sempre esquecido de sua trajetória: seu lado hitmaker de brega, que acabou por inventar um estilo até hoje copiado. Não basta lembrarmos de faixas como Tu és o MDC da minha vida, Você ou Sessão das 10, a faixa-quase-título do hoje clássico Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10, de 1971, o segundo disco em que Raul Seixas aparece cantando – após a estreia com Raulzito e Os Panteras [1969] – dividido com Edy Star, Miriam Batucada e Sérgio Sampaio.

É preciso dar os devidos créditos a hits absolutos, até hoje tocados em rádios Brasil afora: Ainda queima a esperança, sucesso de Diana, Doce doce amor, de Jerry Adriani, e Se ainda existe amor, de Balthazar: todos são composições de Raul Seixas – que à época assinava Raulzito (“Raul Seixas e Raulzito sempre foram o mesmo homem”, como cantou em As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor).

Jotabê Medeiros mergulha também no lado produtor do biografado: é importante conhecer o trabalho de Raul Seixas, antes da fama, em estúdios e gravadoras, que viria a ajudar a forjar sua identidade musical, levando-lhe a discos ou shows de Leno (da dupla com Lilian Knapp), Jerry Adriani e Odair José (todas as guitarras de seu primeiro disco são tocadas por… Raul Seixas).

Não hesita o autor em apontar também apropriações indébitas do ídolo, fã de Elvis Presley e Luiz Gonzaga, cujo cruzamento explica um bom bocado de sua obra. O livro coloca também em seu devido lugar as relações de Raul Seixas com nomes como Sérgio Sampaio (Raul produziu e assinou arranjos em Eu quero é botar meu bloco na rua, estreia solo de Sampaio, de 1973, que fechava com a vinheta Raulzito Seixas, homenagem do capixaba ao baiano), Cláudio Roberto (parceiro em Maluco beleza e numa pá de composições, O dia em que a terra parou, de 1977, é integralmente assinado pela dupla), Jards Macalé (Raul participou do show coletivo Banquete dos mendigos, posteriormente lançado em elepê, produzido por Macalé no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para celebrar os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos) e Marcelo Nova (não raro tido como oportunista, mas que acabou reerguendo Raul, dividindo uma série de shows antes da gravação do álbum derradeiro, A panela do diabo, de 1989, ano em que Raul viria a falecer, dois dias após o lançamento do disco), entre outros.

Não afeito a fofocas, Jotabê Medeiros não se furta de tocar em lendas criadas por Raul Seixas, como seu suposto encontro nos Estados Unidos com o beatle John Lennon ou o dia em que comeu lixo com um mendigo em Nova York (episódio cantado em Banquete de lixo), bem como as apresentações do roqueiro no garimpo em Serra Pelada, e a não decomposição do cadáver do artista – provavelmente em decorrência do consumo excessivo de antibióticos em vida –, percebida mais de 20 anos depois de seu falecimento, quando a família tentou transferir os restos mortais para uma urna.

Raul Seixas ganha uma biografia à altura do gênio que foi. Sem entregar o ouro (de tolo) ao bandido, Jotabê Medeiros revela, na introdução, a chave (de leitura e) de seu êxito na missão: “todo o meu esforço foi contar uma história, articular uma coreografia escorada no maravilhoso acervo de canções & riffs dessa figura já lendária, contraditória e deflagradora da cultura brasileira. Não me preocupei em lustrar a lenda, porque essa já é do tamanho da eternidade”.

Zema Ribeiro lança o livro “Penúltima Página” reunindo entrevistas e textos do jornal Vias de Fato

[release por Celso Borges]

Penúltima página. Capa. Reprodução
Penúltima página. Capa. Reprodução

O jornalista foi editor de cultura do periódico que circulou mensalmente em São Luís entre 2009 e 2016. A obra traz 14 entrevistas com artistas e personalidades maranhenses publicadas na página de cultura do jornal, além de seis textos. “Penúltima Página” tem orelha assinada por Jotabê Medeiros, prefácio de Flávio Reis e edição e projeto gráfico de Isis Rost. O lançamento será na terça, dia 11, no Chico Discos, centro da cidade.

O Vias de Fato foi um jornal mensal fundado em 2009 pelos jornalistas Emílio Azevedo e Cesar Teixeira, a pedagoga Alice Pires e o fotógrafo Altemar Moraes. Naquele ano teve início uma experiência ímpar de jornalismo combativo, próximo a movimentos sociais e sindicatos e, sobretudo, aberto à colaboração de professores, ativistas sociais, sindicalistas e artistas. O jornal deixou de circular mensalmente em 2016 e nos três anos seguintes teve algumas edições com periodicidade irregular.

““Penúltima Página” surge da ideia de celebrar os 10 anos que o Vias de Fato teria completado ano passado. O livro apresenta um panorama despretensioso da cultura do Maranhão durante o período em que colaborei com a editoria de cultura do jornal e sai graças aos esforços dos amigos que compraram exemplares antecipados a fim de garantir a impressão de parte da tiragem”, afirma Zema Ribeiro, que é jornalista cultural e atual diretor da Escola de Música Lilah Lisboa. Assina o principal blog cultural da cidade onde se apresenta como “um homem de vícios antigos, ainda compra livros, discos e jornais”.

“Era um outro momento, em relação ao obscurantismo galopante de nossos dias, e por lá desfilaram vários nomes, em geral uma rapaziada mais próxima do experimental, do escracho e não da reverência, do combate e não da submissão. Zema escreve bem, tem lastro de leituras, agilidade e curiosidade para encarar as dificuldades de fazer jornalismo cultural numa terra pouco afeita a debates e críticas”, afirma o professor do departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA Flávio Reis, no prefácio do livro.

O livro começa com uma entrevista de Paulo Melo Sousa, jornalista, poeta e articulador cultural, então às voltas com a experiência do Papoético, uma roda de conversas que acontecia no Chico Discos, local de reunião de alguns boêmios inveterados da cidade. A partir daí, temos uma sucessão de compositores (Gildomar Marinho, Bruno Batista, Marcos Magah e Henrique Menezes); de gente do cinema (Frederico Machado, Mavi Simão, Francisco Colombo, Paulo Blitos); do teatro (Lauande Ayres); da literatura (Bruno Azevedo, Celso Borges e Reuben, então editores da revista Pitomba!); e das cantoras Flávia Bittencourt, Lena Machado e Patativa, além de nomes da militância sindical e dos direitos humanos (Novarck Oliveira e Ricarte Almeida Santos).

“Penúltima Página” inclui também textos sobre os 30 anos do disco “Fulejo”, de Dércio Marques, o lançamento de “Baratão 66”, um quadrinho anárquico de Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum, e uma enquete, feita com 11 pessoas ligadas ao meio musical, sobre os 12 discos mais importantes da música maranhense, realizada em 2013, quando se comemoravam os 35 anos do lançamento dos discos “Bandeira de Aço”, de Papete, e “Lances de Agora”, de Chico Maranhão.

A obra marca o quarto lançamento do selo Passagens, de Isis Rost, que abraçou a ideia da edição do livro com entusiasmo, reuniu material fotográfico e elaborou o projeto gráfico. A editora disponibiliza gratuitamente as versões em e-book em seu site.

Serviço

O quê: noite de autógrafos de “Penúltima Página: Cultura no Vias de Fato” (Editora Passagens), de Zema Ribeiro
Quando: dia 11 de fevereiro (terça-feira), às 19h
Onde: Chico Discos (esquina da rua dos Afogados com São João, Centro)
Apoio cultural: Equatorial Energia

Um despretensioso panorama

Penúltima página. Capa. Reprodução
Penúltima página. Capa. Reprodução

“Lendo esta série de entrevistas do Vias de Fato, com personagens já tão familiares (Gildomar Marinho, Bruno Azevêdo, Celso Borges, Ricarte Almeida), noto que o amálgama comum a todos eles e a todas as interlocuções é na verdade a ponte cultural que interliga tudo: a curiosidade insaciável de Zema Ribeiro.

Do choro à literatura, do teatro ao boi, da arqueologia cultural à agitação geracional, dos cancionistas aos samurais da edição independente, esgrimindo doses precisas de rigor e senso dionisíaco, os textos nos levam ao bar e à academia, ao terreiro e aos velhos cinemas Éden e Roxy, aos becos e às festas de reggae.

Principalmente, as entrevistas remontam um cenário cultural e social que se mostra imprescindível para compreender a parabolicamará que move o Maranhão, sua antena particular de compreensão do universo pelo filtro da poesia, da linguagem. As políticas da perseverança e da honestidade intelectual permeiam tudo, da compreensão profunda de Ricarte (“As pessoas vivem e morrem à míngua”) à visão cósmica de Celso Borges, leitor de coisas intangíveis, como a revista Coyote.

Haicais e boutades escorrem desses saborosos textos. “Eu não conserto versos por conveniência”, decreta Gildomar Marinho. É uma complexa teia de análise, mas, por um motivo de puro mistério, não é possível, na leitura dos textos, dissociar política de música, literatura de combate, visionarismo de consciência.

Leia e seja mais um destrambelhado conosco.”

*

No dia de meu aniversário, o site da Editora Passagens, da amiga-editora Isis Rost, disponibilizou o texto acima, a orelha de Jotabê Medeiros (CartaCapital, Farofafá) para Penúltima página: Cultura no Vias de Fato, que reúne 14 entrevistas e seis textos que publiquei entre 2009 e 2016, período em que colaborei com o jornal mensal Vias de Fato, um despretensioso panorama cultural do período, não restrito ao Maranhão. O prefácio do livro é de Flávio Reis.

De algum modo, o livro é uma forma de celebrar os 10 anos que o Vias de Fato teria completado ano passado e é publicado com apoio cultural da Equatorial Energia e um punhado de amigos que se dispôs a colaborar, a fazer a ideia ir pro papel. O livro já está disponível para download e o volume impresso chega em breve, cujo lançamento este blogue cabotinamente anunciará. Aguardem! Enquanto isso, baixem o e-book!

Jornalista Zema Ribeiro celebra 15 anos na blogosfera

[release]

Blogue Homem de vícios antigos tem a cultura como principal pauta. Mesa redonda e festa marcam comemoração.

Josias Sobrinho e Cesar Teixeira fazendo um par de violeiros em Marémemória, encenada pelo Laborarte em 1973, baseada no livro-poema homônimo de José Chagas. A foto de Murilo Santos tornou-se marca do blogue

O blogue Homem de vícios antigos, majoritariamente dedicado a pautas culturais, editado pelo jornalista Zema Ribeiro, completou 15 anos no ar em abril. Para celebrar a data estão programadas uma mesa-redonda e uma festa, que acontecerão no próximo dia 11 de maio (sábado, véspera do Dia das Mães).

“Iniciei o blogue como um exercício, assim que entrei na faculdade. Era um espaço de divulgar agendas de artistas amigos, depois evoluiu, se profissionalizou. Acabou virando literalmente um vício”, conta Zema Ribeiro, que tem 15 anos de profissão, tendo atuado principalmente em jornalismo cultural e assessorias de organizações de direitos humanos.

Além de editar o blogue, Zema Ribeiro atualmente apresenta, na Rádio Timbira AM, os programas Balaio Cultural (com Gisa Franco, aos sábados, de meio-dia às 14h) e Radioletra (com Suzana Santos, aos sábados, às 22h), é colaborador do site de jornalismo musical Farofafá e diretor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo (Emem). Sua trajetória profissional é marcada também por colaborações com todos os jornais de São Luís, além das revistas Top (São Luís), Overmundo (Rio de Janeiro) e Brazuca (França, bilíngue). O jornalista também foi colunista do site do Instituto Itaú Cultural.

Mesa redonda – O bate-papo terá como tema “Uma experiência de jornalismo cultural no Maranhão: 15 anos do blogue Homem de vícios antigos” e, além do editor do blogue, terá as presenças de Alberto Jr. (radialista, Mestre em Cultura e Sociedade/UFMA, apresentador do programa Quintal Cultural, na Rádio Timbira AM), Jotabê Medeiros (jornalista, editor de cultura da revista CartaCapital e do site Farofafá) e Polyana Amorim (radialista, Mestre em Cultura e Sociedade/UFMA, coordenadora do curso de Comunicação Social do Ceuma).

“Os escafandristas que virão explorar as ruínas da antiquada civilização na qual vivemos atualmente vão encontrar pouca coisa memorável. O blogue do Zema Ribeiro, Homem de vícios antigos, que professa paixão pela obsolescência tecnológica do ferramental que se alimenta do humano – os livros, os discos, o jornalismo –, certamente será um notável resgate. Porque se nutre daquilo que não envelhece jamais: o espírito. A boa música, a boa literatura, a fabulosa história em quadrinhos, a fantástica cultura popular. No presente, todos os microblogs serão famosos durante 15 segundos, mas o macroblogue do Zema já viveu mais do que 15 anos: viveu para sempre”, declarou Jotabê Medeiros.

A mesa redonda acontecerá no auditório do Centro Cultural do Ministério Público (Rua Oswaldo Cruz, 1396, Centro), dia 11 de maio (sábado), às 16h, com entrada franca. Com capacidade para 180 lugares, é necessário se inscrever pelo e-mail zemaribeiro@gmail.com

Baile de debutante – “Não existe 15 anos sem baile de debutante”, brinca Zema Ribeiro, ao anunciar a festa, que acontecerá no Chico Discos (Rua de São João, 289-A, Altos, Centro, esquina com Afogados), na mesma data, às 19h, e terá como atrações a dj Vanessa Serra e o Regional Choro da Tralha. O grupo é formado por Gabriela Flor (pandeiro), Gustavo Belan (cavaquinho), João Eudes (violão sete cordas), Chico Neis (violão), João Neto (flauta) e Ronaldo Rodrigues (bandolim).

Ao saber do aniversário, completado no último dia 28 de abril (data, em 2004, da primeira postagem), Vanessa Serra se manifestou em uma rede social: “Parabéns! E viva o Jornalismo feito com amor e seriedade! E umas doses de brilho!”.

“O [blogue] Homem de vícios antigos é, sem dúvida, um espaço onde é possível sentir algum alívio perante a desumanização dos tempos atuais. A começar pelo nome, que logo desperta curiosidade naqueles/as que ainda insistem em manter hábitos quase esquecidos, o blogue desempenha um papel que vai além de trazer informação sobre fatos, produções e atividades culturais e artísticas. Informa, mas também forma, mexe com nossas memórias, provoca, diverte, emociona”, elogia Gabriela Flor.

Chico Neis completa: “Além do visível compromisso com a arte e a cultura, vemos também uma forte presença maranhense, em textos apurados, coerentes e bastante acessíveis, o que não é tarefa fácil – o mais difícil é fazer o simples bem feito. Para resumir: um blogue necessário”.

“Desde que o blogue completou 10 anos a gente vinha pensando em realizar algo, mas nunca dava certo, eu mesmo não dava importância e a coisa não andava. Agora alguns amigos somaram, se doaram e a ideia deixou a cabeça e ganhou o Centro Cultural, o Chico Discos, e vai acontecer. Agradeço a todo mundo que embarcou nessa viagem maluca, com destaque para o amigo Otávio Costa, um leitor fiel do Homem de vícios antigos”, agradece Zema Ribeiro.

“Vanessa Serra é uma das djs mais requisitadas do cenário ludovicense e das rodas dominicais do Choro da Tralha, no sebo Feira da Tralha, que acabou por emprestar nome ao grupo, virei habitué. É uma enorme honra contar com suas presenças na festa, além dos amigos que, à tarde, estarão na mesa, meu professor Jotabê, um ídolo que virou amigo, e os amigos Alberto e Polyana, certamente teremos dois momentos com um nível excelente, sem falsa modéstia”, continua. “Todos eles, de algum modo, fazem parte da história do blogue, desses 15 anos de trajetória”, arremata.

SERVIÇO

15 ANOS DO BLOGUE HOMEM DE VÍCIOS ANTIGOS

Mesa redonda

Uma experiência de jornalismo cultural no Maranhão: 15 anos do blogue Homem de vícios antigos. Com Zema Ribeiro, Alberto Jr. (Rádio Timbira AM), Jotabê Medeiros (CartaCapital, Farofafá) e Polyana Amorim (Ceuma).

Quando: dia 11 de maio (sábado), às 16h.

Onde: Centro Cultural do Ministério Público (Rua Oswaldo Cruz, 1396, Centro).

Quanto: grátis. Inscrições pelo e-mail zemaribeiro@gmail.com (capacidade do auditório: 180 lugares).

Festa

Baile de debutante: 15 anos do blogue Homem de vícios antigos. Com Regional Choro da Tralha e dj Vanessa Serra.

Quando: dia 11 de maio (sábado), às 19h.

Onde: Chico Discos (Rua de São João, 289-A, Altos, Centro, esquina com Afogados).

Quanto: R$ 20,00 (capacidade do bar: 50 pessoas).

O crítico

O jornalista Pedro Alexandre Sanches está em São Luís a convite do Sesc/MA. Ele ministra desde sexta-feira (22) até amanhã uma oficina de Escrita e Crítica Cultural, dentro da programação da Mostra Nape – Napoleão Ewerton, que acontece no Condomínio Fecomércio (Av. dos Holandeses, Renascença).

Sanches é um dos idealizadores do Farofafá, site especializado em jornalismo musical, e atualmente é um dos editores de cultura da revista semanal CartaCapital, ao lado dos jornalistas Eduardo Nunomura e Jotabê Medeiros, seus parceiros também de Farofafá.

Ex-crítico do jornal Folha de S. Paulo e ex-colunista da revista Caros Amigos, é ainda autor dos livros Tropicalismo: decadência bonita do samba (2000) e Como dois e dois são cinco: Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (2004), ambos publicados pela Boitempo e fora de catálogo há algum tempo.

No carro, entre o almoço e a visita ao Sesc, antes do primeiro dia de oficina, ele conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.

À esquerda, Pedro Alexandre Sanches em ação durante a oficina de Escrita e Crítica Cultural. Exercício prático com a turma: entrevista coletiva com Vicente Melo (ator que interpreta João do Vale) e Celso Brandão (diretor do Teatro Arthur Azevedo e idealizador do musical “João do Vale: o gênio improvável”). Foto: Marla Batalha

Como e quando surge a ideia do Farofafá? O nome vem da música do Mauro Celso. Por que ela e não outra?
Essa semana mesmo eu estava ouvindo Farofafá, estou escrevendo um livro falando de vários discos da música brasileira e o disco do Mauro Celso é um dos que eu falo. É uma música muito maravilhosa. Farofa é aquela refeição que tem uma base básica, de farinha, e você coloca o ingrediente que você quiser, cada um coloca a seu gosto. A sua farofa é diferente da minha, minha farofa pode ter Mauro Celso, a sua pode ter Joelma, e de qualquer maneira a farofa é um alimento popular, talvez as elites não apreciem tanto por que valem ingredientes chulos, digamos assim, azeitona, sei lá o quê. Mas a ideia é isso, estou brincando, mas falando sério: todos os ingredientes fazem parte da música popular brasileira, tudo o que você quiser comer e for gostoso pro seu paladar. Então a ideia original do Farofafá é essa. Ele nasceu no seguinte contexto: meu segundo emprego tinha sido a CartaCapital, eu saí de lá em 2009, fiquei fazendo frila, e o Eduardo Nunomura, meu parceiro, meu colega, meu amigo, desde que a gente fez faculdade de jornalismo juntos, falava: “você tem que ter seu site, você tem que ter seu site, você tem que ter seu site”. E ele foi me ajudar a fazer meu site, e a gente foi tentar uma Lei Rouanet pra esse site. No processo a gente foi chegando a várias conclusões: não deveria ser o site do Pedro Alexandre Sanches, que devia ser uma coisa mais legal, podia ter uma ideia por trás, um conceito. E meio assim, no susto, na garra, a gente ganhou essa Lei Rouanet, nunca conseguiu captar um centavo sequer, então o Farofafá se mantém desde 2011, estreou no dia 13 de maio de 2011, data não casual, é o dia da libertação dos escravos, tem oito anos, e nunca viu um centavo até hoje. Viu alguns, alguns centavos a gente conseguiu, mas não foram muitos.

Hoje o Farofafá é tocado pelo trio de editores de cultura da CartaCapital. Como é que Jotabê chega e como é a relação do site com a revista?
A gente começa eu e o Edu apenas, ficamos juntos uns três anos, no começo a gente era bem ativo, tem umas matérias bem legais, tipo, Mano Brown é o principal intelectual brasileiro, é uma matéria do Eduardo, uma dissertação de mestrado que defendia essa bandeira, tem muita visualização, é um dos textos mais lidos do Farofafá até hoje. Fomos indo, fomos fazendo dentro desse princípio da mistura musical, pode falar de brega, pode falar de rap, pode falar de forró, axé, tudo. E o Jota é um parceiro desde sempre. Eu era o jornalista de música da Folha, ele era o do Estadão, a gente se conhecia pouco, se cruzava por aí nas pautas da vida e o Edu, na verdade, não sei se estou deixando de citar algum amigo do Edu, mas meio que eu e Jotabê éramos os melhores amigos do Edu, que era amigo do jornalista de música da Folha e do jornalista de música do Estadão. E aos poucos ele começou a tentar unir os dois, nunca houve, que eu saiba, nenhum empecilho para que eu e Jotabê fôssemos amigos, mas o Edu sacramentou isso. E isso foi por volta de 2014, portanto, o Farofafá já tinha uns três anos. O Jotabê vinha enfrentando dificuldades de emplacar matérias importantes no Estadão, onde ele trabalhava e a gente começou a publicar umas matérias de política cultural, que Jotabê ou fazia ou ajudava a gente a fazer, que foram matérias muito importantes também, naquele momento que a Dilma tinha acabado de ser eleita e nomeou a Ana de Holanda ministra da cultura, o que era um despropósito, uma pessoa totalmente despreparada, mal sabíamos nós que viriam pessoas muito mais despreparadas para a cultura, mas aquilo já era intolerável pra gente, então a gente fez umas matérias bem engajadas, por que a Ana de Holanda chegou destruindo tudo o que o Gilberto Gil [ministro da Cultura nos governos Lula] e o governo Lula tinham feito. Foram matérias que o Jotabê fez, que repercutiram muito e a partir desse momento o Jotabê ficou mais unido com a gente, mais colado. Eu não sei te dizer exatamente a sequência das coisas, mas os anos passaram, o Jotabê saiu do Estadão, nós levamos adiante o Farofafá, já os três nessa ocasião, e surgiu a oportunidade de a gente editar a cultura da CartaCapital. Foi uma coisa muito sem querer. O Farofafá funcionou independente por uns dois anos e depois a CartaCapital passou a ancorar, isso por que a gente já tinha uma relação anterior, eu já tinha trabalhado lá, tinha uma boa relação com eles, a gente acabou levando o Farofafá pra lá, dentro de um processo deles de congregar um monte de blogues progressistas, essa coisa toda. A gente estava nesse momento e pintou a chance de a gente se responsabilizar pelo conteúdo da revista também, que é um arranjo bem maluco, bem novos tempos, precariado. A gente não é funcionário da CartaCapital mas cuida de todo conteúdo [de cultura] da revista, que são oito páginas semanais. Tem dado super certo, a gente está super feliz, a gente adora o Mino [Carta, jornalista, fundador da CartaCapital], tem altos embates com ele, de concepções de cultura e tal, mas por enquanto está dando certo. Fizemos dois anos no final do ano.

Você está vindo à São Luís novamente para ministrar um curso pelo Sesc. Fala um pouco desse curso e de tuas expectativas em relação à participação dos inscritos.
Se não me engano eu vim três ou quatro vezes para São Luís. A primeira com Rita Ribeiro, hoje Rita Benneditto, lá nos anos 90, foi maravilhoso. Depois eu vim no festival BR-135, foi louquíssimo por que eu aproveitei a vinda e voltei pela BR-135. Vim pro festival e voltei de ônibus, percorrendo o Brasil por dentro, sem ser pelo litoral, percorrendo o Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Agora volto, sei lá, vamos dar um laboratório de jornalismo cultural, seja lá o que isso for. Acho que assunto não falta, o jornalismo está em crise, o Brasil está em crise, está tudo em crise, a cultura está em crise, Bolsonaro está querendo matar de inanição principalmente a cultura, mas acho que o jornalismo também, então eu acho que não falta assunto pra gente debater, teremos uma turma de 20 pessoas, espero que seja uma turma bem bacana, pra gente dar asas à imaginação.

Você falou que o jornalismo está em crise. Como você avalia a produção em jornalismo cultural no Brasil e, fora vocês três da CartaCapital, que outros nomes você destacaria, que têm te chamado a atenção? Da nova e da velha guarda, gente que fez tua cabeça e continua escrevendo, ou gente que surgiu agora…
Houve realmente uma dizimação. Eu sou mais do jornalismo musical, muitas vezes eu vou entrevistar ou fazer matérias sobre músicos e é recorrente, todos eles dizem a mesma coisa: “acabou a crítica musical, não existe mais”.

Acabou qualquer crítica, na verdade, não é?
É, eu tenho dúvidas. É um bom assunto pra gente debater lá no curso. A crítica não acabou, ela migrou para a famigerada caixa de comentários. Quando tinha blogue, o blogue tinha caixa de comentários, hoje em dia os portais ainda têm, é aquela carnificina, mas aquilo ali, assim como eu em 1997 falava horrores do Caetano Veloso, do Djavan, na Folha de S. Paulo, hoje em dia o cidadão comum fala horrores sobre o Lula ou a Dilma ou o Bolsonaro no espaço que ele tiver, pode ser a caixa de comentários da Folha, pode ser o facebook ou o twitter. Na verdade, os formatos esfacelaram, houve uma explosão e estilhaços pra tudo que é lado. O que era concentrado, você podia ir no jornal ou na revista e encontrar a crítica nossa de cada dia, hoje em dia ela está por todos os lugares. Então, na cultura, fica essa impressão de que ela acabou. E aí entram outras questões, a gente estava conversando sobre isso no almoço: aparece o youtuber, que é o crítico dos novos tempos, que é um cara que também vai lá e dá um monte de opinião, é o bonzão, e fala e acontece, e tem milhões de espectadores, e algum dia alguém descobre que esse cara está recebendo para falar de um livro sem ter lido o livro. E aí se descobre que não só é um crítico como é um mau crítico, por que ele não ouve o disco, ele não lê o livro, ele só recebe uma quantia de dinheiro para escrever alguma coisa e dar publicidade para aquilo. Essas coisas não são crítica cultural, muito embora elas frequentem, assim como a azeitona frequenta a farofa, o youtuber frequenta a crítica cultural.

Mas isso que você está dizendo não acaba por corroborar com essa tese da morte da crítica? Comentarista de portal não é crítico, embora ele emita uma opinião sobre uma obra, assim como o youtuber não é um crítico por que ele nem lê o que está comentando. Do ponto de vista da qualidade da crítica, da credibilidade e da seriedade da crítica.
Mas veja: eu também não era. Essa é a outra volta do parafuso. Por que eu fiz jornalismo. No jornalismo eu estudei história do jornalismo, sociologia, teorias sobre o jornalismo televisivo, eu estudei um monte de coisa, mas eu não estudei crítica, não aprendi a ser crítico na faculdade, foi uma coisa meio no fazer diário. Chegar na Folha de S. Paulo e entender que a Folha gostava que todo mundo falasse mal de tudo, aí eu comecei a falar mal dos cantores, e funcionou, eu fiquei 10 anos lá. Mas não era uma coisa científica ou estudada ou, sei lá, então, na verdade, eu acho que toda geração tem críticos mal formados, eu fui o da minha geração, pelo menos lá no comecinho eu fui, em algum momento eu fui.

Mas em algum momento você aprendeu.
Essa é uma questão: talvez eles nunca aprendam. Ou talvez eles aprendam e a gente vai queimar nossa língua.

O que esperar da mordaça do governo Bolsonaro?
Acho que não vai funcionar. O Bolsonaro só vai fazer mordaça se ele merecer, se a gente se acovardar. São três meses, é muito pouco tempo, mas assim, todo mundo está falando o que quiser. Quem está falando muito é por que quer falar muito, quem está falando pouco é por que quer falar pouco. Quem estiver acovardado, com medo de criticar ou de fazer cultura ou de fazer peça, ou de gravar um disco falando mal do Bolsonaro, eu acho que a sociedade que se autoamordaça [se interrompe]. Eu próprio, confesso, estava com muito medo, que ele ia reprimir geral, tudo. Seja dita a verdade, ele está reprimindo no sentido econômico, ele está tirando a grana, aí a gente vai ter que dizer se precisa de grana pra criticar ele ou se pode criticar de graça.

Nem mortos!

Biógrafos de Sócrates, Tarso de Castro, Wander Piroli, Belchior, Chacrinha, Clarice Lispector e Sérgio Sampaio imaginam quais seriam os votos de seus biografados no Brasil de hoje

O jornalista escocês Andrew Downie, autor de Doutor Sócrates: Futebolista, Filósofo e Lenda [Simon & Schuster, 400 p., ainda sem tradução no Brasil], declarou hoje (19) ao jornal Folha de S. Paulo: “Esses caras hoje em dia são o contrário do Sócrates. Ganham muito mais e se importam muito menos com o lugar de onde eles vêm. Sócrates era imprevisível e não posso falar por ele, mas creio que ele estaria chocado em ouvir jogadores do Corinthians ou de qualquer time grande, como Palmeiras ou Tottenham, falando a favor do Bolsonaro, do autoritarismo”.

Downie se referia ao apoio de nomes como Felipe Melo (Palmeiras), Lucas Moura (Tottenham, da Inglaterra), Jadson e Roger (Corinthians) ao candidato de extrema-direita à presidência da república Jair Bolsonaro (PSL). O contraponto proposto pelo biógrafo se ancora, por exemplo, na atuação de Sócrates em movimentos como a Democracia Corintiana e a campanha Diretas Já!, ambas na década de 1980.

Homem de vícios antigos conversou com exclusividade com biógrafos de Sócrates, Tarso de Castro, Wander Piroli, Chacrinha, Belchior, Clarice Lispector e Sérgio Sampaio, que, baseados no profundo conhecimento que têm de suas personagens, imaginaram quais seriam seus votos no Brasil de hoje.

Sócrates. A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro. Capa. Reprodução

Também biógrafo de Sócrates [Sócrates. A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro. Objetiva, 2014, 264 p.], o jornalista Tom Cardoso, ao mesmo tempo em que acredita que o ex-jogador poderia estar ainda mais à esquerda, reconhece sua postura libertária. “Acho que ele jamais concordaria com um clube tutelar, ele diria que o jogador é livre para se posicionar politicamente, seja ele eleitor do PT ou do Bolsonaro”, disse. “O Sócrates não ficaria surpreendido com o voto de algum jogador no Bolsonaro. Talvez ele discordasse, claro, como um homem progressista, de esquerda, de um eleitor do Bolsonaro. Mas ele não ficaria assustado com isso, ele sabia, deu várias declarações dizendo que o futebol brasileiro era muito conservador, era um espelho da sociedade”, continua.

“Ele achava que o PT, de quem ele acabou se tornando um crítico, tinha feito essa guinada ao pragmatismo político, através da Carta ao Povo Brasileiro, então eu tenho dúvidas se ele não estaria mais à esquerda do [Fernando] Haddad [candidato do PT] e não estaria mais entusiasmado pelo PSol, por exemplo”, imagina. Cardoso lembrou ainda que Sócrates chegou a ser secretário municipal de Esportes em Ribeirão Preto/SP numa das gestões de Antonio Palocci, tendo permanecido apenas seis meses no cargo, “ele meio que se desiludiu um pouco com aquela coisa preguiçosa da máquina do estado”. O camisa 8 também teria recusado diversos convites do PT para assumir o ministério dos Esportes na gestão de Lula. “Hoje, eu acho que ele votaria no Haddad, mas também poderia votar no Ciro [Gomes, candidato do PDT] ou no próprio [Guilherme] Boulos [candidato do PSol]”, opina.

75 kg de músculos e fúria. Tarso de Castro: a vida de um dos mais polêmicos jornalistas brasileiros. Capa. Reprodução

Indago sobre Tarso de Castro [75 kg de músculos e fúria – Tarso de Castro: a vida de um dos mais polêmicos jornalistas brasileiros, Planeta, 2005, 280 p.], outro biografado de Tom Cardoso. “O Tarso é mais difícil. Eu acho que ele pregaria um voto útil contra o Bolsonaro. Tem o Ciro, que é do PDT do [Leonel] Brizola, mas não tem nada de brizolista, o Tarso era brizolista, antes de tudo, mas tinha simpatia pelo Lula, fez uma grande entrevista com o Lula, acho que em 1982, para a [revista] Careta. Acho que ele estaria inclinado pelo voto a quem tivesse mais chance para ganhar do Bolsonaro”, especula sobre a posição do jornalista, da patota do Pasquim.

Belchior. Apenas um rapaz latino-americano. Capa. Reprodução

O biógrafo Jotabê Medeiros foi direto sobre que opinião teria Belchior [Belchior – Apenas um rapaz latino-americano, Todavia, 2017, 237 p.] sobre o capitão reformado do exército: “Belchior era antifascista. Foi combatente da liberdade até a morte – embora afastado da vida social, angustiava a ele o mergulho que o Brasil deu na via antidemocrática nos últimos anos. Sua defesa da liberdade o posta como um claro adversário de tudo o que Bolsonaro representa”, diz.

O jornalista aposta no voto do compositor cearense: “Belchior é Lula. Lula é Belchior. Ele estaria com o maior líder popular do País em todos os tempos. Caminharia ao lado de Haddad, não tenho a menor dúvida”, coloca as fichas.

“Um compositor que escreveu “um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha”, identificando os alvos prioritários dos ataques de racismo, exclusão e misoginia, sempre demonstrou saber perfeitamente quem são os inimigos a serem combatidos”, arremata.

Wander Piroli. Uma manada de búfalos dentro do peito. Capa. Reprodução

Mais comedido é Fabrício Marques, biógrafo de Wander Piroli [Wander Piroli. Uma manada de búfalos dentro do peito, Coleção Beagá Perfis, Conceito Editorial, 2018, 256 p.]. “Seria leviano de minha parte tentar adivinhar as posições políticas do Wander Piroli. O que posso pressupor, com base nas opiniões dele, é que ficava indignado especialmente com a desigualdade social de nosso país e com as injustiças contra minorias. Como afirmou o jornalista João Paulo Cunha, a principal característica do jornalista e escritor mineiro foi o compromisso humano. Acho que essa postura dá pistas sobre as inclinações dele”, comenta.

Chacrinha. A biografia. Capa. Reprodução

Biógrafo do pernambucano Abelardo Barbosa, que fez fama como Chacrinha [Chacrinha: a biografia, Casa da Palavra/Leya, 2014, 328 p.], Denilson Monteiro segue a linha de Marques: “Seria muito arrogante da minha parte determinar qual seria o pensamento do Chacrinha se estivesse vivo hoje. Mas analisando tudo o que ele sofreu durante a ditadura civil-militar, tendo até sido preso, acredito que ele jamais apoiaria um candidato simpático a esse período tão perverso da história do país”, lembra.

Mas arrisca-se a opinar sobre o “não-voto” do velho Guerreiro em um possível segundo turno: “Partindo do que eu respondi anteriormente, o que  acredito é que num segundo turno, Chacrinha, que participou da campanha das Diretas, jamais votaria em um candidato como Jair Bolsonaro”, afirma.

Clarice,. Capa. Reprodução

Opiniões parecidas têm os biógrafos de Clarice Lispector e Sérgio Sampaio. O americano Benjamin Moser, autor de Clarice, [Companhia das Letras, 2017, 576 p.], afirma: “Clarice teria compartilhado o mesmo nojo que todos sentimos quanto a este senhor. Creio que estaria apoiando Fernando Haddad, mas é impossível saber ao certo”.

Rodrigo Moreira, autor de Eu quero é botar meu bloco na rua! [Muiraquitã, 3ª. edição, 2017, 288 p.], biografia do cantor e compositor capixaba, opina: “Como não cheguei a conhecer Sérgio, não sei precisar qual era sua orientação política, mas decerto seria de esquerda ou centro-esquerda. Sendo assim, acho improvável que uma candidatura como a de Bolsonaro o seduzisse. Arrisco dizer que ele votaria no Haddad ou no Ciro”.

Eu quero é botar meu bloco na rua. Capa. Reprodução

O capitão não conseguiu capitalizar o lamentável atentado à faca que sofreu durante um ato de campanha em Juiz de Fora/MG, no último dia 6 de setembro e, internado desde então, enfrenta, para usarmos metáforas do campo que abre este texto, o futebol, trombadas de gente que veste o mesmo uniforme: sua rejeição, que já era grande, cresce a cada declaração de seu vice, o general Hamilton Mourão (PRTB), e de seu principal conselheiro na área econômica, Paulo Guedes, a quem o candidato apelidou “posto Ipiranga”. Nas últimas pesquisas, o candidato tem oscilado dentro da margem de erro.

Pelo visto, a rejeição ao ideário autoritário do deputado é grande também entre personalidades que permanecem vivas através de suas obras. Não é mesmo estranho ouvir de alguém, quando perguntado se votaria em Bolsonaro: “nem morto!”.

Jotabê Medeiros sobre Belchior: “creio que ele é único no mundo inteiro”

Belchior – Apenas um rapaz latino-americano. Capa. Reprodução

 

Lembrado em listas de melhores do ano e de mais vendidos, Belchior – Apenas um rapaz latino-americano [Todavia, 2017, 237 p.; R$ 49,90] foi sucesso absoluto de público e crítica em 2017. Um livro lido e discutido, debatido para o bem e para o mal – não demorou para uma irmã do biografado falar em tirar a obra, pioneira, de circulação.

O autor, Jotabê Medeiros, paraibano formado em Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, e radicado em São Paulo há cerca de 30 anos, sempre lembra, em entrevistas, os tempos de estudante, quando três discos lhe faziam a cabeça: Desire (1976), de Bob Dylan, A peleja do diabo com o dono do céu (1979), de Zé Ramalho, e Alucinação (1976), de Belchior.

Até que um dia, com a ousadia e o faro que lhe tornariam um dos maiores jornalistas culturais do Brasil, escreveu um texto sobre o clássico The wall (1979), do Pink Floyd, e enviou à revista SomTrês, de que Maurício Kubrusly era editor-chefe. Foi contratado e passou a receber uma caixa de discos por mês, para resenhar, sendo pago para isso. Unia o útil ao agradável, a fome à vontade de comer.

Da SomTrês passaria por diversas redações, com destaque para Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, onde passou mais de duas décadas, e CartaCapital, de que é editor de cultura, além do site de jornalismo musical Farofafá, ancorado no da revista fundada por Mino Carta, homem-escola. Já colaborou com revistas como Globo Rural e Helena, publicada pela Biblioteca Pública do Paraná. Antes de chegar às livrarias, Jotabê Medeiros publicou trechos de Belchior na Playboy e Piauí.

Começou a escrever a biografia de Belchior um ano e meio antes do falecimento do compositor cearense, ano passado, aos 70 anos, que pegou o país inteiro de surpresa. Jotabê estava na pista para localizar o artista, desaparecido há anos, mas uma surpresa desagradável, o falecimento de um irmão, adiou seus planos em uma semana e o tirou da jogada para sempre. A Jack, o irmão falecido, é dedicado o livro: “nosso Dean Moriarty, aquele que nunca cedeu à tentação de viver outra vida senão aquela que escolheu para si mesmo”, oferece.

Repórter incansável – por essas e outras é que encontrou Bob Dylan de casaco e gorro no calor de Copacabana, como contou em seu livro anterior [O bisbilhoteiro das galáxias – No lado b da cultura pop, Lazuli, 2013, 215 p.], com foto para comprovar, ao contrário de certo julgamento farsesco na história recente da política brasileira –, Jotabê Medeiros embarcou para a capital Fortaleza e Sobral, cidade natal do bardo, para cobrir o velório para a CartaCapital e colher mais histórias para a biografia, cuja escrita estava quase no ponto final. Com estas andanças, o livro acabou ganhando um novo e surpreendente capítulo final, Inmemorial.

Li Belchior – Apenas um rapaz latino-americano imediatamente quando de seu lançamento, sem saltar mesmo os capítulos que já havia lido publicados previamente na imprensa ou o trecho lido pelo autor quando de sua participação na Feira do Livro de São Luís em 2016, em que comentou a feitura da obra numa mesa que tinha por tema “A desaparição do artista na era da superexposição: como Belchior cantou antes o que viveria depois”, que tive a honra de mediar. Havia acompanhado inclusive a mudança de título: originalmente o livro se chamaria Pequeno perfil de um cidadão comum, aludindo à parceria com Toquinho, de 1979. Fez mais sentido: nem o perfil é pequeno, nem é comum o cidadão.

Uma resenha pura e simples certamente não daria conta de dizer algo novo ou relevante sobre o livro, meses depois: a mim, tudo parecia já ter sido dito. Em uma entrevista que vai além do livro, e não poderia ser diferente, Jotabê Medeiros conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.

Retrato: Renato Parada

Homem de vícios antigos – Jotabê, a ideia inicial de Belchior – Apenas um rapaz latino-americano era uma oficina, em que os inscritos escreveriam uma biografia coletiva, a partir de um curso ministrado por você. Em que momento e por que você decidiu seguir sozinho?
Jotabê Medeiros – De fato, a oficina que propus visava a uma pesquisa coletiva, uma ideia colaborativa que tinha a intenção de questionar o personalismo da figura do biógrafo. Mas foi um fiasco: não teve inscrições suficientes e fui obrigado a postergar. Àquela altura, minha pesquisa já tinha começado e eu estava disposto a escrever o livro de qualquer modo. Não tinha editora ainda, mas fui em frente. É do meu temperamento não recuar ante a primeira dificuldade.

A escrita da biografia começou com esta primeira dificuldade e terminou com outra: o falecimento de Belchior, que levou a mudanças no livro, que já estava praticamente pronto, quando você estava por encontrá-lo. Em que medida o livro seria outro, caso você tivesse conseguido entrevistar Belchior?
Eu imagino que Belchior mantivesse sua disposição de não falar sobre seus planos e sua análise da vida contemporânea. Ainda assim, eu gostaria de ter podido provocá-lo. Sempre quis fazer um texto que, mantendo a equidistância necessária, contivesse o frescor de um avistamento, uma fagulha de proximidade.

Sua biografia é magra, vai ao cerne da questão, sem se prender a firulas ou apelar para fofocas da vida privada. Você já demonstrou incômodo com biografias que ganham volume com elementos que nada acrescentam à compreensão da vida e obra de determinados biografados. Você tinha essa consciência ao escrever?
Sim, tive essa preocupação. Só incorporei à narrativa elementos que têm conexão com a construção de uma personalidade e de uma obra. Claro que é preciso atenção. Há escaninhos da vida pessoal da gente que parecem irrelevantes, mas na verdade não são. Revelam coisas, obsessões, contradições expurgadas. Mas examinei tudo com os olhos da descoberta, tanto a obra quanto o homem. Por isso não invoco a condição de expert, de especialista em Belchior. Eu segui suas pegadas, apenas isso. Por sinal, continuo seguindo.

Recentemente, após a publicação do livro, uma irmã falou em tirá-lo de circulação. A outros, que desconhecem a origem de teu interesse pelo artista e da pesquisa que resultou no livro, este pode parecer oportunista, o que sabemos que não é, já que lançado poucos meses após o falecimento do cearense. Afinal de contas: por que Belchior?
Meu livro teve início um ano e meio antes da morte do artista. Eu me dei conta de que ele era um dos raros outsiders da música brasileira. Tinha conseguido escapar de todos os consensos e panelinhas. Era íntegro e ousado, politizado e independente, solitário e cheio de amigos. Seu rompimento e consequente autoexílio reafirmaram sua singularidade. Creio que ele é único no mundo inteiro.

Você já era reconhecido como um dos mais importantes jornalistas culturais em atividade no Brasil. O sucesso do livro catapultou você a estrela de feiras e eventos literários em geral. Em que medida o jornalista ajuda e atrapalha o escritor e vice versa?
Acredito que o desafio é o jornalista aprender a se relacionar, como o escritor, com o seu leitor. Durante 30 anos, em redações, eu nunca soube quem era o meu leitor. Havia às vezes uma enxurrada de e-mails de leitores contrariados com uma crítica, uma reportagem, mas eles (os leitores) e eu nunca fomos apresentados. O livro aproxima, abre debate, derruba muros e fronteiras. Você é inquirido e pode se explicar. Eu não acredito no sucesso, acredito na consistência, na tarefa. Uma vez, finalista de um prêmio de jornalista, me perguntaram o que achava daquilo e eu respondi: “Jornalismo não é corrida de cavalos”. Ninguém ganha por chegar uma cabeça à frente. É preciso persistência, silêncio, concentração e fazer tudo de novo todo dia.

Outra característica que merece ser destacada em teu livro é o distanciamento da hagiografia. Como admirador confesso da obra de Belchior, foi difícil?
Creio que biografias laudatórias e chapas-brancas são um desrespeito para com o biografado. Se esse biografado é o Belchior, então é ainda mais desrespeito. Quando ele andou caminho errado, ele o fez pela simples alegria de ser [citando trecho da letra de Coração selvagem, de 1977]. Era um filósofo, um homem em questionamento contínuo de sua condição. Assim, nivelar sua existência por um padrão de homem médio, domesticado, inócuo, isso sim seria um desrespeito. A viúva de Belchior, Edna, deu um único depoimento após a morte do cantor em um teatro no Ceará. “Ele não era uma celebridade, era um artista renascentista”. Concordo com ela. O biógrafo seria um traidor se resumisse a sua vida a um corolário de fofocas – o contrário também seria uma traição, fazer dele um homem da família, um totem particular.

Fora Belchior, houve alguém que você gostaria de ter entrevistado para o livro e não conseguiu?
Acho que uma narrativa inclui os percalços e as negativas. Fagner não quis falar. Edna, a viúva, também não quis falar. Seus personagens, entretanto, estão colados à história quer eles queiram quer não. É como diz o maestro Ennio Morricone: os silêncios são parte integrante da música, não há música sem eles.

Também me chamou a atenção em teu livro a mistura de biografia com crítica musical, noutra demonstração do convívio harmônico do jornalista com o escritor em você. Além de contar sua versão da vida de Belchior, você analisa seus discos, sua obra. Foi algo consciente?
Pensei em criar uma biografia um pouco menos factual, com mais envolvimento, até alguma paixão. Sei que é perfeitamente possível fazer uma biografia empilhando fatos, não deixando nenhum de fora, mas creio que isso não me atrai. Não analiso todos os discos, ficaria chato e extensíssimo. Analiso os fundamentais, com alguma dose de informação nova sobre eles.

Após o ponto final, várias histórias já surgiram, como você compartilhou com os leitores em um texto para a revista Piauí. Você está colecionando estes causos? Pensa em fazer algo com eles, uma segunda edição ampliada?
Sim, estou colecionando esses causos. Já alimentei a fantasia de publicar um outro livro, A vida após a biografia, reunindo todas essas histórias. Mas ficaria feliz se pudesse, agora na segunda edição [prevista para março], acrescentar dois capítulos. Um deles seria somente para abrigar uma análise e a história de Baihuno [1993], o último álbum de inéditas de Belchior, cuja última canção se chama Até mais ver e é uma despedida (“Qualquer distância entre nós tornada em nada”). Além, é claro, de corrigir algumas coisas e acrescentar detalhes.

Sua vasta experiência no campo do jornalismo cultural me faz pensar em vários livros que você tem prontos na gaveta: uma coletânea de entrevistas, outra de reportagens, pelo menos, além da ficção A morte engarrafada, de que já publicou alguns capítulos em seu blogue, e deste A vida após a biografia. Noutras circunstâncias, Paulo César de Araújo fazendo escola [risos]. Seu livro de estreia conta causos a partir de fotografias de grandes nomes do pop em atitudes prosaicas. Você pretende publicar outros títulos?
Sim, é verdade. Os projetos às vezes são inevitáveis, noutras vezes completam um ciclo. O livro de reportagens seria uma espécie de balanço da carreira. Outro dia mesmo encontrei uma entrevista que fiz com Pierre Henry, compositor francês que morreu no ano passado. Creio que muitas delas têm alguma dose de atemporalidade, então daí a ideia. Mas é muito provável que, antes desses livros, eu publique uma obra para crianças. Tenho uma proposta e vou estudá-la.

Por falar em crianças, Belchior – Apenas um rapaz latino-americano foi escrito com você se equilibrando entre a paternidade de dois filhos pequenos, a editoria de cultura da revista CartaCapital e frilas outros. O quanto essa dose de intranquilidade inspira e bloqueia, ajuda e atrapalha?
Bom, comecei exatamente quando nasceu Tito, meu filho menor, agora com dois anos. Ele não tem culpa da escolha do pai: eu vinha de um longo período de imprensa diária e queria abraçar um projeto que fosse o contrário da rotina, uma reportagem sem deadline e sem títulos e fechamento padronizado. Confesso que muitas vezes escrevi em situação insalubre, com fraldas a trocar, almoço a fazer, faxina atrasada, louça empilhada. Agora, tudo parece que foi pacífico e tranquilo.

Entre os projetos para o futuro, alguma outra biografia?
Tive a intenção de escrever a biografia não autorizada de um outro grande outsider, Luiz Melodia. Mas, até agora, as tratativas para ter acesso a acervo e a parentes não evoluiu muito, e acho mesmo que não vão evoluir. Uma pena, porque Melodia já está merecendo um exame que o traga para o centro do debate público, como artista e testemunha de seu tempo.

Você, a propósito, escreveu talvez o melhor obituário de Melodia e obituários não deixam de ser pequenas biografias. Vivemos tempos de grandes perdas ou é o fluxo natural das coisas e sempre foi assim?
Sou um otimista crônico. Experimento as perdas e choro as perdas, mas prefiro pensar que os ganhos estão em curso e vão trazer grandes contribuições ao futuro. As coisas que permanecem são as coisas vividas com intensidade, ousadia, eletricidade. Os reacionários não deixam legados.

Isso vale, por exemplo, para episódios como o julgamento de Lula e seu entorno, como o ódio cotidiano praticado nas redes sociais, mas não só?
Acho que se estende à política, ao comportamento, a tudo. O julgamento de Lula foi uma vergonha não só para nosso tempo, para o Brasil, mas para a História da humanidade. Como não há exemplos precedentes de recuo do autoritarismo, creio que vai piorar. Mas vejo o esforço de civilidade dos intelectuais, dos artistas, dos homens de ação, e sei que é algo que não vai triunfar.

Voltando a Belchior, esses retrocessos todos que estamos vendo e vivendo, ele, “cantador das coisas do porão” [verso de Conheço meu lugar, de 1979], que dizia “nunca fazer nada que o mestre mandar/ sempre desobedecer, nunca reverenciar” [de Como o diabo gosta, de 1976], entre tantos outros versos, tem sua obra atualizada pelo triste contexto, não?
Na verdade, acho mesmo que ele anteviu todos os contextos, como convém a um grande visionário. Em Baihuno, seu derradeiro disco, ele canta sobre todos esses dilemas nacionais: “Trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes: barbárie, devastação/ O rinoceronte é mais decente do que essa gente demente do Ocidente tão cristão” [versos da faixa-título]. Ou então: “Diz, América que és nossa/ Só porque hoje assim se crê/ Há motivos para festa?” [de Quinhentos anos de quê?]. O disco termina com uma versão de um poema de Iessiênin, o poeta russo suicida que escreveu: “Sim, está decidido: agora não há mais volta”. Ele transformou o poema em Até mais ver, que é sua despedida de um mundo irremediavelmente corrompido. Era uma decisão extrema, especialmente para um humanista e otimista como Belchior.

Comentários a respeito de Belchior

A cantora Tássia Campos. Foto: Quilana Viégas
A cantora Tássia Campos. Foto: Quilana Viégas

 

A cantora Tássia Campos apresenta hoje (11), meia noite, no Odeon (Travessa João Victal de Matos ou Beco da Pacotilha, Praia Grande), mais uma edição do show Encontrando Belchior. Desta vez, com a presença do biógrafo do cearense, Jotabê Medeiros (Farofafá), que na ocasião lerá um trecho de Pequeno perfil de um cidadão comum, livro que lança ano que vem – amanhã medeio a mesa “Jornalismo cultural: a desaparição do artista em plena era da superexposição (O caso Belchior: como ele cantou antes o que viveria depois)”, palestra que o jornalista profere na programação da 10ª. Feira do Livro de São Luís, às 20h, no Centro de Criatividade Odylo Costa, filho (Praia Grande).

Tássia elege Coração selvagem como seu disco preferido entre os lançados pelo artista, que resolveu sumir do mapa há alguns anos. E Todo sujo de batom, terceira faixa do álbum, como sua predileta. “Embora Coração selvagem, que dá título ao álbum, seja um retrato fiel da minha vida”, confessa.

Ela, que já realizou tributos a nomes como Sérgio Sampaio e Novos Baianos, entre outros, sempre trata com reverência os artistas escolhidos para homenagear. Não é diferente com Antonio Carlos Belchior. “É um desafio cantá-lo para além do que já foi eternizado por Elis [Regina]. A métrica é difícil, não é uma tarefa simples cantar, mas sem dúvida são as mensagens em garrafas que Belchior mandou ao mar. Não envelhecerão nunca, assim como espero como artista permanecer me reinventando”, exige-se a recompositora, como afinal este modesto repórter chama os que, como Tássia, imprimem uma marca tão pessoal naquilo que interpretam, reinventando canções às vezes consagradas, como se as compusessem novamente.

Ela sobe ao palco do Odeon acompanhada da banda Os Joões dos comentários a respeito: João Simas (guitarra), João Paulo (contrabaixo), João Vitor (teclado) e Thiago Guerra (bateria) – fora o biógrafo, nascido João Batista em João Pessoa/PB, e a cantora, “moça de Joãozinho no cabelo”, como canta Vanessa da Mata.

Sobre as origens do espetáculo e as expectativas para o encontro com Jotabê Medeiros, ela comenta: “Quando Emilio Azevedo me atentou que eu devia fazer um show em homenagem ao Belchior, ele estava de fato sumido, meio esquecido. Entre a divulgação, o show e após os shows começaram a falar muito de Belchior, creio que pelo momento atual do país. Eu estava sintonizada com a obra dele já fazia um tempo, pelo preparo do show. Receber o Jotabê é mais uma mostra dessa sintonia. Queremos o Belchior de volta porque ele é muito importante”.

Ao repertório de Encontrando Belchior não deixarão de comparecer a música que dá título à obra em progresso do jornalista, além de “Paralelas, Comentário a respeito de John, Velha roupa colorida, Todo sujo de batom e Coração selvagem”, que ela cita, repetindo as preferências e citando algumas das mais conhecidas, sem dar pistas dos lados b que escolheu e sem vontade de estragar a surpresa de quem tem, via sua voz, um encontro marcado com um bigodudo que anda fazendo uma falta danada.

Divulgação
Divulgação

Serviço

O quê: show Encontrando Belchior
Quem: Tássia Campos e banda Os Joões dos comentários a respeito. Participação especial de Jotabê Medeiros, biógrafo de Belchior
Quando: hoje (11), meia noite
Onde: Odeon Sabor e Arte (Rua João Victal de Matos ou Beco da Pacotilha, Praia Grande)
Quanto: R$ 20,00 (metade para estudantes)

Belchior invocado

Jotabê Medeiros e o blogueiro na Feira do Livro de São Luís em 2013, quando ele lançou "O bisbilhoteiro das galáxias". Foto: Talita Guimarães
Jotabê Medeiros e o blogueiro na Feira do Livro de São Luís em 2013, quando ele lançou “O bisbilhoteiro das galáxias”. Foto: Talita Guimarães

 

Amanhã (23) em São Paulo, o jornalista Jotabê Medeiros reúne diversos amigos para celebrar a obra de Belchior, artista cearense de quem está escrevendo a biografia Pequeno perfil de um cidadão comum, título de uma conhecida canção sua, parceria com Toquinho.

E-flyer de divulgação do evento. Arte: André Kitagawa
E-flyer de divulgação do evento. Arte: André Kitagawa

Invocação Belchior – debate-canção sobre a vida e a obra de um grande artista, o evento, reunirá, além do organizador, o jornalista Pedro Alexandre Sanches, seu colega de Farofafá, o compositor Jorge Mello (parceiro de Belchior e fonte de Jotabê na biografia) e Josy Teixeira, doutora em Belchior pela USP, além de músicos revisitando clássicos e lados b do cearense: Edvaldo Santana, Juliano Gauche, Assucena Assucena (vocalista de As Bahias e a Cozinha Mineira), Mário Bortolotto e o próprio Jorge Mello.

“Eu tenho diversos amigos que partilham comigo essa paixão pela obra do Belchior e pela coerência artística dele. Me ocorreu que é legal manter uma obra como a dele, que está agora, talvez, um tanto quanto esquecida, pelo fato de que ele deu um sumiço, que seria legal reunir as pessoas que têm algo a dizer e fazer umas provocações. Os beatniks faziam muito isso, houve uma tradição uma época no mundo cultural, reunir as pessoas, o dadaísmo se reunia no Cabaret Voltaire, lá em Zurique, e lá eles realizavam suas provocações artísticas. A gente esqueceu um pouco essa tradição, tá tudo muito ligado a questões como showbiz, a realização de um show, achei até que essa coisa da extinção do Ministério da Cultura liberou um pouco pras pessoas fazerem ações coletivas sem fins outros que não a própria ação. Esse encontro, Invocação Belchior, é uma coisa assim, eu até brinquei, como tinha essa coisa lá nos beatniks, os belchniks vão se reunir no dia 23 aqui em São Paulo”, anuncia Jotabê.

Biógrafo e biografado têm trajetórias parecidas, como lembra Belchior na autobiográfica Fotografia 3×4, “pois o que pesa no norte/ pela lei da gravidade/ disso Newton já sabia/ cai no sul, grande cidade”, ele cearense de Sobral, Jotabê paraibano de Sumé, o primeiro desce para o eixo Rio-SP em busca de um lugar ao sol na MPB da época dos grandes festivais, o segundo forma-se em jornalismo em Londrina/PR e fixa residência em São Paulo, onde consolida-se como um dos mais importantes jornalistas culturais em atividade no país.

“Belchior tratou em algumas músicas da questão da migração, tem também entrevistas que tratam dessa coisa, o fato do cidadão migrante, principalmente do Nordeste, ser visto como um pária, às vezes, aqui no Sul, Sudeste, ser visto como um ser, eles fazem essa confusão, geralmente é o porteiro ou é o pedreiro, no Rio de Janeiro chamam todo mundo de Paraíba, aqui em São Paulo chamam de baiano, sempre com um tom meio agressivo, e o Belchior sentiu isso na pele e fez algumas músicas maravilhosas sobre esse sentimento. Eu sou migrante, mas vim beber pra cá pro Sudeste, conheço esse sentimento meio transversalmente, mas reconheço a grande poesia que nasce desse estado de preconceito. Belchior fez maravilhas, Fotografia 3×4 é a história de todos nós”, prossegue Jotabê.

A Belchiorgrafia em progresso e o evento de amanhã são exceções no noticiário relativo ao artista nos últimos anos, seu bigode grisalho tingido pelo marrom da imprensa sensacionalista, especulando sobre dívidas, motivações e até seu quadro psicológico. Jotabê trabalha com afinco, em meio a uma agenda intensa de compromissos profissionais, atuando como jornalista independente há pouco mais de um ano, escrevendo regularmente em seu blogue, no site Farofafá e no portal Uol.

“Seria ótimo poder falar com ele, cotejar alguns temas da obra dele, perguntar, por exemplo, eu tou tendo que ir a fontes, parceiros, para chegar, por exemplo, por que o desespero era moda em 73?, um verso famoso dele [de A palo seco]. O desespero era moda em 73 por que naquela época quem mandava no país era um general chamado Emílio Garrastazu Médici, era linha dura, a perspectiva para artistas e pessoas que eram vítimas da censura era muito dura, então ele cunhou esse verso em relação a esse período do Médici, e pouca gente sabe disso. Eu gostaria de falar com ele e perguntar para ele, diretamente. Não vai ser possível”, contenta-se.

Em 2016 Alucinação completa 40 anos. O disco de Belchior foi eleito o melhor da música produzida no Ceará, em enquete do jornal O Povo. Em outubro, o compositor completa 70 anos, quando deve ser lançado Pequeno perfil de um cidadão comum. “Vai estar na mão do editor daqui a um mês, então acho que sai. Tá previsto, vai sair”, garante. Segundo livro de Jotabê Medeiros, o aguardado sucessor de O bisbilhoteiro das galáxias – No lado b da cultura pop [Lazuli, 2013], será certamente um presente e tanto para Belchior, seus fãs e interessados em música e jornalismo cultural em geral.

Ouça o álbum Alucinação:

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O texto toma por base entrevista concedida por Jotabê Medeiros ao blogueiro no programa Conversa à Beira Mar da última quarta-feira (20), na Rádio Timbira AM (1290KHz).

Agenda #9FeliS

Foto: Acervo Talita Guimarães
Foto: Acervo Talita Guimarães

 

Enquanto não sai oficialmente a programação completa da 9ª. Feira do Livro de São Luís, que volta à Praia Grande entre os próximos dias 2 a 11 de outubro, este blogue anuncia a participação de seu titular no evento. Medeio duas mesas:

5 (segunda), às 20h, “Uma historiadora ludovicense: a figura e a obra de Lourdinha Lacroix“, palestra do professoramigo Flávio Soares, no Auditório Lourdinha Lacroix (Casa do Maranhão) Mário Meirelles (Teatro João do Vale). Na #9FeliS, Maria de Lourdes Lauande Lacroix, professora, historiadora e patronesse desta edição da FeliS, lança História da Medicina em São Luís: Médicos, enfermidades e instituições, que tive o prazer e a honra de revisar; e

10 (sábado), às 17h, “Editoras alternativas: pedras no caminho do mercado“, debate-papo com Bruno Azevêdo (Pitomba!), Eduardo Lacerda (Patuá) e Bruno Brum, no Auditório Mário Meireles Espaço Café Literário Lourdinha Lacroix (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho).

Ilustra este post foto roubada da Talita Guimarães (ao centro, não lembro quem fez), após a mesa que, baita honra, dividi com Jotabê Medeiros na FeliS passada.

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Veja a programação completa da #9FeliS.

Bisbilhotando na #8Felis

O bisbilhoteiro das galáxias. Capa. Reprodução

O livro que abre este post merece atenção especial, inclusive deveria ser bibliografia das disciplinas de jornalismo cultural nas faculdades. Depois digo mais dele, num post específico.

Logo mais este que vos perturba debato o “jornalismo cultural nos bastidores da cultura pop” com seu autor, Jotabê Medeiros, repórter e crítico do jornal O Estado de S. Paulo, e aproveito para pegar meu autógrafo. Ele trouxe uns exemplares na mochila e lança esta coletânea de histórias de bastidores fartamente ilustrada, contando encontros, às vezes inusitados, com nomes como Bob Dylan, Axl Rose, Zé Ramalho e Manu Chao, entre muitos outros.

Vai ser às 16h, no Café Literário Odylo Costa, filho, no térreo do Convento das Mercês, na programação da 8ª. Feira do Livro de São Luís.

Amanhã estaremos entre os bastidores e a plateia de Edvaldo Santana.

A obra de arte no asilo e a direita reaça nas ruas e gabinetes

A gente morre e não vê tudo. Roubei o texto abaixo do facebook de Jotabê Medeiros, um dos melhores jornalistas deste país.

É sobre a censura perpetrada ao judiciário carioca por Bolsonarinho, filho vocês sabem de quem, por conta de uma obra de arte (sim: obra de arte!) de Carlos Latuff, um dos melhores desenhistas deste país.

Trouxe o texto para cá por achar que o assunto merece debate e que podemos contribuir com a difusão desta informação. Hoje é uma obra de arte, amanhã o que será? Hoje censura. E amanhã? Tortura? Tempos sombrios vive o Brasil…

A obra de arte de Carlos Latuff censurada no judiciário carioca

O desembargador Siro Darlan, do Rio de Janeiro, concedeu hoje o que talvez se configure como o primeiro caso de asilo a uma obra de arte.

Darlan foi proucrado pelo juiz João Batista Damasceno, da 1ª. Vara de Órfãos e Sucessões, com um caso desesperador: decisão do TJ do Rio de Janeiro determinava um prazo até o meio-dia de hoje, quarta, para a retirada de seu gabinete da charge Por uma cultura de paz, de Carlos Latuff. A censura foi motivada por um pedido do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP), filho do deputado federal Jair Bolsonaro – ambos conhecidos não exatamente por seu espírito democrático.

A charge de Latuff está enquadrada no gabinete e mostra um PM atirando com um fuzil em um homem negro crucificado.

O magistrado decidiu transferir a obra para a sala do desembargador Siro Darlan, pois lá a censura não tem efeito. O desembargador diz que promoveu “asilo a uma obra de arte” e que “quem alguém estiver insatisfeito que vá ao presidente do Superior Tribunal de Justiça reclamar”.

O deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP), que pediu a censura ao TJ, vai encaminhar denúncia à corregedoria do tribunal. O deputado Bolsonaro chegou a divulgar em seu site oficial um modelo de ação indenizatória para os policiais militares do Rio que se sentissem ofendidos com a obra de Latuff, estimulando retaliação.

No Facebook Latuff comemorou o “asilo artístico” e relatou ameaças sofridas de policiais militares ao juiz Damasceno, que se disse favorável à desmilitarização da PM, pois “a política de segurança pública militarizada tem como alvo os pobres e excluídos, ‘inimigos eternos’ sujeitos ao extermínio”.

O lugar dos livros

“Na minha biblioteca tem os livros que estão comigo desde a adolescência e os chamados livros do coração, aqueles que li e tenho a esperança de reler, e ainda aqueles que comprei a partir de desejo muito forte de ler, mas que ainda não tive oportunidade de começar. Acredito que existe um tipo de livro que você precisa em determinada época. Essa obra exige uma adequação, um momento e uma hora exata para a leitura. Às vezes, você pega um livro, abre, lê duas ou três páginas e não prossegue. Depois de cinco ou seis anos, você abre aquele mesmo livro e se apaixona, lê até o final. Isso aconteceu comigo diversas vezes. Então, hesito em me livrar dos livros.”

“Sou leitor profissional, faço crítica para jornal e, por esse motivo, entrei na lista de envios das editoras. Sem pedir, recebo até 25 livros por semana em casa. E isso acaba virando um problema porque não é a toda hora que você consegue encontrar tempo para organizar e mesmo fazer uma triagem de tantos volumes.”

“Três prateleiras da minha estante quebraram por excesso de peso, e os livros estão espalhados por diversos pontos do apartamento. Comecei a fantasiar que, uma hora ou outra, o piso também vai ceder e serei responsável pela morte da família do andar de baixo, onde, inclusive, tem uma adolescente que berra o dia inteiro. Mas, apesar disso, tenho tudo bem organizado na cabeça. Se alguém precisar de um livro da minha biblioteca, é só perguntar que eu encontro. A minha organização é totalmente afetiva, não tem lógica. Na sala, devo ter uns cinco mil livros. Meu criado-mudo está uma calamidade. Outra fantasia que tenho é de morrer soterrado pelos livros do meu criado-mudo, onde deve ter uns 200 livros.”

“Traduzi para a Cosac Naify, o livro Paris não tem fim (2007), do Enrique Vila-Matas, mas eu não conhecia o autor. Depois disso, ele veio ao Brasil para participar de um evento literário, circulou e concedeu entrevistas. É comum perguntarem a um autor estrangeiro se ele conhece a literatura brasileira e, para a revista Época, ele respondeu o seguinte: “Conheço a Clarice Lispector, o Dalton Trevisan e o grande Joca Terron”. Fui o único que mereceu um adjetivo. Peguei o exemplar da revista e procurei o expediente para ver se não tinha algum amigo meu fazendo piada. Não tinha. Meses depois, recebi uma ligação telefônica de uma repórter da revista Época, a mesma que tinha entrevistado o Vila-Matas, para falar sobre um outro assunto. Perguntei a ela se o escritor catalão tinha dito aquilo mesmo. Estava em dúvida. Afinal, ele poderia ter dito “o grande Dalton Trevisan, Joca Terron” e, na edição, por descuido, o “grande” teria se aproximado de meu nome. Mas a repórter garantiu que a frase era aquela mesma e, confesso, fiquei muito feliz porque o Vila-Matas é um autor que admiro.”

“A maior probabilidade é que um livro não seja escrito. As exigências da sobrevivência, o cotidiano, tudo, absolutamente tudo, atuam contrariamente ao seu desejo de escrever. Sobrevivo da minha imagem como escritor, atuando no jornalismo, com crítica, no mercado editorial, por meio de traduções e palestras. Há todo um sistema relacionado ao universo do livro. Mas não sobrevivo diretamente da minha ficção.”

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Recebo em casa a 12ª. edição do Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná que, ao completar um ano, salta de 32 para 40 páginas dedicadas à literatura. O título deste post “trocadilha” O lugar da poesia, manchete de capa do mensal.

Leio as sete páginas com os melhores momentos de Joca Reiners Terron no Um escritor na biblioteca, e faço isso em voz alta nos trechos acima, para minha esposa, ao lado. Guardadas as devidas proporções, há um quê de Joca no blogueiro: minha modesta biblioteca, embora menor, faz minha esposa, exagero!, pensar no dia em que não poderemos entrar em casa de tantos livros (e discos e dvds), vivo da fama de blogueiro sem ganhar por isso, tendo que me virar entre assessorias e frilas, e minha citação, pelo admirado Jotabê Medeiros, em O Estado de São Paulo, em matéria sobre a subida de Nelson Jacobina, me fez sentir algo parecido com o que o autor de Sonho interrompido por guilhotina sentiu no episódio Vila-Matas.

Minha esposa vira e retruca, entre a ironia e a compreensão: “não vai te inspirar nesse cara!”